António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasDas tonalidades Francis Bacon – “Oedipus” [dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma tonalidade é uma tradução para o que Heidegger escrutina como formas radicais de acesso ao mundo. São maneiras de ser. A palavra alemã é “Stimmung”. Traz à colação o fenómeno do estado-de-ânimo. É uma disposição. A palavra equivale, de certo modo, à inglesa mood. No étimo, está a palavra “Stimme” (voz). Uma tonalidade é uma cadência acústica, uma melodia, um modo. É assim que na nossa vida estamos dispostos. Vibram em nós disposições, cadências musicais rítmicas. Heidegger usa tanto metáforas acústicas: “uma tonalidade é um modo de ser no sentido em que é uma melodia, a qual não paira sobre o ser humano que existe aí, mas indica o som do seu ser, é o jeito e a maneira que determina e tonaliza o seu do ser humano (GBM, 101)” ou como metáforas meteorológicas: “Parece que a tonalidade está desde sempre aí, como uma atmosfera na qual nós já imergimos e ela ressoa em nós completamente” (GBM, 100). Nós temos em português expressões como “estar um ambiente de cortar à faca” ou “de cortar a respiração”, apontando assim para uma densidade extraordinária, uma atmosfera que não só paira em suspenso sobre as coisas, vibra sobre elas, mas perpassa tudo. Isto é o que dá disposição de ir ou de não apetecer ir. Não é uma coloração que pode ser detectada nas coisas (alegria rosa, melancolia negra), que acompanha o estarmos aí. É o que abre ou fecha, de todo em todo, atmosferas. Nós existimos entre possibilidades extremas de disposições vibrarem. O mais das vezes não estamos nem bem nem mal. Aparentemente neutraliza-se a disposição. Fecha-se o olhar, para dar conta dessa mesma presença. Isto serve para situar o acontecimento do esvaziamento de sentido, no nada da angústia ou do tédio. O nada dá ritmo à vida, dá-lhe uma melodia peculiar, desde sempre, desde a primeira vez das primeiras vezes. A sua cadência é a da asfixia, do estrangulamento do próprio sentido do tempo. Encontrarmo-nos no meio das coisas no seu todo não significa que o meio seja determinado por uma qualidade espacial (a equidistância). Por estarmos dentro de um determinado sítio não estamos dentro desse sítio: na praia, na esplanada, no mundo. Não é por estarmos entre quatro paredes que estamos na sala. Estar na sala de jantar a comer e a jogar às cartas é diferente. Se não captamos a totalidade da natureza e história. A disposição não apenas qualifica o sítio específico em que estamos (só esta sala). Ela faz-nos explodir para fora da sala, do edifício, para fora da cidade, tinge o céu, contamina tudo no seu todo. É centrífuga e claustrofóbica. O meio das coisas refere a cadência, o ritmo, a atmosfera e o clima em que nos encontramos. Fazemos a experiência de como cada um se encontra ou acha fora do âmbito perceptivo ou cognitivo. Cada pessoa é uma onda ou uma vibração. Cada pessoa encerra em si um espectro de modulações e tonalidades que metamorfoseiam o tempo, circunstâncias e situações. Cada pessoa é uma onda que modula o tempo e atinge a totalidade dos entes. A priori eu sei que quando me encontro com tonalidades diferentes: azul, rosa ou negro. Não apenas como um fenómeno cromático, mas como atmosferas que antecipam todos e quaisquer conteúdos. Há disposições a priori que podem não ser anuláveis. Podemos anular a chatice de um filme, saindo da sala do cinema para nos expormos a outros estímulos. Mas só manipulamos as disposições até certo ponto (com um copo de whisky sexta-feira à noite, por exemplo). Os estados de espírito são calculados. Rejeitamos convites porque sabemos que nos vamos aborrecer. Mas há disposições incontroláveis. Independentemente de onde estamos – no pátio, mar do sul, outra galáxia – estaremos sempre numa cadência com o mesmo tom. Não é necessário percorrer todos os compartimentos, todas as regiões de ser para interrogar sobre o que ainda escapa. À partida está ganho o horizonte e a confiança para nele estarmos: o horizonte onde vibram tonalidades. Há um tom para cada um de nós? Qual é? Conseguimos escutar-nos uns aos outros? Como? GPM: “Grundprobleme der Metaphysik” (Problemas fundamentais da Metafísica)