O futuro da memória (I)

“Politics is the mortar between the bricks of history.”

Elsdon Ward

A crise da história e a crise da memória são um perigo. A civilização europeia está carregada não só de história, mas também de um certo sentido histórico. O início da modernidade europeia, que se associaria ao declínio da sociedade feudal e ao advento dos Estados nacionais, assistiu à afirmação de duas categorias interpretativas e científicas, a política entendida como reflexão sobre uma técnica, isto é, sobre um instrumento necessário para ordenar a vida social (basta pensar em Maquiavel) e a história entendida como um instrumento de construção do presente, necessário para a legitimação dos Estados nacionais nascentes. Pelo menos até ao século XIX, o nascimento e o desenvolvimento dos Estados europeus eram indissociáveis da reflexão historiográfica. O objectivo foi sempre o de apresentar a comunidade de referência como solidamente ancorada nas suas raízes históricas. Figuras como Michelet e Thierry em França ou Ranke na Alemanha são exemplos de escola. Na modernidade, em suma, a história era parte integrante da política.

No século XX, em parte devido ao suicídio iniciado pelas nações europeias com a I Guerra Mundial, algo alterou. Em particular, o sentido estoico das nações europeias mudou, pois começaram a cortar os laços com o seu passado após os dramas do século passado. No coração da Europa há uma espécie de mancha negra, o nazismo, mas também os vários fascismos e, na Europa de Leste, os anos do comunismo soviético que ainda paira sobre a nossa consciência e identidade. Vivemos numa espécie de tempo sem história, dada a dificuldade em aceitar a crise que a nossa civilização viveu no século XX. É uma verdadeira crise de memória. Temos dificuldade em reconciliarmo-nos com o nosso passado. Um factor decisivo, frequentemente tematizado, foi então enxertado neste húmus cultural. O da mitologia americana da “city on a hill”. A ideia de uma civilização nascida sem pecado e baseada no desprendimento da “Velha Europa” tornou-se extremamente poderosa e atractiva para os Estados europeus, que tiveram enormes dificuldades em enfrentar as suas dramáticas vicissitudes.

Mas este mito, que descreve um poder hegemónico imaculado e acima das misérias da história, corre o risco de gerar nos americanos a ilusão de poderem viver uma vida meta-histórica, se não mesmo anti-histórica. Isto é extremamente perigoso, porque aqueles que não se preocupam com a história correm o risco de a repetir. Esta tendência pode ser observada actualmente. Vemos a olho nu como a história se está a repetir. O confronto do século XVIII entre a talassocracia britânica e o império russo revive hoje no terror anglo-americano de um poder terrestre que não estabelece fronteiras. E que, além disso, tem o defeito de ter os pés bem assentes na História, fundando-se desde o tempo de Pedro, o Grande em mitologias imperiais e religiosas que se reproduzem mesmo séculos depois. Como não pensar, por exemplo, na carga histórica presente nos grandes filmes de Serguei Mikhailovitch Eisenstein, tão importantes para mobilizar os russos na guerra contra os nazis?

No entanto, por muito anti-histórica que seja a América, é preciso ter em conta que os pais fundadores se referiam frequentemente ao império romano ou à cultura grega. De facto, esta prática era típica das revoluções do século XVIII. A questão é que esses mitologismos foram empregues mais por necessidade do que por qualquer outra coisa. Quando os pais fundadores se viram a fundar um novo mundo baseado na liberdade individual, não tinham simplesmente modelos, porque os Estados europeus estavam todos organizados hierarquicamente e por classes. O único modelo possível era o da liberdade republicana da Roma antiga, embora certamente reinventado e adaptado ao contexto. Durante o século XX, a anti-historicidade estrutural da América causou sérios problemas. Foi esta característica que facilitou o desenvolvimento da ideia, fundamentalmente oitocentista, de direito natural, segundo a qual a ocorrência de certas condições objectivas só pode ser seguida da realização efectiva dos direitos naturais e, em última análise, das condições necessárias ao desenvolvimento do Estado de direito e do capitalismo.

O erro foi acreditar que, na história universal, a democracia liberal e o sistema capitalista eram a norma e não a excepção. A democracia é algo muito raro e muito difícil de alcançar, enquanto o capitalismo surgiu de uma convergência de factores ideais, materiais e políticos que se combinaram num determinado momento na Europa e que poderiam muito bem não se ter combinado. Acreditar que para realizar o capitalismo e a democracia basta criar condições objectivamente adequadas ao seu desenvolvimento é uma enorme ingenuidade.

O capitalismo ou a democracia não podem ser ensinados numa secretária. Os políticos ocidentais e os homens do Banco Mundial que tentaram explicar aos russos o que era o capitalismo não conseguiram mais do que o sacrifício de uma ração genética e a imposição da autocracia de Putin que conduziu a restaurar autocraticamente a ordem no país, enquanto hoje tenta também restaurar a sua honra perdida com a invasão da Ucrânia.

(continua)

4 Set 2024

BABEL | Ciclo de conferências sobre património, memória e colonialismo arranca hoje

Começa hoje um ciclo de conferências online que aborda a preservação de memórias sobre locais e objectos que foram deslocados dos lugares a que pertenciam. A iniciativa é organizada pela BABEL – Organização Cultural e dela vai nascer um arquivo digital com os objectos e histórias abordadas no projecto

 

Entre hoje e domingo discutem-se, num formato totalmente online, questões como o património, memória e colonialismo através das histórias de “objectos” com “acentuado valor simbólico e patrimonial que, de forma violenta ou anti-ética, foram deslocados das suas comunidades originais e colocados em contextos e locais muito distintos”.

Esta é a temática central do ciclo de conferências “SOS – Stolen Objects Stories”, onde serão partilhadas “perspectivas académicas e artísticas situadas na confluência entre imperialismo, colonialismo, de-colonialidade, património e práticas criativas de produção de conhecimento”.

Desta forma, personalidades como Margarida Saraiva, co-fundadora da BABEL, Zuozhen Liu, Maria Paula Meneses ou Catarina Simão, entre outros, vão debater questões “além das fronteiras tradicionais” como a “colecção, instituição ou nação”, a fim de chegar “ao domínio de uma ética do ‘cuidar’ e ‘reparar’”.

Pretende-se, assim, dar respostas a questões como “o cuidado com os objectos do museu para o respeito pelas pessoas”, ou ainda a necessidade de colocar “a preservação dos acervos e património museológicos [em prol] do bem-estar das comunidades, da natureza e do planeta”.

Ao HM, Margarida Saraiva adiantou que o ciclo de conferências vai além do debate de objectos roubados em contextos coloniais ou de conflito, abordando também a forma como muitos vezes nós, enquanto seres individuais, nos vemos apropriados de forma ilegítima dos nossos dados pessoais, por exemplo.

