Miguel Rodrigues Lourenço, co-autor de “Cartas Ânuas da China (1619-1635): “As Cartas Ânuas são um repositório de emoções”

“Cartas Ânuas da China (1619-1635)”, da autoria do historiador Miguel Rodrigues Lourenço e do linguista António Guimarães Pinto, é a mais recente obra editada pelo Centro Científico e Cultural de Macau em parceria com a Universidade de Macau sobre a expansão da missão dos jesuítas na antiga Cochichina, actual sul do Vietname, aquando da sua expulsão do Japão. Macau desempenhou um papel importante neste processo

 

Antes de mais, o que são e qual a importância das Cartas Ânuas na missão jesuíta?

As Cartas Ânuas são o resultado de um processo de maturação das formas de comunicação da Companhia de Jesus entre si, por um lado, e entre si e a sociedade, por outro. As Cartas Ânuas sucederam-se a outras práticas de comunicação escrita dentro da Companhia de Jesus, cuja função era manter os membros da ordem a par do que as diferentes províncias iam fazendo. Além disso, eram também um dos espaços importantes de construção da imagem da Companhia de Jesus. Depois havia também as Cartas Ânuas de missões, como é o caso da Cochinchina, que acompanha os progressos dos missionários. Com estes relatos, os seus autores procuram cativar os jovens noviços da ordem para pedirem licença para missionar nesses espaços, mas também sensibilizar quem detinha recursos para apoiar financeiramente a missão.

Estas cartas pretendem mostrar o trabalho de expansão dos jesuítas na antiga região da Cochinchina, a partir de 1615, onde a Companhia de Jesus esteve 14 anos, algo que se dá após a sua expulsão do Japão. O processo de expulsão teve um profundo impacto na ordem. Eles conseguiram adaptar-se com sucesso?

A expulsão do Japão foi bastante problemática a vários níveis. Em primeiro lugar, porque a Companhia de Jesus tinha criado um capital simbólico em torno do Japão a respeito de uma expectativa de conversão total muito rápida. Não é por acaso que Camões escreve que o Japão será “ilustrado coa lei divina” n’Os Lusíadas. Em segundo lugar, porque a chegada ao Japão de outras ordens religiosas nos finais do século XVI, como os franciscanos, dominicanos e agostinhos, gera uma tensão terrível entre todos, com acusações de parte a parte sobre os respectivos métodos missionários. No que toca à missão, quando a expulsão ocorre em 1614, a Companhia de Jesus fica com um problema em mãos bastante difícil de resolver: como assegurar a assistência aos cristãos japoneses que ficaram no Japão – no fundo, como salvar a missão. Uma das estratégias passou por procurar um espaço indirecto de contacto com o Japão – indirecto para quem chegava ao Japão a partir de Macau, bem entendido – que foi a Cochinchina. Concretamente, as comunidades japonesas estabelecidas na Cochinchina. Portanto, a Cochinchina foi, antes de mais, pensada como solução de acesso ao Japão num contexto de proibição das missões.

Qual o papel de Macau neste processo de reorganização da actividade missionária no Extremo Oriente com esta expulsão? Gaspar Luís, a quem coube a expansão da missão para a Conchichina, chegou a estar no território, por exemplo.

Para os missionários jesuítas expulsos do Japão, Macau desempenhou um papel fundamental. Apesar de ter permanecido no Japão um superior da missão na clandestinidade, Macau passou a ser o centro logístico da Província do Japão (assim chamada, mas que foi, também, responsável pelas missões da Cochinchina e do Tonquim, no Norte do actual Vietname). Portanto, foi a partir de Macau que se pensou uma parte da estratégia missionária em relação ao Japão, mas também do Vietname. Era a partir de Macau que se geriam os recursos da Província e se planeava o envio ou regresso de missionários. Era em Macau que tinham lugar as Congregações Provinciais que discutiam as questões fundamentais das missões. Gaspar Luís, de facto, foi um jesuíta que deu muito da sua vida à missão da Cochinchina e onde passou o essencial da sua experiência missionária. Passou pouco tempo em Goa depois de chegar à Ásia e daí transitou para Macau e depois para a Cochinchina. Na história de Macau, curiosamente, é mais recordado pela sua gestão catastrófica de um braço-de-ferro que manteve com governador do bispado, então o padre Frei Bento de Cristo. Gaspar Luís ascendeu à condição de vice-provincial da Província do Japão e foi comissário (representante local) da Inquisição de Goa em Macau. Quando quis estender a sua protecção a um clérigo do bispado, que tinha sido alvo de um processo judicial na justiça do bispado, abusando das suas competências como comissário da Inquisição, explodiu um conflito na cidade entre a Companhia de Jesus, de um lado, e franciscanos, dominicanos e agostinhos, do outro, uns por Gaspar Luís, os outros por frei Bento de Cristo. A situação esteve tão tensa que o capitão-geral da cidade, que apoiou notoriamente o lado de Gaspar Luís, esteve quase a abrir fogo sobre o convento de Santo Agostinho. Ainda o conflito não estava resolvido, Gaspar Luís saiu de Macau com destino a Goa e perdemos-lhe o rasto pouco depois.

Quais os autores dessas Cartas Ânuas que pode destacar como sendo as mais importantes ou significativas deste processo? Há autores aos quais é feita a referência na introdução, nomeadamente o padre António Vieira ou o poliglota Alexandre de Rhodes, por exemplo.

Na missão da Cochinchina eu destacaria, precisamente, o Padre Gaspar Luís. Ele foi o autor que mais cartas escreveu durante o período que estudámos, mas o seu nome nunca teve a projecção merecida, apesar da qualidade literária dos seus escritos. Isso deve-se, por um lado, à projecção que a historiografia francesa viria a dar a indivíduos como Alexandre de Rhodes (nascido em Avinhão) e aos missionários das Missions Etrangères de Paris, que contribuiu para lançar uma certa penumbra sobre a produção intelectual dos missionários portugueses; por outro lado, a uma certa relutância da historiografia portuguesa em envolver-se de forma profunda nos estudos sobre as missões da Ásia dos séculos XVII e XVIII, e que fez com que estes escritos em português tenham permanecido marginalizados.

O que é que estas cartas nos dizem deste período relativamente às mais diversas áreas, tal como a económica, social, política e de ligações à presença dos jesuítas na China e Macau?

As Cartas Ânuas são um tipo de documentação que, apesar de serem pensadas para formar uma narrativa edificante, nos apresentam um quadro interessantíssimo das estratégias adoptadas, uma vez no terreno, pelos missionários para se manterem nele. Revelam as resistências das populações e das autoridades locais, ilustram as situações e os contextos que possibilitam as conversões. Reportam-se aos contactos mantidos com os ambientes cortesãos, as tensões existentes nestes espaços e o fio da navalha em que se encontravam permanentemente. Importa pensar que a presença dos missionários é mais tolerada que desejada e uma boa parte do favor ou protecção que lhes é dispensado depende de factores exteriores, como a capacidade de Macau corresponder às expectativas mercantis e políticas dos Nguyen, neste caso. De modo que as Cartas Ânuas, quando lidas em sequência, são também um repositório de emoções, apresentando narrativas quase épicas dos seus protagonistas e dos avanços e recuos da missão, e podem também ser estudadas deste ponto de vista.

Como foi o processo de pesquisa histórica destas cartas, tendo em conta que havia o risco, como é referido na introdução, destas caírem no esquecimento?

Felizmente, em Roma, o Arquivo Romano da Companhia de Jesus (ARSI, na sua sigla de Archivum Romanum Societatis Iesu) encontra-se muito bem organizado, e as Cartas Ânuas encontram-se em três dos seus volumes, bastante esquecidas, de facto. Os exemplares que em tempos existiram em Macau, foram copiados no século XVIII e enviados para Portugal, de modo que algumas também se conservaram na Biblioteca da Ajuda. Após o trabalho de transcrição dos documentos o que tentámos fazer foi ler a outra correspondência sobre a missão enviada do Vietname ou de Macau para Roma, de modo a tentar formar um quadro mais geral do que se estava a passar na missão e, sobretudo, daquilo que as Cartas Ânuas não referiam.

O livro termina em 1635. É a data para a saída dos jesuítas da região da Cochinchina? Como foi esse processo? Gradual, complexo?

A história da Companhia de Jesus na Cochinchina não termina em 1635. Essa é a data da última carta assinada por Gaspar Luís que, na realidade, foi o nosso ponto de partida para este livro, por ser uma figura estudada tanto pelo meu colega António Guimarães Pinto (no que respeita à sua produção latina e percurso biográfico), como por mim (no que respeita à Inquisição). Simplesmente, pareceu-nos um desperdício não aproveitar a oportunidade para incluir as Cartas Ânuas anteriores às de Gaspar Luís, por serem poucas. De maneira que temos, neste livro, um panorama da missão até à saída deste missionário. Mas, no limite, poderíamos ter avançado até a década de 1660, quando a missão da Cochinchina, que os jesuítas foram mantendo com muita dificuldade devido às perseguições e com o apoio de catequistas vietnamitas, sofre um rude golpe com a concorrência das Missions Etrangères de Paris e com a promoção de uma estratégia missionária autónoma em relação à Coroa de Portugal, por parte da Santa Sé, através da Congregação de Propaganda Fide.

Projecto a quatro mãos

A ideia para este livro partiu de António Guimarães Pinto, professor catedrático de línguas clássicas da Universidade Federal do Amazonas, Brasil, no contexto de um estudo sobre jesuítas que estava a preparar, onde se incluíam os manuscritos do padre Gaspar Luís. Este já tinha sido analisado por Miguel Rodrigues Lourenço na sua tese de doutoramento sobre a vida religiosa de Macau nas primeiras décadas do século XVII. Aí, o padre Gaspar Luís era citado, sobretudo, “por uma série de conflitos que manteve com autoridades religiosas responsáveis pelo governo da diocese de Macau”. Miguel Rodrigues Lourenço chamou então a atenção de António Guimarães Pinto para a existência das Cartas Ânuas, escritas entre os anos de 1619 e 1635, num total de 14, três das quais em latim e as restantes em português. “Imediatamente surgiu-me a ideia de publicarmos esta colecção, uma vez que o seu interesse literário, histórico, etnográfico e religioso era manifesto”, contou António Guimarães Pinto ao HM.

Com este livro, descreve o co-autor, coloca-se a possibilidade “de levar ao conhecimento de um público, não necessariamente especializado, os contactos e relações, relativamente constantes, que a vários níveis (sobretudo religioso e comercial) existiram, entre homens ocidentais, sobretudo portugueses e com base de actuação em Macau, e populações do Sul do actual Vietname, quer as indígenas, quer as importantes colónias de japoneses católicos”.

As Cartas Ânuas revelam que “havia um contacto regular, com fins sobretudo comerciais, entre Macau e esta região, contacto que interessava às próprias autoridades governamentais vietnamitas, e no qual era importante a mediação dos jesuítas, que à sombra do mesmo se foram infiltrando no interior do país, tentando ganhar seguidores entre as diversas camadas sociais”, aponta Guimarães Pinto.

18 Mai 2023

Célia Reis, historiadora: “Havia uma divisão muito forte”

“A Política Religiosa entre Lisboa e Macau: A presença de Jesuítas e Irmãs da Caridade nas décadas de 1860-70” é o nome da mais recente investigação que a historiadora Célia Reis apresentou no Centro Científico e Cultural de Macau. A académica fala de um período em que as autoridades procuraram melhorar a educação dos macaenses, inclusivamente com a abertura de uma escola feminina. No entanto, a presença dos grupos religiosos gerou tensões políticas

 

Este projecto de investigação foi feito de forma independente. Como surgiu a ideia de estudar a presença de Jesuítas e Irmãs da Caridade em Macau neste período?

Este é, de facto, um projecto independente, pois continuo a fazer investigações sobre Macau [após a conclusão do doutoramento]. Este tema já me tinha surgido há algum tempo, tendo em conta os problemas que ocorreram em Macau com a presença dos religiosos.

Entre 1860 e 1870, como era a política religiosa entre a Metrópole e Macau?

Muito interessante. Primeiro, em Macau, estávamos perante uma preocupação, que é muito visível, de desenvolver o estudo e a instrução dos macaenses perante escolas que não existiam. É neste contexto que vão surgir as ordens religiosas, primeiro os jesuítas no Colégio de São Paulo, no seminário, e depois as Irmãs da Caridade, de São Paulo de Chartres, que vão também abrir um colégio feminino a pedido de figuras locais. Em Portugal aconteceu um processo semelhante quando as ordens religiosas começam a regressar após a ordem de expulsão com o decreto de 1834. É também pela via da instrução que elas vão chegando, e isso também se verificou em Macau, primeiro com os jesuítas no seminário e depois com estas irmãs para o Colégio da Imaculada Conceição. Sobre estas irmãs, entram em Macau a pedido de determinadas figuras da comunidade macaense. Isto num período em que saem de Portugal depois de estarem envolvidas numa intensíssima polémica com as irmãs de São Vicente, também irmãs da caridade, mas de uma outra congregação. Isso vai gerar um diferendo entre a imprensa local e nacional e também entre as autoridades locais e nacionais.

