Colhido por nuvens a alta velocidade

Santiago, Óbidos, quinta, 14 Outubro

Embrenhado que andava na celebração de certa ideia de resistência, devo ter achado que o tempo me acompanhava a par e passo, na vez de insistir naquela tão sua corrida inexorável. É de contar ainda com as muitas hesitações em torno da celebração de uma década titubeante, sinuosa, arriscada, exuberante, excessiva. Mas estava decidido, por razões várias, fazer prova de vida nesta edição do Folio. De súbito, os dias viraram semanas e estas quinzenas e a areia revelava que estavam os livros estavam por fazer. Eram só sete e um cd. Para aqui chegar, portanto, foi uma oficina de milagres. Para falhar que não seja por pouco.

Começamos por este lugar sagrado com a exposição a partir do «Diário das Nuvens». O João Francisco [Vilhena] não consegue esconder o seu entusiasmo em torno de uma biblioteca das nuvens que radica em Aristófanes e espalha por séculos e séculos. Chama a atenção para a luz que se projecta no altar, sem outra imagem que uma enorme nuvem, em diálogo com as massas que abandonam com vagar as lombadas e enchem de mais céu o recanto. Este resplendor prolonga-se na obscuridade da capela mínima de São Martinho, com a projecção dos pequenos filmes, cruzamento de vozes e sons do etéreo e da terra. Foi momento de relembrar o Edgar Libório, mestre da luz e do som. Bebíamos já uma Cadáver Esquisito, isto se tivesse chegado. Ainda teremos que apresentar a vida amarrotada de Jean Moulin e as ilustrações para Natália [Correia] e Aurelio [Arturo] de uma mão-cheia de colombianos e portugueses, antes de nos dedicarmos à cerveja literária, que tardou em chegar. Suspensas das vigas da Artes & Letras, do mano Luís [Gomes], estão as ilustrações que acompanham cada um dos seis contos. Alguns cartapácios talvez não tenham apreciado a quebra no sossego imposta pelos amantes do lúpulo. Mas por estes dias, o ponto de encontro para perdidos e desorientados fixou-se aqui.

Casa da Música, Óbidos, sexta, 15 Outubro

O nó teimava em não descer da garganta. Os miúdos que iam interpretando os poemas de «Tens é garganta! – Só se pode ser poema no Outono», acompanhados pelos colegas que compuseram os acompanhamentos musicais, voavam alto. Custa-me não enumerar aqui cada um dos nomes, quando preciso de dizer que foi o Luís Germano, que anda a fazer da sua escola Josefa d’Óbidos laboratório exemplar de promoção da leitura, que o Henrique [Manuel Bento Fialho] fez uma primeira escolha de poemas das nossas edições, depois selecionados pelos jovens leitores, que José [Anjos] animou depois as oficinas à procura da respiração exacta. O CD está bastante bem, mas o palco transfigurou-se em jardim semeado e esta celebração da palavra afirma a escola como lugar vivo.

Santiago, sábado, 16 Outubro

Saltada a Lisboa, digo Setúbal, para a inauguração da «Ilustração Portuguesa», na Festa da Ilustração, com livro incluído. Mais uma corrida, soltando o perfume da tinta e das imagens, e logo me encontro frente à lareira enquanto se entrava Luiz Pacheco adentro, no clube de leitura dedicado aos malditos. «Comunidade» continua um ser vivíssimo. Nunca o corpo foi avaliado, medido, devorado, celebrado assim. Todos conhecem o Pacheco, mas afinal quase nenhum o lê. Apetecia-me uma Cadáver Esquisito, mas os hóspedes dos dias anteriores protegeram-nas com a própria vida.