“Partimos de uma parte que todos entendem, quando falamos de objectos museológicos roubados, para depois acompanharmos essa problemática até à actualidade. Muitas vezes, numa situação de guerra, o património móvel fica muito vulnerável.”

A ideia é descobrir “a quem pertencem os objectos”, sem que se faça “uma abordagem simplista do problema”.
A BABEL tem trabalhado com mais de 15 investigadores. O resultado deste projecto poderá ser visto depois num arquivo que será totalmente digital, e estará disponível um mês após o ciclo de conferências.

Dias de reflexão

O evento de hoje é dedicado a “Histórias”, durante o qual Margarida Saraiva irá apresentar o projecto que deu origem ao ciclo de debates, o SOS. Trata-se de um “arquivo crítico” que foi fundado com base “num conjunto de questões urgentes”. O SOS foi desenvolvido em parceria com mais de uma dezena de investigadoras, artistas, historiadores, poetas ou músicos, de países como Uruguai ou Austrália, entre outros.

A ideia por detrás do arquivo é “assinalar a interligação e a interdependência de pequenos lugares, espalhados pelo mundo, sem procurar oferecer uma visão global”.

Segue-se a apresentação “Irá Deus ganhar? O caso da Múmia Budista”, conduzido por Zuozhen Liu, da Universidade de Ciências Sociais de Guangzhou. A académica irá contar a história de uma estátua com cerca de mil anos, conhecida como a estátua de Zhanggong-zushi, e que tem captado a atenção da comunidade internacional.

Haverá ainda uma conversa sobre os “Objectos Roubados da China: Histórias e Biografias das colecções de Yuanmingyuan (‘Palácio de Verão’) nos museus britânico e francês”, levada a cabo por Louise Tythacott, da Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres. O debate remete para a retirada de objectos por ingleses e franceses em 1860, aquando da segunda Guerra do Ópio, bem como o vandalismo a que foram submetidos estes elementos do património histórico chinês.

No sábado conversa-se sobre “Práticas”, com duas apresentações mais focadas na Ásia, como é o caso de Caroline Ha Thuc, escritora e curadora de Hong Kong, que irá falar sobre as práticas da pesquisa artística no sudeste asiático. Riksa Afiaty e Sita Magfira, artistas e curadoras independentes da Indonésia, também participam no debate, juntamente com Catarina Simão, que abordará a questão dos arquivos como campo de trabalho. Domingo será dedicado aos “Discursos”, numa sessão dedicada à preservação, do saque e da memória, com autores como Marian Pastor Roces, das Filipinas, Naman P. Ahuja, professor na Universidade Jawaharlal Nehru, em Nova Deli, e Maria Paula Meneses, da Universidade de Coimbra. O ciclo de conferência estará disponível, entre as 17h45 e as 18h30 em https://iftm.zoom.us/…/register/WN_yhQejPxOREOJDVl2d9JHOQ

25 Mar 2022

Da memória

[dropcap]Q[/dropcap]uer dizer: sabemos que ninguém rejuvenesce nesta vida. Que os nomes, os lugares, as coisas, os dias começam inapelavelmente a escaparem-se de modo a que muito do que vivemos, bom e mau, se transforma em paisagens impressionistas e distantes. Francamente não me parece que isso seja uma má notícia do ponto de vista individual. Desde que escapemos à tragédia de patologias cruéis, em que lúcidos deixamos de reconhecer quem mais amamos, a erosão do que lembramos pode ser até salvífica. Quem sabe mesmo um mecanismo de evolução natural. Que a memória pode ser selectiva é um facto conhecido; o pouco que se pode lamentar ou louvar é o critério dessa selecção. Interessará que apenas me lembre dos melhores momentos da minha vida ou irei angustiar-me porque não os consigo lembrar? Qualquer que seja a resposta há um facto irreversível: não me lembro mas vivi-os. Isso, acho eu, deveria bastar.

Mas a este nível a questão leva a escolhas ou traços de carácter. Se lamentamos um paraíso perdido, lembramo-lo como uma redenção melancólica e inútil; se houver um acontecimento terrível que nos assombre, continuamos presos. “O passado é um país estrangeiro”, diz uma das mais famosas aberturas da literatura. Sim, certamente; e o ser humano divide-se entre aqueles que persistem em habitá-lo e os outros que aceitam que fez parte de um caminho que veio dar até agora mesmo.

Eu faço parte destes últimos. Mas se dou valor ao agora é porque tenho a possibilidade de lembrar o ontem e aprender com ele. A memória, como David Hume escreveu, serve também para conservar as ideias e a sua ordem. E é por tudo isto que me custa viver num mundo e mais particularmente num país cada vez mais amnésico.

Serei sincero: se há coisa que Portugal não tem é uma cultura de memória. Não se pode atribuir isto apenas aos ares do tempo e ao actual modo de pensar basta-juntar-água. Infelizmente o meu país tem rastilho curto no que ao lembrar diz respeito. Lembram-se ocasiões grandiosas, celebram-se efemérides; mas esquecemos os pequenos actos que podem mudar um destino colectivo. Muitas vezes até as grandes infâmias são levadas pela torrente do presente. É certo que quando se trata de factos históricos os fantasmas estarão sempre `disposição dos vencedores. Mas o que custa é o contraditório ter quase desaparecido, existirem poucos que digam “isso não terá sido assim”.

Esta ausência de memória colectiva leva a outro efeito mais grave: não honrar quem já não está. Para não variar socorro-me de António Vieira: «O efeito da memória é levar-nos aos ausentes, para que estejamos com eles, e trazê-los a eles a nós, para que estejam connosco». Estes ausentes, neste contexto de país, são aqueles que se notabilizaram pelo bem comum. E são honrados não apenas pela lembrança individual mas sobretudo pela conservação de registos materiais de vária ordem que este país parece desprezar. Livros, documentos, fotografias – ou estão em lugar incerto ou é o próprio país que muitas vezes não os deseja nem protege.

A memória, é certo, pode ser nossa inimiga mas tem que existir. É um factor de civilização essencial que por aqui está em défice. E mais do que isso: são as migalhas deixadas no chão dos tempos que nos ajudam a encontrar a saída do labirinto dos dias.

1 Dez 2020

Uma recordação estival

[dropcap]N[/dropcap]ão me lembro da idade precisa que tinha quando descobri que havia uma diferença anatómica vincada entre homens e mulheres. Já tinha obviamente uma noção, embora vaga e indistinta, que por debaixo das roupas diferentes que cada um usava se escondia uma realidade capaz de afastar uns e outros tanto quanto aproximar. Aos seis, sete anos, tudo é ainda muito confuso (não se infira desta afirmação que a confusão se dissipa com o passar do tempo, apenas muda).