Em que consistiu esse diferendo?

Relativamente à imprensa encontramos jornais como “A Revolução de Setembro” [diário publicado em Portugal à época] que contesta fortemente esta presença [das irmãs da caridade], mas que o faz muito ligado às questões partidárias do próprio país, sobretudo contra a acção do ministro Mendes Leal. Quanto a este ministro, encontramos coisas interessantes. Ele tinha sido um dos mais fervorosos lutadores contra as irmãs de caridade em Portugal. O Governador Coelho do Amaral [José Rodrigues Coelho do Amaral] disse-lhe que iam abrir em Macau o colégio a pedido de pessoas locais, e o que o ministro Mendes Leal faz é, sobretudo, pedir informações. O Governador diz que não há problemas nenhuns com as irmãs, que são absolutamente necessárias, e o ministro acaba por aceder e permitir que elas continuem em Macau a desempenhar funções na instrução. Portanto, temos aqui uma polémica nacional, com os locais a defender a imprensa e as autoridades a defenderem as irmãs da caridade. Com os jesuítas foi um projecto um pouco diferente.

Em que sentido?

Os jesuítas começam a chegar ao seminário, mas não causam propriamente grandes problemas. Há uma espécie de continuidade da sua presença e, sobretudo pelas polémicas que se vão criar em torno de um jornal local, o “Ta-Ssi-Yang-Kuo”, e um outro que se publicava em Hong Kong, chamado o “Echo do Povo”. Vão ser polémicas religiosas muitíssimo mais latas sobre questões mais conservadoras que levam o outro jornal local a opor-se a políticas mais conservadoras e, no meio delas, aos jesuítas. Um outro jornal que vem a seguir, o “Independente”, que penso vir muito na linha do “Ta-Ssi-Yang-Kuo”, também acrescenta oposição a estas figuras religiosas. Parece-me que existia nitidamente uma divisão muito forte entre a maioria dos portugueses que não estavam em Macau, contra os portugueses de Macau, os macaenses. Na maior parte dos casos, algumas figuras fugiam a esta divisão, mas parece-me que a polémica toda está relacionada também com esta clivagem social. No entanto, há ainda coisas que têm de ser complementadas com outros estudos sobre a sociedade local. Mas, claramente, havia uma divisão muito forte.

Falamos de um período em que a educação dos macaenses era um problema a resolver. A Igreja teve, portanto, um papel importante.

Exactamente. O seminário era um dos principais elementos de instrução, mas estava decaído, não servia essa necessidade de educação dos jovens locais. Estes tinham de recorrer a professores privados ou sair de Macau para estudar. É nesse contexto que várias personalidades vão criar a escola macaense, aberta em 1862. Os próprios contestatários locais dizem que o Governo português [em Lisboa] se sentiu, finalmente, preocupado com o que deveria ser feito para os jovens macaenses, e vai reabrir o seminário. Isso num tempo em que o seminário tinha duas funções extremamente importantes: por um lado, a formação, pois funcionava verdadeiramente como um liceu para os rapazes de Macau, e depois a formação de sacerdotes que eram muito necessários para resolver os problemas do Padroado e pela necessidade de poder missionar. Durante vários anos temos estas duas instituições para rapazes, mas nenhuma instituição para raparigas, daí que o Colégio da Imaculada Conceição tenha sido pensado para as meninas. Este esteve ligado a personalidades como Bernardino de Senna Fernandes e a um senhor macaense de Xangai que deu também um grande donativo para o colégio, sendo um dos subscritores. Durante vários anos, o colégio funciona como um estabelecimento por subscrição dos beneméritos de Macau.

Bernardino de Senna Fernandes foi, aliás, uma figura importante na Administração local.

Sim. Foi muito importante e uma figura muito destacada em toda estas questões sociais e políticas locais, e ainda económicas, nomeadamente sobre o comércio dos cules, do jogo e das finanças. Sobre a política externa, como o comércio dos cules, [existem estudos], mas sobre estas questões de política interna e de sociedade com os portugueses em Macau há partes ainda por estudar. Daí que tenha ficado interessada em fazer esta investigação.

Depois de 1870, como ficam estes diferendos entre grupos religiosos?

A minha questão tinha a ver com o período em que os jesuítas e as irmãs de caridade vieram para Macau, tendo chegado, precisamente, no início da década. Os jesuítas saíram no início da década de 70. Depois de várias confusões com o clero local, eles têm de sair de Macau quando se dá uma reorganização do seminário pois, neste processo, determina-se que os professores e o reitor têm de ser portugueses. Como vários deles eram estrangeiros, saíram, e um ou dois que eram portugueses saíram também por solidariedade. As irmãs de caridade mantiveram-se, mas muito contestadas. É interessante, pois verificaram-se alguns problemas políticos com elas, mas, entretanto, deixou de se ter tanta noção da sua posição. Na década de 70 [do século XIX] elas têm o seu colégio, mas depois surge outro, o Colégio de Santa Rosa de Lima. As irmãs da caridade deixam de ter a mesma importância e força, e só saíram do território no início da década de 90, mas aí já não se falava delas com a mesma firmeza. Daí a decisão de estudar esse período. Quando o Colégio de Santa Rosa de Lima foi criado, a comissão que estava ligada à organização do Colégio da Imaculada Conceição ainda tentou que os dois estabelecimentos ficassem ligados entre si a cargo das mesmas irmãs de caridade, mas não foi o que aconteceu.

27 Mar 2023

A Via do Meio

A partir do século XVI, podemos afirmar que foi através dos portugueses, nomeadamente padres jesuítas, que a China foi sendo cada vez mais conhecida e discutida na Europa. O “Tratado das Cousas da China”, escrito por Frei Gaspar da Cruz (1520-1570) e publicado em Évora por André de Burgos em 1569 “é, tanto quanto hoje se sabe, o primeiro texto impresso integralmente dedicado ao Celeste Império”, lê-se na introdução de uma edição portuguesa de 2019, efectuada pela Universidade do Porto.

Muitos outros textos se seguiram, como os curiosos diálogos que constituem o “Excelente Tratado” (1590), de Duarte Sande e Alessandro Valignano, e também as cartas originárias da própria China, escritas por esses sacerdotes missionários. Lembramos também aqui, a título de exemplo, as importantes “Relação da Grande Monarquia da China” (1637), de Álvaro Semedo, SJ, seguida pela “Nova Relação da China” (1668), de Gabriel de Magalhães, SJ. Se a primeira é, no dizer de António Aresta, “uma das obras magnas do amanhecer da sinologia europeia”; a segunda foi admirada por toda a Europa culta pela sua minúcia e extensão.

Resumindo, foi em grandíssima parte pela mão de portugueses, ainda que grande parte deles escrevesse em latim, que a China foi aos poucos ocupando um lugar importante no imaginário intelectual europeu. Infelizmente, a partir de finais do século XVIII a sinologia em língua portuguesa conheceu um longo período de pousio, cujas razões não vamos aqui dissecar.

Em Macau, durante o século XX, assistimos à republicação das referidas obras, feita graças aos esforços solitários de Luís Gonzaga Gomes e, na década de 90, sob a égide do Instituto Cultural de Macau. Contudo, se estas obras fundamentais foram de novo impressas, algumas delas pela primeira vez em língua portuguesa, pouco ou nada foi feito para estimular os estudos sinológicos. Tem sido, sobretudo, no Brasil que têm surgido estudos sobre a China em língua portuguesa, estando agora, no século XXI, a academia portuguesa a despertar de décadas de apatia e desinteresse por esta área de estudos.

Sem pretensões excessivas, desde o seu aparecimento em 2001, que o Hoje Macau tem divulgado nas suas páginas temas relacionados com a Cultura Chinesa em língua portuguesa. Publicámos traduções de poemas, de textos fundamentais do pensamento chinês, cuja tradução estimulamos e que vamos vertendo em livros através da editora Livros do Meio, estudos de Macau (que consideramos integrantes da sinologia em português), artigos sobre mitologia, antropologia, história, etc..

Porém, entendemos que chegou a altura de intensificar este nosso propósito. Para isso criámos esta nova secção, intitulada “Via do Meio”, que diariamente apresentará aos nossos leitores artigos e traduções pela pena de alguns dos sinólogos que se expressam em língua portuguesa, bem como entrevistas com estes especialistas, a propósito dos seus trabalhos.

Aproveitando estes textos, será publicada bimensalmente uma revista com o mesmo título, “Via do Meio” (em formato digital) que, ao que sabemos, será a primeira do género na língua de Camões.

Esperamos que os nossos leitores sigam estes trabalhos com o interesse que merecem, pois acreditamos que é através do conhecimento mútuo que os povos criam laços mais duradouros e se evitam muitos dos mal-entendidos que, naturalmente, surgem quando diferentes civilizações se encontram, sobretudo hoje, neste espaço, partilhado e cada vez mais exíguo, a que chamamos Terra.

6 Out 2022

Joaquim Magalhães de Castro: “A epopeia portuguesa terrestre tem sido muito esquecida”

Anos depois de ter relatado, em documentário, as viagens terrestres dos jesuítas pelos Himalaias, Joaquim Magalhães de Castro apresenta agora o “Reino do Dragão”. O filme estreou esta semana e conta a epopeia dos padres Estevão Cancela e João Cabral que os levou até ao Butão. Pode ser revisto na plataforma RTP Play

 

Como teve contacto com os relatos desta viagem de Estevão Cancela e João Cabral?

Este trabalho é o episódio que faltava contar da saga dos jesuítas. Há cerca de 12 anos fiz o documentário sobre a viagem dos jesuítas portugueses pelos Himalaias, em quatro episódios. Era um projecto que tinha há muitos anos. Conheci a história do padre Andrade, que é o primeiro ocidental, jesuíta, a chegar ao Tibete, em 1624, e essa história fascinou-me de tal modo que, conhecendo bem a região, quis fazer um documentário. Apresentei o projecto há mais de 20 anos à RTP, mostraram interesse mas nunca mais me contactaram, e ficou parado. Finalmente, em 2010, consegui levá-lo de novo à RTP e, através de uma produtora, consegui fazer o documentário. Andámos mais de um mês a percorrer a zona dos Himalaias, do Nepal, porque eu pretendia fazer a rota que estes padres fizeram.

Foram realizadas várias, portanto.

Sim. O padre Andrade abriu uma rota, da Índia, onde os jesuítas estavam sediados, e a partir daí, como julgavam que para lá dos Himalaias havia cristãos…

Mas não havia certezas?

Sabia-se por mercadores muçulmanos e alguns portugueses que lá tinham estado. Havia o mito. Os portugueses estavam na Índia, em Goa por exemplo, e foram ouvindo histórias de mercadores que vinham daquelas paragens, de pessoas que tinham templos e que adoravam imagens. Os portugueses cristãos procuravam aliados na fé e isso levou-os a pensar que naquela zona poderia haver cristandades perdidas. Era um mito muito antigo, de que havia o reino do Cataio, e partiram, disfarçados de mercadores.

O padre Andrade?

Sim. Atravessaram os Himalaias, zona completamente desconhecida para os ocidentais, e chegaram ao Tibete. Ele fundou uma missão católica e vieram mais padres. Ao longo dos anos abriram-se diversas igrejas, uma delas em Saparang, que foi o primeiro local onde o padre Andrade se estabeleceu e houve algumas conversões, mas claro que correu mal. Não há nenhum sinal visível de uma evangelização até aos dias de hoje. Com este documentário, fui seguindo o caminho desses jesuítas até ao Tibete, que abriram quatro rotas. Foi aberta, uns anos mais tarde, uma outra rota, em 1627. Nesse período houve muitas movimentações de jesuítas por zonas completamente desconhecidas junto do mundo ocidental, e iam escrevendo sobre elas. São documentos valiosíssimos, as cartas que enviavam. Algumas foram publicadas, outras não. Estas cartas foram compiladas pelo historiador francês Hugues Didier. Tenho esse livro em casa e é uma espécie de bíblia para mim.

Essa foi a base para este documentário.

Foi. [Dos quatro episódios que fiz há dez anos] estava por contar a rota mais a leste, que foi a de João Cabral e Estevão Cancela. Estavam numa missão em Cochim e foram para a zona de Bengala, até ao Butão.

