Gastronomia | José Avillez quer mostrar cozinha contemporânea nacional

“Estou muito feliz com a abertura, foi um parto difícil por causa da covid-19”, comentou ontem José Avillez à Lusa, notando que o restaurante, localizado no hotel The Karl Lagerfeld Macau, no Grand Lisboa Palace, “está preparado há bastante tempo”.
Macau, à semelhança do Interior da China, adoptou a política ‘covid zero’, impondo, ao longo de três anos, rigorosas restrições fronteiriças.
Avillez, que esteve duas vezes no território para preparar o projecto, embarcou na aventura “um bocadinho à descoberta” e com a intenção de “tentar mostrar em mais um lugar a cozinha contemporânea portuguesa”, embora admita que, “aos poucos, poderá ter uma influência mais local”.
“Mas eu preciso de ir mais vezes [a Macau] para entender melhor a cozinha macaense que, de alguma maneira, está quase desaparecida ou vê-se em cada vez menos sítios, mas também algumas influências da cozinha cantonense”, apontou, revelando que vai regressar à região em Junho.
Avillez é “o parceiro perfeito para o Mesa, que se esforça por promover Macau como uma Cidade Criativa da Gastronomia da UNESCO”, escreveu ontem num comunicado à imprensa o Grand Lisboa Palace, propriedade da Sociedade de Jogos de Macau, notando ainda que o interior do restaurante, projectado pelo designer Karl Lagerfeld, apresenta “uma mistura arrojada de design contemporâneo e inspiração oriental”.

Gostos pelo mundo
Ontem, também o restaurante Tasca by José Avillez, no Dubai, renovou a estrela Michelin conquistada no ano passado.
A Michelin divulgou, numa cerimónia, os restaurantes distinguidos na edição de 2023 do Guia Dubai, entre os quais o Tasca by José Avillez, que manteve uma estrela Michelin (‘cozinha de grande nível, compensa parar’).
Inaugurado em 2019 no hotel Mandarin Oriental Jumeira, o Tasca é o primeiro restaurante fora de Portugal de José Avillez e foi, no ano passado, um dos nove distinguidos com uma estrela na primeira edição do Guia Michelin no Dubai.
Além da distinção no Dubai, José Avillez tem, na edição de 2023 do Guia Espanha e Portugal, duas estrelas no Belcanto (Lisboa) e uma no Encanto (Lisboa), que foi o primeiro restaurante vegetariano distinguido pela Michelin na Península Ibérica.

26 Mai 2023

Um lugar à mesa

[dropcap]S[/dropcap]ão muitos, para todos os gostos, viciantes, uma pequena escola de culinária. Vão criando versões e reinventando-se uns aos outros. Contam-nos episódios ilustrados ao pormenor por fotografias em que os humanos são secundários e as refeições, o que importa. Fazem-nos companhia. Inspiram-nos. Vêem nascer amizades. A Ana Luísa Amaral tem muitos poemas que são, na verdade, receitas, e os seus poemas estão para a realidade como os blogs gastronómicos estão, bem, para o resto.

Já desconfiava da doença, porém nunca poderia adivinhar o resto. O que sabemos, realmente, senão o que as pessoas demonstram? Nas redes, pelo menos. A inevitabilidade de um ocasional revirar de olhos e uma crítica silenciosa quando surgem os moralismos que no fundo só são bons para os outros, sob a forma de posts partilhados. Share it until you make it, talvez. Partilhar para acreditar. Somos da velha escola, do blogspot e do livejournal, mas os flagelos que nos acometem são muito, muito mais antigos ainda e não parecem querer ir a lado algum.

Há cinco anos que este blog incontornável não era actualizado. Era como alguém cujo regresso desejamos secretamente mas não acreditamos que aconteça. Alguém com uma presença, um legado tão vincado que é impossível não nos entretermos mesmo na sua aparente ausência. Contar quantas vezes me alimentei e aos meus amigos com as suas receitas revelar-se-ia tarefa impossível.