A minha mãe e o meu pai, no Verão, alistavam-se na apanha da cereja para compor o mealheiro familiar. Embora se ganhasse muito melhor em França do que no Portugal do início dos anos oitenta, o dinheiro nunca nos sobrava de tal modo que não precisássemos de pensar nele. Era uma actividade razoavelmente bem paga, por não haver assim tanta gente disposta a fazê-la. A maior parte dos trabalhadores eram imigrantes que aproveitavam os tempos mortos de Verão ou alguns dias de férias ocasionais para fazer uns trocos.

Por vezes, quando ia com eles e por ser demasiado jovem para contribuir activamente para economia familiar, ficava na casa dos donos da fazenda ou na casa dos caseiros, a brincar com os filhos de uns ou de outros. A maior parte das vezes, era apenas ignorado. Embora tivesse nascido em França e falasse um francês escorreito, era ainda assim filho de emigrantes, um estatuto que condicionava as pessoas a relacionarem-se comigo como se eu fosse apenas uma espécie de caricatura.

Era depois de almoço, cerca das três da tarde. A governanta tinha instruções para pôr a criançada toda a dormir – ou a fingir que dormia – pelo menos uma horinha. Era uma família grande; entre avós, pais, tios, primos e filhos deviam ser uns trinta e, ainda assim, o que não faltava naquele casarão era espaço. Eu não fazia a sesta há mais de três anos, mas a minha margem de manobra para discordar do que quer que fosse era ainda menor do que na minha própria casa. Fomos levados para um quarto enorme, repleto de beliches, uma espécie de incubadora de gaiatos com duas janelas minúsculas a uma altura à que nenhum de nós conseguia chegar.

Ser obrigado a dormir quando não se tem sono é o equivalente a ser obrigado a comer o terceiro prato de cozido à portuguesa na casa da avó quando já na segunda volta não se tinha fome. Eu não tinha qualquer vontade de dormir mas, para ser franco, nem os mais novos me pareciam ter sono. À distância que me encontro agora do local e tempo em que vivi esta vida – que a maior parte das vezes não me parece ser sequer minha –, acho que a obrigação de pôr aquela gaiatada toda a dormir era apenas uma forma de garantir que a governanta tinha tempo para organizar o jantar.

Lembro-me de partilhar a cama com uma das miúdas mais velhas, que devia ter os seus oito, nove anos. Mal trocáramos umas palavras antes de a governanta achar por bem nos arrumar lado a lado no tetris das camas. A menina queixava-se também de não ter sono. Mas fazia-o como se eu não estivesse ali e a conversa dela se dirigisse a um amigo imaginário ou mesmo ao tecto. A certa altura pegou-me na mão e meteu-ma por baixo dos calções dela e das cuecas. Eu não sabia o que fazer. Mais: não sabia sequer se tinha de fazer alguma coisa. Em boa verdade, acho que nem ela sabia. Limitou-se a mexer-me a mão como se guiasse os braços desajeitados de uma marioneta.

Quando finalmente nos deixaram sair do quarto, eu não fazia ainda ideia de que o constrangimento podia ser a pontuação possível da intimidade. Lá fora a chuva de Verão aproximava-se como se de uma parede móvel se tratasse.

11 Out 2019

Náusea

[dropcap]J[/dropcap]á fechámos o ciclo existencialista pelas cortinas douradas da luxúria do capitalismo e não conseguimos no entanto deixar de andar nauseados. Não sendo um diário íntimo de páginas à Sartre, inventámos o cripto-discurso novelístico das redes sociais, tornando o mundo tão intimista quanto cheio de vacuidade. – Dia 29 de Janeiro, 15 de Outubro, 30 de Junho, e estão lá as narrativas nauseabundas dos discursos de cada um infiltrados na diarística. – Pois que seja! – «O inferno são os outros» e a nossa fogueira tem muito de combustível para juntar às piras que se alastram em todos os roteiros. Pensando bem, nem o género confessional se repõe nesta atoarda que teima em prescindir do confessionário ou da psicanálise. O ciclo semântico alastra e a comunicação excede o seu princípio onde cada um recria o seu próprio discurso apologético.

A actualidade contemporânea excede e escusa também qualquer pensamento filosófico. Penetram na massa dos dias golfadas de acontecimentos tais, que não remete para um propósito de interpretação concreta, e depois, tudo é político, económico e derivadamente desportivo. Só de temas que nos afundam, todos os canais comunicantes estão repletos de descincrónicos discursos cavalares, liofilizados e mutantes. Se Sartre vivesse hoje, teria de nomear o seu diário de «O Vómito».

Mas possamos nós reflectir o que há de saudosamente nauseante nas linhas perfeitas do seu inventário, todo arquitectado de pequenas distâncias de interação com o mundo, e a nossa vã insubornação em legítimas revoltas nunca seriam partilhadas. Esgotam-se os efeitos das presentes indignações ao sobreporem-se logo outras no dia seguinte. E assim, de nenúfar em nenúfar, se vai aguçando a crítica que não extrai soluções.

Um livro tem páginas e uma sequência toda mental que define o tempo de leitura cujo ornamento não é necessário, pois que retiraria a própria atmosfera que cada leitor deve processar para que seja a leitura uma proposta também de releitura, que acrescente espaço onírico ao processo interior. Sem este contemplar não há possibilidade de reabilitar nada e a natureza dos sonhos que se desvanecem são de pesadelo quase imediato. Gastroenterites mentais a abarrotar de acidez e especulação delirante fruto da sensação do próprio impacto, produz agora a «Náusea» que se alastra. Sabemos que os dedos são projécteis em defesa da ideia e uma coisa é a mão que escreve e outra é escrever com duas mãos. Este trajecto que se foi criando intensificou a urgência do dizer: dizer a duas mãos – o que a natureza de uma apenas dita. Mas, pode ser que haja um aparelho para destros, e outra, para não destros, e ambidestros, e se possa sinalizar os acontecimentos com a mecânica de uma especificidade que reporá toda a temática destes suportes do pensamento.

Abre então este livro com o título «Folha sem data», o que deixa logo um espaço de liberdade pois que saída está da causa-efeito e se desdobra num tempo outro que requer nestas paragens também ele inventado ou estaremos diante de um escriba de costumes, esses raros seres que nos fizeram acreditar nos factos históricos, ou dos cronistas de serviço às Nações. Sem a força das suas narrativas interpretadas com mestria teríamos efeitos inaguentáveis onde a objetividade seria então um factor de imobilização para quem se adentrasse numa coisa assim. É ainda o talento criador que pode fazer interessar-nos por elas. Nenhum ser aguenta viver com o peso da realidade que é transversal a todas as épocas, sucumbiríamos ao difícil da vida e ao pragmatismo das intenções. Onde nos pode levar então este julgamento? A um momento terrível: ao fim do sonho como uma queda de saúde mental. Mas é aqui que perigosamente estamos sem articulação que dite o desmoronar de uma praga que foi corroendo as mais importantes reservas de entendimento.