Onde começa o documentário, precisamente.

Sim. Mas queria dizer que, na altura, esse projecto ficou-me atravessado. Anos mais tarde, encontrei em Macau um amigo, o Gonçalo Bello, empresário. Ele tinha visto os documentários e gostava do meu trabalho. Mencionei a história destes dois padres e ele ofereceu-se para me acompanhar ao Butão. Conhecemos um amigo cineasta e outro, empresário, que financiou parte do projecto. A zona de Bengala, na altura, tinha muitos comerciantes portugueses que ali negociavam um bocado por conta própria, fora do poder oficial de Goa. Havia todo o tipo de gente e já havia conventos, os padres tinham-se estabelecido lá. Estevão Cancela e João Cabral fizeram aquela rota e eu procurei ser o mais fiel possível a ela. Guiei-me pelos escritos de Estevão Cancela. O João Cabral escreveu uma carta mais tarde, mas o miolo veio dali. Quis encontrar os locais que ele escreve e identificá-los. Tem a zona de Bangladesh, Bengala e atravessamos para o norte da Índia, até ao Butão. Estes dois padres chegaram ao Butão numa altura em que o território se estava a formar como país independente, criando o chamado “Reino do Dragão Trovejante”.

Daí o título do documentário.

Exacto. As pessoas pensam que tem a ver com a China, mas não.

No Butão viajou com um guia, que mostrou novos elementos da rota dos padres jesuítas. Eles conhecem a história desta influência portuguesa.

No Tibete ocidental, onde os portugueses tiveram uma missão durante mais de 20 anos e fundaram uma igreja, não restaram vestígios. Mas no Butão as pessoas conhecem a história e as crianças até aprendem na escola que os primeiros ocidentais a chegar aquela zona foram dois padres portugueses. Foram feitas umas moedas comemorativas sobre a sua chegada, há uns anos. Ficámos apenas cinco dias, o que é muito pouco tempo para capturar todas as imagens que queríamos. Mas havia matéria para dois episódios. O guia, ao saber que éramos portugueses, fez o seu trabalho de casa e deu-me muita informação. Os padres terão levado sete canhões para negociar, porque os jesuítas eram homens muito pragmáticos e não revelavam isto nos seus escritos, mas muitos foram negociantes para financiar as suas viagens. Ofereciam presentes também. Esses dados foram-me dados pelo lado butanês. O Estevão Cancela acabaria por falecer no Tibete, e aí está sepultado, e João Cabral acabaria por fazer nova viagem, tendo sido o primeiro ocidental a chegar ao Nepal. Voltaria à Índia e faria muitas viagens. Teve uma vida longa. E até esteve em Macau, tendo sido reitor do Colégio de São Paulo.

A certa altura, no documentário, depara-se com um templo quando procurava um palácio. Houve sítios e monumentos que mudaram ao longo dos anos ou que não foram preservados?

Sim. Nesse caso, encontrei um templo hindu, mas mais antigo. Esse palácio, por exemplo, seria feito de materiais perecíveis, como madeira, e deve ter desaparecido tudo.

Este documentário revela outra faceta menos conhecida em relação à missão dos jesuítas?

Isto é matéria para uma vida inteira. Se fosse milionário não faria outra coisa. Tenho uma lista imensa de trabalhos que gostaria de fazer com histórias de jesuítas. Esse método de seguir as suas pisadas é fascinante, porque cativa a pessoa e é também pedagógico, baseando-se em textos que foram deixados escritos. Essa epopeia terrestre tem sido muito esquecida, e quando se fala da expansão portuguesa fala-se sempre das viagens marítimas e das zonas que os portugueses se estabeleceram através das feitorias. Há a ideia que foi um império construído junto à costa, mas esquecemo-nos que fizemos viagens pelos continentes adentro.

22 Abr 2022

Iniciais incêndios em Macau

O primeiro incêndio registado por os portugueses em Macau ocorreu em Dezembro de 1565 na Ermida de St.º António, construída com bambu e palha pelos Jesuítas, situada onde hoje é o Largo de S. António. 29 de Julho de 1563 é a data do estabelecimento permanente dos Jesuítas em Macau, sendo em Setembro do ano anterior que Luís Fróis, S.J. e Baptista de Monte, S.J. “dão início a um projecto de residência, instalando-se em divisões sumárias, [casinhas térreas junto da ermida de St.º António] numa propriedade do comerciante Pedro Quintero”, refere Beatriz Basto da Silva. E continuando na sua Cronologia, em 1565 dá-se por oito padres da Companhia de Jesus nesta Cidade a “fundação da primeira residência jesuíta na China, em Macau, com a construção a cargo do Pe. Francisco Perez, perto de St.º António, da Casa dos Jesuítas” em imóvel próprio. Uma pobre casa feita para hospício dos missionários que passavam do Japão e essa Casa, em conjunto com a Capela, ardeu em 1565.

Reconstruída a Casa dos Jesuítas, aí em 1572 foi aberta a escola de primeiras letras. No local da anterior capela, o Capitão-Mor de Macau D. António Vilhena mandou em 1573 erguer às suas custas a nova igreja em madeira (taipa) e coberta de telha, já com o nome de Madre de Deus. Foi-lhe lançada fogo em 1582, tendo os jesuítas a abandonado e o Superior Pe. Pedro Gomes mudou-a para o actual local no sopé do Monte de S. Paulo, cobrindo-a de telha.

Crescendo o ensino até ao nível universitário, a “30 de Novembro de 1594, a Casa da Companhia de Jesus passou a denominar-se Colégio dos Jesuítas”, segundo Beatriz B. da Silva, que refere, a 1 de Dezembro “a escola criada pelos jesuítas passou à categoria de Colégio Universitário. O Colégio de São Paulo foi a primeira Universidade ocidental no Extremo Oriente”, sendo devorado em 1595 por um grande incêndio.

Já desde 1594 se reedificava o Hospício, o Colégio e a Cerca que “passaram a ocupar o terreno que, hoje, se estende pela Horta da Companhia. A fachada desta nova construção ocupava o espaço entre a actual igreja de Santo António e a Travessa de S. Francisco Xavier. No edifício e esquina que dava para a Rua de Santo António, ficavam os aposentos destinados aos mandarins que vinham frequentemente a Macau (Artur Levy Gomes)”, citação de Ana Maria Amaro. A construção do edifício do Colégio, Casa e Seminário de São Paulo, terminou em 1602. Já a Igreja da Madre de Deus voltaria a arder em 1601, sendo então construída uma nova e imponente igreja inaugurada no Natal de 1603 e a fachada, obra realizada por mestres japoneses, só ficaria pronta em 1640.

VISÃO CHINESA DOS PORTUGUESES

Para perceber as razões da pouca vontade chinesa para com a Companhia de Jesus em Macau e pegarem fogo às suas casas, escolas e igrejas, convém iniciar por historiar o percurso dos mercadores portugueses no Mar da China e mais tarde, ligados aos jesuítas, que misturados com eles entravam clandestinos na China.

Às ilhas chinesas da costa de Guangdong anualmente aportavam de Abril a Outubro marinheiros e comerciantes, vivendo a bordo dos barcos e esperando as sedas aí trazidas pelos mercadores chineses.

O Édito Imperial de 1522, que proibia quaisquer relações com os Fu Lan Ki, os desacreditados portugueses considerados na China homens de corações sujos, ladrões e alevantados, por andaram fora da obediência do seu Rei, resultou de duas batalhas navais entre os mercadores portugueses e a armada imperial chinesa.

Com tal má fama foram os portugueses colocados fora de Guangdong. Continuavam pela costa chinesa, agora para Norte a fazer comércio aliados com a pirataria japonesa pelas províncias de Fujian e Zhejiang, ficando os mandarins de Guangdong sem as taxas cobradas aos mercadores chineses e a não receber as peitas dos estrangeiros, sendo os lucros auferidos muito reduzidos. Assim, em 1554 por ‘Assentamento’ entre o Capitão-mor Leonel de Souza e Wang Bo, o haidao (subintendente dos Assuntos de Defesa Costeira), os mercadores portugueses puderam usar a península Haojing, onde a Sul, na Barra estavam instalados ao redor do Templo de A-Má os pescadores de Fujian e na parte Norte, na colina de Mong-Há os agricultores eruditos descendentes da dinastia Song do Sul. Eram administrados por o mandarim de Hiang-shan, que respondia ao Vice-Rei de Guangdong Guangxi e este ao Imperador.

A vinda dos portugueses para a Baía de A-Má (AMáGau) trouxe aos pescadores locais mais negócios por estarem ligados com a sua província de origem, levando as mercadorias para Fujian, de onde se fazia comércio com as Filipinas.

Em 1557, os portugueses têm permissão oficial de se estabelecer em habitações permanentes no fanfang, situado na área central da península e então, a viver a Norte os agricultores de Mong-Há, ao verem instalar-se cada vez mais estrangeiros ficaram desinquietados. Em 1561, eram entre 500 e 600 moradores permanentes e em Dezembro de 1562, o número dos portugueses andava perto de 800, muitos provenientes de Lampacau, ilha a encerrar aos portugueses. Em 1563 viviam cerca de 900 portugueses, excluindo crianças, mil escravos e quatro mil chineses, sendo no total perto de 6 mil habitantes. Segundo Tien-Tsê Chang, “vários milhares de malaquenhos, indianos e africanos”, alguns comerciantes, mas muitos criados e escravos. Os chineses eram os estabelecidos em torno de Mong-há e A-Má.

A MATERIAL IDADE

Os jesuítas encontravam-se em Amagao desde 1555. “Postados geralmente ao lado dos moradores, (…) os padres jesuítas lutavam pela preservação do seu papel fulcral na sociedade macaense. Cabia-lhes gerir e resolver os conflitos pessoais e de grupo no seio da comunidade e as pendências com as autoridades chinesas. (…) De resto, pertencia à Companhia de Jesus a responsabilidade da construção da maior parte das escassas estruturas defensivas da cidade, bem como a constituição da única e verdadeira milícia”, segundo Jorge dos Santos Alves, que refere “Era prática corrente os portugueses declararem os navios mercantes como navios de escolta, de guerra, para fugirem ao pagamento de direitos”, confirmando os chineses o pensamento bélico dos estrangeiros e os japoneses trazidos pelos padres do Japão lembrava-lhes os problemas com os piratas mercadores japoneses (wokou).

A aquisição da Ilha Verde pelos jesuítas em 1603, levou as tropas chinesas dois anos depois a aí destruir as casas e a igreja, propriedade ocupada sem permissão do mandarim de Hiang-shan, que avisava não querer em Macau japoneses. Em 1606 houve pânico em Guangdong, pois constou pretenderem os jesuítas invadir a China com a ajuda dos japoneses.

Perante tal cenário compreende-se a preocupação chinesa sobre a Companhia de Jesus, árbitro da política local, acusada de propagar uma ideologia heterodoxa incitadora à revolta contra a dinastia Ming. Impotentes, os locais chineses tinham o fogo como único recurso contra tão poderosa organização, que construía muros e edifícios fortificados e se ali só havia mais os chineses, então era contra eles.

7 Jun 2021

Isabel Pina, investigadora do Centro Cultural e Científico de Macau | Álvaro Semedo, o homem e o mito

Historiadora, com trabalho focado na missão dos jesuítas em Macau e China, Isabel Pina dedica-se actualmente a estudar Álvaro Semedo, o primeiro a registar por escrito, em 1642, a questão de Macau ter sido doada aos portugueses devido ao combate aos piratas

[dropcap]E[/dropcap]m Dezembro deu uma palestra, promovida pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, com o título “A China Ming ao tempo de Xavier”. E como era a China neste tempo?
Estávamos perante uma China de uma dimensão completamente diferente daquilo que era conhecido pelos missionários e pelos europeus, ao nível da escala demográfica e económica, não tinha qualquer comparação possível. Havia uma capacidade de adaptação do produtor chinês ao mercado consumidor, e dei o exemplo da porcelana azul e branca, um produto chinês que foi adaptado às exigências do mercado persa, e depois passou também a ser vendido para a Europa. Outro aspecto que referi em relação à China Ming, que deixou também os europeus atónitos e os missionários, europeus muito cultos à época, foi a indústria livreira. No século XVI quando chegam os primeiros missionários, deparam-se com bibliotecas que tinham uma escala absolutamente diferente do que existia na Europa.

