Andreia Sofia Silva Entrevista ManchetePatrícia Mouzinho, jornalista e pintora: “O meu coração macaense está nestes quadros” Jornalista há mais de 20 anos no canal de televisão SIC, Patrícia Mouzinho sempre se dedicou à pintura, mas só em 2015 teve coragem para mostrar o seu trabalho aos outros. O sucesso de vendas numa galeria online proporcionou-lhe uma entrada bem sucedida no mundo da arte. Hoje inaugura na Fundação Rui Cunha a exposição “Meu Macau e o poder dos números”, onde Patrícia Mouzinho mostra a sua relação com o território [dropcap]E[/dropcap]sta exposição mostra a sua relação com Macau e com números. Porque é que o 8 e o 9 se tornaram nos seus números da sorte? Tornaram-se por força das circunstâncias, isto é, o facto de eu ter vivido aqui tantos anos seguidos, foram oito anos seguidos, e os meus pais ficaram mais 15 anos. Confesso que nunca liguei muito à numerologia e ao poder dos números, mas aqui em Macau é uma coisa inevitável, está em todo o lado. A partir de uma certa altura passaram a ser também os meus números da sorte e hoje evito ao máximo o 14 e o 4. Tornei-me um bocadinho supersticiosa. Escolho sempre tudo o que tenha um 8 ou 9. Ficou-me no sangue. E tem funcionado, tem tido sorte? Tenho tido sorte. Tenho visitado Macau com regularidade, esta é a minha segunda terra, para não dizer quase a primeira. Passou cá a adolescência? Sim. Estudei no colégio D. Bosco, o que na altura não era comum, e isso fez com que me integrasse facilmente na comunidade macaense. O que me traz hoje a Macau, é uma imensa alegria e chega a ser emocionante. É o voltar à minha terra para expor uma coisa que sempre foi muito minha e muito íntima. Pinto há mais de 25 anos, a pintura faz parte da minha vida, mas nunca tive coragem para abrir essa gaveta. Era uma coisa minha, que ficava na esfera dos meus amigos e família. FOTO: Sofia Mota Mas depois começou a vender trabalhos numa galeria online. Sim, mas é uma coisa muito recente. Em termos familiares há uma ligação à pintura e ao desenho, porque a minha avó era professora de desenho e o meu avô pintava. Há um relacionamento muito forte com as artes plásticas. Há dois anos fui bastante incentivada por dois amigos e resolvi colocar o meu trabalho na Saatcha online, uma galeria de arte norte-americana. Comecei a vender bastante, e a curadora principal da galeria mandou-me um email a dizer que não era muito comum as pessoas venderem tanto e sugeriu que eu aumentasse os preços das obras. E continuei a vender. A partir daí comecei a divulgar o trabalho nas redes sociais e o feedback das pessoas era extraordinário. Sou auto-didacta e só recentemente fiz cursos. É gratificante que os quadros digam alguma coisa às pessoas. Começaram a surgir convites para exposições. Às tantas, dou por mim a dizer que não tenho tempo, porque sou jornalista e não consigo dar resposta a todas as solicitações. Tive um convite para fazer uma exposição no Líbano, por exemplo, e tive de adiar. O que posso dizer é que faço tudo com o coração e enquanto me der prazer, porque, como abri a gaveta, também a posso fechar. Que lugar tem agora o jornalismo na sua vida? O jornalismo continua a ter um lugar de extrema importância, porque eu faço-o com paixão. São 23 anos na SIC, é a minha casa, onde me sinto bem, e temos um grupo de trabalho fantástico. Hoje em dia faço mais trabalho não diário, reportagens especiais, coisas que implicam outro tipo de horário, os deadlines são geridos por mim e pelo meu coordenador. O jornalismo de há 23 anos não é o de hoje. O que mudou? Mudou muita coisa. Hoje em dia temos o digital e ainda não sabemos muito bem o que vai acontecer à televisão, tal como foi concebida. Não acredito que vá acabar, porque estas coisas reciclam-se e são dinâmicas. As redes sociais, o online, a rapidez com que se devora notícias, a possibilidade de entrar na internet e procurar o que queremos já não é o jornalismo como aquele que eu comecei a fazer. Isso não quer dizer que haja um profundo desencantamento com o jornalismo, mas é óbvio que, ainda que sendo a profissão que me dá o meu ganha pão, o jornalismo está taco a taco com a pintura. O futuro, não sei. Esteve em Macau há algum tempo em reportagem especial. Pode falar um pouco sobre esse trabalho que foi transmitido na SIC? Foi transmitido há três anos. Fiz um trabalho sobre o que mudou em Macau depois da transição. Já tinham sido feitas muitas reportagens