Um existencialista pode ser bastante mais aborrecido que um universalista, e um intimista depressa se pode melindrar com vínculos extra si. Mas, lá estarão cumprindo uma gestação qualquer que trará alguma paz em seu redor, e quando bem entendidos, darão ainda cumprimento a uma missão transfiguradora dos problemas de cada um. Sem dúvida que o enfoque em nós mesmos produz vertigens, náuseas, vómitos, e depressa nos prostra num vazio existencial, isto, não falando dos vários graus de desassossego dos que querem originar uma originalidade tal, que se apoquentam com o facto tenebroso de outros não reconhecerem tal excepção.

Tudo isto é de uma atmosfera impenetrável e requer a um incauto medidas coercivas e justificações tais que provoca a ira de um qualquer expandido na órbita das forças verbais.

Nesta memória futura há vagas de repugnância que excedem as nossas capacidades de tolerância pois que ninguém se ajeita a descrever o dia sem uma bizarra reserva de enervamento. Nos dias bons, até se podem improvisar mais dias assim com ilustre contentamento, mas os dias bons são como os “amanhãs que cantam…” são esperanças lançadas ao futuro das coisas ordinárias. E vamos percorrendo o fluxo dos dias sem ver solução para isto. Se cá estivesse agora, Sartre, já teria tido a sua expurga sem recitativos contundentes, e ter-se-ia talvez que enfaixar na diarística do fluxo mundial e tolerado a sua imprópria matéria como uma reserva literária condensada em feitos virtualistas, o que desmontaria o martírio do pensamento dos seus dias, isto, se não houvesse mesmo um volte- face e começasse a falar de um tema moderníssimo- a felicidade- esse tema sombrio que tende para todos os desastres, e tirasse ainda de si mesmo a frase grave do absurdo: Dou alguns passos e paro. Saboreio este esquecimento total em que caí. Estou entre duas cidades: uma ignora-me, outra já não me conhece. Quem se lembra de mim?

Agora aqui nos lembramos.

12 Fev 2019

Uma língua de mar   

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]xistiu algures uma teoria da arquitetura portuguesa que não é mais do que a extensão do desenho das emoções projectáveis que ao modelar a paisagem teceu a linha da saudade. A linha horizontal. Nunca de facto o gótico foi expressivo entre nós, nem os vastos guindastes para os céus enaltecidos enquanto desafios imaginários. A linha que se estende oceânica também modela as vozes e tem verbos longos, arrastados, que abre vogais, amplia noções, pega no fio e transporta-o em deleitoso arrastar de forma deitada. Uma paisagem que os sentidos apreendem, as vontades compõem e dá origem a formas de pensamento. Ao partirmos de um lençol deitado, bordado, desses monumentos compridos, densos, transformáveis, levamos ainda o grande fio que irá servir de laço «laços de amor» às vestes dos Vice-Reis da Índia.

Uma corda em pedra que sobe, que é rente, que enreda, serpenteia, não é o mesmo que um bastão de um «Excalibur» nesta designada outrora terra de Mu, ou reino das serpentes, que definitivamente não gosta da recta e onde tudo ao redor nos lembra disso. Até os signos alfabéticos nos dão conta, quando ao percorrê-los vamos encontrar um «S» exponencial para as concordâncias que atravessam a língua toda: terra dos Silvas, das Saudades, das Saúdes, das Sardinhas, das Senhoras, dos Soares, dos Sousas, dos Sidónios… dos Salazares, um manuelino enroscado à teia de uma consciência da vida como «Capela Imperfeita» que ao não ter tecto faz das alturas estelares uma visão aterradora. Octógonos em pedra, deitados nas lajes os mártires que aspiram nevoeiros.

Toda a sinuosidade se adapta ao espaço, contornando-o – uma manobra dançante – teme o obelisco, corta as partes contundentes, ameaça ser um lago e lança-se em oceanos. Lá chegados, as terras que fomos inventar são hoje uma panorâmica surpreendente do ventrículo luso, as cidades onde ora acontecemos parecem ainda hoje ter as “tripas de fora” nos postes de abastecimento energético, que a tripa é uma curvatura lindíssima e serpenteia cidades como uma piton iluminada. Nós não vemos isto, aliás, nós, agora tão Encobertos não olhamos quase nada e vamos melancolicamente a direito dentro de cápsulas sem préstimos e qualidades. A errância, essa grande teia, tem uma língua que propulsou, tomou cuidados, e foi em correntes de água molhar as bocas que encontrava.

E hoje, a memória do que outrora levávamos não tem voz, a nossa lembrança não tem chão, perdemos tudo ao tentar ser outros e cegos fomos ficando no intenso nevoeiro. Louvámos os charcos e calcinámos as frotas. De grande, restou-nos um certo círculo onde se tece a teia, onde se nasce para o fundo de cabeça a descoberto… e agora, que todas essas redes gravitacionais que dançavam numa estranha mas fascinante inspiração colectiva para sempre se foram, eis-nos que somos o que a ninguém lhes acontece ser: reflexos. Qualquer coisa no entanto e de novo se faz sentir, pode até coincidir com o último trago, mas não será em vão tentar pensá-lo.

Já poucos, aguardamos, cansados, nem por isso desistimos. Os ciclos são esféricos e quase sempre pela brecha que não esperávamos muda o mundo. Pode haver um senão: não estarmos aqui, mas outros tomarão os remos da ideia começada. E pela mesma razão que a língua galgou as praias por onde Velhos anunciavam desventuranças, iremos agora buscá-la mais além, nos locais onde beijamos outros. Tudo isto, e não sei em que sentido me lembra este poema de Manuel Bandeira:

“Aceitar o castigo imerecido,
Não por fraqueza mas por altivez
No tormento mais fundo o teu gemido.
Trocar num grito de ódio a quem o fez.
As delícias da carne e pensamento
Com que o instinto da espécie nos engana.
Não tremer de esperança nem de espanto
Nada pedir nem desejar, senão
A coragem de ser um novo santo
Sem fé no mundo além do mundo. E então
Morrer sem uma lágrima, que a vida
Não vale a pena e a dor de ser vivida.”

Uma língua de mar.