Como era a relação de Macau com a China nessa altura?
Macau era um lugar central, desde logo para os missionários. Eles faziam um caminho obrigatório [por lá]. Os jesuítas pertenciam ao padroado português e tinham de embarcar obrigatoriamente em Lisboa, paravam em Goa e muitas vezes ficavam lá um tempo, e depois iam para Macau. A partir de Macau iam para as missões da Ásia Oriental, incluindo Japão, que até ao início do século XVII é missão de grande sucesso, e depois para a China. Quando são expulsos do Japão vão para outras missões. Macau era central em termos de viagem e muitas vezes em termos de estudo, pois muitos vão acabar o percurso académico em Macau no Colégio de São Paulo. Alguns começam a aprender mandarim em Macau, que é também central no envio de verbas para a missão da China, na questão de preparação de chineses, que os jesuítas diziam ser as suas mãos e pés. Alguns deles eram integrados na Companhia de Jesus, no que diz respeito a essa capacidade de recursos humanos para apoiarem a missão. Dá para imaginar as dificuldades com que se deparavam, pois muitos [missionários] não falavam ainda o chinês.

FOTO: Hoje Macau

Quais as principais diferenças entre a missão jesuíta na China e no Japão?
No Japão há uma penetração muito rápida e desde logo torna-se uma missão que é definida à época como um grande sucesso. Muitas das cartas de candidatura dos jesuítas, em que eles pediam para ir para as índias, apresentavam pedidos para o Japão. A China não exercia o mesmo fascínio durante muito tempo.

Porquê?
A China provavelmente não teria o mesmo no comércio que tinha o Japão, além de que a própria sociedade era diferente. Era uma sociedade mais centralizada, quando os jesuítas chegam ao Japão o país estava em guerra civil. Havia ali uma possibilidade que não havia na China. Para a China iam sempre poucos missionários face à dimensão demográfica, e só passados os primeiros, por volta da década de 1630, ou seja, ao fim de cerca de 50 anos é que os números de baptismo começam a aumentar mais. De qualquer forma o cristianismo é sempre uma religião marginal, com muito pouco peso.

Até aos dias de hoje.
Sim, se bem que há o édito de prescrição do cristianismo, em 1684, assinado por um imperador chinês, mas os estudos mais recentes apontam que não foi uma oportunidade perdida, não se perdeu tudo. Houve sim uma transformação e houve estudos para a província de Fujian e de Guangdong que mostram que há uma apropriação do cristianismo, em que este se torna mais local. Há clãs e famílias que continuam cristãs, dão um tom mais local ao cristianismo, que se torna mais chinês.

Cria-se outro cristianismo.
Sim, adapta-se mais ainda, mas continuam com o culto. A partir daí, o clero local cresce exponencialmente e atinge números que nunca tinha tido. O meu doutoramento foi precisamente sobre os jesuítas chineses, e o que constatei é que durante 100 anos foram 28 e a partir do século XVIII há muitos mais religiosos chineses. Mas também já não são só os jesuítas, há mais ordens no terreno, mais missionários de diferentes congregações. Mas as diferenças entre o Japão e a China iria no sentido em que foi mais difícil o percurso de entrada e de aumento de baptismos na China do que foi no Japão. Mas depois na China perdurou com todas as metamorfoses, e sempre como uma religião marginal.

Fez o seu doutoramento sobre “Jesuítas Asiáticos e Mestiços na Missão/Vice-Província da China (1589-1689)” em 2009. Porquê este tema?
Na minha abordagem aos missionários e ao catolicismo na China tenho trabalhado mais na perspectiva dos mediadores culturais e não tanto em termos da religião em si. Para mim é mais fascinante a parte cultural porque são efectivamente os primeiros europeus que vão estudar a língua de forma regular e que vão viver na China. São eles que dão a conhecer a China Ming e Ching aos europeus pela primeira vez. Quando os jesuítas chegam, em 1582, o livro do Marco Polo ainda era muito importante. Dá para perceber o desfasamento, pois já se tinham passados uns séculos e estávamos numa dinastia diferente, e é uma China diferente que vão conhecer. Tenho trabalhado a constituição do conhecimento europeu sobre a China e o livro do Marco Polo continua a ser muito usado enquanto fonte de autoridade pelos jesuítas. Mas são esses europeus que criam os primeiros programas sobre a língua e de como se deve estudar o chinês.

O mandarim era uma língua completamente desconhecida, daí a importância desses mediadores.
Completamente. Logo o São Francisco Xavier fala em aprender o chinês, ainda no geral, sem definir qual a língua chinesa que ia estudar. O seu sucessor, Melchior Nunes Barreto, decidiu (isto tudo ainda antes da missão ter começado) deixar um irmão jesuíta em Cantão para aprender a língua com mestres locais enquanto faz a viagem para o Japão. Quando regressa, este irmão tinha enlouquecido (risos). Ele diz que teve uma fraqueza de cabeça.

Falamos de que ano?
O primeiro plano é um português que estabelece, depois de discutir com outros missionários, em 1684. E os jesuítas tiveram, a partir de 1578 ou 1579, quando se decide estudar o mandarim. Portanto desde 1579 até 1624 eles estão a ganhar experiência. O estudo começa em Macau e depois o estudo continua na China. Mas só ao fim desse tempo é que criam um primeiro plano de estudo.

Como era a relação com a corte imperial chinesa? Quando chegavam, tinham alguns contactos prévios feitos, tinham algum domínio da língua?
Estes homens eram muito bem preparados. Era um investimento enorme que começava logo na viagem, ou ainda antes. Eram homens com anos de estudos, que custavam dinheiro, e depois a viagem até Macau. Depois outro investimento era colocá-los na China. Essa relação com a corte é muito diferente entre as dinastias Ming e Ching. Na dinastia Ming estabeleciam uma rede de relações com missionários, com três mandarins e oficiais de alto nível, e é através dos conhecimentos científicos que começavam a desenvolver todo este relacionamento, o Guanxi, criando relações com os oficiais importantes. Na dinastia Ching era completamente diferente, pois tinham acesso à corte imperial com a realização do calendário. Entraram na corte os missionários que tinham alguma especialização, em termos de astronomia, matemática, relógios ou conhecimento de instrumentos musicais, e pintura também. Tinham de ter algum tipo de especialização para ter acesso ao imperador e começavam a preparar o calendário logo no início da dinastia. Entre 1644 e 1683 os jesuítas jogavam nas duas frentes.

Em que sentido?
Faziam-no enquanto ainda não estava bem definida a situação política na China. Vemos alguns jesuítas a actuarem e a estabelecerem relações com os Ming do sul, e vemos os outros em Pequim. Joga-se em todas as frentes do tabuleiro político. Um dos missionários que estou a estudar actualmente, o Álvaro Semedo, estava junto dos Ming do sul, com estes Ming a tentarem arranjar apoio militar por parte da Europa. O Adam Shau já estava em Pequim a entrar no departamento astronómico e a preparar o calendário para os Ching.

Participou também num estudo sobre o jesuíta Tomás Pereira.
No Centro Cultural e Científico de Macau (CCCM) fizemos um projecto central sobre o Tomás Pereira, que foi um missionário absolutamente interessante e que tinha sido completamente apagado, mesmo à época, pelos jesuítas franceses por questões relacionadas com o padroado português, com o rei de França. O Tomás Pereira era uma figura próxima do imperador Kang Shi, dentro daquilo que um europeu pode ter de proximidade. Muitas das ideias que passaram para a Europa foram passadas pelos próprios missionários, que exageram sempre o papel deles perante a corte.

A propósito de Álvaro Semedo, o que destaca nesta figura histórica?
Era um missionário que pertenceu à vice-província da China, fez parte dos quadros, mas passou muito tempo em Macau. Em 1617, quando há a primeira perseguição, a primeira crise em que o poder imperial está envolvido, é um dos missionários que é expulso por decreto imperial. Tem mesmo de ir para Macau e fica cerca de três anos. Quando regressa à China, já tem outro nome, pois não podia ter o mesmo. Ao longo da sua vida Álvaro Semedo vive cerca de 45 anos na China, sendo que cerca de 10 anos são em Macau. O que é particularmente interessante é que o Álvaro Semedo é o primeiro a pôr em registo escrito o mito nacional de Macau, a questão de Macau ter sido doada aos portugueses por causa do combate aos piratas. Não é ele que vai formular este mito pela primeira vez, porque aparece em manuscrito antes disso, na década de 1620, mas em 1642 fica impresso pela primeira vez. Só isso torna o Álvaro Semedo [importante] face a Macau porque está em causa o mito das origens [de Macau], que tem um peso enorme até pelo menos ao século XX.

Como era Macau nesse tempo?
Ele próprio diz isso, ele chega ainda num período em que Macau ainda tem comércio com o Japão, e depois ele vem para a Europa em 1637 e quando regressa a Macau diz que o território já está numa crise profunda. Descreve, já com uma certa nostalgia, aquilo que tinha encontrado quando chegara lá, pois tinha chegado em 1611 ou 1612, ainda o comércio com o Japão decorria, apesar de estar no final. O comércio tinha sido cortado e Macau vivia uma crise profunda.

Fez um estudo sobre a linguagem dos jesuítas macaenses nos séculos XVI e XVII. Eram apenas intérpretes, tiveram um papel como sempre teve a comunidade macaense ao longo dos séculos?
Sim, mas durante muito tempo eram mesmo chineses da região envolvente ou de Fujian, ou Zhejiang. Os intérpretes podiam ser chineses ou africanos, chineses que estavam em Macau durante um ano e que regressavam à China, sabendo uma ou duas palavras, e que eram então referidos como intérpretes. Os missionários aprendiam o mandarim, mas estávamos numa China onde havia vários dialectos. Havia a língua da Administração que lhes permitia pôr em prática uma estratégia, garantir o acesso à corte imperial, mas no dia-a-dia tinham de lidar com os dialectos.

3 Jan 2020

Isabel Pina, investigadora do Centro Cultural e Científico de Macau | Álvaro Semedo, o homem e o mito

Historiadora, com trabalho focado na missão dos jesuítas em Macau e China, Isabel Pina dedica-se actualmente a estudar Álvaro Semedo, o primeiro a registar por escrito, em 1642, a questão de Macau ter sido doada aos portugueses devido ao combate aos piratas

[dropcap]E[/dropcap]m Dezembro deu uma palestra, promovida pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, com o título “A China Ming ao tempo de Xavier”. E como era a China neste tempo?
Estávamos perante uma China de uma dimensão completamente diferente daquilo que era conhecido pelos missionários e pelos europeus, ao nível da escala demográfica e económica, não tinha qualquer comparação possível. Havia uma capacidade de adaptação do produtor chinês ao mercado consumidor, e dei o exemplo da porcelana azul e branca, um produto chinês que foi adaptado às exigências do mercado persa, e depois passou também a ser vendido para a Europa. Outro aspecto que referi em relação à China Ming, que deixou também os europeus atónitos e os missionários, europeus muito cultos à época, foi a indústria livreira. No século XVI quando chegam os primeiros missionários, deparam-se com bibliotecas que tinham uma escala absolutamente diferente do que existia na Europa.
Como era a relação de Macau com a China nessa altura?
Macau era um lugar central, desde logo para os missionários. Eles faziam um caminho obrigatório [por lá]. Os jesuítas pertenciam ao padroado português e tinham de embarcar obrigatoriamente em Lisboa, paravam em Goa e muitas vezes ficavam lá um tempo, e depois iam para Macau. A partir de Macau iam para as missões da Ásia Oriental, incluindo Japão, que até ao início do século XVII é missão de grande sucesso, e depois para a China. Quando são expulsos do Japão vão para outras missões. Macau era central em termos de viagem e muitas vezes em termos de estudo, pois muitos vão acabar o percurso académico em Macau no Colégio de São Paulo. Alguns começam a aprender mandarim em Macau, que é também central no envio de verbas para a missão da China, na questão de preparação de chineses, que os jesuítas diziam ser as suas mãos e pés. Alguns deles eram integrados na Companhia de Jesus, no que diz respeito a essa capacidade de recursos humanos para apoiarem a missão. Dá para imaginar as dificuldades com que se deparavam, pois muitos [missionários] não falavam ainda o chinês.

