Ana Cristina Alves Via do MeioFilosofias Comparadas: Imagens de Portugal Por Ana Cristina Alves – Investigadora Auxiliar e Coordenadora do Serviço Educativo do Centro Científico e Cultural A imagem que os portugueses possuem de si próprios enquanto todo coletivo difere interna e externamente, de acordo com os pensadores e seus modos de estar na vida, que por sua vez dependem de enquadramentoas culturais mais vastos, as suas próprias coletividades. Não se espera que o olhar de um francês sobre os portugueses e Portugal seja semelhante ao de um chinês e muito menos ao de um português, porque as suas perspetivas estão condicionadas pelo seu desenvolvimento histórico-cultural, o que irá definir uma postura civilizacional específica para cada pensador e sua história de vida pessoal e coletiva. Acresce ainda que o olhar de um estrangeiro sobre Portugal será sempre mais distanciado, para o bem e para o mal, do que a visão próxima e comprometida até à raiz mais funda do seu ser de um português, mesmo que este procure ser tão imparcial quanto possível, como é o caso de Miguel Torga, escritor e pensador que muito amou o seu país, mas sempre na via do meio, sem se deixar levar por os calores românticos e nacionalistas, por exemplo de um Teixeira de Pascoes em A Arte de Ser Português. Comece-se pelos olhares exteriores, aqueles que nos chegam além-mar português. Comece-se pelo recentíssimo texto Astérix na Lusitânia de outubro de 2025 de Fabcaro com desenhos de Didier Conrad, impecavelmente traduzido para português por Maria José Pereira e Paula Caetano. Os compatriotas, o pessoal do “pá”, que oscila no livro entre o calão e os rasgos líricos do fado português, no melhor que Amália tem para oferecer, são apresentados de um modo crítico e irónico, por vezes mordaz, num tom vindo da escola cómica e racionalista francesa, a que diz o que pensa, porque assim vai existindo sem se preocupar com as consequências de que o seu pensamento aberto, frontal e crítico possam ter sobre os lusitanos que lerão estas linhas em banda desenhada, muitas delas verdadeiramente cómicas, mas que por certo atingem em cheio as cordas sentimentais e nervosas dos grandes heróis do mar lusitano. Os mais bem-dispostos aproveitarão o pretexto para se rirem de si mesmos, já os mais sérios e carrancudos digerirão com alguma dificuldade a banda desenhada, cuja principal característica é brincar em torno do mar português, mas gastronómico. Os portugueses distinguem-se na obra pelo gosto a peixe e a molhos com peixe, sendo monotonamente exímios nas mil e uma maneiras de confecionar bacalhau, o que leva, como é óbvio, ao desespero do ilustre gaulês Obélix, que se vê rodeado de bacalhau e molho de peixe (garum) por todo o lado. Astérix e Obélix vêm numa missão a Portugal ajudar a libertar o Malmevês um português condenado à prisão por alegadamente ter tentado envenenar César com garum. Eles foram chamados por um personagem português, cujo nome é altamente revelador, o Tristês. Entretanto, o Malmevês tem uma filha, com outro nome sintomático, a Saudade, por quem Obeléx se apaixona. Aos lusitanos sobra tristeza, saudade e melancolia e não ficam a dever à beleza, sendo com grande desgosto que os gauleses terão de se disfarçar de lusitanos para salvar da prisão Malmevês, sendo a bem-sucedida missão auxiliada pela inteligência gaulesa que desmascara o verdadeiro envenenador e seu cúmplice. Embora os portugueses não sejam apresentados como belos, inteligentes, tendo alguns pouca ética, porque traíram o herói dos heróis, Viriato, têm entre os aspetos mais positivos uma gastronomia interessante, excetuando o bacalhau e o molho de peixe, mas que inclui o pastel de nata e o bom vinho, até verde. A culinária é sem dúvida o ponto alto da narrativa, sob todas as perspetivas, mesmo a dos Descobrimentos, que são reduzidos e condensados numa referência ao Tasco do Vasco da Gama “Ó Pá, no Tasco do Vasco da Gama