Ana Cristina Alves Via do MeioFiguras femininas na mitologia chinesa Na mitologia chinesa as deusas personificam virtudes e atributos tipicamente femininos. Retive algumas figuras, que me parecem particularmente importantes para um discurso sobre o feminino chinês. A CRIADORA. Nu Wa , irmã ou esposa de Fuxi, o Primeiro Imperador, é a segunda na linha dos grandes imperadores míticos. Sobre esta força feminina, meia serpente, meia humana, há dois relatos famosos ligados à criação dos seres humanos. No primeiro, a deusa cria os seres a partir de um barro moldado pelas suas próprias mãos. Criou-os sozinha e porque, ao passear sobre a terra, sentia uma solidão imensa, já que apenas tinha por companhia a paisagem natural e os animais. No segundo relato Nu Wa acasala com o irmão, depois de ter obtido licença prévia dos deuses, a fim de começar a humanidade. Em ambas as versões, e psicanálise à parte, parece-me importante frisar a ausência de um marido real. Na primeira versão, a deusa está completamente sozinha, na segunda é acompanhada por um membro da família no acto de criação, que não o seu marido de direito. Cabe exclusivamente à mulher chinesa tradicional, não só a concepção, como o acompanhamento e educação dos filhos. As criadoras solitárias sucedem-se na mitologia. Elas concebem pelo facto de comerem ovos de aves, tal como é o caso da Rapariga de Yousong que engole ovos de andorinha. Jian Di, a mais velha de duas irmãs muito belas, ficou grávida depois de ter engolido dois ovos de andorinha. E assim nasceu Xie, o patriarca do povo Yin. Ou, ainda, no mito da Criança Abandonada, Jiang Yuan, membro do clã Youtai, concebeu através do encontro com uma pegada de gigante. Deu à luz um filho, que primeiro abandonou e, depois, adoptou, após inúmeras peripécias. Este viria a ser o ilustre patriarca do povo Zhou. A PACIFICADORA. É ainda Nu Wa quem nos apresenta uma das virtudes femininas mais apreciadas pelas “duas metades do céu”: a capacidade de harmonizar e até anular forças destrutivas. Em Nu Wa remenda o firmamento, a deusa surge a repor a ordem no mundo, após parte do céu ter desabado, muito possivelmente na sequência de um conflito entre os machos celestiais. Ela quer e consegue remendar o firmamento para que os seus filhos humanos possam voltar a viver bem. A DUPLA. A figura da duplicidade é bem representada por Xi Wang Mu, ou seja, pela Rainha Mãe do Oeste. Esta deusa distante, que vive na Montanha de Jade, em Kunlun, é bastante masculina de aparência. Alguns investigadores chegam mesmo a levantar a hipótese de ela ter começado por ser um homem. A verdade é que, embora tenha forma humana, possui cauda de leopardo e dentes de tigre. Mas a sua duplicidade não se circunscreve ao domínio físico. Dela dependem as doenças, as calamidades e a própria morte, tanto na faceta positiva como na negativa. Assim, encontramo-la a espalhar pragas, mas também, a distribuir elixires e pêssegos da imortalidade. Recorde-se, a título de exemplo, o mito de Chang E voa para a Lua, onde a Rainha Mãe do Oeste recompensa com o elixir da imortalidade o arqueiro Hou Yi, pelo facto de ter abatido os nove sóis. A ESTRANHA. É a figura típica da estrangeira, da mulher que não pertence ao povo chinês. As heroínas estrangeiras são sempre mais animalescas, mais bárbaras, mais selvagens, tal como aquelas fêmeas que pertencem ao Povo das Mulheres. São uma espécie de amazonas, que têm medo dos homens e morrem em contacto com os chineses. São altas e claras, possuem o corpo coberto de pêlos e ostentam uma farta cabeleira até aos pés. Não têm seios e amentam os filhos pela raiz do cabelo, que é branca. Quando dão à luz bebés masculinos, estes não conseguem ultrapassar os 3 primeiros anos de vida. Logo, estas mulheres, não podiam ser piores… A TRABALHADORA. Também o mundo mítico se divide entre deusas que trabalham e deusas de enfeite. Nem todas as deusas trabalhadoras personificam o próprio trabalho. Há, no entanto, dois exemplos notáveis de criaturas