9 Out 2018

Três vistas sobre uma rua

[dropcap style≠‘circle’]U[/dropcap]ma rua absorve o espaço todo de uma cidade. Implode-o em si. A rua vai dar a outras ruas e outras ruas vão dar a ela. Pode fazer-se a pé o caminho que leva a ela ou a partir dela se vai a outras ruas, mesmo contra o sentido da marcha dos automóveis. A rua, onde vivemos, é um cenário que acaba nos seus extremos, nas ruas à esquerda e à direita de que só adivinhamos a existência, mas não temos em percepção. Há prédios de gente que o habita. Há jovens casais e velhos. Há o sapateiro, a mercearia, casas de pasto. Há paragens de autocarro, casas de habitação e agências de viagem, agências bancárias, casas de moda. Carros passam e pessoas caminham pelos passeios: avós e netos, pais e filhos, irmãos e irmãs. Uma rua é um ecossistema complexo. Demora tempo a habitar uma rua. Pode ser a “personalidade” orgânica, onde uma criança brinca com outras crianças desde sempre: joga à bola, corridas de carros nas bermas do passeio. Pode ser a rua, calcorreada a passo lento de quem é decrépito e tem a vida toda vivida e espera pacientemente pelo último suspiro. Todas as ruas são este ecossistema para quem vive nelas. Mas há também as ruas, onde ficam os sítios em que trabalhamos ou o liceu ou o ginásio. Há as ruas onde vivem os nossos amigos que são também por direito próprio as ruas dos outros. Cada rua, excepto a nossa, é a rua dos outros. Podemos até vir a viver nas ruas dos outros, próximos dos outros e das suas ruas. A rua onde vivemos vai ficando esbatida. O seu sentido permanece. O seu significado fica sempre algures a fazer-se sentir. O que se esfuma são os rostos de quem por lá passou. Nem nos apercebemos de que são agora adultos, quando há quarenta anos eram crianças. O parque automóvel mudou. As fachadas dos prédios foram pintadas com cores diferentes. Os velhos morreram. O sapateiro fechou. Não há mercearias, nem agências de viagem, nem agências bancárias. Há prédios novos no lugar de prédios velhos. É uma outra rua.

Mas há tantas ruas, também, quantas as pessoas que as habitam. Num prédio de quatro andares, por exemplo, e quatro apartamentos habitados, há uma multidão de gente. A rua das pessoas do segundo andar esquerdo é diferente da rua das pessoas do segundo andar direito. O que se passa nas suas casas é inacessível, mesmo quando ouvimos falar do que acontece a cada família: um filho que adoece e um pai que morre. Mas, mesmo no habitual habitável, quando tudo é normal, as ruas são influenciadas pelas casas, porque as pessoas habitam uma rua, vivem numa rua, existem nela! Não estão lá postas nem para lá são atiradas, para serem referenciadas por coordenadas. É outra a maneira de ser numa rua. A rua toda entra por olhos adentro. Há os sons omnipresentes dos elétricos que passam, sem nós os vermos. Há o ruído dos carros a passarem na Ponte Sobre o Tejo. Há cães que ladram à noite. Há o som que se silencia ao entardecer, quando as pessoas chegam a casa e preparam o jantar. Há os sons das crianças que gritam de chegar a casa e estarem no serão à espera do sono dos anjos.

E a mesma rua pode ser completamente diferente. Uma rua que é a nossa referência na cidade tem épocas. É uma rua onde podem viver pessoas que nunca se conheceram e um dia percebem que a viveram em dias diferentes da semana. A rua pode ser habitada ao fim de semana sem poder conhecer ninguém que lá viva aos dias de semana. A rua é a da infância, da juventude estridente, dos primeiros anos do envelhecimento dos avós. A rua é diferente, quando nos chega uma notícia boa e quando nos chega uma notícia má. A rua é diferente na solidão do solitário e quando é partilhada na geografia e na biografia de duas pessoas que se encontram. A rua é diferente, quando é habitada e quando é só preenchida pela vida azul da melancolia solitária. A rua congelada no tempo, em que nada acontece, é diferente da rua que se funde e derrete, num dia solarengo de Verão, quando se espera a chegada de alguém, apenas por servir de chegada a alguém por quem faz sentido esperar.

27 Jul 2018

«As recordações ajudam a esquecer»

Cervantes, Lisboa, 14 Maio

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]squeço com demasiada facilidade. Se a poeira pouco importa, algumas migalhas dos dias mereciam repousar na conserva da memória. Para digerir mais tarde. Foi um dia forrado a urgências e agitação, que não lembro, embora me tenham até impedido este exercício diarístico.

Podia ter nevado que o esqueceria de igual modo. No fim da tarde dou comigo sentado em mesa posta perante plateia, como em segunda tremenda adolescência, tremendo. Que desejei eu para merecer estar ali na companhia de Luis García Montero, do seu tradutor, Nuno Júdice, do pintor Juan Vida, e de Chus Visor, desmesurado editor? As capas negras da colecção Visor (50 anos, mais de 2000 títulos de poesia) escondiam a potência do desejo, claro.

Júdice despertou apetites adolescentes com prosa inesperada, sim. García Montero iluminou longas tardes na Andaluzia onde aprendi sinuosidades do coração, pois. E creio que chegámos a ele por Lorca e Alberti, seus companheiros, talvez meus, se me atrevo. Mas o encontro devo-o por completo ao versado em desejo, Javier [Rioyo], que orienta a conversa exemplarmente, despida de formalidades, aberta às ondas dos que se fazem presentes e podem afirmar, contar, lembrar. Alegria, como laranjas acabadas de colher, eis tudo.

Em voo, que parte de 1982 e percorre nove livros até 2017, com «À Porta Fechada», a antologia apresenta bem este labor que faz do quotidiano superfície, uma pele, na aparência transparente, que esconde/revela as convulsões que são a sua matéria, a sua carne. «Em lembrança/ do seu assombroso odor a sobrevivência,/ quero atravessar a casa/ e despir-me às escuras,/ sem incomodar,/ sem acender sequer as luzes do espelho,/ para não me perguntar/ de que serve um oásis,/ se o coração conhece os desertos/ e sabe que o esperam/ como pegadas antigas que já vão à frente.» (de «Nocturno»).

As escolhas de Nuno desenham um percurso de maturidade que nos põe a andar, com o autor, no fio da navalha e de costas para o futuro, como mandam os clássicos. Uma antologia assim, que propõe distintos caminhos torna-se lanterna. Os versos com os quais o poeta foi experimentando o tempo, o natural, a cidade, a memória e a palavra ajudaram-me de imediato a andar sobre estes dias movediços. Não que seja a função, mas sucedeu. Apanhemos os ossos do cadáver do tempo nas ondas desfeitas. Senti-me um pouco menos estrangeiro da minha intimidade.

Terei aprendido a lição? «Estrangeiro na própria intimidade,/ não conhecem o meu nome/ nem as margens da plenitude,/ nem o cadáver do tempo escondido nas ondas./ Mas entendem a forma dos meus passos/ na areia que cai,/ se confundo o relógio com o deserto/ ou vigio a casa tal como ao horizonte,/ e na minha taça de dúvidas cabe o mundo,/ e no valor encontro cobardia,/ nos olhos a noite com a sua luz/ e o coração da criança/ numa alma de antigas corrupções.» Também acontece mundo e até política, essa arte de saber construir casas que nos abriguem, dúvidas onde caibam o mundo, e desejos que poderão sempre afundar-se.