descobrem-se novos mundos” (Fabcaro, 2025, 36). O facto dos portugueses gostarem tanto de fado faz com que o ambiente se torne muito triste para ouvidos gauleses, que vão tecendo considerações filosóficas interessantes ao longo do texto a respeito do mesmo, já que este é considerado retirar força anímica aos soldados e gentes lusitanas, que no calor da peleja são apaziguados pelo cântico dolente e triste que torna os guerreiros assim: “de repente fiquei tão melancólico” (Fabcaro, 2025, 28) ou “afinal passamos a vida a correr atrás de quê?” (Ibidem). Resumindo, desta banda desenhada retira-se para o nosso retrato coletivo, um povo triste e melancólico, muito marcado por longos anos de repressão, em que os revolucionários se encontram na cadeia, como aquele que grita atrás das grades “ó pá, ouçam bem, malditos romanos! O povo unido jamais será vencido.” (Fabcaro, 2025, 33). Distinguem-se na Lusitânia umas verdadeiras mulheres de armas como a Gama, quando se diz, “seria impossível levar a missão a bom porto sem a ajuda da Gama” ( Fabcaro, 2025, 47). Por fim, os heróis gauleses partem rumo à Gália, retendo uma outra característica que costuma ser realçada em relação aos portugueses, a suavidade no relacionamento: “Ah estes lusitanos! São tão afáveis no trato…custa ter de partir, não é?” (Fabcaro, 2025, 48). Não se pode generalizar a imagem filosófica cómica desta banda desenhada a todos os franceses, mas o que fica para alguns é que a ilustre e antiga história portuguesa se resume bem a um notável heroísmo gastronómico, representado por uma mulher forte, a Gama, à frente do Tasco Vasco da Gama e enquanto ela estiver ao leme novos mundos de sabor serão sempre descobertos. Do ponto de vista gaulês é dispensável tanta melancolia e tristeza, mas salva-se no meio deste “estranho modo de ser” a afabilidade que deixa saudades da terra e vontade de regressar. Pelas características da mentalidade chinesa, moldada por séculos de harmonia confucionista não se pode esperar dum pensador chinês o mesmo tipo de registo aberto, livre, crítico, pelo contrário as descrições serão cuidadosamente escolhidas de modo a que não firam a sensibilidade alheia, como é o caso da obra do pensador e historiador Wu Zhiliang (吴志良), Crónicas de Portugal 葡萄牙印象, fruto de uma estadia do autor enquanto estudante no país em 1991. Logo, e recordando uma ideia com que se inaugurou o artigo, as reflexões de um pensador ou criativo estão condicionadas pela maneira de ver própria que se insere e enraíza na sua cultura. Para Wu Zhiliang os portugueses são ainda os descendentes dos heróis do mar que chegaram à China e a Macau, cruzando destemidamente os oceanos Atlântico, Índico e Pacífico e, nos nossos dias, são os grandes impulsionadores do diálogo cultural do século XVI, proporcionando um encontro de culturas que foi extremamente benéfico para os chineses, porque os abriu a outros mundos, despertando-os para um modo ser complementar ao chinês, que ele descreve como submisso e tranquilo. O mais valorizado na introdução e conclusão dos sucessivos retratos de Portugal fornecidos por estas Crónicas são as novas características com que os chineses e outros povos orientais são confrontados no seu relacionamento com os portugueses, sobretudo, o espírito ativo, inquieto e desassossegado, que cruzou “a magia de Alá com os Bodhisattvas indianos, o Tao chinês e a meditação japonesa com o espírito totalmente inquieto do Ocidente. Na nascente da força descobridora, espiritualizada e vazia, Oriente e Ocidente convergem num só neste humilde e silencioso “vazio”, a raiz de todas as coisas que se transforma numa imensa e infinita liberdade.《要以安拉的魔法,印度人的菩薩,中國人的道,日本人的禪,以及西方那充滿騷動的精神,來發現力的本源,在那裡,神意味着虛無。在這力的源泉中,東西方交融在一處,我們在 “無”這個萬物之本的謙卑和寂寞中,變得無比自由。》