míticas cuja função parece esgotar-se na acção laboral. O primeiro é o de Lei Zu, a mulher do Imperador Amarelo, que ensinou às chinesas a arte de fabricar a seda, o segundo é o da tecedeira. Recorde-se o trágica estória de amor do Vaqueiro e da Tecedeira. A tecedeira é filha do imperador celestial. Dela e das irmãs, mas sobretudo dela, dependem as belas cores das nuvens do céu. Numa visita à terra, a tecedeira acaba por se casar com um vaqueiro. Têm dois filhos e ela vive feliz, mas no céu, todo o panteão olímpico passou a andar muito mal vestido, porque a tecedeira deixou de trajar as nuvens com as lindas cores da manhã e do entardecer saídas dos seus dedos. Logo a deusa foi obrigada, pela sua família celestial, a regressar ao céu. O marido e os filhos foram atrás dela. No entanto, para que a tecedeira não seja distraída dos seus trabalhos, apenas se reunem uma vez por ano, no sétimo dia da sétima lua. O resto do tempo, ela, a estrela Vega, e ele, a estrela Altair, vivem separados pela via láctea. A AMANTE. A figura da mulher que espera apaixonadamente o seu marido é admiravelmente representada por Nujia, a esposa de Yu, o Grande. Este foi o fundador da dinastia dos Xia. O imperador, ocupadíssimo e amantíssimo da sua terra mãe, lutou anos a fio para tornar a China um país viável. Atravessou montanhas, domou rios, e esteve tão ocupado nestas tarefas que durante treze anos não foi a casa. A mulher, ao expressar a sua dor profunda, compôs o primeiro poema de amor chinês: Ó homem que eu espero, saberás tu que o tempo é longo… ( Charles Meyer, in La FEMME CHINOISE, 4000 ans au Pouvoir, Lattes, 1986). A MULTIFACETADA. Chang E é o melhor exemplo da deusa humana ou multifacetada. Ela é, dependendo das versões, curiosa, desobediente, insegura, ciumenta, amorosa, traída… A esposa de Hou Yi, que viria a ser a deusa da lua, a quem é dedicada a festa do Bolo Lunar, é humaníssima nos seus defeitos e qualidades. Sobre a sua história há inúmeras versões. Resumindo, tenho lido sobretudo a versão em que ela, movida pela curiosidade, descobriu o elixir que o marido havia guardado e o tomou às escondidas. Na versão de Huainanzi, compilada por Liu An, o arqueiro Hou Yi foi pedir o elixir da imortalidade à Rainha Mãe do Oeste para libertar a mulher da sua condição mortal. Mas Chang E não aguentou o tempo de austeridade e pobreza exigido para a purificação e bebeu o elixir sozinha, fugindo em seguida para a lua. No poema Tian Wen, composto por Qu Yuan, ela resolveu tomar o elixir, depois de ter descoberto que Hou Yi se havia enamorado pela mulher de He Po, divindade do rio. Num bailado mais recente, intitulado A Viagem à Lua, Chang E voou para o céu por ter sido enganada por Pang Meng, chefe de uma tribo e aprendiz de Hou yi, que para suplantar o mestre, não só lhe afastou a mulher, como acabou por o matar. BELDADES PASSIVAS. A beleza é para os chineses um atributo essencialmente feminino. Os deuses escolhem deusas belas. Casam-se e vivem em sistema de concubinato numa harmonia perfeita. No relato das Damas de Xiang, as duas deusas do rio Xaing são de uma beleza inexcedível. As princesas da água, respectivamente Ehuang e Niuying , filhas de Yao, foram cedidas pelo pai a Shun, o quinto imperador. E foram todos muito felizes. Quanto Sun morreu as damas choraram abundantemente… BELDADES ACTIVAS. Os chineses vivem deslumbrados e aterrorizados com beleza feminina. Abundam os relatos de perdição, por causa de belas megeras. Não têm conta as estórias de imperadores, nobres e até homens vulgares que “caíram nas garras” de damas muito sedutoras. Assim, cito dois entre os inúmeros casos famosos, Zouxin, o terceiro imperador Shang, distinguiu-se pelos seus actos malévolos. Tinha uma força extraordinária e adorava toda a espécie de prazeres. Possuía também uma concubina, Daji, a quem procurava satisfazer, através de suplícios horrorosos, que infligia aos que caíam em desgraça. Dizem que por ela se perdeu a dinastia Shang. Outro caso, este