“Deixa-a lá dentro, cortada, na cozinha,
e traz-me só café. Pousa a bandeja
ali, e depois vai. Não quero o seu olhar:

Recorda-me a prisão que ele habitou
(sem ser por mim) e a outra
em que eu morei, e onde fiquei,

Lembrando o seu olhar.”

Estava no supermercado, outro dia, a planear o que iria cozinhar esta semana, não fosse eu viciada em meal prep, mas algo me faltava. Algo que, tantas vezes, encontro no Ponto Espadana, na Smitten Kitchen, no Para Cozinhar, no The Kitchn, no Two Fat Ladies (saudades das originais) onde nem uma receita de caldo mancarra falta, na lista memorável de saladas do Mark Bittman no New York Times. Não desta vez. Abri um blog antigo, fiável, cujos links de receitas partilhei infindáveis vezes, e que, repito, não via posts novos há anos. Mas a verdade é que a última actualização aconteceu há precisamente um ano.

“E agora mostras
a toda a gente o cesto,
e não há sombra.”

A minha busca por inspiração foi abruptamente colocada em pausa. Fiquei ali, parada no corredor, a estorvar a multidão que se abastecia de mantimentos como se o fim de semana fosse uma catástrofe e o supermercado o bunker. Li um testemunho sincero, vulnerável, revelador: “assunto delicado e importante.”

“Tão brilhante e tão quente. Como
sabe a vermelho este café – ”

Uma despedida muito após o desaparecimento, com explicações para nós, os leitores.

“Deixo um bilhete à porta, junto ao Hades,
na esperança de que o cão
o não destrua – ”

Acontece que me habituara há muito a googlar o nome do ingrediente principal e o do blog, abrindo directamente as páginas que me interessavam, certa de que encontraria ali inúmeras receitas, dicas, dicionários de termos portugueses e brasileiros, curiosidades e histórias de familiares e amigos desta mulher que viveu em França, em Timor, na Terceira. Depois, espreitava as sugestões no fim de cada post. A Elvira (mãe dos blogs portugueses de culinária) lembrava-me a Filipa Vacondeus e o Chefe Silva (mãe e pai da tv e das revistas) por ter-se tornado um clássico. Por ensinar-nos os clássicos. Por ter sempre um nome carinhoso, de alguém que amava, para dar a uma receita em vez do original.

“Deve ser isso o que a mantém,
A faz vestir-se todos os dias, tomar o cesto das compras,
Escolher legumes naquela mercearia:
Os minúsculos gestos de que a vida é feita
Quando a guerra é ausente”

Um mês após esse último post, ela deixou-nos. Semanas passaram, no entanto, entre a minha primeira descoberta e a segunda, que me horrorizou ainda mais, quando procurei o seu nome no Google e surgiu o verbo morrer como sugestão complementar de busca. Agora, um ano após a sua partida, queria poder inventar uma receita que a honrasse, confortasse, fizesse dançar e cantar durante a preparação, ver o fuminho a sair delicado e seguro do que quer que estivesse no prato, talvez não um prato mas um tabuleiro de grão-de-bico com chouriço e ovos. Ou uma carne espiritual. Ou a delicadíssima lista que forneceu durante uma entrevista quando lhe perguntaram qual seria a sua última refeição. Não sei se a teve. Não sei se foi exactamente como ela queria. Não sei porque é que nunca lhe escrevi. Não sei se a Ana Luísa Amaral e a Elvira do Elvira’s Bistrot sabiam uma da outra, mas imagino-as a discutir receitas na cozinha e na vida, como nesta conversa imaginada. Não sei porque é que os cancros e as violências domésticas andam de mãos dadas. Mas sei que tudo aquilo foi real. Tudo: a sua dedicação e a nossa admiração.

“Vou apagar a luz. Sair da mesa.
Ela aguarda. E eu vou – ”

Sinto-me como se tivesse chegado tarde, demasiado tarde, a casa. Mas sei que a Elvira terá sempre um lugar à mesa.

12 Set 2019