(Wu, 1991,1/ 2). Enfatiza Wu Zhiliang ao longo da obra e, também nas notas finais, que os vários encontros, incluindo académicos, proporcionados pelas instituições do território de Macau são um contributo inestimável para a amizade e diálogo culturais, sendo esta a perspetiva correta do ponto de vista do autor para avaliar o papel dos portugueses no mundo, que em plena época contemporânea ainda remonta ao seu grandioso passado histórico, muito à semelhança do que sucede aos pensadores e escritores portugueses, mesmo aos mais imparciais como é o caso de Miguel Torga (1907-1995). Este escritor nascido em São Martinho de Anta, médico de profissão, conhece bem o seu povo, as suas alegrias e tristezas, riquezas, misérias e superações. Num retrato muito bem conseguido do país em tempos salazaristas escreve Portugal, cuja primeira edição data em Coimbra de 1950, assumindo perspetivas muito claras em relação ao passado histórico português aquém e além-fronteiras. Aquém-fronteiras domina a marítima, versátil, cosmopolita e aventureira capital de Lisboa contra a telúrica cidade do Porto, realista e voltada para as suas raízes. Ao longo da obra vai tecendo considerações oportunas e incisivas sobre a mentalidade portuguesa, que conduzem a uma imagem que nos dias de hoje talvez desague para as gentes aventureiras na personagem da novela Senhor Ventura, obra datada de 1991. Esta transporta-nos até à China. Voltando a Portugal, o autor estreia a obra pelo Minho onde tece considerações sobre o modo como os portugueses empobrecidos se relacionam com a vida do mar e da emigração: “De vez em quando poderá ter um acesso de fúria e tentar fugir de si. Baldada ilusão. Aonde chegar será sempre ele ainda, a morrer de saudades e a sonhar o regresso da aventura com uma pequena reforma. Como bálsamo, restar-lhe-á o narcisismo das façanhas passadas e o somático contentamento de ver crescer e progredir os mundos que descobriu e civilizou.” (Torga, 2003, 17). Muitos eram os emigrantes do antigo regime que tal como hoje partiram: a diferença é que atualmente estão muito mais bem preparados e educados. Os portugueses que emigram são, na sua maioria, quadros qualificados detentores de vários graus e diplomas nacionais, ostentando uma formação sólida e apetecida pelo mundo fora. Mas se as pessoas evoluíram em termos sociais, a mentalidade não mudou assim tanto relativamente à maneira como se relacionam com o seu passado histórico, nem no gosto do risco e da aventura que as impele para fora do país. A esperança será sempre a de uma vida melhor, embora os passos para a alcançar nem sempre sejam bem medidos. O autor quando descreve Trás-os-Montes, as suas berças, diz-nos a respeito dos emigrantes “Acossados pela necessidade e pelo amor da aventura, aos vinte anos (se não tiver sido antes), depois da militância, alguns emigram para as Arábias de além-mar. Brasis, Áfricas e Oceanias, metem toda a quimera numa saca de retalhos e lá vão eles” (Torga, 2003, 50). Eis um traço de a mentalidade portuguesa que se mantém em regime constante desde os Descobrimentos, a vontade e a necessidade de partir não apenas por falta de oportunidades, mas também pela sede de aventura, assim como a naturalidade na miscigenação, que bem se nota na capital de Portugal já desde os tempos de” Dona Filipa de Lencastre a parir por conta da grei portuguesa de fora” (Torga, 2003, 77), ou até mais além, desde a própria fundação da terra derivada da energia de um filho de pai francês e mãe espanhola. Porém, o maior perigo para Portugal e para a coletividade como um todo é, de acordo com a perspetiva de Torga, desperdiçar a força anímica dos portugueses e dos seus rasgos em aventuras inconsequentes que em nada possam contribuir para os seus projetos de vida individuais e/ou para o bem comum, mas que narcisicamente insistimos em reviver. Diz-nos a propósito de Lisboa “Narcisos que fomos também um dia, esperava-nos um destino igual ao do filho de Céfiso. Lisboa é essa flor em que o destino nos transformou; o Tejo, o rio onde nos perdemos a contemplar a nossa própria imagem” (Torga, 2003, 136). É