O Jorge [Silva] deu magnífico ritmo ao pequeno volume que reúne os 80 textos nascidos da provocação fotográfica diária do João Francisco [Vilhena]. Nunca antes me tinha obrigado à prática diária da escrita e o resultado escalda-me as mãos. Apesar de uma ou outra ideia, da volúpia da descrição, dos socos na narrativa, foi sobretudo a palavra que persegui, os ossos do sentido, a transfiguração da oralidade. Fui livre que nem cumulus. A riqueza de formas e subtilezas, a gama do épico ao sussurrado, destas imagens não deixam de interpelar. No ecrã não estavam mal, com a luz a parecer surgir do seu interior. Mas o seu lugar é o papel, tal como parecem ter sido feitas para encher capelas, igrejas, catedrais. São objectos do mistério, onde nos espelhamos de mil modos. Assim os poemas quando cumpridos.

Teatro da Rainha, Caldas, terça, 19 Outubro

Vejo da plateia o círculo de luz projectado sobre o José Luiz [Tavares] no palco do Diga 33. O rigor da sua poesia impressiona sempre, tanta oficina e leitura, muito horizonte e ideia. A que se somam depois os pedaços de vida, as causas, os interesses, paixões e ódios. Há uma fulgurante verdade no que faz. Podia até ser puro artifício, desde que escrevesse o mesmo, mas assim brilha no escuro.

Espaço Ó, Óbidos, quarta, 20 Outubro

Está mais confessional hoje, o Miguel [Martins], no baile de apresentação à sociedade de «Do Outro Lado». Atira episódios intensos, conta bastidores da recolha dos dispersos de tantos anos, que está longe de ser completa, mas seja esta a sua vontade quase sempre da frugalidade e do apuro. De qualquer modo, exemplifica na perfeição o percurso de uma voz que pratica a mais terna das raivas. Ou será o inverso?

Óbidos, sexta, 22 Outubro

Não podia deixar de ser festa, a apresentação de «Micróbios», do Henrique [Manuel Bento Fialho], pelos modos, temas e práticas. O Fernando Mora Ramos fez leitura de abrir apetites, partindo tudo e lançando aos quatro ventos. O autor estava em casa e foi de espadeirar com ironia o alto e o baixo. Que bem sabia agora uma Cadáver Esquisito. Lá iremos, mas antes «O Ângulo Raso», acabado de chegar da gráfica, deu azo a bela sessão em torno de Fernanda Botelho, com intervenções substanciais da Joana [Botelho], da Paula Morão e do José Manuel dos Santos. Agora a cerveja, outra vez. Com livro onde recolhem os seis contos expostos nos corpos das garrafas. Vieram dizer que as sucessivas intervenções acabaram sendo sessão de stand up. Se isto fosse brincadeira.

Óbidos, sábado, 23 Outubro

Estou para ver as reacções a este «Puta de Vida», começando pelo título. (Estou furioso por não ter dado por título próximo do Miguel Esteves Cardoso). Contém uma energia que se comprovou no modo como tocou a plateia durante a leitura a várias vozes de um capítulo fulcral. O tema será a violência, também a conjugal, mas os romances não se medem aos temas.

Aprendo com gozo que o Luís [Cardoso] é animal de palco, não apenas no modo como enfrenta as questões nos debates, mas a ler e a cantar o seu Timor. A noite cresceu nos Bons Malandros, como habitualmente, desta vez regadas a Cadáveres.

24 Nov 2021

Na rua Direita

[dropcap]E[/dropcap]stive em Óbidos quatro dias, a convite do Fólio. Óbidos é uma vila medieval com óbvio interesse patrimonial e turístico. É também, ao que parece, a capital da ginja em copo de chocolate. E tem livrarias, imensas livrarias. É no entanto uma vila pequena, e percorrer Óbidos de lés a lés a pé não leva mais de dez minutos.

O que Óbidos não tem, no entanto, é um minimercado. Ou uma tasca. Não tem nenhuma das coisas que esperamos encontrar numa vila daquela dimensão. A rua principal de Óbidos – a Rua Direita – exibe de um lado e outro uma monocromática série de estabelecimentos onde se vende a inevitável ginja em copo de chocolate, pão com chouriço feito em forno de lenha, bricabraque de vaga inspiração medieval e garrafinhas de água para o turista incapaz de fazer duzentos metros em linha recta sem desidratar.