De «Meia estação»: «Contra o meu corpo,/ o seu passado e as suas razões,/ a história devolve-me/ o repto de viver/ como numa segunda adolescência.// Volto a temer aquilo que desejo,/ outro luxo encantado nesta parte/ de minhas horas tardias. Não preciso do mundo/ que discute e ama e transborda/ com as suas regras alheias/ no andar de baixo.// Quero a minha residência, embora a casa/ seja uma árvore doente. Aqui estão a memória/ de ter sido, os anos de anseios,/ a chuva do caminho em cada livro/ que ainda guardo e a janela/ para aquela cidade que só existe/ dobrada com a minha roupa.» Falo mais do que devia, como no verso que dá título à crónica, roubado ao poema que rompe todas as regras e sobre quase até ao corte, rompendo as regras, para sussurrar «nos unen mis recuerdos y sus ojos cerrados.»

Na sessão, García Montero teve gesto de comovente generosidade, ao ler belíssimo ensaio sobre as afinidades que encontrava na poesia do seu tradutor. Outra lição que te fico a dever, Javier. Somos vizinhos da cidade que existe nas dobras.

Mymosa, Lisboa, 15 Maio

Recebo a mesa (quase) completa da noite anterior em visita de cortesia e amizade. Encontro-os cansados de tanta cultura e património e passeio, levo-os à sala de estar para assistir em directo à barbárie: em Alcochete anunciavam o desmando com fragmentos de imagens. Tentávamos a todo o custo trazer a conversa para poetas, leituras, antologias possíveis e impossíveis, comentários soltos, mas era impossível. Foi chegando gente, como se o plenário voltasse a ter assim, de Moçambique, de Macau, aqui do lado, mas era impossível. Estávamos em plena peça de absurdo, Ubu era imperador e desinteressante, usava barba e gritava às riscas.

Museu Bordalo Pinheiro, Mercado Santa Clara, Lisboa, 18 Maio

Corrida entre lado e outro para apresentações falhadas. O Museu sentiu-se incomodado com a opinião da apaixonada, Isabel [Castanheira], no seu «Una Piccola Storia d’Amore». Sou capaz de perceber, quando se troca carne por papéis, tendemos a perder noção do sangue. Mas não me caiu bem a deselegância de convidar e depois pedir desculpa por isso, em público. Aprendi a estimar mais quem coleciona sabendo do que quem pensa sem arriscar.

Logo a seguir, o que parecia mal-entendido modernaço – convocar lançamento para a hora de jantar – reveliu-se arrogância de senhores para quem a criatividade se faz meio de fortuna. Era mesmo ali, no meio do nada, fosse hora ou sítio, que «O Sono Desliza Perfumado», em torno da publicidade ilustrada, do Jorge [Silva] devia ser apresentado. Como se não bastasse, ainda tivemos que ouvir o histérico dono do microfone a tentar correr com quem estava em lugar nenhum. Saudade dos pianistas de bordel.

  1. José, Lisboa, 21 Maio

Deveria escrever hospytal de tantas vezes te visito? De qualquer modo, preparo-me com Garcia Montero, e atente-se no fulgurante título, «A Ausência é uma Forma do Inverno»: «assim dói uma noite,/ com esse mesmo inverno de quando tu me faltas,/ com essa mesma neve que me deixou em branco,/ pois de tudo me esqueço/ se tenho de aprender a recordar-te.»

Horta Seca, Lisboa, 22 Maio

Na minha parede pobre brilham traços de negro, morse de expansiva alegria, uma mulher de braços levantados. Júlio Pomar (1926-2018) entrou em mim pelos livros, como tantas outros, oriundos do Círculo de Leitores, iluminando textos de José Cardoso Pires, que, não fora a minha inépcia, poderia ter sido abysmado. Temos para um século de carnes e superfícies por desvendar. Não consegui ir, também por insanável melancolia, ao novo mausoléu oficial dos sem-basílica, o Teatro Thalia. (Quem o baptizou de mausoléu foi o saudoso Diogo Lopes, que, após assinar a recuperação, logo o inaugurou nessa triste função de forma do inverno, tendo sido depois seguido pelo vanguardista, Manel Reis.)

Horta Seca, Lisboa, 23 Maio

Desmonto em ápice inglório os originais irregulares (exemplo algures na página) da Cláudia R. Sampaio, a que demos, trocando mensagens e por causa de maiúsculas espontâneas, o título de «NÃO ESTAVA A GRITAR». Para mim, a pintura da Cláudia levanta sempre a voz, mas a das plantas e das flores, um jardim bonsai de ervas daninhas e iluminuras e anjos. E seres, dos que se soltam das palavras. E de nós. A jardineira faz selfies, ora ruivas, ora com palavras, mas que precisa sempre do enquadramento vegetal. Diz-nos que muito crescer tendo nós como epicentro da horta: asas, olhos, pétalas, fuste, cabelos, seios, coração, mesmo que seja «coração prefácio à espera de ser escrito».

6 Jun 2018

Duas fábulas sobre lembrar e esquecer

03/02/2018

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] calor vara o corpo, goteja pelas costas. Bebo uma caneca em dois tragos e peço outra.

Na mesa em frente à minha uma ruiva magra como um galgo sofre a fustigação de uma negra de grande envergadura, que lhe quer mostrar como fala bem o inglês e lhe despeja à fraca figura parágrafos sobre parágrafos, sem tomar o fôlego. Para a outra aquele ímpeto é um verdadeiro apedrejamento e equilibra-se como pode, cilindrada. Conheceram-se pela Net e é a primeira vez que se encontram. A ruiva chegou de Joanesburgo, veio visitar a amiga. A moçambicana decidiu-se a tomar a ruiva como cunhada e martela-a com o extenso rol das qualidades dos irmãos. Numa pressão que a paralisa. Ao fim de quarenta minutos a negra, faz-lhe um reparo: Mas estamos aqui há uma hora e ainda não sei nada de ti.

A ruiva balbucia qualquer coisa, timidamente. Antes de acabar a terceira frase a outra atalha: Deixa lá, o melhor é irmos para casa, temos de preparar o teu quarto. Mas primeiro deixa-me fazer uma oração pela nossa amizade. Uma oração? – pergunta a pobre, desconcertada. Uma oração. Nós somos muito religiosos. Não te importas? Não… – gagueja a ruiva. Óptimo…

Mete as mãos em prece e abre a torneira: Oh Lord, agradeço-te por nos teres trazido esta irmã, por nos brindares com a sua amizade como o maná no deserto, e que, oh Lord, ela encontre no nosso lar o seu refúgio e a inspiração para superar as provações que a vida lhe dará, mas, Oh Lord, sê suave e benevolente com ela, e com o meu irmão Jacques que alimenta muitas esperanças nesta amizade, e Oh Lord, não tragas tormentas onde os caminhos são de flores para colher… Oh Lord faz com que a Jessica nunca mais se esqueça de nós…

A oração prossegue infindável, por dez, quinze minutos. A Jessica está um feixe de vergonha, quer já esquecer os «oh Lord» que a amiga percute, a triste ideia de ter vindo. Quando a amiga acaba, salta da cadeira no mesmo lance e arrasta-a. Só lhe falta pôr a coleira.