já na dinastia Zhou, é o do imperador You e da sua paixão por Baosi. Ela não ria e o imperador, que adorava a concubina, tentava que ela sorrisse. Até que um dia descobriu que o som do rasgar da seda lhe despertava um leve sorriso. Escusado será dizer que, a partir de então se rasgaram quilómetros de seda, por causa daquele sorriso. Mais tarde, You conseguiu que ela risse. Para tal mandava acender o lume numa torre tipo farol. Mas o fogo costumava chamar a atenção dos estados vassalos de Zhou para o facto do soberano necessitar de auxílio. Tantas vezes ele acendeu o lume só para ouvir o riso da sua concubina favorita quando os guerreiros acorriam em vão, que, certa vez, era mesmo preciso apoiar o imperador e ninguém se mexeu ao ver a fogueira. E assim se perdeu a dinastia Zhou. A mais temida de todas as figuras femininas é a da bela activa, porque na China a bela não liberta o monstro, pelo contrário, revela o monstro…
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasFu Xi e Nu Wa o casal divino Escrever sobre personagens que viveram num período anterior aos registos escritos e cujas histórias chegaram até aos nossos dias, ou pelas letras de canções, ou oralmente transmitidas em forma de mitos e só muito mais tarde, milénios depois, registadas nos livros, traz-nos o problema de interligar todas essas informações para criar uma inteligível e coerente imagem, que represente os seres aqui a tratar. Fu Xi (伏羲, em cantonense Fok Hei) e Nu Wa (女娲, Nôi-Vó), figuras lendárias e da mitologia chinesa, contam com poucos trabalhos académicos e nos livros antigos aparecem apenas esparsas referências às suas pessoas como as feitas por Kong Zi (Confúcio), Sima Qian, o historiador da dinastia Han do Oeste e Sima Zhen. Fu Xi transportando o conhecimento das culturas existentes no Paleolítico para a Era do Neolítico deu início à Civilização Chinesa, tornando-se o seu primeiro Soberano e por isso, também conhecido por Tian Huang Shi (天皇氏, Tin Wong Si), Imperador Celeste. Conjuntamente com Nu Wa, após um grande dilúvio tornaram-se as únicas pessoas mas, como irmãos que eram não podiam casar e ter filhos por receio de desagradar ao Céu. Então resolveram subir à montanha sagrada Kunlun (em Qinghai), fazendo cada um uma fogueira e como o fumo de ambas se uniu, interpretaram favorável esse sinal e casaram, ficando a ser considerados o casal divino, o Pai e a Mãe dos Seres Humanos. O Ser Humano tomara consciência da sua existência há 65 mil anos e se nessa primitiva sociedade não havia distinções de classes, famílias e propriedade privada, entre o L e o XL milénio antes da nossa Era foi substituída por uma comunidade baseada na família com a formação gradual de uma sociedade matriarcal há 30 mil anos. Por volta do VI milénio antes da nossa Era o sistema de crenças mudou e a sociedade matriarcal começou a dar lugar à patriarcal, substituindo-se a Deusa da Fertilidade por o Deus da Guerra, aparecendo as classes e o conceito de propriedade devido ao movimento adquirido pela caça a reorientar um novo estar. Assim, a sociedade patriarcal iniciou-se há cinco mil anos, quando na China as tribos se começaram a unir entre si. Como ponto de partida deveremos questionar se Fu Xi e Nu Wa tiveram existência real? Se sim, quando viveram e quem foram? Questões que para tais figuras nunca poderão ter respostas formais mas, como representação de uma imagem feita pelo espaço de consciência, em função de onda preparam o além da realidade. Por isso não se consegue em projecção realizar tal estudo, sendo apenas na reflexão que este toca espaços fora dos limites da matéria. Por outro lado, como figuras lendárias que ocupam um lugar na História da China, elas foram o espírito e a substância de muitos arquétipos para a construção da Civilização Chinesa. ANCESTRAIS SOBERANOS Num túmulo da dinastia Han do Leste em Pixian (província de Sichuan) e do mesmo período, no mural do templo de Wuliang em Jiaxiang (província de Shandong), encontram-se representações