Tudo feito a pensar no turista. O turista, já se sabe, tem horror à diversidade de oferta. Não quer, para além da dificuldade de escolher o sítio onde consumir aquilo que esperam que consuma, ter ainda de escolher o que consumir. Sítio que se quer turístico tem que reduzir a oferta a um cabaz de, no máximo, seis produtos, e concentrar esforços em encaminhar a horda de consumidores aos sítios onde os produtos escolhidos podem ser adquiridos sem demoras. É assim que funcionam, por exemplo e há largos anos, os pastéis de belém (tirando obviamente a parte da demora).

Óbidos tem também meia dúzia de restaurantes, mais ou menos disseminados pelas ruas paralelas à rua Direita, destinados ao turista que se esqueceu de trazer o tupperware para a excursão. Embora não sejam de facto o core business da vila, constituem um não despiciendo apoio logístico. Óbidos tem também hosteis, gesthouses de múltiplas cilindradas e hotéis que vão do clássico ao conceptual. Ao longo do ano recebe e promove imensos festivais. Desde o Fólio, de literatura, ao festival Internacional do Chocolate ou ao festival Medieval. E tem turistas, milhares de turistas falando dezenas de línguas diferentes. Chineses, russos, franceses, alemães, uzbeques, you name it. É uma babel de línguas numa rua com pouco mais de duzentos metros.

O que Óbidos não tem, e parece não querer de todo ter, é habitantes. Haverá um ou outro resistente, não duvido, pessoas que dada a idade ou condição socioeconómica não conseguiram sair dali. Pessoas, no fundo, condenadas a viver num parque de diversões aberto todos os dias.

Essas pessoas quando querem beber um café ou comprar um maço de cigarros deslocam-se até à bomba de gasolina, que fica a uns meros 550 metros da porta da vila. Se quiserem ir ao supermercado, têm apenas de percorrer cerca de um quilómetro. Na vila muralhada propriamente dita, não há quase nada de extra-turístico. A eficiência do modelo de core business é absolutamente notável.

Dado que uma elevadíssima percentagem do turismo de Óbidos é de curta duração (excursões de autocarros que despejam centenas de turistas de manhã para os recolherem à tarde), o atendimento não é propriamente excepcional. Não precisa de o ser: o bicho turista entra e sai dos sítios simplesmente porque os sítios estão ali. Não havendo qualquer diversidade de oferta e muito pouca variação de preços, o critério acaba por ser o acaso. Pelo que as pessoas atrás do balcão não estão de todo preocupadas com a fidelização dos clientes que passam pela porta. A simpatia no atendimento pode corresponder, no máximo e marginalmente, a uma ou outra gorjeta.

O turismo, quando levado ao expoente da caricatura, não produz qualquer tipo de experiência duradoura. É uma máquina de vaivém na qual o objectivo é tirar peso dos bolsos transferindo-o para às mãos. Óbidos é apenas um exemplo do estado terminal a que se pode chegar. O Chiado e a baixa de Lisboa, embora até podendo levar muito mais tempo a descaracterizar desta forma tão grotesca, estão no bom caminho.

25 Out 2019

Do dito e do por dizer

Casa da Música, Óbidos, 12 Outubro

[dropcap]N[/dropcap]ão consigo desembaraçar-me, aquele mínimo que seja, da âncora dos afazeres para voar baixinho deleitando-me nos interstícios dos encontros que um festival pode fazer acontecer. Ou estou preocupado ou já me cansei. Este dia pedia-me dúplice, capaz de subir a Norte sem sair do Oeste. Corro para, em sala cheia, saber com que linhas se cosem o Mathias Énard e o Valério [Romão] mais as coordenadas dos Orientes anunciados no tema, mas a conversa com a Ana [Sousa Dias] deve ter começado antes e o que oiço são minudências, pontas soltas.