Uma das empregadas está siderada. Uma miúda dos seus vinte anos, com tudo intacto. Entreolhamo-nos, ela ri-se: Que bom, ainda haver pessoas assim. Bom, teríamos de saber mais qualquer coisinha, pode ser muito boa na oração e ser uma grande, grande, pecadora…- minimizo. Não… brinca, vê-se que é uma cristã… E isso tem uma grande importância? Para mim, sim – diz. Então qual é a sua igreja… A Igreja Universal – responde-me. Ah, uma vez assisti a um dos vossos cultos… Onde? No Cinema África, está a ver ao tempo… Então está cá há muito tempo. Eu, vivo cá há treze anos… Não me diga que agora vou ver sempre esta cara-linda… A cara-linda é comigo? – insisto, surpreso. Claro. Sai-me de jacto: Mas você julga que não sei o que é uma ruína? Retorque: Cada idade tem a sua beleza…

Já sabe tudo sobre o comércio de Deus. Não me hei-de esquecer de voltar.

05/02/2018

Um fox terrier com três patas. O Tripé. Mordeu-me duas vezes na bochecha esquerda. A de baixo, entenda-se. Lembro-me porque era o cão do Spencer, um cabo-verdiano que era um diabrete com a bola. O talhante Dias vaticinou, Este rapaz está destinado ao Benfica.

Aos catorze redobrou-se a aliança: o Spencer entrou no Benfica. Foi uma festa no bairro e abriu-se o champanhe.

Lembro-me que o pai do Adriano era embarcadiço e a mãe – uma mulata com dengue – começou a ter uns casos. Constava. Tudo se abafava, à mãe da futura estrela do Benfica perdoava-se tudo.

Lembro-me da primeira vez que nos zangámos. O Victor Hugo, my best friend, desentendeu-se com ele e o Spencer deu-lhe um empurrão que o fez cair desamparado, partindo o braço.

Lembro-me que no instante em que o reencontrámos, no bar do cinema, há sete anos que não falávamos.

O Victor Hugo cochilava ao meu lado com os diálogos rebarbativos do Ingmar Bergman. Ao intervalo quis dar de frosque. Fomos ao bar esgrimir argumentos. Foi aí que o encontrámos.

Jogava no Braga, no Benfica fora barrado pelo Chalana e mudara-se para o norte. Tivera duas épocas de vulto, mas agora estava lesionado. Tornou-se evidente que teria de rever o filme noutra ocasião.

Arrastou-nos para uma discoteca, em frente à Lisnave. Aí passámos a pente fino as recordações comuns, decilitro a decilitro. Com um senão que foi espalhando as metástases: as pequenas incidências, os ângulos de vista sobre os episódios vividos em comum dividiam-nos em tudo. Enfim, tudo quanto marcara o Spencer, não nos causara mossa, impressão, não recordávamos, e vice-versa. Vivêramos duas vidas paralelas e instalava-se o nevoeiro. Ele, pelo seu lado, não se lembrava do “acidente” em que partira o braço ao Victor Hugo, «não me lembro, juro…», e emborcava o seu quinto whisky. Tínhamo-nos afastado tanto? E estávamos a caminho da segunda garrafa de whisky.

O Adriano, mandou vir outra a garrafa, que ele pagaria, pois estávamos tesos. Eram os 500 contos que ele se gabara de ganhar contra os 10 do Victor Hugo na Lisnave salvaguardavam-nos de quaisquer hesitações. Só que ele insistiu em continuar a desfilar as suas lembranças e nós a disfarçarmos as lacunas com um olho na miúda da pista.

De repente levantou-se um burburinho na porta e o Spencer julga reconhecer a voz de um patrício e foi espreitar a confusão. Nós, aliviados, comentávamos o desacerto do reencontro. Bebemos mais meia garrafa, antes de começarmos a suspeitar que ele não voltava. Mais tesos que o Tripé, e com oito contos de despesas.

Um ano depois, a sair de casa, reencontro-o a estacionar o Mustang à entrada do prédio da mãe. Dou-lhe um abraço, chamo-lhe sacaninha e pico-o pela «banhada». Ele ouve a queixa, mede a situação, saboreia os pormenores e sentencia, secamente, Oh, pá, não me lembro de nada, juro!

