Ela e a ausência

O que muitas vezes acontece não é história que se relate ponto por ponto, mas também não é coisa que se confunda com o simples passar do tempo. O que acontece é, quase sempre, uma infinidade sem meta ou talvez um dia que tivesse começado pelo meio.

Ela senta-se no baloiço, sobrecarrega-o com o corpo, oscila as pernas para a frente e deixa depois cair a cabeça para trás. Parece uma planta carnívora a abandonar bruscamente o seu estado vegetal. O jardim ao fundo termina sobre um fosso onde há cisnes e folhas mortas a velejar na água escura.

Ainda não a consegues ver. O busto oitocentista encobre a zona dos baloiços. Só sabes que não há crianças a correr, nem tão-pouco aquele tremor que vive de urgências fictícias. A calma profunda passa por saber que aquilo que ocupa o tempo é privarmo-nos dele. Um certo alheamento, por outras palavras, que não esconde a floresta densa que somos e o amor que guardamos numa arca muito bem escondida.

Quando a viste de perfil e ao longe, com as pernas esticadas e o pescoço a reerguer-se, percebeste que ela nada te iria dizer. Excepção para a nulidade com que se revolvem as frases ou com que se revolve a terra à procura de uma pedra raríssima. Há sempre esperança, diz-se em certa filosofia.

Sentas-te no banco de pedra que tem vários azulejos partidos. Conta-los um a um, são trinta e dois. Consegues vê-la a partir daí e ela, depois de ter de novo levantado a cabeça, avistar-te-á, se for essa a sua vontade. Terá que fazer um pequeno esforço, inclinar ligeiramente o rosto para o lado direito. Se estiver em recolhimento, tratar-te-á como uma porção de nada. Mas fê-lo, fê-lo a custo e tu reparaste. Coisa de segundos. Não poderias suplicar-lhe que regressasse ao início, quer dizer, àquele ponto imaginário em que vocês os dois se teriam conhecido há muito tempo, de tal modo que agora poderiam estar prestes a reencontrar-se. Era falso, nunca se tinham deparado um com o outro. Era a primeira vez.

Sempre que ela movia a vasta cabeleira, distinguias as alças transparentes que lhe envolviam os ombros e logo insinuavas em desvario que era altura de se dirigirem um ao outro para festejar os anos que haviam injustamente defraudado. Estavas a passar-te, como é evidente. Os teus pensamentos eram extravagantes, mas, por outro lado, é verdade que nunca na vida tinhas sentido pensamentos tão estranhamente reais. Por isso te levantaste e dirigiste a tua pequena sombra até ao baloiço onde ela se recostava.

Foi nessa altura que surgiu a imensa nuvem esverdeada de pássaros. Seriam estorninhos. Eram milhares e milhares e cobriram tudo. O lajeado da fonte, o busto, as argilas do parque infantil abandonado, os bancos, o fontanário, os muretes do jardim, o fosso, o coreto, os ramos das árvores e os canteiros. Tinham bico avermelhado e as penas levemente escurecidas na extremidade das asas. Todo o espaço à vossa volta se converteu numa chiada contínua, num estrilo que bramia por dentro das argamassas mais espessas. Diz-se que os contentores do porto por vezes se abrem. Desta vez foi uma estranha clareira do céu que raiou de ponta a ponta.

Ficaste na frente dela, mas ela não te encarou. Como se nada se passasse, voltou a balancear as pernas para o lado da frente e baixou de novo a cabeça para trás. O baloiço rangeu levemente com o peso, enquanto, à volta dos vossos corpos, a quantidade de aves era tal que dir-se-ia terem quase cegado a luz do início da tarde. A dada altura, só se ouviam penas a bater e a chilreada impregnara-se em todos os poros do planeta.

Dois ou três minutos depois, os estorninhos levantaram voo ao mesmo tempo. Formaram no ar uma espiral gigante que se movia nas extremidades e que logo se reequilibrava. Um assombro que cobriu toda a parte norte da cidade.