Artes e Letras, Óbidos, 12 Outubro

Apesar do cansaço, o Luís [Gomes] acolhe-nos com o sorriso de sempre, com as lombadas frágeis a servir de encosto, enquanto o Valério [Romão] lê fragmentos de «O da Joana», sobre o planante fundo do Henrique [Manuel Bento Fialho] na guitarra e do Miguel Costa em instrumento chamado computador. Celebrava-se a reedição, e também do ansiado «Da Família», mas este falhámos, por dificuldades de produção, pontas soltas, detalhes.

Antes, o Henrique havia entregado em mão o convite para pernoitar na sua «Estalagem» (ed. Medula), onde descubro, por entre os brilhos da impressão digital, este «Oração», que começa assim a explicar-me os dias: «Senhor, perdoa-me as faltas, andar/ aos encontrões distraído com fainas/ dispendiosas, sem sossego para preces/ nem inquietações, bolsos cheios de asma». O poema faz-se cruzamento do dia a dia com a carne da consciência. Desperta-me o modo dos versos se contornarem na quebra, a queda feita esquina de rua interminável e o poema um só trilho, corda de guitarra.

Tenda dos Editores e Livreiros, Óbidos, 13 Outubro

Temia pela hora matinal, mas a sala compôs-se, com chuva e sol e sinos e tudo. O Paulo [José Miranda] ignorou com elegância o que lhe atirava para o fazer falar e tratou de dizer, sem espinhas, o essencial sobre a criação. «Um Prego no Coração» investiga a ideia de obra acabada, no caso em Cesário Verde, erguida para despertar incessantes leituras, até de críticos, com afecto e agudeza. «Natureza Morta», que lhe valeu o primeiro Prémio José Saramago há uns redondos vinte anos, permite espreitar no jardim de inverno do espírito em acção, com recuos e maturações, desperdício e momento. Em fundo, «ouvimos» João Domingos Bomtempo.

Finalmente, «Vício», que nos permite o convívio com os cruéis demónios do abandono, da desistência. Corre límpida a frase, de par com o pensamento, para alimentar raiz, ramo e copa destas figuras frondosas. Como deve ser, a biografia faz-se aqui pretexto, linha para horizonte maior, movediço, aqui e ali perturbador. Manda o protocolo que se libertem pela voz umas passagens e o Paulo acedeu a fazê-lo, tanto mais que há muito não regressava a estes textos.

Difícil foi depois pará-lo, tal o gozo que ia extraindo e oferecendo. Ninguém arredou pé.
Com o fim da tarde não chegou apenas o vento frio, mas a conversa das que nos ajuda invariavelmente a definir perfis, os nossos e o dos outros, à maneira do medo a indicar-nos os contornos do mundo. O espaço Ó, como o próprio nome indica, fez-se centro de encontros, sem muralhas nem ameias. No instante que encaixa na data foi com o Paulo e a Inês [Fonseca Santos], mas outros houve. Noite dentro, manhã abaixo.

Horta Seca, Lisboa, 14 Outubro

São como jardins, as telas de Manuel Amado (1938-2019). Entramos para ficar, a ver o restolhar, a ouvir o tempo que passa, apenas deixam que aconteça uma dança de luz e silêncio. O rigor absoluto da geometria pulsa de humano, na aparência, ausente. Tudo respira nestes enigmas, que tanto podem ser narrativos suscitando uma miríade de acontecimentos, como paisagem contemplativa na qual a respiração nos permite o encontro connosco. A cidade revela-se nos interstícios, nas dobras, quando o exterior se assoma ao dentro. A luz é-nos indispensável, mas precisamos tanto de silêncio…

Santa Bárbara, Lisboa, 15 Outubro

O labirinto à beira-rio chamava-me, mas não consegui meter pés ao caminho e arriscar a festa, que me apetecia muito. E apetecia nada. Lisboa inteira esteve por lá a empurrar a noite dançando. Nunca uma manhã me custou assim.

