Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesCem anos de mudanças [dropcap]O[/dropcap] filósofo da antiga China, Lao Tzu, disse, “A felicidade e a desgraça andam de mãos dadas. A felicidade traz muitas vezes consigo o infortúnio e o infortúnio está sempre escondido na felicidade”. Todas as coisas deste mundo têm aspectos positivos e aspectos negativos, à semelhança dos polos positivo e negativo das forças electromagnéticas. Os acontecimentos encaminham-se na direcção positiva quando chegam ao extremo da negatividade. A positividade e a negatividade são duas faces da mesma moeda, não forças opostas como Hegel nos demonstrou através da sua dialéctica. Toda a gente sabe discorrer sobre a razão, mas apenas muito poucos agem de forma razoável. O egoísmo daqueles que detêm o poder mergulha o mundo na confusão e na inquietação. As obras de Orwell, “O Triunfo dos Porcos” e “1984” ultrapassaram largamente a ficção, foram antevisões do mundo em que vivemos. Só aqueles que fizeram uma leitura aprofundada destas obras podem entender a verdade subentendida nas entrelinhas e por isso evitarão cometer os erros descritos nestes textos “ficcionais”. A pandemia de COVID-19 tem vindo a assolar o mundo nos últimos seis meses. Enquanto escrevo este artigo, há registo de mais de 13 milhões de infectados a nível global e o número de mortos anda perto dos 600.000, e isto para não falar do enorme abalo económico que já se faz sentir por toda a parte. Este vírus não apareceu do nada. Se surgiu na natureza ou se foi criado em laboratório, é um enigma que só pode ser desvendado pelos cientistas através de estudos aprofundados sobre o seu processo de mutação. Mas esta pandemia trouxe consigo grandes mudanças a nível planetário, para além de todo o sofrimento que já causou. O Partido Comunista da China foi fundado em 1921, apenas dois anos depois do Movimento do 4 de Maio (1919), o mesmo ano em que Sun Yat-sen estabeleceu o Governo Nacional em Guangzhou (Cantão). No plano internacional, 1918 foi o ano do fim da I Guerra Mundial e da fundação da Liga das Nações, impulsionada pelo então Presidente americano Woodrow Wilson. Quer estivéssemos na China ou na Europa há cem anos atrás, a vida seria certamente mais difícil do que é agora. No entanto, a vitalidade e as crises florescem em tempos difíceis, o que comprova a filosofia de Lao Tzu. Volvidos 75 anos do final da II Guerra Mundial, e 40 e tal anos após a China ter implementado a política de reformas e de abertura, parece que a Humanidade deixou de celebrar os tempos de paz. O barril de pólvora, constituído pela situação geopolítica de Médio Oriente persiste e o Museu Hagia em Istambul vai voltar a ser uma mesquita. O ping-pong diplomático entre a China e os Estados Unidos vai tornar-se uma guerra comercial. Hong Kong, desde há muito distinguida com o título de “Pérola do Oriente”, está actualmente desfeita em pedaços tão afiados que facilmente cortará as mãos dos que lhe estão próximos. E, mais, sob o domínio dos nacionalismos e dos populismos o mundo está a tornar-se um local muito perigoso. Deng Xiaoping disse que o progresso das reformas não podia ser revertido, porque voltar atrás nos conduziria a um beco sem saída. A COVID-19, as frequentes cheias, os diversos tremores de terra, as pragas de gafanhotos, a lei de segurança nacional em Hong Kong, o conflito Sino-Indiano, a contenda Sino-Americana….são testes constantes à sabedoria e perseverança da nação chinesa. O resultado positivo ou negativo que daqui pode advir dependerá apenas da responsabilidade colectiva do povo chinês. A 15 de Julho, os visitantes que cruzarem as fronteiras entre Macau e a Província de Guangdong deixam de ser submetidos a quarentena obrigatória. Com esta decisão espera-se trazer alguma dinâmica à economia das duas regiões, num cenário em que ainda existe receio de propagação da COVID-19. Nos 20 anos que decorreram após o regresso de Macau à soberania chinesa, a cidade tem vivido quase exclusivamente da indústria do jogo, e nunca reflectiu sobre as consequências de depender economicamente de um único sector. Nestes últimos seis meses em que se tem feito sentir o impacto da pandemia, o Governo da RAE e a população devem ter compreendido a realidade actual de Macau. Posto isto, 2020 é o ano decisivo para que Macau procure pelas suas mãos próprias a mudança, ou então para que fique à espera de ser mudado.
