Hoje Macau Manchete SociedadeTurismo | Macau adere à Organização das Cidades do Património Mundial Macau aderiu na sexta-feira à Organização das Cidades do Património Mundial, por ser um “símbolo de unidade e exemplo de fusão e coexistência da cultura oriental e ocidental”. Em ano de pandemia, especialistas comentam as diferenças entre Macau e Veneza em termos de riscos para o património [dropcap]S[/dropcap]egundo o comunicado do Governo de Macau, foi realizada na sexta-feira a “Cerimónia de Afiliação da Região Administrativa Especial de Macau na Organização das Cidades do Património Mundial (OWHC)” através de videoconferência. Durante a cerimónia, o presidente da OWHC e também presidente da Câmara de Cracóvia, Polónia, Jacek Majchrowski afirmou que “Macau é um raro exemplo de um lugar aonde ao longo dos séculos, houve uma convergência estética, cultural, de arquitectura e de diferentes técnicas do Oriente e do Ocidente”, segundo o comunicado. Por essa razão, apontou a mesma nota, Jacek Majchrowski, “expressou estar muito feliz por poder dar as boas-vindas a Macau nesta sua adesão à OWHC, como símbolo de unidade e exemplo de fusão e coexistência da cultura oriental e ocidental”. Segundo o Governo, esta adesão “facilitará a obtenção de informações internacionais sobre preservação do Património Mundial e a participação de Macau em eventos relevantes, aprendendo a experiência de outros locais no que diz respeito à preservação de propriedades do património mundial, potenciando assim ainda mais a reputação internacional de Macau como cidade Património Mundial”. Macau foi representando pela secretária para os Assuntos Sociais e Cultura, Ao Ieong U. O território tornou-se na terceira cidade chinesa a aderir à organização, depois de Suzhou e Dujiangyan. A Organização das Cidades Património Mundial foi fundada a 8 de Setembro de 1993 em Fez, Marrocos. É composta por mais de 300 cidades nas quais estão localizados sítios incluídos na Lista do Património Mundial da UNESCO. O centro histórico de Macau foi inscrito na lista do Património da Humanidade da UNESCO em 15 de Julho de 2005, tendo sido designado como o 31.º local do Património Mundial da China. A classificação integra vários edifícios históricos construídos pelos portugueses, incluindo o edifício e largo do Leal Senado, a Santa Casa da Misericórdia, as igrejas da Sé, de São Lourenço, de Santo António, de Santo Agostinho, de São Domingos, as Ruínas de São Paulo e Largo da Companhia de Jesus ou o Farol da Guia. Cidade suspensa A pandemia suspendeu a pressão turística em Macau, que em 2019 recebeu o dobro dos visitantes de Veneza, mas especialistas apontam diferenças entre as duas cidades, ambas património mundial da UNESCO, a começar pelos riscos para o património. No ano passado, Macau foi visitada por perto de 40 milhões de turistas, numa área com 30 quilómetros quadrados – mais que Paris (38 milhões), Veneza (20) ou Portugal (27 milhões), depois de o país se tornar um destino popular. Em Macau, antes da crise sanitária, a cada segundo entravam, em média, 1,2 turistas – mais de 70 por minuto, 4.500 a cada hora, cerca de 109 mil por dia. O cartoonista Rodrigo de Matos, que colabora com o jornal Ponto Final e o semanário Expresso, ilustrou as enchentes num ‘cartoon’ de 2017: uma lata de sardinhas com a marca “Macau”. “Antes da covid era o dia a dia, principalmente no centro da cidade: havia zonas em que era praticamente impossível uma pessoa andar, fazia lembrar uma discoteca”, recorda. A viver no território desde 2009, o cartoonista nunca tinha visto “a cidade tão vazia”, tirando durante “o ocasional tufão”, e acredita que “melhorou a qualidade de vida” dos residentes. “Aproveitamos para ver algumas partes da cidade a que normalmente não vamos, devido à enchente de pessoas. Para quem não conhecia o centro histórico, é a altura ideal”. Quem por estes dias passeia no território encontra uma cidade vazia, do centro histórico deixado pelos portugueses aos mais de 40 casinos. No Venetian Macau só os funcionários vestidos de ‘gondolieri’ evocam a presença humana, à excepção do ocasional visitante. O presidente do Conselho Internacional de Arquitectos de Língua Portuguesa (CIALP), Rui Leão, que chegou ao território no final dos anos 1970, critica a enorme transformação da cidade desde a liberalização