FOTO: Hoje Macau

Quais as principais diferenças entre a missão jesuíta na China e no Japão?
No Japão há uma penetração muito rápida e desde logo torna-se uma missão que é definida à época como um grande sucesso. Muitas das cartas de candidatura dos jesuítas, em que eles pediam para ir para as índias, apresentavam pedidos para o Japão. A China não exercia o mesmo fascínio durante muito tempo.
Porquê?
A China provavelmente não teria o mesmo no comércio que tinha o Japão, além de que a própria sociedade era diferente. Era uma sociedade mais centralizada, quando os jesuítas chegam ao Japão o país estava em guerra civil. Havia ali uma possibilidade que não havia na China. Para a China iam sempre poucos missionários face à dimensão demográfica, e só passados os primeiros, por volta da década de 1630, ou seja, ao fim de cerca de 50 anos é que os números de baptismo começam a aumentar mais. De qualquer forma o cristianismo é sempre uma religião marginal, com muito pouco peso.
Até aos dias de hoje.
Sim, se bem que há o édito de prescrição do cristianismo, em 1684, assinado por um imperador chinês, mas os estudos mais recentes apontam que não foi uma oportunidade perdida, não se perdeu tudo. Houve sim uma transformação e houve estudos para a província de Fujian e de Guangdong que mostram que há uma apropriação do cristianismo, em que este se torna mais local. Há clãs e famílias que continuam cristãs, dão um tom mais local ao cristianismo, que se torna mais chinês.
Cria-se outro cristianismo.
Sim, adapta-se mais ainda, mas continuam com o culto. A partir daí, o clero local cresce exponencialmente e atinge números que nunca tinha tido. O meu doutoramento foi precisamente sobre os jesuítas chineses, e o que constatei é que durante 100 anos foram 28 e a partir do século XVIII há muitos mais religiosos chineses. Mas também já não são só os jesuítas, há mais ordens no terreno, mais missionários de diferentes congregações. Mas as diferenças entre o Japão e a China iria no sentido em que foi mais difícil o percurso de entrada e de aumento de baptismos na China do que foi no Japão. Mas depois na China perdurou com todas as metamorfoses, e sempre como uma religião marginal.
Fez o seu doutoramento sobre “Jesuítas Asiáticos e Mestiços na Missão/Vice-Província da China (1589-1689)” em 2009. Porquê este tema?
Na minha abordagem aos missionários e ao catolicismo na China tenho trabalhado mais na perspectiva dos mediadores culturais e não tanto em termos da religião em si. Para mim é mais fascinante a parte cultural porque são efectivamente os primeiros europeus que vão estudar a língua de forma regular e que vão viver na China. São eles que dão a conhecer a China Ming e Ching aos europeus pela primeira vez. Quando os jesuítas chegam, em 1582, o livro do Marco Polo ainda era muito importante. Dá para perceber o desfasamento, pois já se tinham passados uns séculos e estávamos numa dinastia diferente, e é uma China diferente que vão conhecer. Tenho trabalhado a constituição do conhecimento europeu sobre a China e o livro do Marco Polo continua a ser muito usado enquanto fonte de autoridade pelos jesuítas. Mas são esses europeus que criam os primeiros programas sobre a língua e de como se deve estudar o chinês.
O mandarim era uma língua completamente desconhecida, daí a importância desses mediadores.
Completamente. Logo o São Francisco Xavier fala em aprender o chinês, ainda no geral, sem definir qual a língua chinesa que ia estudar. O seu sucessor, Melchior Nunes Barreto, decidiu (isto tudo ainda antes da missão ter começado) deixar um irmão jesuíta em Cantão para aprender a língua com mestres locais enquanto faz a viagem para o Japão. Quando regressa, este irmão tinha enlouquecido (risos). Ele diz que teve uma fraqueza de cabeça.
Falamos de que ano?
O primeiro plano é um português que estabelece, depois de discutir com outros missionários, em 1684. E os jesuítas tiveram, a partir de 1578 ou 1579, quando se decide estudar o mandarim. Portanto desde 1579 até 1624 eles estão a ganhar experiência. O estudo começa em Macau e depois o estudo continua na China. Mas só ao fim desse tempo é que criam um primeiro plano de estudo.
Como era a relação com a corte imperial chinesa? Quando chegavam, tinham alguns contactos prévios feitos, tinham algum domínio da língua?
Estes homens eram muito bem preparados. Era um investimento enorme que começava logo na viagem, ou ainda antes. Eram homens com anos de estudos, que custavam dinheiro, e depois a viagem até Macau. Depois outro investimento era colocá-los na China. Essa relação com a corte é muito diferente entre as dinastias Ming e Ching. Na dinastia Ming estabeleciam uma rede de relações com missionários, com três mandarins e oficiais de alto nível, e é através dos conhecimentos científicos que começavam a desenvolver todo este relacionamento, o Guanxi, criando relações com os oficiais importantes. Na dinastia Ching era completamente diferente, pois tinham acesso à corte imperial com a realização do calendário. Entraram na corte os missionários que tinham alguma especialização, em termos de astronomia, matemática, relógios ou conhecimento de instrumentos musicais, e pintura também. Tinham de ter algum tipo de especialização para ter acesso ao imperador e começavam a preparar o calendário logo no início da dinastia. Entre 1644 e 1683 os jesuítas jogavam nas duas frentes.
Em que sentido?
Faziam-no enquanto ainda não estava bem definida a situação política na China. Vemos alguns jesuítas a actuarem e a estabelecerem relações com os Ming do sul, e vemos os outros em Pequim. Joga-se em todas as frentes do tabuleiro político. Um dos missionários que estou a estudar actualmente, o Álvaro Semedo, estava junto dos Ming do sul, com estes Ming a tentarem arranjar apoio militar por parte da Europa. O Adam Shau já estava em Pequim a entrar no departamento astronómico e a preparar o calendário para os Ching.
Participou também num estudo sobre o jesuíta Tomás Pereira.
No Centro Cultural e Científico de Macau (CCCM) fizemos um projecto central sobre o Tomás Pereira, que foi um missionário absolutamente interessante e que tinha sido completamente apagado, mesmo à época, pelos jesuítas franceses por questões relacionadas com o padroado português, com o rei de França. O Tomás Pereira era uma figura próxima do imperador Kang Shi, dentro daquilo que um europeu pode ter de proximidade. Muitas das ideias que passaram para a Europa foram passadas pelos próprios missionários, que exageram sempre o papel deles perante a corte.
A propósito de Álvaro Semedo, o que destaca nesta figura histórica?
Era um missionário que pertenceu à vice-província da China, fez parte dos quadros, mas passou muito tempo em Macau. Em 1617, quando há a primeira perseguição, a primeira crise em que o poder imperial está envolvido, é um dos missionários que é expulso por decreto imperial. Tem mesmo de ir para Macau e fica cerca de três anos. Quando regressa à China, já tem outro nome, pois não podia ter o mesmo. Ao longo da sua vida Álvaro Semedo vive cerca de 45 anos na China, sendo que cerca de 10 anos são em Macau. O que é particularmente interessante é que o Álvaro Semedo é o primeiro a pôr em registo escrito o mito nacional de Macau, a questão de Macau ter sido doada aos portugueses por causa do combate aos piratas. Não é ele que vai formular este mito pela primeira vez, porque aparece em manuscrito antes disso, na década de 1620, mas em 1642 fica impresso pela primeira vez. Só isso torna o Álvaro Semedo [importante] face a Macau porque está em causa o mito das origens [de Macau], que tem um peso enorme até pelo menos ao século XX.
Como era Macau nesse tempo?
Ele próprio diz isso, ele chega ainda num período em que Macau ainda tem comércio com o Japão, e depois ele vem para a Europa em 1637 e quando regressa a Macau diz que o território já está numa crise profunda. Descreve, já com uma certa nostalgia, aquilo que tinha encontrado quando chegara lá, pois tinha chegado em 1611 ou 1612, ainda o comércio com o Japão decorria, apesar de estar no final. O comércio tinha sido cortado e Macau vivia uma crise profunda.
Fez um estudo sobre a linguagem dos jesuítas macaenses nos séculos XVI e XVII. Eram apenas intérpretes, tiveram um papel como sempre teve a comunidade macaense ao longo dos séculos?
Sim, mas durante muito tempo eram mesmo chineses da região envolvente ou de Fujian, ou Zhejiang. Os intérpretes podiam ser chineses ou africanos, chineses que estavam em Macau durante um ano e que regressavam à China, sabendo uma ou duas palavras, e que eram então referidos como intérpretes. Os missionários aprendiam o mandarim, mas estávamos numa China onde havia vários dialectos. Havia a língua da Administração que lhes permitia pôr em prática uma estratégia, garantir o acesso à corte imperial, mas no dia-a-dia tinham de lidar com os dialectos.

3 Jan 2020

Derrota das amotinadas tropas chinesas

[dropcap]N[/dropcap]a manhã de 27 de Setembro de 1564 os habitantes de Macau juntaram-se e aceitaram dar ajuda aos mandarins, conseguindo em poucos dias reunir entre 250 a 300 portugueses de têmpera para combater os marinheiros da armada imperial que desde Abril andavam revoltados. Dez dias depois, a 7 de Outubro embarcaram estes em Macau como mercenários com a sua artilharia a bordo dos juncos chineses. “O chumpim, ou capitão-mor do mar de Cantão, veio à povoação com cinco velas grossas e sete miúdas, para recolher os voluntários portugueses”, segundo Rui Manuel Loureiro (RML), que refere, “A expedição foi dividida em dois grupos, um comandado por Diogo Pereira, que correria a orla litoral nos juncos de maior porte; o outro capitaneado por Luís de Melo, que nas velas miúdas rumaria à cidade de Cantão, por dentro do rio.” Já “as embarcações dos ladrões eram nove muito grandes, com muito artilharia e munições de guerra, afora outras pequenas, e mais de dois mil homens de peleja com muitas armas, saligues (antiga arma de arremesso) (e) estrepes de ferro para quando abalroam”, escrevia João de Escobar.

O efeito surpresa foi geral! Ao verem a armada imperial chinesa, os marinheiros amotinados avançaram destemidamente os seus juncos sobre ela, crendo como habitual serem de fácil vencer.

Não esperavam ver entre eles portugueses, que com as suas armas impunham respeito. “Entrou-lhes tal medo que das embarcações se lançaram a nadar e cada um só tratava de fugir. Em espaço de meia hora, sem perda alguma dos nossos, quase todos foram cativos>”, segundo Gonçalo Mesquitela. Refere RML, “Como escreve o irmão André Pinto, <só a vista dos cristãos bastou para os desbaratar e desfazer>, porque, ao constatarem que , renderam-se em massa às autoridades cantonenses. De acordo com outro testemunho, os juncos capturados eram ; mas os expedicionários portugueses impuseram-se pela sua reputação de homens e armas, tomando-os a todos, . A fulgurante vitória portuguesa parece ter causado uma impressão muito favorável nas autoridades de Cantão. Pelo menos, essa é a opinião dos missionários jesuítas que testemunharam todo o episódio. André Pinto afirma que que . Quanto ao padre Francisco Pérez, confirma esta apreciação, colocando mesmo na boca do chumpim palavras altamente elogiosas em relação aos portugueses: ”.

Terminava assim a 7 de Outubro de 1564 a grave perturbação criada havia cinco meses pela rebelião interna na marinha imperial estacionada em Zhelin (Dongguan) nos arredores de Cantão.

“O general de armas chinês pediu aos portugueses para lhe entregarem os juncos capturados, mas a recusa quase provocou um conflito apenas sanado por Luís de Mello e Diogo Pereira que, diplomaticamente, explicaram ao oficial militar que os portugueses eram tão disciplinados que só aos seus capitães obedeciam. O general chinês subtilmente retorquiu: ”, segundo Gonçalo Mesquitela, que usou as informações do Padre António Franco para a descrição desta crise.

O corpo expedicionário de Macau foi brindado “com chapas de um dos mandarins reconhecendo os seus bons serviços e prometendo intercessão junto do Imperador para que fosse autorizada a entrada na China da missão diplomática de Diogo Pereira/Gil de Góis (1563-1565) e ainda, cumulativamente, terá sido dada à cidade, a título de recompensa, a isenção do pagamento dos direitos alfandegários desse mesmo ano de 1565”, segundo Beatriz Basto da Silva (BBS). Foram ainda os portugueses autorizados a irem a Cantão tratar de negócios.

Fracassa a Embaixada de Gil de Góis

Em 1564, “Os chineses apenas podiam permanecer durante o dia no território de Macau, devendo regressar às terras de origem ao anoitecer”, segundo os historiadores Jin Guo Ping, Wu Zhiliang e o padre Manuel Teixeira. Tien-Tsê Chang, em O Comércio Sino-Português entre 1514 e 1644, refere, “O relacionamento entre a China e a jovem colónia estrangeira foi, durante alguns anos, instável, pois o governo em Pequim recusava-se firmemente a ter quaisquer relações oficiais com os portugueses. Uma missão portuguesa portadora de um tributo foi recusada, por ordem da corte, tão tarde quanto 1565.” Tal ocorreu quando, após dois anos, o impaciente Embaixador Gil de Góis, farto de esperar, já em Cantão, “não conseguiu aceitar as exigências dos costumes chineses e os mandarins recusaram-se a reconhecer a embaixada com a justificação de que esta era particularmente destituída de magnificência ostentosa e do acompanhamento necessário, em forma de tributo, para o Filho do Céu”, segundo Montalto de Jesus. Muito se deveu ao capitão de Malaca D. Francisco de Eça não a ter prendado condignamente, como refere Gonçalo Couceiro, que diz ter então a fixação dos missionários na China falhado definitivamente. “Para os três jesuítas as directivas chegam breve, depois do fracasso da missão diplomática; o padre provincial da Índia, António Quadros, ordena-lhes em 1565 que se estabeleçam em casa própria, pelo que deixaram as dependências que ocupavam na residência de Pero Quintero. Com isto criava-se o primeiro hospício, ou casa própria da Companhia de Jesus, em Macau, pelas vantagens de se dispor de residência certa: quer para nela estarem os missionários da Missão do Japão, enquanto aguardavam para Goa, ou para o arquipélago Nipónico, quer pelo facto, mais próximo, de se poder ter uma base para organizar a futura instalação dos missionários da Companhia na China.”