justamente este misto de orgulho, vaidade e iniciativa que mostra a obra O Senhor Ventura. O protagonista é um homem de Penedono, no Alentejo, mas de múltiplos recursos e capaz de deitar mão a qualquer obra. Com uma constituição possante e taurina, depois de uma aventurosa experiência de serviço militar que o conduz a Macau e a um pequeno romance logo contrariado com Júlia, a filha do secretário do Governador, desertou da tropa e fez-se ao mundo como marinheiro a bordo de um navio que fazia cabotagem no mar da China. Daí passou a empregado numa garagem da casa Ford em Pequim, onde fez amizade com o Pereira um homem do Minho que cozinhava muito bem, tendo sido ele seu companheiro de aventuras até à morte. Entretanto, o Ventura cai nas boas graças do patrão da Ford, o Sr. Hughes por ser “um homem de pulso e iniciativa” (Torga, 2003, 26). Na vida, fez de tudo um pouco, traficou drogas e armamento, foi pirata, raptou, conduziu 200 camiões até à Mongólia e para sua desdita apaixonou-se por uma russa de vida pouco recomendável, a Tatiana. Embora avisado, até por si mesmo, porque o par se dava muito mal, quis casar com ela de quem teve um filho, o Sérgio. Foi então que resolveu enriquecer metendo-se no tráfico de droga, mais concretamente de heroína. Este novo ramo de atividade correu-lhe mal, foi descoberto pelas autoridades chinesas e teve de regressar a Portugal, deixando o filho ao cuidado da mulher, que o traiu, assim que virou costas. Regressou ao Alentejo num período de 5 anos para que as autoridades chinesas se esquecessem do assunto. Enfim, esteve em Portugal e regressou à China quando descobriu que a mulher o tinha traído. Procurou-a por todo o lado até que já moribundo foi ela quem o encontrou para lhe fechar os olhos no seu leito de morte. A palavra que melhor caracteriza o Senhor Ventura é segundo o autor “Acção – era a sua grande palavra.” (Torga, 2003,64). O escritor tem o cuidado de advertir a respeito desta história: “em cada paragem não faço mais do que tentar uma pequena meditação sobre o destino que é mais colectivo do que individual” (Torga, 2003, 70), acrescentando que o facto de estar o alentejano de regresso à terra é um chamamento do destino, imperioso, para o recolocar em contacto com as raízes, numa nova oportunidade de vida. O protagonista rejeita a chance, devido à obsessão que sentia pela sua paixão russa e que o vai conduzir à morte, rematando o autor com a seguinte reflexão: “Mãos estranhas enterraram no dia seguinte o corpo mirrado do pobre aventureiro na terra estrangeira onde devia pagar o preço das suas aventuras.” (Torga, 2003, 100). Das duas imagens estrangeiras e mais distantes dos portugueses, uma crítica e lúdica pelas mãos do artista francês Fabrice Caro (Fabcaro), outra enaltecedora e muito positiva transmitida pelo pensador chinês, Wu Zhiliang, a que se junta uma terceira mais realista e próxima transmitida pelo escritor português, não se pode concluir que haja apenas uma verdadeira. O retrato coletivo só em conjunto e numa espécie de perspetivismo nietzschiano se pode obter dos traços essenciais da mentalidade portuguesa contemporânea, moldada, como viu bem o artista francês, por séculos de apagamento, mas também pela consciência das façanhas gloriosas de um passado intercultural que se prolonga até ao presente, segundo Wu Zhiliang, ou ainda pela sede de ação e de aventura que, quando não é devidamente estruturada e enraizada em sólidos planos individuais e coletivos, pode conduzir a um inoportuno beco sem saída. Referências Bibliográficas Fabcaro, 2025. Astérix na Lusitânia. Tradução de Maria José Pereira e Paula Caetano. Desenhos de Didier Conrad. Cor de Thierry Mébarki. Alfragide: Edições Asa. Torga, Miguel. 2003. Portugal. Lisboa: Herdeiros de Miguel Torga José Manuel Rodrigues e Publicações Dom Quixote. Torga, Miguel. 1991. O Senhor Ventura. Coimbra: Círculo dos Leitores Wu Zhiliang (吴志良). 1991. Crónicas de Portugal 葡萄牙印象Macau: Associação Mundial de Intercâmbios Culturais e Artísticos (Macau) com o patrocínio da Fundação Oriente e Fundação macau. Este espaço conta com a colaboração do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, sendo as opiniões expressas no artigo da inteira responsabilidade dos autores. https://www.cccm.gov.pt