Nuno Miguel Guedes Divina Comédia h | Artes, Letras e IdeiasMudanças ” But I don’ t want confort. I want poetry, I want danger, I want freedom, I want goodness, I want sin.’ ’In fact,’ said Mustapha Mond, ‘you’re claiming the right to be unhappy.’ ’All right then,’ said the Savage defiantly, ‘I’m claiming the right to be unhappy.’ Aldous Huxley, Brave New World [dropcap]A[/dropcap] tarde cobre a cidade com um azul limpo, de um optimismo quase insuportável. Nestas alturas fica mais fácil reparar na beleza do que sempre esteve à nossa frente. Tudo se pode revelar com um simbolismo inesperado e inusitado. Inoportuno, até. Por exemplo, estes três camiões que sossegam num largo deserto, postos em descanso num paralelismo imaculado. São apenas camiões, mas todos ostentam, em letras grandes e inequívocas, a mesma palavra: “Mudanças”. E sabemos que falam de um serviço, de algo específico e funcional. Só que agora, nestes dias, uma palavra pode ganhar proporções de vida. E ganha. Mudanças. Sei o que fazem estes camiões: trasladam interiores de casas, móveis, livros, artefactos. Mas sobretudo memórias e esperanças. Tristeza, por vezes: “home is so sad”. Mudanças. Pouco antes do estado de sítio em que nos encontramos também eu tive de recorrer a estes veículos que nos transportam muito do que somos em caixotes almofadados e etiquetados. A tão pouco se pode resumir a nossa vida, nestas alturas. Uma palavra, um rótulo, uma indicação. Mudanças. E mudamos, outra vez. Estranhamente regressamos a esse fenómeno cuja inevitabilidade sempre encarei com melancolia. O familiar é-me mais caro. Sei que tenho de mudar mas sempre com o compromisso, com a preservação do essencial que me acompanhou. Agora mudamos todos, obrigados a isso mesmo. Não o essencial da nossa natureza, que receio permanecerá a mesma; mas os hábitos, os gestos, os jeitos. “A vida verdadeira é vivida quando ocorrem as pequenas mudanças”, sussurra-me agora Tolstoi. Pois sim. Mas aceitando-as tenho medo porque tenho medo da partida, quase tanto como necessito dela. A mudança agora acontece em forma de matrioska, da maior à mais ínfima, do mundo até à nossa alma. Estaremos preparados? Estarei preparado, eu? A resposta é a do costume: não sabemos, não sei. Terei de lidar com ela, isso é certo. E ao mudar, mudo para onde? Quero ir ou quero voltar? No diálogo que aparece em epígrafe pode estar uma parte da resposta para este também admirável mundo novo: venha a bondade, o pecado, o perigo, a liberdade, a poesia. Talvez isso, talvez mudar seja também reclamar o direito a ser infeliz, como afirma o personagem. Talvez. Os camiões continuam parados mas sei que irão regressar à estrada. Mudanças, lembrarão a quem os vir passar. E a mim, que mudando irei insistir numa vontade imprudente de ser feliz.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasDias de mudança I [dropcap]H[/dropcap]á dias que fazem convergir para si linhas de acção de diversas frentes e com prazos diferentes de desenvolvimento. Seja a preparação de um negócio, mesmo simples, a compra ou a venda de um artigo, um instrumento musical ou uma obra literária. Seja a inscrição num ginásio para finalmente se pôr em prática o que queríamos há tanto tempo, ter actividade física, ou na mesma linha de acção: deixar de fumar, beber menos, fazer dieta. Seja fazer a viagem ou as férias que podemos finalmente ter. Tudo pode acontecer num mesmo dia e a fazer confluir frentes idênticas de sentido. Não se compra ou vende a guitarra apenas mas compra-se ou vende-se a guitarra, os livros. Parece que nesse dia somos pessoas de negócio, só que habitualmente nada disso acontece. Temos a primeira aula no ginásio, deixamos ou reduzimos os cigarros e a ingestão de bebidas alcoólicas, iniciamos uma dieta, compramos roupa desportiva, tudo parece reluzir como nos primeiros dias de adolescência quando tínhamos o primeiro dia na piscina ou no dojo. Marcamos a viagem para uns dias num sítio em que alguém tem uma casa que nos oferece para estadia. Tudo no mesmo dia. Há dias em que tudo acontece e nada parece abortar, a trama da vida a ser faz que aconteça mesmo que mudemos de vida. Por maioria de razão acontece quando encontramos alguém. II Desde sempre percebi, desde o insondável e distante horizonte da infância, que havia momentos na vida, que definiam marcos, antes e depois, melhor: a partir dessa altura tudo haveria de ser diferente e nada continuaria como dantes. Parece uma redundância. Como é que o que será diferente poderia continuar igual