Ogiva, Óbidos, 16 Outubro

Esta PIM!, Mostra de Ilustração Para Imaginar o Mundo, faz isso mesmo, sob arguta orquestração da Mafalda [Milhões]. Na bela galeria Ogiva, que me parece ora gruta, ora miolo de esfera, acontecem suaves firmamentos. Somos recebidos pelas máquinas de gritar ou sussurrar sons de dentro e de fora, nada a temer, que estamos escoltados pelos figurões de tinta e cerâmica da Marta [Madureira], abraços estendidos ao tamanho da parede. A casa, ainda que contendo universos, pode bem ser protectora. Este jogo entre interior e fora, ameaça e acolhimento, espalha-se pelas paredes de cada andar, convertendo o conjunto em movente organismo. Um bicho que ora desafia, ora oferece serenidade. As ilustrações domesticam bem o mundo, ainda que este não deixe de nos morder.

Tenda dos Editores e Livreiros, Óbidos, 16 Outubro

Desconsegui e o José [Pinho] relembra-o com verve e humor na dedicatória: «gratidão especial por não ter querido escrever». Ele sabe que não dependeu do querer. Por vezes, a realidade vence-nos, apesar do Zé teimosamente o desmentir. Descobri que reencarna o coyote dos desenhos animados, aquele que se locomove a tão altas velocidades que atravessa o vazio que une montanhas. Não lhe digam, tão só, onde está. Este saboroso «20 anos a Ler Devagar» pára no ar para fazer um impossível e importante ponto da situação. Impossível por que tal não se aplica a seres vivos. Importante para que não se esqueça o quanto se deve a este lugar de altos andamentos. A cidade, com tantos pontos tocados, o panorama literário, a desembocar nos festivais de Óbidos, enfim, esse monstro chamado cultura, nada ficou como dantes. Para se entender a fundo o sentido da palavra empresa havia que abysmar-se nesta experiência, com o que trouxe de idealismo e leitura prática da realidade, de puro gozo e busca de sentido. Nesta reserva natural não há muitos coyotes visionários.

Horta Seca, Lisboa, 18 Outubro

Enquanto o Sporting moribundeia, morre-nos o Jordão [1952-2019]. Está dito e redito: era um fora de série. Na minha infância, o futebol não me incendiava por aí além, mas o Jordão vinha de outro mundo. Fazia sonhar, claro. Ainda que o rosto o desmentisse, o corpo continha uma alegria que se soltava de modo exaltante. Pressentíamos o quanto de alma um jogador consegue ser além das jogadas e dos golos? Depois do futebol, o desaparecimento. Acrescento mais cinzento à minha tristeza por só agora ter percebido que pintava. A vida sabe fintar-nos e alguns golos sabem a verdade. Jordão sabia do que falava. «A estética do futebol marcou-me e ajudou a definir-me o caráter. Em certos movimentos que fazia dentro do campo é possível ver coreografias, traços que provavelmente também se manifestam naturalmente no pincel. São duas linguagens muito diferentes, no entanto, é possível encontrar semelhanças. Mas o que o futebol não tem é o silêncio que preciso para mostrar a verdade que, enquanto jogador, ocultei. Talvez falte mais silêncio ao futebol.”