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasTorga e o Jardim No meu jardim aberto ao sol da vida Faltavas tu, humana flor da infância Que não tive… E o que revive Agora À volta da candura Do teu rosto! O recuado Agosto Em que nasci Parece o recomeço Doutro destino; Este, de ser menino Ao pé de ti… Esquecemos a ternura, esse saber de gostar de tantas coisas, de horas graves cravejadas nos sentidos, e dos caminhos andados em nossos sonhos, também eles de meninos. Miguel Torga continua a falar-nos com profunda comoção, e a razão de ser assim reside na sua raiz telúrica que semeia lembranças limpas, inteiras, tão claras como os vastos sonhos que tivéramos, mas nada disto é fácil de alcançar na sua poesia que subtraída a este tempo de estagnação imaginária requer outra humana condição, perdendo no entanto o som das fontes de menino. Explanação de bem-dizer no tempo comum da singularidade, o que daqui sai é quase uma prece, e esse sentido remete-nos outra vez para as claras esferas: estamos sitiados de palavras, descritivas, abundantes, simiescas, andamos a responder a coisas e a designar outras tantas – verbo solto com o velo da beleza trespassado- e a importância dos poetas mais que nunca deveria ser imensa. Tal truculência reinante não nos deve inquietar, servida de espasmos ortográficos e vozes sem verdade, renunciar ao dom maravilhoso da retórica seria agora um benefício em defesa do que restou de humano, e assim, calados mas com ritmo (que as palavras nos acendem por dentro) deve-se estar longe do martírio das vozes. Não valerá um segundo da eternidade uma conversa escrava na malvadez das palavras, e, no entanto, quantas vezes o nosso dom ardente que reverbera escatológicas vontades se desata neste estreito do barulho insano! Talvez replicar o estorvo vadio dos palavreadores, que ora arranjam convulsões quânticas para se manterem em grau no topo das barbaridades onde escrevinham entrincheirados volumes de ineficácia verbal, ora desmerecem o apreço pela conversação – se escutados amiúde, perdemos o jardim de Torga – e há jardins de onde não devemos ser retirados. Todo o poema que contém esta ternura deveria ser evocado nos tempos mortos das mortas gentes, desfeitas em soldadura de coisas sem sentido, e, depois, começar por trilhar o ritmo do equilíbrio que é preciso para ser-se gente. Pessoa. Que tudo o que nos distrai acusa em nós a queda livre para um abismo inumano de desassossego sem causa. Que dirão as máquinas vindouras da entropia maligna dos nossos diálogos? Que somos submecanismos impróprios para se fazerem compreender – que mesmo onde nada compreendemos, se nos fizer acrescentar estranheza, será digno de atenção, o mesmo é dizer, de vasta interpretação poética. Muito mais que o desnorte da vida de cada um, nós sempre poderemos soltar a fonte do que nos é comum. A teia prateada das manobras da aranha que sedenta de fabricar nos transmite o cordão mais fino e resistente- seres de quebranto e pasmo- E só tu no teu jardim, permaneces o jogral de outrora, querido Torga, sem a caserna do amor de si em frangalhos indistintos – Um menino é uma maravilha! Já uma criança pode ser um transtorno com a qual a natureza não contava. Pode parecer soberbo, mas a evidência de ser menino não atinge as contingências magoadas de se ser criança entre adultos criancistas. Até para chamar a saudade preciso do teu tempo. Que a saudade deixou de crescer neste orfanato de desvalidos e abundantes detentores dos sonhos dos meninos. [que me lembrei de ter saudades dessa infância que já tive, mais normal, mas não banal, e quisera ser