e o meu objectivo era pegar no facto de ter vivido cá, e ter uma experiência diferente, e ir à procura de coisas diferentes. Aqui fiz um trabalho de juntar a minha experiência pessoal, e o que mudou para mim, e transmiti-lo de forma a que as pessoas em Portugal pudessem sentir o que é a Macau do antes e do depois. Macau mudou muito, obviamente, mas acho que isso é inevitável. Sempre foi um território assim. Em constante mudança. Penso que sim. Muitos de nós queríamos talvez agarrar num momento e cristalizá-lo naquela altura. Macau é, sem dúvida, muito especial, mas vai continuar a ser sempre. E eu volto a Macau, passados estes anos todos (vim para cá em 1984) e continuo a sentir que a minha Macau está cá. Quando chego aqui é quase um mergulhar na minha terra, mais do que em Portugal. E isto é muito estranho. Sou de Lisboa mas tenho raízes multiculturais. Quando fui para Portugal estudar senti que aquele país não era o meu. Sentia-me bem com estrangeiros. Macau continua a ser um sítio especial, apesar das pessoas me dizerem que está horrível, que não se consegue andar na rua. Eu acho que faz parte da mudança, foi assim, é assim. Daqui a dez ou vinte anos não se sabe o que será. Temos de aprender é a arranjar alternativas e não remar contra a maré. Portugal, Londres, Nova Iorque também têm as suas coisas péssimas. Tudo isso vai estar presente nas obras que vai expor na Fundação Rui Cunha. Foram feitas de propósito para esta exposição? Sim. São obras ligadas aos momentos e à vida que eu tive em Macau, aos locais que fazem parte de Macau, uns que já desapareceram outros que permanecem, pessoas que me marcaram e momentos que tive cá. Há pormenores que têm só a ver comigo. Há um quadro que mostra uma zona de Macau e depois tem uma mesa, pequena, com três meninos, que sou eu e os meus irmãos, quando um deles partiu a cabeça. E isso está ali no quadro só para mim. O que eu quero transmitir é mesmo isso: o meu coração macaense está nestes quadros, é isso que elas podem ver e sentir. Os quadros têm acrílico sobre madeira e nos desenhos usei técnica mista. São vários trabalhos feitos de propósito para aqui. Há, portanto, coisas pessoais e outras com as quais o público se vai identificar. Exactamente. Se tiverem curiosidade eu posso explicar algumas coisas. Mas há momentos que são só meus. Voltando à reportagem que realizou. Macau ainda é um território desconhecido dos portugueses, que fica perdido no Oriente? Sim. Mas isso acontece também em relação a Goa, Malaca, por exemplo. Também nos esquecemos de Timor-Leste, por exemplo. Em algumas coisas somos demasiado concentrados em Portugal e, muitas vezes, apenas em Lisboa. Isso tem muito a ver com a maneira como o jornalismo e as pessoas divulgam o que é e o que foi Macau, Goa, e como era viver nesses sítios. Macau continua a estar no imaginário e as pessoas também têm conceitos errados. Pensa-se que é a árvore das patacas, que se fala mandarim, que é só jogo. Só quem esteve cá e viu com olhos de ver, e sentiu, é que sabe e compreende. Em relação a Portugal, e aos sítios onde nós estivemos, e estivemos aqui em Macau muitos anos, acho péssimo. Se me pergunta se a ‘culpa’ é de Macau, que não se quer divulgar e mostrar? Acho que não. Portugal é que não está receptivo. Estamos fechado no nosso mundinho, importa falar do Benfica e do Sporting, e o resto é paisagem. Mas isso também acontece em Lisboa em relação ao resto do país. Que olhar os seus editores na SIC têm em relação ao papel de Macau e China no contexto actual das relações diplomáticas com Portugal? É o olhar certo, comparando com outros meios de comunicação social portugueses? Felizmente, acho que há muita noção em termos económicos da parte do meu editor e dos meus directores. Estão muito atentos ao que se passa e sabem. Quando têm alguma dúvida pesquisam e querem saber mais. Percebem o poder e o impacto das relações diplomáticas e económicas e do facto de termos, cada vez mais, de estabelecer pontes e relações, não só com Macau, porque foi português e estivemos cá, mas também com a China. Temos um fenómeno muito giro: em Arroios, um bairro lisboeta, vivem pessoas de várias nacionalidades e a comunidade chinesa é a quarta com mais poder. As pessoas começam a querer saber mais e a perceber que é diferente um chinês de Sichuan do macaense.