Data assim de 1565 o estabelecimento dos jesuítas em Macau. Rui Manuel Loureiro, em As Origens de Macau nas Fontes Ibéricas, refere que em 1565 “os responsáveis da Companhia de Jesus despachavam o padre André Fernandes para aquelas partes, para, juntamente com o padre Manuel Teixeira e o irmão André Pinto, dar assistência religiosa aos mercadores portugueses que sempre são muitos. Mas, durante algumas semanas, entre a partida dos navios para o Japão e a chegada da frota de Malaca, a população diminuía consideravelmente.”

A 15 de Novembro de 1565, segundo BBS, “Os Padres Perez S.J. e Juan de Escobar S.J., foram de visita a Cantão” e em Dezembro, junto à Ermida de S. António e pegada à habitação de Pero Quintero, os jesuítas edificaram a primeira residência estável da Companhia de Jesus em Macau.
Os espanhóis, que tinham chegado em 1521 às Filipinas, só em 1565 aí se estabeleceram e a ocuparam, edificando Manila em 1571.

Como todas as anteriores embaixadas portuguesas enviadas à China Ming, a de Gil de Góis também fracassou e só mais de um século depois, já no trono do Celeste Império se sentava o Imperador Kangxi da Dinastia Qing, voltaram a realizar uma nova embaixada régia.

11 Nov 2019

Turbulento período de transição

[dropcap]G[/dropcap]uerras por toda a China marcaram o reinado do Imperador Shunzhi (1644-1661). No início, contra Li Zicheng, líder dos rebeldes camponeses e militares de Shaanxi e cuja chegada a Beijing levou o último imperador da Dinastia Ming a enforcar-se. Já com o Trono do Dragão ocupado pela Dinastia Qing, logo as cortes dos príncipes ming, cujo sonho era retomar o poder, instalaram-se no centro e Sul da China, onde os exércitos manchus os combateram até 1661. Também em Beijing, um outro tipo de guerra ocorreu entre os jesuítas da Missão e os mandarins do Tribunal dos Ritos, incomodados com o relacionamento íntimo do padre Adam Schall e Shunzhi.

O manchu príncipe de Rui (Dorgon), que em Beijing desalojara os revoltosos e colocara o Imperador Shunzhi no trono da China, como regente político e militar mandou o príncipe de Ying (Ajige) em perseguição a Li Zicheng, terminando este morto numa emboscada no Verão de 1645.

Quando em 1644 a corte ming se mudou para Yingtian (Nanjing) e Zhu Yousong, o príncipe de Fu, se tornou o Imperador Hong Guang (1644-1645) da Dinastia Ming do Sul, o regente Dorgon, tio do Imperador Shunzhi, enviou o príncipe de Yu (Aisin-gioro Duoduo) para acabar com essa veleidade. A curta existência do primeiro regime Ming do Sul terminou no Verão de 1645, após um general traidor entregar às tropas qing o efémero imperador, fugindo a corte ming para Hangzhou, onde se dividiu. Uma parte dirigiu-se para Shaoxing (Zhejiang), ficando aí Zhu Yihai, o príncipe de Lu, como imperador de Julho 1645 a Junho 1646. Pertencia ele à nona geração do décimo filho do primeiro imperador da dinastia Ming, Zhu Yuanzhang. Conseguiu repelir um ataque das tropas qing mas, com comandantes militares arrogantes e desobedientes, o poder caiu nas mãos dos eunucos e no confronto seguinte com os qing logo saiu derrotado. A outra corte refugiou-se em Fuzhou (Fujian), subindo ao trono Zhu Yujian como Imperador Long Wu (Agosto 1645 – Outubro 1646). Este, quando em 1644 o príncipe de Fu se tornou Imperador e o libertou da prisão, recuperara o título de príncipe de Tang, que lhe fora retirado em 1636. Pertencia Zhu Yujian à oitava geração, descendente do terceiro filho de Zhu Yuanzhang. Mas bastou um ano para esse imperador e o de Shaoxing serem destronados pelas tropas manchus.

Outra bolsa de resistência aos qing ocorreu em Chengdu, Sichuan, quando em 1644 Zhang Xianzhong se autoproclamou imperador do Grande Reino do Ocidente. Aliado ocasional de Li Zicheng até 1640, acordaram então delimitar as suas áreas de acção. Em Chengdu, Zhang encontrou a Missão jesuíta fundada em 1640 pelo padre Luís Buglio e estando este doente veio para o ajudar Gabriel de Magalhães S.J., após um ano a estudar chinês em Hangzhou. Foram os padres levados para a corte, decalcada da Dinastia Ming, a fim de o aconselharem com os seus conhecimentos. Sanguinário governante, instaurou um regime de terror com massivas execuções e nem mesmo os missionários estiveram livres de perigo. Zhang foi morto pelos qing a 2 de Janeiro de 1647, numa emboscada nas Montanhas de Fenghuang, em Xichong.

Em 1646 revoltava-se Zhu Youlang, tomando as províncias de Guangdong e Guangxi. Esta corte ming, a última, só teve o seu fim em 1661.

Versão dos jesuítas

“Ao contrário do relacionamento conflituoso com o Budismo e o Taoísmo, os jesuítas manifestaram desde o início uma atitude de grande abertura face aos valores morais e éticos propostos pelo Confucionismo, por eles considerado, não como uma religião, mas antes como uma sabedoria ou um código de preceitos morais para a condução prática da vida”, segundo Horácio Peixoto de Araújo. São deste autor do livro ‘Os Jesuítas no Império da China’, as citações que se seguem, “Se Adam Schall gozava da confiança do imperador e da amizade de alguns importantes dignatários da Corte, não lhe faltavam também fortes adversários que apenas aguardavam ocasião oportuna para manifestarem o seu desagrado ou mesmo a sua total oposição a semelhantes larguezas concedidas a um estrangeiro. Entre esses adversários, destacava-se o mandarim Guen, Presidente do Li Pú ou Tribunal dos Ritos de Pequim.

Por diversas vezes, tinha este tomado iniciativas no sentido de provocar o afastamento do jesuíta do cargo de Director do Tribunal da Astronomia ou das Matemáticas. A ocasião para um frente-a-frente público acabaria por surgir em princípios de 1658, na sequência da morte do príncipe herdeiro, filho do imperador Shun-zhi” e da dama de origem tártara, chamada Tong O Fei, a sua concubina preferida.

Lembremos que o príncipe de Rong, quarto filho do Imperador Shunzhi, logo que nasceu foi escolhido como sucessor, tal o amor que o imperador tinha pela mãe, a favorita Donggo hala, mas passados 105 dias morreu a 25 de Fevereiro de 1658. Se aqui já demos uma versão, agora deixamos a História contada pelos Jesuítas e assim regressamos ao relatado por Horácio Peixoto de Araújo.

“De acordo com as normas em vigor, competia ao Tribunal da Astronomia e, em última análise, ao seu Director Adam Schall, a decisão sobre a hora considerada mais ditosa para a realização do funeral do pequeno príncipe. Observados os procedimentos previstos para tais circunstâncias, Schall comunicou a Guen a hora exacta em que deveriam começar os rituais fúnebres. Este, a quem competia, na sua qualidade de Presidente do Li Pú, a organização das solenes exéquias dos membros da família imperial, ignorou tal informação e deu início às cerimónias duas horas mais tarde.

Entretanto, fosse para evitar previsíveis dificuldades, fosse para comprometer pessoalmente o Padre Schall, Guen falsificou o despacho que tinha recebido, substituindo a hora nele apontada pela hora da efectiva realização do enterro. Ao tomar conhecimento deste facto e receando, por sua vez, as gravosas consequências de tal alteração, Adam Schall decidiu informar o imperador do sucedido. Averiguados os acontecimentos, Guen foi deposto do alto cargo que ocupava e só por intercessão de grandes mandarins conseguiu evitar a condenação à morte.”

Os jesuítas começaram a perceber as dificuldades que iriam ter quando o Imperador Shunzhi morresse. Segundo Gabriel de Magalhães, . Para agravar a situação, em 1659 Yang Guang-Xian (杨光先) escreveu o livro BuDeYi (不得已, Refutação de uma Doutrina Perniciosa), “posicionando-se abertamente contra a religião cristã”, “doutrina funesta e contrária às mais genuínas tradições culturais e sociais do império, já que não respeitava os cinco grandes princípios que fundamentavam a arquitectura dos vários níveis de relações no interior da sociedade chinesa”.

Segundo Gabriel de Magalhães, para responder a esse livro o padre jesuíta Buglio escreveu ‘Apologia’, que para corresponder ao estilo do país o intitulou ‘Refuto porque não posso mais’, (不得已辨, BuDe YiBian).

8 Abr 2019

IC | Lançado livro das dinastias Ming e Qing sobre Matteo Ricci

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Instituto Cultural lançou, em Xangai, um novo livro, intitulado “Documentos Chineses das dinastias Ming e Qing sobre Matteo Ricci”, da autoria de Tang Kaijian, docente da Universidade de Macau. A obra é fruto de uma parceria com a editora de clássicos chineses de Xangai.

Foi padre jesuíta, missionário na China, renascentista, cartógrafo. O homem que nasceu em Macerata, Itália, e que viria a falecer em Pequim, em 1610, deixou uma enorme obra que ainda hoje é alvo de estudos e de compilações. Na China, foi missionário durante o reinado da dinastia Ming, onde tinha o nome chinês de Li Madou, e onde foi o grande responsável pela introdução do catolicismo.

O Instituto Cultural (IC) acaba de publicar, com o apoio de uma editora de Xangai, mais um livro sobre o jesuíta, intitulado “Documentos Chineses das Dinastias Ming e Qing sobre Matteo Ricci”, da autoria de Tang Kaijian, docente da Universidade de Macau.

Segundo um comunicado no IC, trata-se de uma “colectânea de materiais históricos relativos aos estudos sobre Matteo Ricci provenientes de arquivos documentais das dinastias Ming e Qing”, estando dividido em seis partes, com “biografia, prefácio e posfácio, documentos públicos, artigos de opinião, poemas, cartas e artigos variados”.

O livro fala da vida de Matteo Ricci, relatando “acontecimentos concretos da sua vida na China”, além de apresentar “uma compilação do seu pensamento e repercussões e análise da sociedade chinesa”.

O conteúdo da obra inclui “mais de quatrocentos documentos de todo o tipo provenientes de bibliotecas de todo o mundo, de diferentes bases de dados e colecções privadas”. O livro “procura reunir materiais de Matteo Ricci já publicados e traduzidos do italiano e de outras línguas ocidentais com registos do missionário em língua chinesa, a fim de permitir uma compreensão mais clara e precisa de Matteo Ricci e da sua época”, explica o comunicado do IC.

Das dificuldades

Reunir e analisar a obra de Matteo Ricci não tem sido fácil nos últimos anos, como denota o IC.

“Uma dificuldade recorrente no passado era o facto de, por um lado, os académicos do ocidente não terem capacidade de compreender na totalidade e tirar pleno proveito dos materiais de Matteo Ricci escritos em língua chinesa.”

Além disso, “os académicos orientais deparavam-se com os mesmos obstáculos relativamente aos materiais do missionário redigidos em línguas ocidentais”.

Tang Kaijian, o autor da obra, dá aulas no departamento de história da UM, sendo também orientador dos cursos de doutoramento. Dedica-se ao estudo da história de Macau, debruçando-se também sobre a história do catolicismo na China.

O académico já publicou um total de 21 obras e recebeu mais de dez prémios na sua área nas regiões de Cantão, Gansu e Macau. “Graças ao seu notável contributo para o estudo da história e cultura francesas, em 2009 foi galardoado com o título de Chevalier de L’Ordre des Palmes Académiques, sendo o primeiro académico das regiões de Macau e Hong Kong a receber tal honra”, explica o IC.

