Rima do velho marinheiro

13 de Março de 2021

 

O nosso tempo actual reporta-nos para as vagas como se andássemos sobre as águas, uma navegabilidade muito própria – andamos agora por vagas- navegamos incertos, e qualquer costa se nos afigura como uma miragem na fé de chegar a bom porto, andamos literalmente a «cavalgar a vaga» que devido às fortes monções se fica parado num viver ficcional como no ventre da baleia, e quando esta sofre ruptura, ou abertura, somos expelidos, e tudo parece recomeçar em chão seguro que parece outro. Para não entorpecermos ainda mais pela linguagem chã, arranjaram-se eufemismos esperançosos, como; bazuca, vitamina, e outras variantes, mas no subsolo, o dinheiro (essa designação assaz grosseira) é um bem que só os anões e os alquimistas sabem como preservar e fazer crescer. Estas vagas que têm sereias cantando ao lado das embarcações necessitam da coragem de um Ulisses que se amarrara todo para não se atirar a elas, e assim, foi ele para casa onde aprendeu a fazer mantas.

O facto das vagas se sucederem é até um factor de adaptação à jornada do navegante, onde, de ora avante não deve temer o sentimento costumeiro da adversidade imposta pelo ritmo das marés; é certo que em caso de tsunâmi toda a programação se desfaz, e a ideia de navegabilidade ao primeiro soar de calmaria pode mesmo fazer que ele se manifeste. Nestas coisas devemos lembrar-nos da frase «navegar é preciso, viver não é preciso» pois toda a Terra é agora a única barca. E se passarmos por cima, será um dom, diferente daquele que deixáramos que era, passar ao lado, uma verdadeira mudança de plano. E tudo isto não seria uma experiência de péssima qualidade se não nos recordássemos das Barcarolas, um legado antigo inscrito num tempo medieval: métrica simples, efeito de assombro, roteiro fantástico, na inesperada e renascida presença de Coleridge, percursor do romantismo inglês pela sua «Balada do Velho Marinheiro» o poeta que afirmava acreditar mais nas coisas invisíveis que nas visíveis, quando nós olhávamos ainda a Nau Catrineta, que de pasmar se foi quando passámos a ter «Chuvas Oblíquas» (que barcas afundam na vertical) e este Velho Marinheiro não gosta ainda de nevoeiro «…que trazia o nevoeiro. Há que matá-las, dizia, se trazem o nevoeiro/ Dia a dia sem um sopro que o movesse o barco ficou parado/ em vão como um barco a tinta num oceano pintado…»

É nesta atmosfera que nos associamos às lembranças e delas vazamos as vozes de outro entendimento, que tudo se liga como as redes dos pescadores, e se deita, e se arrasta…se dissolve, e quantas vezes se esquece. Trazemo-las renascidas e vimos o quanto os elementos se assemelham nas suas alternâncias, recordamos viver, que sem isso, o tangível espaço incubado que o acaso nos ditou pode não ser o tempo de reflexão que é preciso para o abate dos navios piratas. As vagas de ontem transportaram assassinos de marés, mas vimos como concordaram as leis, e como por elas somos dirigidos mais que dirigistas, e muitos ainda anseiam voltar para a morte há tanto anunciada. Hoje, porém, somos um instante no verso «É um tempo de cansaço/ a garganta ressequida/ e o olhar vidrado/ Um tempo… Um tempo de cansaço!»

Data de 1798 a primeira versão desta obra, a repercussão foi o ter firmado um estilo inaugural, mas o autor foi fazendo mudanças e em 1817 incluía-as em «Sibyline Leaves» e em 1828 volta então ao original. «Deveria ser encadernado em ouro» – disse um critico acerca do que dele restou, e os pescadores de pérolas sentados em tronos, por tão duros ofícios que a beleza requer. Por muitas vagas levamo-los e esperamos lembrar. Por ora, o pensar nos cansa, que este vaguear não inspira confiança confinante, nem nada se vê de muito nítido…que de nevoeiro, nem vê-lo, mesmo que para alguns seja o vínculo inconsciente de um desejo colectivo.

Começa num casamento em festa, coisas que os mapas esqueceram. Quanto a Coleridge, morreu subitamente aos sessenta e um anos.

20 Abr 2021

Navegar em contramão

Horta Seca, Lisboa, 14 Outubro

[dropcap]M[/dropcap]orre Bloom e nada? Pergunta-me com insistência o Walter, aquele com quem dialogo ao espelho a qualquer hora do dia ou da noite. Volto a dizer-lhe que não sei ainda o que escrever a propósito. Necessito reler com outra tranquilidade os textos fundamentais, reler as leituras, mais do que os dislates ideológicos e além das pretensões didácticas. Careço de o enfrentar na qualidade de autor, por exemplo enquanto ensaísta shakespeariano na vez da ligeireza de polemista e/ou figura mediática. Há que saber distinguir para sedimentar. Vou ali, já venho, Walter Ego.

Espaço Ó, Óbidos, 19 Outubro

Falhámos redondamente outro lançamento, o de este «As Leis da Guerra», de Sun Bin, muito apropriado para tratar dos medos. Há que fazer autópsia das razões: voluntarismo exagerado?, desorganização militante?, calor demasiado para época?, empedrado molhado? A realidade, por vezes, vence-nos. Ilusão saborosa, a de pensar o inverso.

Regressámos a Óbidos, ainda assim, para acompanhar os «No Precipício Era o Verbo» (foto da organização algures na página), chamados à «Boémia» pela encantadora Suzana [Nobre], e acompanhados na convocatória pela impagável diligência do Luís Ferreira. Nenhum concerto acontece igual, mas este anunciava um pouco mais de Georg Trakl, além de uma ou outra surpresa, que saltava do percurso e de solicitações, por exemplo, em torno dos redondos Sophia ou Sena. Explodiu mais que isso, entendimentos em várias direcções, entre os instrumentistas no palco, com a plateia, das partes a dizer mais que o todo. Poesia, talvez tenha sido isso. Prolongada noite e pão adentro.