André Ritchie Sorrindo SempreOito e 80 [dropcap style=’circle’]M[/dropcap]Mesmo não querendo que na minha coluna deste jornal se fale unicamente da hibridez e multiculturalidade de Macau, a verdade é que, no seguimento da minha última intervenção, acabei por dar continuidade a esse tema. Não que não tenha tentado fugir dele: ocorreu-me escrever sobre a professora Ana Maria Amaro, recentemente falecida, ainda que numa perspectiva diferente, explorando o facto de se tratar de uma investigadora que se debruçou intensamente sobre Macau, mas que, surpreendentemente, nunca mais aqui voltou desde 1972. Em 1972 Macau tinha menos de 250 mil habitantes. Não existia ainda nenhuma ligação terrestre entre Macau e a Taipa. Havia hortas no Porto exterior, búfalos na Taipa e kwai chi lous (*) em Coloane. os números de telefone tinham apenas quatro algarismos. Foi esse o Macau que Ana Maria Amaro vivenciou no momento em que se foi embora há 43 anos atrás para nunca mais voltar. Isso não a impediu, no entanto, de continuar a publicar obras sobre os costumes e as tradições da comunidade macaense. Não escondo que fiquei algo afectado com essa questão, obrigando-me a reflectir um pouco sobre o assunto. E aparentemente não fui o único: bastará ler com atenção os comentários, ainda que subtis, que algumas personalidades deixaram nos jornais na sequência da sua morte. Não será necessariamente um problema. o importante é estarmos cientes desse facto, para que na apreciação da sua obra a mesma seja adequadamente enquadrada no tempo. Pois uma coisa é certa: as cidades e as suas gentes são organismos vivos em constante mutação. Posto isso, fico por aqui e vou mudar de assunto para evitar que me atirem pedras. [quote_box_right]“Keily, tu de facto não nos conheces… Isto aqui é assim: somos portugueses, somos campeões na arte do desenrascanço. Qual é o problema?”[/quote_box_right] Disse no início que iria dar continuidade ao tema da hibridez de Macau. Vamos a isso. Como o caríssimo leitor decerto saberá, durante alguns anos vesti a camisola do Governo e dei a cara para um projecto infra-estrutural bastante controverso. E comi muitas balas pelo caminho, diga-se de passagem. Balas à parte, hoje vamos recordar coisas boas: uma das tarefas que tive de cumprir no exercício das minhas funções foi a de apresentar o projecto junto dos mais novos nas escolas de Macau. Essas apresentações foram sempre feitas na companhia da Keily, a minha amável assistente da área das relações públicas. Portanto, uma dupla formada por um português-macaense e uma chinesa. Vou começar por partilhar a minha experiência de uma apresentação numa escola chinesa. Mal chegamos à porta da escola, está à nossa espera uma funcionária que nos cumprimenta de forma calorosa, exibindo um enorme sorriso. Somos levados ao gabinete do Director da escola, que nos recebe com a mesma simpatia, embora já de forma mais reservada. Sentamo-nos e tomamos um chá, trocamos os cartões e conversamos protocolarmente. O Director leva-nos ao anfiteatro, onde está já tudo pronto para a apresentação: computador com o ficheiro Power Point que a Keily fez chegar com antecedência; projector já ligado; mesa no palco com flores e etiquetas onde se lêem os nossos nomes, indicando os respectivos lugares; e alunos, muitos alunos, centenas de alunos. e também professores. Todos já sentadinhos à nossa espera. Batem palmas quando entramos no anfiteatro. O Director faz um breve discurso. Mais palmas. Passa-me a palavra e faço então a minha apresentação. Chego ao fim e pergunto se alguém tem dúvidas. Levantam-se logo vários braços. Uma a uma, vou respondendo às perguntas, todas elas interessantes. No fim, o Director toma a palavra, agradece a todos e fecha a sessão. Acompanha-nos até à porta da escola. Despedimo-nos cordialmente. “Keily, correu mesmo bem, não foi? Nunca pensei que os alunos pudessem demonstrar tanto interesse pelo nosso projecto!” disse eu, satisfeito, à minha colega. “Ritchie, tu de facto não nos conheces… Isto aqui é assim: mal informámos que vínhamos fazer uma apresentação, os professores agendaram para trabalho de casa que cada aluno preparasse pelo menos três perguntas. Os professores depois analisaram as perguntas, filtraram e escolheram as mais interessantes e menos embaraçosas para nós, as menos kám kái. Antes de cá chegarmos, já estava combinado quem perguntava o quê. Não percebes mesmo nada disso pá…” respondeu-me a Keily, em jeito de troça. Agora a apresentação numa escola portuguesa. Chegamos