e como é que o que não continua como dantes poderia ser igual depois. Mas é mesmo assim. Há uma compreensão do tempo anterior à experiência de vida por que se passou que também se dá relativamente ao tempo ulterior à experiência. Antes e depois colidem. Não há um único instante, mas há a vida toda. A vida que tinha sido levada até esse instante e a vida que se desenrola à nossa frente, sem pormenores mas na sua configuração. A partir de agora a vida vai ser totalmente diferente do que foi até aqui. Numa outra formulação possível a vida que podia ter sido como foi até aqui vai ser completamente diferente. A vida que era suposto ser tida passa a ser outra. Aquilo por que se passou, os momentos que se atravessaram, reconfiguraram a vida. Não sem antes a terem posto debaixo de um único horizonte que não sabíamos que havia, porque tudo parecia exterior a nós, o espaço, o tempo, os outros, nós próprios. Agora, só há interior e um interior que parece existir no tempo, um tempo que passa a ser radicalmente diferente do que foi até então, como se até então não tivesse havido tempo e agora passa a haver tempo, um tempo que começou a contar de forma decrescente e nós temos de viver uma vida que não foi desenhada por nós, mas pelo trauma. Tudo é post-traumático. III Os primeiros instantes em que conhecemos alguém que fica na nossa vida são diferentes dos primeiros instantes em que vemos alguém que conhecemos mas não fica na nossa vida e diferentes daqueles em que nem sequer nos apercebemos que vemos alguém. Há pessoas que ficam nas nossas vidas em ausência permanente. Tal como os nossos mortos estão sempre presentes a constituir a nossa mente lúcida, assim também eles estão presentes, independentemente de avaliarmos as suas existências como boas ou más para nós. Num instante parece lançar-se um projecto para sempre de convívio e co-existência. Ou antes, dá-se um excesso de sentido que vai para lá da mera sincronização entre ver e visto, sujeito e objecto. Há qualquer coisa que capta a história daquela miúda ou miúdo na infância, mas é sobretudo porque dá a sensação que já nos conhecíamos uns aos outros antes e que era a altura de nos revermos. Do mesmo modo, para além do reconhecimento há logo um quotidiano, um lance de futuro. Não é só presente e história pressentida é também futuro lançado numa antecipação e previsão meramente formais mas eficazes. Não só já éramos antes de nos termos conhecido como a nossa vida seria completamente diferente se não tivéssemos conhecido aquelas pessoas. Não seria possível ter futuro sem aqueles encontros. Não seria possível ter as nossas vidas sem aquelas pessoas. O futuro da vida é antecipado de tal forma que o calcorreamos até ao fim. Aqueles encontros arremessam-nos para o fim das nossas vidas. Lá estarão na hora da nossa morte. Um instante distendido do passado para o futuro e não a abstracção de ter a percepção de alguém: na piscina, no recreio, na sala de aula, no ginásio, numa rua a acenar.
João Luz VozesBom pai de família [dropcap]N[/dropcap]ão é minha intenção sentar-me tardiamente a uma mesa onde já todos terminaram o café. Até há dias não liguei à “controvérsia”, dita “fracturante”, trazida por um artigo que não passou o crivo editorial deste jornal por razões mais que legítimas. Durante este tempo não achei que o tema merecesse o meu tempo, enquanto outros assuntos da actualidade ganharam prioridade. Até que, movido por curiosidade mórbida, li o tal artigo que circulou de e-mail em e-mail. Não vale a pena dirigir-me ao mérito moral de um discurso que em termos de direitos civis é tão caduco como ainda argumentar a favor da segregação. Mas existem alguns aspectos, por extravasarem regularmente para outros assuntos, que acho serem dignos de ponderação. Um deles é a menção à censura. Censura é uma mordaça imposta pelo Estado, transversal a tudo e todos, com vista a blindar a sociedade a ideias que possam colocar em causa o regime. Um jornal não é um Estado, mesmo se quisesse não tem poderes para barrar todos os canais informativos, ou vozes dissidentes. Nunca foi tão fácil, como hoje em dia, arejar uma ideia ou argumento publicamente, mas isso não obriga privados a publicarem tudo o que lhes é enviado. Além disso, uma entidade privada ter autonomia de critério editorial é, muito pelo contrário, o mais puro acto de liberdade. Aliás, mesmo discordando profundamente de opiniões que datam de um período eticamente jurássico, seria o