23 Out 2019

Tirar do sério

Diário de Notícias, 23 Setembro

[dropcap]A[/dropcap] liberdade nunca chegou a ser um absoluto, que a de outro era fronteira. Mas na grande área das ideias, da cultura, parecia estar para sempre aberto esse lugar-comum, o da opinião escrita e publicada. Qualquer de nós podia dizer a maior asneira, com limites estabelecidos, até legais. Por estes dias nublados, percebemos que a ameaça continua, de maneira mais subtil e venenosa. Estamos obrigados a extrema auto-vigilância, para não tocar nos nervos. Somos todos apenas sistema nervoso, portadores de dor fundamental, continuada e logo vociferante, doravante vítimas em explosiva potência. As palavras são os alvos primeiros, mas as imagens merecem ataque, sobretudo as humorísticas. O DN abordou o assunto, a pretexto dos cuidados com que as caricaturas devem agora ser esculpidas, e a Cláudia [Marques Santos] achou por bem ouvir-me. Titubeio como habitualmente, e cada frase devia ser desmultiplicada, mas ficou dito.

«”Hoje [o escrutínio] já não é tanto acerca da liberdade, mas acerca da identidade”, defende o escritor e editor com um percurso ligado à banda desenhada João Paulo Cotrim. “Há nas populações urbanas do mundo inteiro esta hipersensibilidade às chamadas causas fraturantes. A questão do feminismo, do racismo, da homossexualidade. E, depois, a questão da religião. A religião o que trouxe para isto, e contagiou todas as outras áreas, foi a questão da ofensa. Quando o direito à ofensa foi uma conquista civilizacional. Tens de poder ofender”, continua. “Agora, diz-se que a minha identidade justifica que eu não seja ofendido, que eu possa ser exatamente o que quero. As pessoas não percebem é que o humor é precisamente o oxigénio. No fundo, está-se a tentar acabar com o ambíguo, que é o que tem graça nestas coisas. As ruas estão completamente sujas, mas as cabeças das pessoas estão completamente limpas”, diz, apontando para o perigo de a censura ter invadido a cultura, espaço onde “não é suposto resolver-se problema algum”. “É sobretudo uma infantilização do leitor, do consumidor de cultura, de qualquer pessoa. Aquele pobre não vai perceber que… Isto também estupidifica. Não dá a possibilidade às pessoas de fazerem as leituras que querem.”»

(A apresentação diverte-me, por esquecer o lado talvez mais interessante no contexto, o de investigador com obra publicada, para me pôr na pele que não descola, a da banda desenhada…)

Livraria da Adega, Óbidos, 28 Setembro

Muito pelas portas travessas da amizade, a abysmo envolveu-se deveras na edição deste ano do Fólio, que vestiu o tema: «Ócio. Negócio. A Invenção do Futuro.» (Os cóbois da Rua Castelo eram de cerâmica e subiam muralhas?). Sei de menos do negócio, aspiro dolorosamente ao ócio e raramente penso em futuro, a não ser para o imaginar como maneira dos tempos se atarem em um nó à mão de semear. (K. Dick ou Orwell escreveram sobre que acontecimento desta semana?). Mantenho as minhas dúvidas sobre o exacto alcance destas iniciativas, se produzem horizonte ou nevoeiro, mas acredito em encontros. (Na foto, que ilustra a página, o Edgar Libório apanhou-me de costas. Prefiro esta versão do logotipo para colorir à deste ano, toda ela preenchida de óbvio. Ou será óbvidos?).

Logo na primeira sexta, a conversa, que partia da ideia de «Fora do Lugar», colocou alta a fasquia, com intervenções desassombradas e sabedoras, como deviam ser todas, mas raramente acontecem nestes eventos. Cada um, o Hugo [Mezena], o José [Riço Direitinho] ou o Henrique [Manuel Bento Fialho], soube descer da sua vigia de escritor ao encontro de leituras desafiantes e rompendo logo ali fronteiras. A pluralidade temática está bem vincada na moderna prosa. Talvez até tenha estado sempre, de maneira ou outra, se mergulharmos além dos modismos. Saídos da Livraria da Adega e, provado o Medronho, fui com o Henrique falar um pouco mais desse quase romance sobre a geração dos sem lugar nascidos pós-Abril. Em «A Festa dos Caçadores» também há cóbois de mítico antigamente, gente vulgar de hoje, fulgor poético que alimenta, esse sim, o porvir.