à porta da escola e não está lá ninguém para nos receber. Dirigimo-nos então à secretaria. “Apresentação? Que apresentação? Não sei de nada…”. Aparece um professor, simpático, que se oferece para tratar do assunto. Leva-nos ao anfiteatro, que está vazio. Não está lá nenhum equipamento montado. Dou uma ajuda na instalação do projector e do computador, que entretanto alguém trouxe. “Olhe, falta um cabo de ligação ao projector, este aqui não dá.” “Bolas, precisamos de uma extensão, o cabo não chega lá.” Não há stress. Foi tudo resolvido, agora só falta a assistência. O professor, despachado, vai ao recreio da escola. “Ó vocês aí, vá! e vocês também, esse grupinho, venham cá! Vamos assistir a uma apresentação.” Pronto, já temos assistência. entretanto vieram mais uns professores. “Posso?”, pergunto ao professor. “sim, força!”. Faço então a minha apresentação. Chego ao fim e pergunto se há questões a levantar. Silêncio absoluto. Zero. O professor olha para trás, para a esquerda, para a direita, para todos os lados, e o silêncio persiste. Sentiu-se kám kái e, face à situação, é ele que levanta o braço, é ele que faz a pergunta. Respondo à pergunta e voltamos ao silêncio. Finalmente, um rapaz de óculos, com cara de malandro, faz uma pergunta pertinente, questionando se as receitas das tarifas serão suficientes para cobrir os custos de operação do empreendimento. Essa deu-me trabalho. Mal acabo de responder, umas meninas da fila de trás desatam a bater palmas, desalmadamente. Não pela excelente resposta que tenho a certeza que dei, fruto de tantos anos de experiência no campo do discurso insípido.As meninas pretendiam, com as palmas, terminar a sessão. E assim foi. Os professores agradeceram, conversámos um pouco, rimo-nos e despedimo-nos. Foram-se todos embora. A Keily e eu ficámos sozinhos no anfiteatro. “Ritchie, mas o que foi isso, correu tão mal! Cheguei a pensar que tínhamos de cancelar tudo e marcar uma nova sessão, mas que grande confusão!”, disse-me a Keily, chocada. “Keily, tu de facto não nos conheces… Isto aqui é assim: somos portugueses, somos campeões na arte do desenrascanço. Qual é o problema? Tivemos computador, projector, assistência, correu tudo lindamente. e mais: aquele miúdo fez-me uma grande pergunta! Sabes, como achas que os portugueses chegaram aqui há 500 anos atrás? Não percebes mesmo nada disso pá…” respondi à Keily, em jeito de troça. Macau tem dessas coisas. Sorrindo Sempre Com a minha saída da função pública, tive de ir tratar da liquidação da minha conta do Regime de Previdência junto do Fundo de Pensões (FP) a fim de receber o meu pé-de-meia depois de 12 anos de contribuição. Segundo me explicou ao telefone uma competente funcionária do FP, tinha apenas de preencher um impresso, anexar uma fotocópia do BIR e entregar tudo na sede do FP. O que ela não me explicou, no entanto, é que no FP iria ser atendido por um funcionário ignóbil. Coitada, como poderia ela adivinhar? Depois de ter apresentado os tais papéis, e tendo o ilustre funcionário garantido que estava tudo em ordem, ia eu no carro a atravessar a Ponte de Sai Van, a caminho de casa, quando o dito me telefona e pede para eu voltar atrás pois, afinal, encontrou irregularidades no preenchimento do impresso. Então quais eram as irregularidades? (1) o endereço, segundo aquele especialista, continha um erro ortográfico, pois escrevi “Poplar Court”, quando obviamente deveria ser “Popular Court”; e (2) o acento no meu nome “André” estava torto. Sim, o acento estava torto. Por isso, disse ele, eu tinha de voltar atrás para preencher novamente o impresso. First things first, vamos apurar os factos: (1) o prédio onde moro chama-se mesmo “Poplar” e não “Popular” como aquele ilustre sugeriu; e (2) o acento… Desculpem, mas nunca tive dificuldades em escrever o meu próprio nome, portanto o acento estava bem. Ponto final. Senti que o devia arrasar. E assim foi. Não, não houve palavrões e não levantei a voz. Mas fui agressivo e acutilante no uso das palavras. encarnei novamente o detestável Simon Chan do sketch Maquista Idol do patuá. exemplo: “Não volte a pensar com o traseiro, está bem?” (**) Enfim, sorrindo sempre… P.S. – Senhor Presidente do FP, não leve a mal ter contado essa história. Por favor, não encrave o meu processo. Sorria um pouco também. (*) Malfeitor que rapta crianças. (**) “Iong kor si fat lam yeah”, expressão que faz sentido em cantonense.