de Fu Xi e Nu Wa, ambos com cabeça humana mas corpos de dragão e entrelaçados pelas caudas, a representar a união entre os dois, simbolizam o poder e quando ligados com a tartaruga perpetuam-se pela eternidade. Fu Xi, considerado Imperador do Ser Humano conjuntamente com Nu Wa são o casal divino. Fu Xi, deificado como Taihao (太昊), ou o Imperador Verde, representa o Leste e contém a virtude da madeira, simbolizando a Primavera e Nu Wa, encarregue da reprodução de todas as coisas vivas, é a deusa primitiva da fertilidade. Para alguns estudiosos ambos não eram Seres Humanos, mas representantes de um período, Nu Wa a sociedade matriarcal e Fu Xi, a patriarcal. Quando considerados pela História como figuras históricas chegam-nos integradas no grupo San Huang Wu Di, isto é, os ancestrais dos chineses conhecidos pelos Três Soberanos e os Cinco Imperadores. Apesar de irmãos eram de diferentes tribos e como os “únicos” sobreviventes de um grande Dilúvio, Fu Xi e a sua consorte Nu Wa ficaram considerados os primeiros seres humanos e para que estes se reproduzissem e fosse criada a Humanidade tornaram-se patronos dos casamentos. Já quanto às datas da existência histórica de Fu Xi variam desde o ter nascido entre 2953 e 2852 a.n.E. e ter deixado a Terra entre os anos de 2838 e 2738 a.n.E., mas há autores a referir ter o lendário chefe tribal reinado durante 115 anos, de 4477 a 4362 a.n.E.. Nascera em Tianshui, hoje província de Gansu e numa jornada para Leste como chefe levou a sua tribo Yi até às Planícies Centrais, actual província de Henan, onde se instalou em Huaiyang e aí se encontra o seu mausoléu, como Kong Zi atestou. A sua meia-irmã Nu Wa nasceu três meses depois em Loncheng, a Norte de Tianshui, tendo ambos o apelido Feng (风, Vento) do pai. Acompanhou Fu Xi na procura de terras férteis e em Henan, após promoverem casamentos, separaram-se. Nu Wa seguiu para Norte, onde na povoação de Wihua se encontra o seu mausoléu. Fuxi era um observador atento, tanto do Céu, como do que se passava na Terra, e ao olhar para o Céu observou os fenómenos celestes vendo-os espelhados na Terra. Assim atingiu a ideia do todo inserido nas mudanças sazonais e na geografia, descobrindo ser dentro de si o mesmo do que se passava no seu exterior. Ao viajar por muitos lugares conheceu outras formas de estar e fazer, assim como outros objectos. Apercebeu-se das diferentes qualidades e propriedades dos materiais e dos solos. Terá usado nós numa corda para fixar certos factos e criou um método de fazer redes de pesca inspirando-se nas teias de aranhas. No entanto, a maior das suas contribuições foi a criação dos oito trigramas a representar os oito estados da natureza usados depois no mais antigo livro existente, o Livro das Mutações (Yi Jing, 易经) cuja versão actual, o Zhou Yi é da dinastia Zhou e tem três mil anos. Segundo refere Kong Zi nos dez Asas (Xi Ci), que complementam o Livro das Mutações, deve-se ao sábio Rei Fuxi a imagem do dragão de onde retirou os oito trigramas (bagua), criando o desenho do Tai ji pelo pulsar yin-yang da vida. O dragão é yang e terá sido escolhido como totem por Fu Xi, conhecido por isso como o rei Dragão, para representar o seu povo da tribo Yi. Explicou aos seres humanos a essência de todos os aspectos universais contidos nos oito trigramas que inventou, e as inter-relações entre eles. Pelo conhecimento dos oito estados da Natureza e seu domínio poderiam, tal como os deuses, evitar muitos prejuízos causados pelas calamidades naturais e utilizar todas as coisas ao serviço da harmonia para com o que nos rodeia. Considerado o primeiro dos Três Ancestrais Soberanos (San Huang, 三皇), que deram origem à Civilização Chinesa, transportou os conhecimentos de uma Era em que a Terra ainda se reflectia pelo Céu e talvez por essa razão, Fu Xi e a sua meia-irmã e consorte Nu Wa, considerados os primeiros seres humanos, são o Pai e Mãe, que significam o Céu e a Terra e representam-se no yang e yin de todas as coisas.