do jogo, em 2002. “Nos últimos anos estamos submetidos a um excesso [de turistas] que é verdadeiramente aflitivo”, com consequências “em tudo”: “deixa de se ter cafés ou mercearias de bairro” no centro histórico, exemplifica. As queixas são as mesmas de Veneza ou Barcelona, e, mais recentemente, Lisboa: gentrificação, aumento do preço do imobiliário, poluição, degradação dos monumentos. Mas se Macau sofre de igual pressão turística, “a situação é diferente”, defende Leão. “O turista que vai a Veneza ou a Lisboa vai lá por causa do património, da arquitectura, da cidade em si”, enquanto em Macau “as pessoas vêm pelos casinos”, explica. Por essa razão, “em Veneza e Lisboa o património está salvaguardado, porque é muito claro que sem aquele património não há turismo. Em Macau, não há essa consciência: o património pode desaparecer, e tem desaparecido”, lamenta. Brilhantina e decadência Do alto da escadaria das ruínas de São Paulo, vê-se o Grand Lisboa, a joia da coroa do antigo magnata Stanley Ho, num território em que os casinos rivalizam com o património autêntico deixado pelos portugueses. “Temos o Venetian, que é a imitação de Veneza, o Parisian, com a imitação da torre Eiffel, e vamos ter o Londoner”, aponta a arquitecta Maria José de Freitas, a viver em Macau desde 1997, dois anos antes da transferência para a China. Para a doutoranda em patrimónios de influência portuguesa, é esta “espécie de Disneylândia” que atrai “os milhares de turistas da China que procuram uma atmosfera europeia”, com as visitas ao centro histórico a não passarem de um apontamento. “Eles passam pelas ruínas de São Paulo para tirar uma fotografia e dizer ‘estive aqui’, não têm tempo sequer para ler as placas”, critica. A visita deixa, apesar disso, marcas no centro histórico, inscrito como Património da Humanidade em 15 de Julho de 2005. “As ruínas de São Paulo estão constantemente a ser percorridas por turistas, e os autocarros e a poluição, e todo o tráfego rodoviário na zona, são extremamente prejudiciais”, sublinha. A arquitecta aponta que continua sem haver um plano de protecção do legado português em Macau, previsto na lei de salvaguarda do património de 2013, aprovada oito anos após a inscrição na Unesco. Sem balizas legais, o património deixado pelos portugueses viu-se rapidamente cercado pela pressão imobiliária, com o Governo a autorizar a construção de casinos na península e edifícios a despontar em torno da área protegida. Terra à vista A polémica mais recente envolve o Farol da Guia, o primeiro farol na costa sudeste da Ásia, ameaçado pelos planos de construir um edifício de 90 metros. O caso levou a Associação Novo Macau a apresentar queixa ao Comissariado contra a Corrupção, em 23 de Julho, um mês depois de o Grupo para a Salvaguarda do Farol da Guia se ter queixado à UNESCO. Em 2017, o Comité do Património Mundial da UNESCO criticou o Governo pelo “possível impacto de empreendimentos de grande altura nas paisagens do Farol da Guia e da Colina da Penha”, alertando que a falta do plano de salvaguarda do património pode pôr em perigo o seu estatuto. Para Rui Leão, a degradação não parece fácil de inverter, quando 80 por cento do PIB de Macau vem das receitas do jogo, o grande chamariz de turistas. “Qualquer economia monofuncional é um sítio onde não há muito debate”, lamenta o arquitecto, considerando que o território se arrisca a perder o que faz a sua diferença: um património de cinco séculos, na encruzilhada entre oriente e ocidente. “Isso faz com que Macau não seja um sítio alienado ou insuportável, como Doha [capital do Qatar] ou o Dubai, em que pode haver muito dinheiro, mas não há mundo: são cidades ‘fake’, feitas de nada”, defende.