primeiro a acrescentar a minha voz ao coro que clama por liberdade de expressão e defender o direito de alguém dizer a maior barbaridade que conseguir. Só não me venham com choradinhos póstumos e vitimizantes. Falar abertamente é também estar abertamente sujeito a crítica e ter a dignidade para aceitar isso. Em segundo lugar quero abordar a evocação da expressão bonus pater familiae, termo oriundo do direito romano que atravessou séculos como conceito jurídico, que em nada se aproxima da simplificação axiomática de taberna da categorização do homem como um tipo com um par de bolas no sítio, do gajo que tem uma mulher e filhos para cuidar. Bom pai de família, o elemento que tem a sensatez para ser padrão legal, em lado nenhum se refere ao uso dado aos genitais. Mas pensemos no mérito de trazer este conceito para fora da linguagem jurídica e remetê-lo para a esfera da intriga de costumes, do escândalo menor da quermesse do ano passado, longe da jurisprudência e da fixação de doutrina, a universos de distância da administração da lei e das teorizações de Fustel de Coulanges. Importa referir que o bonus pater familiae tinha luz verde para dispor da vida de qualquer elemento da família. Pode-se discutir que o direito de matar quem dorme debaixo do seu tecto terá tido historicamente apenas sentido simbólico, mas há académicos que contestam e afirmam que a supremacia sobre a vida de outros indivíduos era de facto exercida. Seja como for, o termo evocado precisa ser confrontado com a moral social de hoje, 50 iluminismos depois, a universos éticos de distância dos tempos quando seres humanos eram devorados por feras numa arena por desporto. O homicídio era punido pela velha regra de olho por olho, vingança era a lei da Terra, enquanto as penas administradas publicamente são coisas de filme de terror. Para ofensas menores as penas iam de espancamentos severos, flagelação e marcas na testa com ferro em brasa. As ofensas mais graves podiam resultar em vazamento de olhos, língua ou orelhas cortadas, a pena de morte era administrada através de empalação, enterrar o condenado vivo e, claro, crucificação. Quanto ao “argumento bíblico” para condenar uma expressão de amor, recordo que existem outras abominações nos testamentos que nunca são consideradas e para sempre ficam selectiva e convenientemente esquecidas, num hino ao relativismo absoluto. Comer marisco é uma abominação, usar vestuário que combine dois tipos de tecido (não houve revelação divina que adivinhasse o poliéster), adultério, rebelião dos filhos contra os pais eram punidas com morte, e podia ficar aqui o dia todo a discorrer mil e umas outras aberrações morais punidas com morte. Finalmente, quero endereçar a ideia de que viver abertamente a preferência sexual é uma afronta às mentes conservadoras, que o orgulho no tipo de amor que se sente, que só é mais identitário quanto maior for o preconceito, é um insulto à decência que teme qualquer mudança na moral social. Há bem pouco tempo, uma mulher usar minissaia, fumar, votar, querer autonomia além das superiores alçadas masculinas, era uma afronta à mente conservadora. O medo de mudança, inevitável porque sociedades e valores éticos evoluem, faz parte do ADN da mente conservadora. Um enorme receio da desestabilização do que pode acontecer se isto mudar. Negros comerem no mesmo restaurante que brancos, etnias e culturas longínquas ascenderem a posições de poder, são tradicionalmente afrontas ao imobilismo privilegiado da mente conservadora. Esta é uma batalha impossível de ganhar, meus caros, a luz vai sempre iluminar os cantos mais escuros, lentamente, com avanços e recuos, os direitos civis vão progredir indiferentes às barreiras antiquadas sustentadas por tradições obsoletas. Vale-nos que o preconceito tem de ser ensinado, passado de geração em geração para sobreviver. No geral, a tolerância e o respeito advêm da experiência e da lógica. O contacto e amizade dos mais novos com grupos sociais distintos é catalizador de mudança. Perceber o outro elimina esse medo visceral do que nos é intimamente estrangeiro. Como tantas outras revoluções éticas e morais, daqui a uns tempos vamos olhar para expressões como “pegar de empurrão” com pesar, com vergonha alheia, como quando ouvimos chamar macaco a alguém. Já os gregos antigos sabiam que a mudança é a única constante da vida. Lutar contra esta maré é não compreender os tempos, é fazer legado da imoralidade e não viver no presente.