17 Nov 2017

Stephan Rothlin, presidente do Instituto Mateus Ricci: “Tem havido um aumento da intolerância”

Presidente do Instituto Ricci desde 2015, o académico e padre jesuíta fala esta sexta-feira numa palestra sobre a luta pela essência da fé, promovida pelo Fórum Luso-Asiático. Stephan Rothlin acredita que a intolerância em relação às diferentes religiões tem aumentado, defendendo um maior diálogo para acabar com os conflitos. Na área educativa, Stephan Rothlin chama a atenção para a necessidade dos jovens de Macau estudarem mandarim e tentarem ir além das pequenas fronteiras do território

[dropcap]E[/dropcap]sta sexta-feira vai falar da profundidade da fé e da luta pela sua essência, com base no filme “Silence”, de Martin Scorcese. Que ideias vai abordar?
Há muitos anos que recorro a filmes para fazer uma espécie de referência a alguns problemas. Pretendo mostrar uma série de questões que estão relacionadas com a fé, com a missão. O filme fala da missão jesuíta [no Japão] que começou em Macau e fala de uma série de problemas que acontecem quando a religião é imposta num outro país. Não devemos impor uma religião estrangeira sem dar o nosso melhor para compreender a cultura local. É importante ter a consciência da cultura de cada um. Claro que essa consciência tem de ser formada pela virtude de Deus ou através do ensino da Igreja, mas sempre tendo em conta de que a cultura de cada um é algo sagrado. Sempre considerámos ser crucial, se queremos fazer essa incursão numa cultura, compreender o idioma local.

Falando da China e do facto de ainda não possuir relações com a Igreja Católica. Acredita que com o Papa Francisco essa situação irá mudar nos próximos anos?
O Papa Francisco, que é jesuíta, é muito influenciado por esta espécie de paixão pela China, que foi iniciada por Mateus Ricci. Certamente conhece todos os passos a tomar para se chegar a um acordo com a China. Refiro-me também a toda uma dinâmica diferente onde, na Europa, à excepção da Polónia e de Portugal, a Igreja está num profundo declínio, e há outras dinâmicas em países asiáticos como a China ou o Vietname, onde diferentes igrejas católicas atraem as pessoas. É através dessa dinâmica que o Papa vai tentar de tudo para chegar a uma espécie de acordo com o Governo chinês.

Actualmente as religiões estão em conflito em vários lugares do mundo, sobretudo na Europa. Estamos de facto a vivenciar uma guerra ideológica, na qual as pessoas deixaram de compreender a religião do outro e o seu papel?
Nos últimos anos tem havido um aumento da intolerância. Sobretudo devido ao terrorismo, a imagem do Islão tem sido extremamente negativa, então tem aumentado o mútuo desrespeito. Claro que na Europa temos o tópico dominante dos refugiados. Nesse contexto, é ainda mais importante argumentar em prol do diálogo entre religiões, e essa é também a missão do Instituto Mateus Ricci. Temos esta entidade e uma história de ligação entre a China e a Europa, temos bolsas de estudo e queremos lançar um jornal que estabelece uma comparação em termos de espiritualidade, inovação social e liderança moral. Tudo para que, através desse diálogo entre religiões, se possa encontrar uma forma de ultrapassar esse tipo de mentalidade. 

O Instituto Mateus Ricci vai mudar-se para as instalações da Universidade de São José. Quando é que esse processo de mudança vai ficar concluído?
O nosso calendário baseia-se com o protocolo que assinámos com a universidade, segundo o qual mantemos uma cooperação, mas temos uma independência em termos legais. O nosso plano é concluir a mudança em Junho deste ano.

Com este processo, o instituto vai ter um novo papel, mais predominante, na sociedade de Macau? Há planos para a organização de mais eventos?
O meu antecessor deixou uma base bastante sólida, mas nunca podemos ficar no mesmo sítio. Queremos chegar a mais pessoas de Macau, Hong Kong e China, então o meu plano é continuar a cooperar com o Centro de Ensino à Distância da China, da Universidade de Economia e Comércio de Pequim, com o qual colaboro há muitos anos. O plano é instalar um centro para o ensino à distância, com cursos online, em Macau, já este ano.

E esses cursos vão focar-se em que áreas?
Temos esta missão de ensinar o português e o inglês com ligação aos negócios. Essa é também a missão que o Governo quer atingir. Claro que em primeiro lugar está o inglês, e temos esta ligação com os países de língua portuguesa, e aí promovemos o português. Com a base já criada teremos cursos na área do empreendedorismo. Macau é uma porta importante para a China e um lugar incrível em termos de multiculturalidade, e há que promover esse empreendedorismo, uma vez que para as gerações mais jovens é cada vez mais difícil encontrar emprego. Teremos cursos online que ensinam a criar um negócio ou relacionados com a ética no trabalho. É uma revolução ao nível educacional ter a oportunidade de chegar a pessoas que não conseguem pagar para ter mais educação.

Quando diz que é mais difícil para os jovens encontrarem um emprego, refere-se a Macau ou ao resto do mundo?
Vivi cerca de 19 anos em Pequim e, hoje em dia, independentemente se o curso foi ou não feito numa universidade de prestígio, é uma dura batalha conseguir um trabalho. Em 1999 havia um milhão de graduados, hoje teremos cerca de nove milhões. Vejo essa realidade em Macau ou em Hong Kong também.

No caso de Macau, essa dificuldade será maior, uma vez que o sector do jogo tem vindo a decrescer?
É sempre difícil prever, mas penso que sim. Se alguém tiver formação em Macau deveria ter sempre uma perspectiva internacional, e não apenas planear ficar para sempre no território. Sabemos que isso pode representar o paraíso (risos), mas também podem ficar perdidos no paraíso. Os casinos não garantem um desenvolvimento sustentável, pelo que temos visto nos últimos meses. Em primeiro lugar, é necessário ir para a China aprender mandarim, mas também ter uma perspectiva face a Hong Kong, a Portugal e à Europa, para existir uma maior pressão para que [o território] tenha um papel internacional.

Nesse sentido, o ensino superior necessita de amadurecer?
Ensinei na Faculdade de Comércio e Economia da Universidade de Hong Kong e [o ensino superior do território] tem, de facto, uma série de vantagens. Macau tem um enorme desafio de levar a cabo uma melhoria de todas as universidades. A USJ, por exemplo, tem uma ligação à Europa e tem um enorme potencial. Penso que têm de ser feitos enormes esforços, ao nível da cooperação com este mundo altamente tecnológico. Deve ainda ser estimulado o pensamento crítico e criativo. A mentalidade de trabalhar na mesma empresa para sempre já não existe, já não funciona. As escolas católicas têm um impacto enorme a esse nível, maior do que na Europa. A começar com a escola primária, e há uma grande procura, deve haver essa aposta na educação e na inspiração dos alunos a esse nível.

Acredita que os jovens de Macau perderam o interesse em estudar ciências sociais? Que razões pode apontar para isso?
Por um lado, penso que as pessoas de facto não estão interessadas nessas áreas mas, por outro, também noto um grande interesse. Temos estudantes chineses e americanos, e se na Europa quase temos de pagar para que os alunos prestem atenção ao que dizemos, aqui podemos encontrar alunos muito mais motivados, e que reúnem dinheiro para estudar. Pode haver mais motivação até. Penso que os institutos de investigação têm de explicar melhor aquilo que têm para oferecer. Há os jovens que olham constantemente para o telemóvel e temos de saber como responder a este fenómeno. Temos de ser mais sofisticados para atrair a atenção desta geração. Na minha opinião, estes cursos online que queremos promover podem ajudar, mas é sempre necessário uma interacção. Macau tem este lado multicultural que pode ajudar a criar espírito critico e criativo. É preciso preparar as pessoas para entrarem no mercado de trabalho e há muitas queixas das empresas, que consideram que os jovens não estão preparados para lidar com desafios diários e para desafiar o seu espírito crítico.


Um jesuíta com a sua missão

Antes de dirigir o Instituto Mateus Ricci, Stephan Rothlin esteve na China, onde, entre 1998 e 2002, dirigiu o Centro de Estudos Chineses em Pequim e foi professor convidado da Universidade de Renmin. Nascido na Suíça, Stephan Rothlin teve ainda uma experiência em Taipé, Taiwan, onde foi investigador na Universidade Católica Fu Jen. Voltaria à capital chinesa em 2005, onde foi presidente da consultora Rothlin International Management até 2013. Com este projecto, o também padre jesuíta desenvolveu trabalhos de consultadoria para empresas ao nível da responsabilidade social e corporativa, tanto no Continente, como em Hong Kong. No seu país natal, Stephan Rothlin estudou Economia na Universidade de Zurique e foi professor do Instituto de Gestão e Economia de Zurique.

22 Mar 2017

Centenário do padre Benjamim Videira Pires – Uma vida dedicada a Macau

Tereza Sena*

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ntendo não ser o calendário que determina ou regula a evocação, a celebração, a reprodução da memória. Mas ajuda. Sobretudo se for democraticamente gerido. Porque há que conciliar disponibilidades, recursos, oportunidades, mesmo numa era dita de informação, cada vez mais desinformada pela atoarda da ilusão de que toda ela está acessível à distância de um “click”.

A memória, a sua reprodução, o apelo que lhe fazemos são processos selectivos, e muito, todos o sabemos. Como indivíduos, cidadãos, profissionais, afiliados, amigos, precisamos, utilizamos e reproduzimos pedaços de memória(s), nela nos visitando, revisitando e representando, quer individual, quer colectivamente. Uns mais, outros menos.

E Macau é um local de memórias, de muitas diversas memórias, nem sempre partilhadas, nem sempre plenamente conhecidas, nem sempre unanimemente aceites ou reconhecidas por todos, a ela arribados de um sem número de proveniências e por outras tantas vias. Memórias nem sempre evocadas, ou dados a conhecer por aqueles que reclamam o direito à cidadania e à intervenção num espaço que também assumem como seu.

Vem tudo isto a propósito da passagem, neste 30 de Outubro, do centenário do nascimento do padre jesuíta Benjamim Videira Pires (1916-1999), um homem que dedicou a sua vida a Macau, onde permaneceu de 1949 a 1998, e nela se afirmou pela acção educativa, criando uma instituição de ensino de elite, vocacionado para a instrução da população chinesa, mas também pelo contributo intelectual honesto, rigoroso, e marcante nas décadas de 50 a 80 do século passado.

Antropologia e outros estudos

Ensaísta, versou sobretudo temas antropológicos, como é o caso da sua conhecida obra Os Extremos Conciliam-se (1988), que foi vertida para chinês; e históricos, de que destaco a história da Companhia de Jesus, Ordem na qual ingressara jovem, em 1932, e o estudo da actividade marítima de Macau. Recorreu para isso a fontes primárias, pesquisando e disponibilizando documentos até então inéditos, anotando-os e comentando-os profusa e cuidadosamente, deixando obra de relevo, em grande parte ainda hoje dispersa. Mas foi também poeta, dramaturgo, jornalista e interventor político, para além de pedagogo e de sacerdote, naturalmente.

Menos conhecida é actividade de Videira Pires em prol do estudo, classificação e perservação do património edificado de Macau, realizada no seio da Comissão de Estudo do Património Artístico e Histórico de Macau, criada em 1960 e reformulada em 1962, que integrou, sobre o que lavrará relatório em 1963. Coube-lhe o estudo detalhado das igrejas e cemitérios antigos (o que constituí uma novidade), o que é testemunhado pela bibliografia que produziu neste domínio, onde pontuam, entre outros, textos sobre vestígios e achados arqueológios. Também será chamado a integrar a comissão incumbida da recuperação e reorganização do espólio do Arquivo do Leal Senado, após os incidentes do 1,2,3, em 1966 — onde aliás teve um papel activo na defesa das Escolas Católicas de Macau, cujo Conselho secretariava —, embora a tarefa tenha sido maioritariamente realizada por Luís Gonzaga Gomes (1907-1976), à época (1962-1967) director da Biblioteca Pública Municipal, situada no edifício da mesma câmara de Macau, como se sabe.

É certo que, de quando em vez, o nome de Videira Pires vem sobretudo à baila nos escritos de António Aresta e de Jorge Rangel, um dos poucos a relenbrarem o centenário e a promover, através do Instituto Internacional de Macau, discreta sessão assinalando a efeméride e relembrando o homem, o padre e o intelectual, Benjamim Videira Pires, na qual foi oradora Beatriz Basto da Silva. Tratou-se, tanto quanto julgo saber, da única homenagem institucional que a memória e o legado de Benjamim Videira Pires suscitaram, pelo menos em Macau. Não que os seus méritos não tenham sido reconhecidos, entre outros, pela Academia Portuguesa de História, que o fez sócio correspondente em 1988, quando já era sócio-efectivo da Academia de Marinha de Lisboa.