Carlos Morais José A outra face VozesSob o céu de Palmyra [dropcap]P[/dropcap]assara por Palmyra mas de Palmyra não saíra. Um esgaço de gente, eu, somente, a espaçar entre os doentes. Palmyra nunca ficava para trás e nós — que bem para a frente andávamos! Talvez às voltas, em círculos vários, complexas ovais, mas ali estava de novo Palmyra, sob as nossas sombras esticadas; e a noite que se aproximava; e o suão se levantava. E em Palmyra dormiria. Ali atendia o dia. A noite pertencia à lei. Todas as noites as passei em Palmyra. Vagueei sob arcos e arcadas, grandes portas e escadas, visitei ruelas, lojas, tabernas. Conheci os donos das esquinas, os senhores dos bairros. Era, amiúde, convidado para jantar. Conheci mulheres e elas conheceram-me, embora a nenhuma me vinculasse por me saber mera passagem. Todos os dias saía de Palmyra e me metia ao caminho. Talvez de um forte, talvez do mar, de um porto. Sonhava barcos no dorso do meu camelo. E comandava embalado toda uma tripulação. Pensava na cidade onde pretendia atracar. Teria ela mar ou um mero rio? Depois sentia um solavanco maior, um bramido e despertava do meu devaneio. A besta acabava de se ajoelhar, já noite crua, às portas da cidade de Palmyra, não muito longe da Fonte Eterna, de onde tantas vezes olháramos o contraluz do castelo e, num gelo súbito, tremêramos. Estava em Palmyra e outra noite se estendia à minha frente. Um velho recolhia cacos. Interpelei-o: “Velho Mestre, apresenta-me à rainha. Ouvi que ela ordena sobre Persas e Romanos e ainda outros povos cujo nome é terrível e não se deve pronunciar”. O velho aquiesceu. Nessa noite, adormeci sossegado na taberna. Mas outro dia espairecia e ao caminho eu me fazia. E para Leste me dirigi, para Leste indiquei o meu olhar. Desta vez fi-lo sozinho, oscilante no dorso de meu dedicado animal. E, em devaneios, sob o sol ainda tépido da manhã, o velho do nada me aparecia e me dizia ter a rainha anuído a meu tão ousado intento. E o coração pulsava desmedido sob a pele, pois já longe me julgava. Forte bramido: meu camelo que ajoelha e eu acordo em terra de Palmyra, lá no seu largo outonal. Ali aterro em solo quente, ainda oscilante da viagem, mas quente fornalha, a escaldar, quase miragem, não fossem reais as armas que estendidas me esperavam. E, por detrás de estandartes, de homens de várias artes, soldados e generais, ministros e sicofantes; sem manobra de intenção, surge impávida a rainha. “Dizem-me que queres sair de Palmyra e não o consegues. Todos os dias, porém, o tentas. Levas a tua magra tenda e ala pelo deserto, que preferes a esta cidade. O que pretendes de mim?” “Que intercedas junto aos deuses que me tramam. Morfeu e a sua dama. Os deuses dos caminhos desta terra, os do deserto, os da falta de água.” “Vai-te, homem. Sai da minha cidade. Ninguém quer ouvir o teu resmungo, a acidez da tua língua estrangeira, a rigidez desse discurso, as várias cores dos teus costumes.” E gargalhava. E assim, sob tochas, me levaram à rua e da rua ao largo e do largo às muralhas onde o meu camelo me esperava. O dia já despontava. E montado por mim dei. Tinha finalmente a esperança, sagrada por ordem real, de me afastar de Palmyra. E tão crente, tão seguro, estava de por fim poder partir que — mal ordenei ao bicho: “Oriente!” — dei por mim logo a dormir. Sonhava com a cidade que eu tanto desejava e via Palmyra ao fundo, chorosa e definhada. Lá para trás, ficava. Palmyra, a santificada, a da fonte sempiterna, a sempre núbil do deserto. E por toda a noite errei. Devo ter dado voltas e revoltas, ter voado da gangrena ao desespero, editado ânsias de corvos e prateleiras de ícones abandonados. Era o mundo um cemitério. Vasto, orgíaco de morte. Acordei num bramido de joelhos. Era ainda em Palmyra onde, do pesadelo, o nobre animal me acoitava. Havia uma porta entreaberta e um guarda, que generoso acolhia: “Entra, palerma. Todas os dias…: para onde tanto vais?…” “Tenho um encontro prometido em Samarra. Mas em Palmyra sempre me vejo e dela não consigo sair. Quando me afasto de Palmyra, logo adormeço e sonho, desemboco em devaneios e sempre por mim dou de volta, a esta mesma cidade. Tentei o chá, o café, as raízes interditas. Mas sempre os devaneios me tomam. Diz-me — tu que vês os homens e as mulheres a passar —, o que posso eu fazer?” “Continua a tentar, rapaz. Todos dias. Mantém pronta a tua tenda. Alguma vez o camelo te levará para Oriente e te depositará ainda estremunhado no mercado de Samarra, onde cumprirás o teu encontro. Ninguém te poderá acusar de chegares atrasado ou de não teres firmemente tentado. “Entretanto, devaneia no dorso do teu animal e pelo teu pé nas travessas desta cidade. O que poderás fazer é devanear: de dia pelo deserto e de noite pelas tabernas de Palmyra.” O guarda, que era um crente, acrescentou ainda: “A bondade divina permitiu a miríade dos seres e das manias. Por isso, também para a tua doença haverá um lugar sob a roda do céu.”