menina ao pé de ti] Quando o fui, porém, lembrava ainda um outro Torga que me fascinou: «Senhor, deito-me na cama, coberto de sofrimento, e a todo o comprimento sou sete palmos de lama: sete palmos de excremento da terra mãe que me chama». Fui certamente uma menina muita velha. O que trazemos na lembrança! Jardins de fogo. Todos os homens, porém, foram meninos, e deles não conseguimos erguer esta delicadeza da entrega de um Torga que renunciou a ser criança. É um momento sem igual na rota dos dizeres. Ou talvez não … a coroação do menino, tema sem fim…Pessoa, menino quase sempre, e renunciar ao tema seria mais grosseiro que todos os atentados à memória da infância. Talvez o amor mude. – Talvez! Mas este, não devia ter saído do local onde estava situado. Criou homens fruto de um jardim difícil de ser alcançado. Nasceu em Agosto no ano de 1907, tão longe de nós! – Como o Avô! Diálogos de seres que conheço e mereço pela substância activa do tempo. Miguel Torga continua a falar-nos com profunda comoção, e a razão de ser assim reside na sua raiz telúrica que semeia lembranças limpas, inteiras, tão claras como os vastos sonhos que tivéramos, mas nada disto é fácil de alcançar na sua poesia que subtraída a este tempo de estagnação imaginária requer outra humana condição, perdendo no entanto o som das fontes de menino. Explanação de bem-dizer no tempo comum da singularidade, o que daqui sai é quase uma prece, e esse sentido remete-nos outra vez para as claras esferas: estamos sitiados de palavras, descritivas, abundantes, simiescas, andamos a responder a coisas e a designar outras tantas – verbo solto com o velo da beleza trespassado- e a importância dos poetas mais que nunca deveria ser imensa. Tal truculência reinante não nos deve inquietar, servida de espasmos ortográficos e vozes sem verdade, renunciar ao dom maravilhoso da retórica seria agora um benefício em defesa do que restou de humano, e assim, calados mas com ritmo (que as palavras nos acendem por dentro) deve-se estar longe do martírio das vozes. Não valerá um segundo da eternidade uma conversa escrava na malvadez das palavras, e, no entanto, quantas vezes o nosso dom ardente que reverbera escatológicas vontades se desata neste estreito do barulho insano! Talvez replicar o estorvo vadio dos palavreadores, que ora arranjam convulsões quânticas para se manterem em grau no topo das barbaridades onde escrevinham entrincheirados volumes de ineficácia verbal, ora desmerecem o apreço pela conversação – se escutados amiúde, perdemos o jardim de Torga – e há jardins de onde não devemos ser retirados. Todo o poema que contém esta ternura deveria ser evocado nos tempos mortos das mortas gentes, desfeitas em soldadura de coisas sem sentido, e, depois, começar por trilhar o ritmo do equilíbrio que é preciso para ser-se gente. Pessoa. Que tudo o que nos distrai acusa em nós a queda livre para um abismo inumano de desassossego sem causa. Que dirão as máquinas vindouras da entropia maligna dos nossos diálogos? Que somos submecanismos impróprios para se fazerem compreender – que mesmo onde nada compreendemos, se nos fizer acrescentar estranheza, será digno de atenção, o mesmo é dizer, de vasta interpretação poética. Muito mais que o desnorte da vida de cada um, nós sempre poderemos soltar a fonte do que nos é comum. A teia prateada das manobras da aranha que sedenta de fabricar nos transmite o cordão mais fino e resistente- seres de quebranto e pasmo- E só tu no teu jardim, permaneces o jogral de outrora, querido Torga, sem a caserna do amor de si em frangalhos indistintos – Um menino é uma maravilha! Já uma criança pode ser um transtorno com a qual a natureza não contava. Pode parecer soberbo, mas a evidência de ser menino não atinge as contingências magoadas de se ser criança entre adultos criancistas. Até para chamar a saudade preciso do teu tempo. Que a saudade deixou de crescer neste orfanato de desvalidos e