Baixas a cabeça lentamente para, de novo, observares a mulher que se sentava no baloiço com as pernas para a frente e os cabelos caídos para trás. Abriste os olhos e verificaste que o baloiço estava vazio. É verdade: a mulher não existia. E o baloiço não passava da projecção vertical de um conjunto de trepadeiras que submergia todo o relvado até ao canteiro circular do busto oitocentista. E pensaste para ti em silêncio: a ausência é a origem da história, de todas as histórias. Regressar é ofício de sangue.
Os grandes dias iniciam-se verdadeiramente pelo meio.

4 Nov 2021

Geografias da alma

[dropcap]O[/dropcap]s dias continuam a viver connosco lá dentro. Não temos alternativa, relembro e relembra o meu poeta mais próximo. E alguns passam lestos, vertiginosos, quase sem deixar outro rasto que não seja um leve aroma a alegria. São os dias felizes, aqueles em que acreditamos que o mundo foi criado à nossa medida e à nossa espera. Talvez um dia desses tenha feito Keats escrever Give me Women, Wine and Snuff, onde exalta o hedonismo e garante que passaria de boa vontade a eternidade com vinho, mulheres e rapé, “My beloved Trinity”, garante-nos.

Depois há os outros, vagarosos, plúmbeos, eternos. Dias de que queremos sair, jaulas de tempo triste que provavelmente não merecemos mas que sabemos que iremos sempre enfrentar. Nós e os outros, os que amamos e os que desconhecemos. Escrevo estas notas ainda sem caminho à vista, um caos doce que com alguma sorte conseguirei transformar em crónica. Estou a meio caminho entre os dias de que vos falo, sentado num cais a olhar os barcos atracados num baloiçar suave. Há silêncio e algumas pessoas que passam. E sem querer descubro-me a pensar nos dias que esses desconhecidos carregam, cheios de conquistas e angústias, iguais aos meus e aos de toda a gente.

“No man is an island”, e o famoso verso de John Donne parece ganhar ainda mais sentido e força quando se está só à beira-mar. Não o somos, de facto, por mais que por vezes gostássemos de o ser. Não o somos e esta certeza tem de ser constantemente relembrada num mundo em que paradoxalmente tudo é criado para encurtar distâncias e oferecer proximidade. Tal é um dos critérios contemporâneos do que se julga ser o progresso. Só que muitas vezes essa proximidade não passa de uma quimera, uma homeopatia para a solidão: existe mas não cura nem resolve.

Saber a geografia da alma e praticá-la parece-me importante. Há pouco tempo falava com uma amiga sobre a insularidade que não é apenas territorial mas sim um traço de personalidade de quem vive em ilhas. Uma vocação contemplativa, melancólica e um eterno dilema entre a fuga e o regresso. Percebo e constato. Mas contraponho a peninsularidade que me habita, talvez fruto de um determinismo geográfico, não sei. Preciso de olhar para o mar mas não vivo sem esse pedaço de terra que me liga ao Outro. Para mim é talvez o melhor dos estados porque a solidão pode coabitar sem problemas com a necessidade de ver e estar com alguém.

Quero acreditar que os tempos não nos estão a transformar em arquipélagos humanos, próximos mas ao mesmo tempo distantes. Não existem substitutos virtuais para a amizade ou o amor, nada que substitua o olhar e a presença. O que temos à nossa disposição – as redes virtuais, a rapidez de informação – são ferramentas e não valores em si. Saibamos aproveitá-las sem as venerar.

E amigos, a ordem misteriosa das coisas voltou a atacar: mal acabei de escrever a frase anterior recebi uma mensagem de alguém que nunca vi mas que pertence à minha rede de contactos virtuais. É uma rapariga colombiana. Escreveu-me que nesta data, há nove anos, ouviu um fado com letra minha que a comoveu e fez com que me contactasse via Facebook. O fado chama-se De Que São Feitos Os Dias. Voltei a olhar para os barcos e juro que vi alguns a sorrir.

6 Nov 2019