8 Fev 2018

Sobre a vida dos candeeiros

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á uma diferença entre recordar pessoas e ter lembrança de objectos. O processo, porém, parece, em tudo, semelhante. Cada objecto e cada pessoa são invocados individualmente ou em contexto. Cada parte de uma coisa e cada parte de uma pessoa são inseridos no acto da lembrança. A cada parte da lembrança corresponde uma parte da coisa ou da pessoa lembradas.
Assim, quando me lembro de um candeeiro de secretária, do meu tempo de estudante aos 18 anos, lembro-me especificamente desse candeeiro e não de outro. Quando me lembro desse candeeiro verde, maciço, de lâmpadas gordas, à luz do qual costumava estudar, sentado à secretária, com os meus 18 anos, lembro-me dele nesse ano e não noutro. Surge-me numa situação particular, contudo. O candeeiro sobre a secretária, ao lado esquerdo. A secretária, lá ao fundo. Os livros sobre ela.
Cada objecto tem a sua memória. O acesso da memória, porém, não é individual. Há sempre um contexto. O objecto surge-me sempre à frente, em cima de qualquer coisa, de pé ou deitado, próximo de outros objectos, etc. Etc.. Por outro lado, é inegável que o candeeiro é o candeeiro e nenhum outro objecto, cada coisa é uma coisa e não outra coisa. Mas mesmo que depositemos no passado objectos, podemos confundir as alturas em que estivemos presentes, face a face com esses objectos. O candeeiro pode ser lembrado como contemporâneo da secretária, mas eu posso não ter uma memória nítida da secretária. Posso pôr no passado a minha secretária actual. Sobre a secretária, “ponho” o candeeiro de que tenho uma viva memória. A secretária contemporânea do candeeiro não era a mesma de agora.
Ou seja, podemos compor “as cenas” do passado com objectos existentes em tempos, ou alturas, diferentes. Há objectos que fazemos coexistir com outros objectos, mas sem qualquer direito à coexistência. De resto, não nos lembramos sequer de todos os objectos que eram coexistentes entre si, por exemplo, no nosso quarto de juventude, nem da sua disposição.
Não conseguimos inspeccionar todos os objectos que estiveram presentes por exemplo nas tardes de Outono do ano lectivo de 1984-1985, que livros estavam em que estantes. Podemos lembrar-nos da cor da alcatifa, da roupa espalhada pelo quarto, mas há muitas coisas de que não temos uma presentificação. Não, pelo menos, não com o vigor com que me surgem os objectos que agora estou a ver à minha frente.
Posso olhar para o conjunto infindável dos objectos que se encontram sobre a minha secretária, mas a janela da memória não me dá os objectos que estavam presentes naquela altura, contemporâneos do candeeiro verde.
E, contudo, o candeeiro verde surge-me, agora, de um modo mais nítido do que o candeeiro que tenho à esquerda sobre a minha contemporânea secretária. Não sei porque me lembro dele, mas lembro-me dele muitas vezes. Aparece-me assim sem qualquer esforço de lembrança ou propósito. Impõe-se na sua presença. É catalisador da cena do passado de que me lembro. Enfraquece a eficácia da percepção contemporânea do tempo presente.
Há uma memória afectiva daquele candeeiro tosco. Aquele candeeiro ressuscita os primeiros tempos em que comecei a estudar. Lembra-me os primeiros livros que li. Sobretudo, lembra-me da passagem de momentos em que vivia à deriva para os primeiros momentos em que passei a interessar-me pela presença do espírito guardada nos livros. Eram tempos em que se abriam avenidas para uma qualquer esfera do sentido, e não era real. Nos livros estavam encerradas formulações mágicas que conjuravam o ser das coisas. Escancaravam-se céus serenos e limpos ou então cheios de tempestades, de nuvens a passar rapidamente. A leitura de fórmulas mágicas criam climas frios ou quentes, secos e húmidos. Dão origem a tempos em que a travessia da tarde se fazia página a página. As palavras que compunham as frases eram compreendidas uma a uma, por composição, sem permitir uma inteligibilidade do todo que era a unidade mínima do sentido. Cada frase compreendida era ínfima relativamente a todas as frases que não eram compreendidas.
Nesse esforço, a cabeça não pendia apenas em direcção das linhas da página dos livros, ao serviço do movimento ocular. Era no candeeiro que me fixava. Aquela presença tosca, metálica, de um verde feio. Mas a parte que sustentava a grande lâmpada branca pendia como um girassol iluminador sobre as páginas. Aquela “cabeça” com aquele “olho” iluminava por completo as frases todas das duas páginas abertas como se tivesse um “olhar” fulgurante, abrindo para o sentido.
O candeeiro era o instrumento, o meio, a condição de possibilidade daqueles meus 18 anos e das décadas que vieram. Abria caminho. O candeeiro ganhava luz à escuridão. Arrancava horas ao sono. Permitia ressuscitar o espírito encerrado nos livros, levantado das letras impressas, mudas e cegas, se não as lermos. Permitia tocar com a alma, como diz ainda Aristóteles o sentido. Dava luz à escuridão da ininteligibilidade.
A luz amarela incidia sobre a página aberta, com a força máxima que permitia distinguir com absoluta nitidez o branco do papel, plano de fundo para a forma dos caracteres impressos. Desse núcleo duro, irradiava até um campo de luz que se difundia até se dissipar por completo na obscuridade. Para lá desse halo de luminosidade, o mundo inteiro estendia-se na escuridão. Sentia-se a presença do mundo para lá das letras, existindo no horizonte de escuridão em que tudo mergulha, quando lemos. Mundos presentes, passados e futuros coexistiam extáticos e permeáveis uns aos outros, articulados pelo tempo da transição que faz continuamente a passagem irreversível de tudo. O mundo e a vida são abertos, contudo, por essa outra possibilidade oriunda da leitura nocturna.
O candeeiro estará numa caixa de cartão, guardado numa dispensa qualquer. Pode ter sido deitado para o lixo. Já não ilumina nem páginas nem a noite que tinha 18 anos e era a do início do que havia de vir. Agora, esvoaça até mim. Está de dia sobre a secretária daquele tempo. Não tem finalidade. Tem a luz apagada. E, contudo, mergulhou para o horizonte de sentido, outrora opaco, para lá das letras. Transitou para um reino da alma, desmaterializado. Uma forma desse candeeiro habita ainda a minha existência. Faz-se sentir. É ele todo alma e só visto por uma alma. A sua presença não vem de uma capacidade de retenção ou lembrança do passado. A sua presença é testemunha de que não nos esquecemos nem do candeeiro, nem da secretária, nem dos livros, nem do nosso quarto, na casa dos pais, nem da rua no bairro, nem do bairro na cidade— aos 18 anos.
Todas as coisas que compõem tudo têm de estar algures. Não se sabem bem onde, mas anunciam ainda a sua presença.

16 Set 2017

UM | Académicos debatem memória na construção da história de Macau

A Universidade de Macau está a promover uma série de sessões dedicadas ao debate sobre os discursos memorialistas e a construção da história. A ideia é aprofundar, através do diálogo entre académicos, o valor de fontes “não convencionais” no entendimento dos lugares e das suas comunidades

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s discursos memorialistas e os seus contributos para a formulação da história estão, por estes dias, em destaque na Universidade de Macau, com a realização de uma conferência que junta vários académicos de diferentes áreas.

A ideia é “trazer Macau para a discussão acerca da memória e de como é que os discursos são importantes para integrar um relato de nação e, no caso do território, um relato de comunidade”, explica a docente e organizadora da iniciativa, Inocência Mata.

Para a académica, estes discursos, designados por memorialistas, e nos quais se incluem relatos orais ou a literatura, por exemplo, são “documentos” fundamentais para completar a informação além das fontes oficiais. “Não sou historiadora mas considero que, cada vez mais, as fontes da história têm saído dessa ditadura marcada pelos documentos históricos no sentido tradicional do termo”, explica ao HM. “São outro tipo de testemunhos que também podem transmitir a cultura do vivido e, como tal, a história”, aponta.

É a partir deste tipo de discursos que se podem encontrar nos livros, canções e relatos, por exemplo, que a comunidade imaginada é construída, ou seja, “a partir dos vários elementos que se supõem comuns entre pessoas que não se conhecem mas que, no entanto, partilham elementos físicos e imateriais”, como é o caso do imaginário histórico, e que fazem com que todos se sintam pertença de uma mesma comunidade, explica a docente.

A especificidade da terra

Inocência Mata também participa na apresentação do papel dos discursos memorialistas, com os estudos que tem vindo a desenvolver e que incidem, essencialmente, sobre África. Para a académica, a grande diferença entre os documentos e a construção de uma comunidade imaginada entre África e Macau é, sobretudo, derivada do facto de que “em África houve sempre uma luta e, aqui, isso não aconteceu”. “Esta é uma grande diferença, a do confronto com o outro. O confronto ideológico, verbal e político que não existiu em Macau”, sublinha.

Por outro lado, quando se fala de colonização, a história em Macau não é idêntica à dos países africanos: “Aqui nunca se colocou a questão da independência e sempre houve um processo de diálogo entre portugueses e chineses que nunca existiu em África, estamos a falar de processos históricos completamente diferentes”.

27 Out 2016