abundantes detentores dos sonhos dos meninos. [que me lembrei de ter saudades dessa infância que já tive, mais normal, mas não banal, e quisera ser menina ao pé de ti] Quando o fui, porém, lembrava ainda um outro Torga que me fascinou: «Senhor, deito-me na cama, coberto de sofrimento, e a todo o comprimento sou sete palmos de lama: sete palmos de excremento da terra mãe que me chama». Fui certamente uma menina muita velha. O que trazemos na lembrança! Jardins de fogo. Todos os homens, porém, foram meninos, e deles não conseguimos erguer esta delicadeza da entrega de um Torga que renunciou a ser criança. É um momento sem igual na rota dos dizeres. Ou talvez não … a coroação do menino, tema sem fim…Pessoa, menino quase sempre, e renunciar ao tema seria mais grosseiro que todos os atentados à memória da infância. Talvez o amor mude. – Talvez! Mas este, não devia ter saído do local onde estava situado. Criou homens fruto de um jardim difícil de ser alcançado. Nasceu em Agosto no ano de 1907, tão longe de nós! – Como o Avô! Diálogos de seres que conheço e mereço pela substância activa do tempo.
Manuel de Almeida h | Artes, Letras e IdeiasA Razão de Existir (o prazer, a alegria & a «face») “A maior ameaça à nossa liberdade é a ausência de sentido crítico” [dropcap]A[/dropcap] frase é do Nobel da Literatura Wole Soyinka – pseudónimo literário de Alcinwande Oluwale, que nasceu a 13 de Julho de 1934 em Abeokuta, na Nigéria e que foi o primeiro escritor africano a receber o galardão. Criticar mas também convencionar, divergir mas também convergir, contestar mas também construir – resumindo ter um pensamento urbano! Antes de mais, gostaria, desde logo, de fazer uma declaração de interesses. Gosto de ter uma relação com o mundo, de construção e não de destruição. Gostaria que não se criassem – ou não nos obrigassem – a viver em círculos cáusticos, nem destrutivos e gostaria, por fim, que Macau não precisasse de se distinguir negativamente de ninguém, se souber distinguir-se positivamente (a música é melhor que o caos – sem casa, nem lar). Terra onde complacência é norma e o desleixo tradição, Não obrigado! («Temos o destino que merecemos. O nosso destino está de acordo com os nossos méritos» – Albert Einstein). Vivemos num Território de dúvidas! Apesar de tudo, estou feliz, por não integrar o «partido» do pensamento único, nem o «comité» do elogio mútuo e, além disso os meus pensamentos não estão agarrados a qualquer compromisso. Eu não acredito em sociedades de admiração mútua. “Toda a vez que estiveres do lado da maioria, é hora de parar e reflectir” – na opinião de Mark Twain -, mas cada um sabe de Si. Gosto de leituras diversas e dispersas, a juntar à degustação matinal da imprensa escrita – as outras só por uma questão de princípios ideológicos quase abandonei – gostaria de lembrar Hegel: “A Leitura do jornal é a oração matinal do homem moderno”. O abandono premeditado de outras formas de comunicação, já que “os factos não me interessam” – estou a parafrasear Musil, o d’ “O Homem sem Qualidades” – que acrescenta, e faço minhas as suas palavras, “só as interpretações” -, apesar destas nem sempre denotarem ambição crítica (um grave problema cultural) e sem essa cláusula não há evolução do pensamento – nem no mínimo critica moral. As palavras são acções. Já Nietzsche dizia: “Não há factos, só interpretação de factos”. Mas interpretação dos factos sem conhecimento: Não. Esperemos que o pensamento não autorizado nunca seja crime. Convém, desde logo, saber separar má-língua e crítica. «A má-língua é derrotista e paralisante, ao contrário do espírito crítico, que põe em causa falsos alarmes e falsas evidências,sabe analisar, sabe avaliar, sabe destrinçar» – resumindo, decide. O problema da crítica – segundo Nuno Júdice – “é trazer as inimizades dos ressentidos, a arrogância dos medíocres e o fechamento da corporação”. A morte da crítica corresponde essencialmente