Artes e Letras, Óbidos, 28 Setembro

Não chegou a ser surpresa, que o [José] Pinho já mo teria anunciado: o Luís [Gomes] mudou a sua gruta de Ali Babá para Óbidos. Livros são ainda poucos, mas o chumbo dos tipos e as prensas permitem que se chame atelier ao Artes & Letras O.2. Passei os olhos pela micro-exposição em torno de Moby Dick, enquanto o Zacarias corria a desafiar-me com enorme cubo de granito na boca. Acolhi a sua generosidade, uma plaquete de Inês Caria, com quatro linóleos e versos, apropriadíssima ao momento, «De Passagem»: «FUI NEVOEIRO NESTA/ PAISAGEM / uma forma cobrindo/ a manhã// irregular». Depois aconteceu Bordalo. Celebrando o regresso do herói da campanha africana contra Gungunhana, Freire de Andrade, os seus camaradas de armas encomendaram ao artista belíssima homenagem sobre pergaminho, encimada pelo retrato, riquíssima no detalhe decorativo, de fino recorte colonialista, com primoroso trabalho de cor, assentando o conjunto em minuciosa evocação da famosa batalha de Magul. Não sei se foi o patriotismo exaltado ou o ódio de Rafael ao Ultimato lhe guiou a mão, mas a peça brilha de tão extraordinária. E o original estava ali, em pasta de couro que recolhe a preciosidade em sóbria exuberância. Fiquei assombrado.

Pavilhão Atlântico, Lisboa, 30 Setembro

Vinte anos depois, ao menos para mim, mais ainda nesta tarde quente de domingo, a grande nave de bojo nos céus continua a chamar-se assim. Só porque sim, que nem são fortes os laços que me prendem ao Parque das Nações, excepção feita para as árvores ou o «Homem Sol», de Jorge Vieira. Está feita, e apresentámo-la, entre amigos, esta cápsula do tempo, para qual o Bruno [Portela] me convocou, pondo-me em lugares perdidos da adolescência, mas sobretudo mergulhando-me em fragmentos desfocados, decadentes, enferrujados, abandonados, miseráveis da minha cidade. «Uma Cidade Pode Esconder Outra» tem detalhes poderosos, como a capa ser negra e maleável ou a omnipresença da torre que arde, que celebramos logo na capa, com vermelho que reflecte. No miolo, imensas nuvens atravessam os olhares.

Casa José Saramago, Óbidos, 2 Outubro

Graças à generosidade do João [Brazão] e da sua cervejeira Trevo, levámos à Casa Abysmo e a outros lugares de prazer, duas cervejas IPA, ambas com o mesmo nome, mas com duas ilustrações distintas do Nuno [Saraiva], retiradas de «Moléstias, embustes e pontinhos amantes – escrita quotidiana em Portugal entre os séculos XVI e XIX», cuja apresentação ali falhámos: um casto cupido e um belzebu flautista.

Imagino que comentário suscitaria a Buñuel, que se alegrou ao descobrir a delícia do sentimento de pecado, que celebrava a bebida a ponto de afirmar ter passado a maior parte da sua vida ligeiramente nas nuvens, e praticar como ninguém a arte do dry martini. Indispensável, este «A Propósito de Buñuel», com que o Javier [Rioyo] e José Luiz López-Linares celebraram o seu centenário. O homem que viveu «comodamente entre múltiplas contradições» apresenta-se, pela voz e olhares de amigos, familiares, colegas e colaboradores, um enorme investigador do mistério, que bem sabia tirá-lo do sério. Exemplo maior, pérola na ostra, encontra-se no seu erotismo. Os beijos são-lhe suprema obscenidade: «repugnam-me»! E depois o riso, que o atravessava como relâmpago. Cada dia, para o ser tinha que provocar gargalhada. Beijo-o na boca por isto.

24 Out 2018