Regresso com a ideia de que esta edição do Fólio terá sido bastante boa, pela riqueza e diversidade. Está feito um belo jardim, este festival.

Santa Bárbara, Lisboa, 23 Outubro

Desembrulho um rebuçado, desperto com a mistura de ruído e perfume a curiosidade do gato, Lucca, que me vigiará com redobrada atenção enquanto me atiro à história dos reputadíssimos Dr. Bayard, nas bocas do mundo há 70 anos. «Um Milhão de Rebuçados», didascália de Inês [Fonseca Santos] para as imagens da Marta Monteiro, comemora isso mesmo em versão doce da Pato Lógico. O texto faz, portanto, de rodapé para uma sequência de imagens, com relações subtis entre ambos, como é do meu agrado delicodoce e pequenoburguês. Escusado será dizer, com estes actores, que a edição é cuidada. Além do cariz explicativo, as autoras conseguem soltar o cheiro de várias histórias, ainda que próximas de uma realidade palpável. Ou mesmo por isso.

Prova de que poucos leitores, por cá, o são a sério está no preconceito à volta dos géneros. Não esqueço que responsáveis políticos da área da leitura, do livro, da educação afirmaram que não liam livros para a infância e juventude. Ora o meu re-vizinho da Economia não perderia o seu tempo, digo eu, se lesse este exemplo de alguém capaz de fazer do pouco um projecto e dele uma «marca» e das oportunidades uma empresa, no velho sentido. Ou seja, em modernês, empreendedorismo. Este assunto não se aflora aqui, apenas a história de alguém concreto a aproveitar o que a vida lhe foi trazendo, cruzando com curiosidade e vontade até alcançar resultados, o resultado. Doce e perfumado. O bonito está em tratar uma ideia assim como flor.

Umas frágeis, outras capazes de alimentar infâncias. Depois há máquinas, do lado da Marta, e o perseguir as estórias nos sabores, no lado da querida Inês. E mais e mais, que livro, acontecendo, contém infindáveis rebuçados. Só me pergunto, sem resposta para o sonolento olhar do Lucca, se valeria a pena ter a tinta o cheiro dos Dr. Bayard. Ou se não haverá edição especial com os ditos por junto.

Desembrulho a dedicatória e constato ser um doce. Não solto lágrima para não produzir o melaço grandeburguês. Contrasto apenas com a de amigo e autor que há pouco me pôs em folha de rosto que me devota amizade e admiração, ou seja, o que manda o triste protocolo. Farei de conta que será ironia e descasco um Dr. Bayard.

Gulbenkian, Lisboa, 24 Outubro

Em versão lado M, de madrugadora, os «Precipício» abrem a Conferência do Plano Nacional de Leitura para duas ou três salas a abarrotar. «O Elogio da leitura», este o mote, em três temas|poemas apenas, que nem assim impedem telemóveis de tocar, de menssajar, de responder a necessidades burocráticas. A poesia não consegue uns 15 minutos de silêncio, de atenção? Raio de «Presente-Futuro»!

CCB, Lisboa, 25 Outubro

Derrotado, como ando por estes dias, empurrei-me até ao concerto em que o talentosíssimo Benjamim dava a ouvir canções do novo álbum. Em boa hora. Grande luxúria instrumental, em ambiente caloroso, descontraído, com criadores a transpirar puro gozo, a explorar possibilidades, a desfiar letras que põem carne no esqueleto dos dias. Antes de entrarem em estúdio, deram-nos o privilégio de experimentar magnífico ensaio geral, espreitar corações e ideias, aceder a paisagens sonoras que não sabia estarem ao alcance. Alimento fascínio por bastidores e reconfortei-me a entrar inadvertidamente nesta viagem, nesta paragem que foi chegada e mais partida ainda, que trouxe sobras e propôs rumos. Diz o Benjamim que «em Agosto de 2015 demos volta a Portugal, 33 concertos de seguida na loucura do asfalto e com o apetite dos 29 anos. Queimámos gasóleo a preços de primeiro mundo e passámos o resto do ano, e boa parte do próximo, na estrada.

Ultrapassámos rapidamente a fronteira dos 100 concertos, tocámos em coretos, casas, barcos, festivais, casas de cante, teatros, auditórios, herdades chiques, associações culturais, comícios partidários, comícios apartidários, na rua e em qualquer sítio onde uma pessoa consiga inventar um palco. Por vezes com resultados desastrosos, tocámos ao sol para mil pessoas e à chuva para duas.» Nesta sexta, fez sol e pensamento no pequeno auditório. Está a chegar-se a algum lado na música feita aqui e agora.

Mercado Santa Clara, Lisboa, 26 Outubro

Segunda edição desta Feira Gráfica, a confirmar vitalidades. Mais o que a tendência experimental, noto uma natural afirmação do fazer e do dizer, de criar publicações e lançar opiniões, políticas, pois então.

Mais de setenta projectos, editoras, enfim, indivíduos a mostrar uma vontade de engendrar a diferença. E a encontrar interlocutores.

Do nosso lado, tínhamos previsto lançar «O Menino das Lágrimas», da Mariana a Miserável, mas falhámos redondamente. Insisto, isto de navegar em contramão tem os seus riscos. E este disco soa riscado. Na vez, o Jorge [Silva] falou dos livros sobre ilustradores que a Arranha-céus tem editado. E encheu de cor o velho mercado de ferro e vidro.

30 Out 2019