ao desaparecimento do debate político. Criticar não é ter ódio a ninguém – é discordar. Um outro grave denominador comum é a chamada “censura social” que não nos deixa falar verdade. Já Confúcio apregoava, “saber o que é correcto e não o fazer é falta de coragem”. Para isso, precisamos urgentemente de um pouco mais de ambição e um pouco menos de contenção, precisamos de limitar o uso do conceito consenso e usar preferencialmente compromisso, precisamos de um pouco mais de exigência e tenacidade para acabar com a indigência – terminar com o padrão de “política de pequeno círculo” (café/mahjong, «fazendo da língua mesa de conversa») -, ter uma mudança de atitude, com uma visão aberta e não dogmática da realidade. Temos de saber criar um diálogo civilizacional entre política e felicidade. Políticas arrojadas, com uma desconstrução do discurso assim como também de conceitos, para acabar com este tipo de sociedade cuja personalidade é fraca, pungente, imperfeita e refém, para a dotar de uma personalidade forte, gloriosa, perfeita e criadora. Não é por acaso que a população, hoje em dia, está despida de transcendência, valores ou referências. Assim, nunca construiremos uma sociedade coesa, humanista e solidária – é preciso reforçar o sentimento de pertença e de partilha -, estar atento ao próximo. Discursos estruturantes – com uma linguagem enxuta e drenada, em vez de técnica e factual, sem futilidades, insignificâncias e provincianismos. A comunicação é dificiente, insuficiente, tardia e às vezes nula. Prometer e negar devem ser palavras excluídas do discurso político. Definir e aplicar políticas de transformação estrutural e modernização efectiva. Não abdicar da cultura do exemplo. Apostar na cultura cívica – competência, dedicação e empenho – e, educacional. Recuperar valores de cidadania. Reestruturar o tecido social e familiar. Transformar a paixão em carácter. Aplicar uma maior justiça fiscal (temos de saber descontextualizar os números). Ter uma visão cultural humanista. Fazer cumprir o dever de memória, porque ao perdê-lo, perde grande parte da sua identidade (sem sentimentos de pertença) e dignidade. Criar um quadro de diálogos entre o presente e a memória. Combater privilégios. Reforçar a economia social. Promover a economia verde e 4.0 (baseada no conhecimento) e crescimento azul – «Definir um rumo e um propósito, dizer para onde vamos e por onde vamos». Só assim se pode criar uma sociedade caracterizada pela responsabilidade, iniciativa, autonomia, liderança, disciplina, participação e, sobretudo, ambição. Daí resulta uma cultura moderna de risco, conhecimento, inovação e reforma de métodos e mentalidades. O sociólogo alemão George Simmel diz que, para se desenvolver, “uma sociedade precisa de uma certa quantidade de harmonia e desarmonia, de associação e competição”. Temos de combater a resignação e o medo – “O medo devora a alma” – Rainer W. Fassbinder. Precisamos de uma palavra de confiança. Já Goethe dizia: “As pessoas infelizes são perigosas”. Falta saber conciliar a política do poder com a política da razão e essa leitura passa por uma interpretação correcta da relação entre pobreza, direitos sociais e políticos. Torna-se necessário examinar e rever, cuidadosamente, os modelos de respostas às dificuldades. Não se pode, ou não se deve, oscilar entre a insensibilidade para com os mais pobres e a vassalagem para com os mais ricos. Engolimos explicações que nunca deveriam ser aceites por uma sociedade saudável («que respire») e minimamente exigente («com poder de orientação») – devíamos de ser capazes de unir esforços e reunir interesses. A mentira vence, sem mentiras não havia vitórias… Até porque os últimos anos foram de sofrimento privado e letargia pública. “E o que não presta é isto, esta maneira Quotidiana Esta comédia desumana E triste, Que cobre de soturna maldição A própria indignação Que lhe resiste” Miguel Torga (1907/1995), escritor