É de lamentar.

Relembro a forma esforçada e proveitosa como a Biblioteca Central de Macau, do Instituto Cultural, assinalou a passagem do 90º aniversário de Monsenhor Manuel Teixeira (1912-2003) com iniciativas que se prolongaram até 2004, tal como aconteceu com outras instituições, ou grupos ad-hoc, em Portugal.

Manuel Teixeira foi indubitavelmente o mais mediático e célebre de todos os estudiosos de Macau nela residentes do Século XX. Não pretendendo aqui estabelecer comparações entre as personalidades, contributos e legados destes dois homens de vulto, Teixeira e Videira Pires, que partilharam interesses comuns, conviveram, colaboraram (rivalizando um pouquinho é certo, de quando em vez), trilhando caminhos idênticos e atravessando os mesmos tempos. Apenas pretendo sublinhar que não pode a nossa memória colectiva, não podem as nossas instituições, não devemos nós pautar-nos pelo brilho das luzes da ribalta e pelo volume do eco com que esses nomes soam na cidade a partir de além-fronteiras.

Macau tem uma palavra a dizer sobre o valor e a utilidade destes e de outros legados, deve relembrá-los e ensiná-los como homens de Macau e do seu património, cultural, histórico, literário e historiográfico, para nos ficarmos por aqui.

Quero com isto dizer que instituições públicas como o Instituto Cultural e a sua Biblioteca, ou privadas como a Companhia de Jesus e o seu Instituto Ricci de Macau, estabelecimentos de ensino superior como, por exemplo, a Universidade de S. José, entre outros, e para apenas citar os mais óbvios, deviam uma palavra e um gesto de atenção a Benjamim Videira Pires.

Ignoro se o seu tão querido colégio, rebaptizado de “Mateus Ricci” em detrimento de “Melchior Carneiro”, e não obstante todos os tristes percalços por que passou nos finais dos anos 1990, relembrou ou não o homem que com tanto esforço e dedicação o criou em 1961.

Por fazer

Mas, para além da evocação e da homenagem, muito há a fazer:

Urgentemente ― não sou a primeira a dizê-lo, mas nunca será de mais repeti-lo ―, a inventariação e localização da obra de Benjamim Videira Pires, sobretudo a que se encontra dispersa pelas muitas revistas e jornais que dirigiu ou onde colaborou, assim acontecendo também com as inúmeras entradas que preparou para a Enciclopédia Luso-Brasileira, da editora Verbo. E, neste campo, a Biblioteca Central podia e devia oferecer o seu prestimoso contributo, na pesquisa de todo este acervo, tal como o fez para Monsenhor Manuel Teixeira, actualizando o trabalho que iniciou em 1992 e desenvolveu em 1997, se bem que ainda bastante lacunarmente, como reconheceu o mesmo Jorge Arrimar, que à época dirigia a instituição e assinou as notas introdutórias desses dois pequenos catálogos.

Há ainda a considerar a reunião de manuscritos, alguns eventualmente inéditos, levantando-se aqui a magna questão da localização presente do espólio(s) do próprio Videira Pires, sobre o que não me detenho, a que acresce toda a informação iconográfica e registo audio-visual que lhe respeitem.

Depois, a reunião em volume(s) dessa obra dispersa, e a reedição de alguns dos seus livros, hoje já inacessíveis, sem pôr de lado, a eventual tradução para língua chinesa, ou até inglesa, do que se considerar mais relevante para o desenvolvimento dos “estudos de Macau”, em que se empenham grupos e instituições, domínio em que o contributo de Benjamim Videira Pires tem lugar de direito próprio.

Finalmente, o próprio estudo da vida, obra e pensamento de Benjamim Videira Pires, na suas diversas vertentes, para o que já dispomos de textos biográficos, mais ou menos emotivos, como é o caso de P. Benjamim Videira Pires, Meu Irmão, da autoria de Francisco Videira Pires, dado à estampa pelo Instituto Internacional de Macau em 2011, e alguns contributos de António Aresta, de que destaco “A Identidade Cultural de Macau no Pensamento de Benjamim Videira Pires, SJ”, incluso no seu livro, Macau Histórico Cultural, que acaba de ser dada à estampa pela editora Livros do Oriente. Mas há certamente muito a dizer sobre o pedagogo, o pensador, o mediador e o político.

Uma ressalva final, esta sim, contendo talvez alguma novidade, e que reputo da maior importância. Qualquer edição ou reedição da obra de Benjamim Videira Pires deverá ser cotejada com os exemplares dessas mesmas obras que lhe pertenceram já que, atendendo ao rigor e seriedade intelectual que o caracterizavam, tudo anotava, corrijia, acrescentava, mesmo após a publicação dos textos, o que, naturalmente, merece e é de justiça ser considerado, para além de ser urgente recuperar. E isto enquanto tivermos acesso àquela que foi, pelo menos em parte, a sua biblioteca pessoal ou/e da residência dos jesuítas (outro tema a merecer a atenção de especialidade, tanto mais que anotava e criticava profusamente o que lia e consultava), e que integra hoje o espólio do Instituto Ricci de Macau.

Exemplifico apenas com um conjunto de textos, profusamente documentados, que o nosso autor preparou sobre os “Jesuítas e Macau”, tema de investigação que o ocupou desde cedo mas que terá ganho maior fôlego quando pretendia assinalar a passagem do IV centenário do estabelecimento dos inacianos na cidade, em 1964, dando então à estampa um pequeno volume sobre o assunto.

Sabe-se que o Padre Videira Pires preparava a edição de vários volumes sobre o tema, o que tudo já estaria mais ou menos delineado em 1994, tratando-se muito possivelmente da reunião dos artigos que vinha publicando desde os inícios da década de 1950 nas páginas da “Religião e Pátria”, do “Boletim Eclesiástico da Diocese de Macau”, da Enciclopédia Luso-Brasileira, da “Brotéria” e noutras sedes.

Por onde andará tal trabalho desconheço, mas talvez valesse a pena indagar. O padre Videira Pires teria certamente em mente uma versão revista e anotada desses textos, contemplando as aludidas correcções, acrescentos e actualizações bibliográficas, que atrás referi e de que junto exemplos que bem atestam da relevância do legado que temos entre mãos e de que urge cuidar.

* Historiadora


Um homem na cidade

[dropcap]C[/dropcap]hegou a Macau em 1948 e aqui passou grande parte da vida. “Foi um homem de Igreja, mas foi um homem com impacto social”, diz Luís Sequeira. É assim que o jesuíta começa por descrever Benjamim António Videira Pires, um retrato que “não é fácil de fazer para conseguir ser objectivo”. É que Videira Pires, cujo centenário do nascimento se assinalou ontem, 30 de Outubro, foi um homem com várias dimensões.

Transmontano nascido em Mirandela, saiu de casa cedo, como acontecia à época, para estudar. Depois de passar pelo seminário em Guimarães, entrou na Companhia de Jesus, em 1932. Quatro anos depois, concluiu o curso superior de Humanidades Clássicas e de Literatura Portuguesa. Já em Braga, estudou Filosofia e, em Granada, Teologia. A ordenação enquanto sacerdote aconteceu em 1945. Três anos depois chegou a Macau.

Luís Sequeira conta que Videira Pires se “impunha pelo seu valor intelectual e sensibilidade aos problemas da sociedade”. Foi este lado do jesuíta que o levou a ser voz activa na Macau administrada então por Portugal. “Mantinha num jornal uma série de textos chamada ‘Calçada das Verdades’, escrevia artigos de opinião”, explica. “Sendo um homem da Igreja, era um homem com impacto e tinha presença na sociedade de Macau. Ao mesmo tempo, recordo que era uma pessoa com um temperamento delicado, respeitoso, com muito boas relações humanas, expressando-se até na recolha de fundos, ao nível internacional, para as suas obras” no território.

À chegada a Macau, Benjamim Videira Pires estudou chinês e foi professor do Liceu Nacional Infante D. Henrique, além de exercer funções pastorais. “A sua grande obra foi o Instituto Melchior Carneiro – foi ele que lançou esse grande colégio – embora na parte final da sua vida tivesse sido transformado no Colégio Mateus Ricci”, contextualiza Luís Sequeira.

O padre jesuíta faz referência à vertente das humanidades e literatura que Videira Pires cultivava: deixou obra poética, “era um homem sensível, delicado, era culto, lançou-se na poesia e fazia-o bem”. Depois, há a dimensão da história, “com muita repercussão ao nível internacional, com pequenos artigos ligados à presença portuguesa no Oriente – sempre manteve esta linha – e teve uma postura que lhe granjeou respeito no campo da história”. Luís Sequeira repara que, “por vezes, era demasiado patriótico, embora fosse uma pessoa com o sentido da interculturalidade”.

A espiritualidade é outro lado recordado: “Foi sempre um homem muito dedicado, atento à comunidade cristã, particularmente à de língua portuguesa”. Benjamim Videira Pires deixou Macau em Agosto de 1998. Morreu no ano seguinte em Portugal.

POR Isabel Castro

31 Out 2016

UM | Descoberta “ajuda a entender” influência da Ciência Ocidental na China

Um estudo recentemente descoberto por um professor da UM pode dar um novo entendimento sobre como a Ciência Ocidental foi introduzida na China durante a Dinastia Ming. O documento foi descoberto na Biblioteca Real da Ajuda, em Lisboa

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]ntónio Vasconcelos de Saldanha, professor da Universidade de Macau (UM), descobriu um documento que poderá ajudar a perceber como é que Ciência Ocidental chegou à China. A recente descoberta foi anunciada durante uma conferência na Universidade de Tubingen, na Alemanha, e remete para um diário pessoal do jesuíta Sabatino Ursis.
Este padre foi um dos sucessores do Padre Matteo Ricci, geógrafo, cartógrafo e cientista renascentista italiano que esteve em Macau e que era considerado uma importante figura da corte na dinastia Ming. Sabatino Ursis trabalhou em parceria com Matteo Ricci e chegou mesmo a escrever um livro em Chinês.
O manuscrito recém descoberto reforça como Sabatino Ursis discutia já problemas práticos e questões teóricas relacionadas com a Hidrologia e a gestão hídrica na sua obra. Aliás, o mesmo já tinha publicado em Pequim, em 1612, um tratado dedicado ao tema, intitulado “Hydromethods of the Great West”. Na altura, a divulgação foi patrocinada por “importantes figuras da dinastia” Ming, como indica um comunicado da UM, tendo mesmo um prefácio de Xu Guangqi – importante figura no intercâmbio cultural – antes de ser apresentado ao imperador Wanli.
Segundo a UM, este estudo pode dar uma perspectiva mais abrangente de como os padres jesuítas influenciaram a introdução dos conhecimentos científicos ocidentais deste lado do mundo.

De Portugal para cá

Este manuscrito pertencia aos arquivos jesuítas em Macau, mas encontrava-se agora caído no esquecimento na Biblioteca Real da Ajuda, em Lisboa, onde foi redescoberto e identificado pelo professor António Vasconcelos de Saldanha.
O académico é especialista na História de Macau e da Companhia de Jesus, na China. O seu trabalho está a ser desenvolvido em associação com outros projectos de pesquisa “importantes e inovadores”, como indica a UM, sobre Ciência, Tecnologia e Medicina na dinastia Ming.
Os jesuítas são tidos como uma referência no mundo das ciências e na divulgação de artigos científicos. Existem nomes sobejamente conhecidos, como é o caso de João Rodrigues, na área da Geografia, e Manuel Dias com o estudo “Uma explicação da Esfera Celestial”, datado de 1615. H.M.

4 Ago 2016

Ningbo e a cidade de Liampó

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]a província de Zhejiang encontramos a cidade de Ningbo, situada no Delta do Rio Yangtzé. Com uma estratégica posição na costa marítima a meio da China, usufrui de três portos, o Beilun banhado por um canal de águas profundas, o Zhenhai e o antigo porto de Ningbo, equipado para petroleiros e outros navios de grande porte.

Se a razão da visita é ser Ningbo a última cidade do Grande Canal e encontrar-se na lista das cidades chinesas ligadas à antiga Rota Marítima da Seda, confesso trazer a curiosidade desperta pela Peregrinação de Fernão Mendes Pinto e Tratado das Coisas da China do Frei Gaspar da Cruz, cujas informações recolhidas em meados do século XVI, me colocavam a imaginação às voltas ao pretender entender como seria Liampó, “estabelecimento mercantil nas ilhas de Shuang-hsü”, como o classifica Rui Loureiro numa das notas redigidas no Tratado das Coisas da China. Por isso, aqui não vamos escrever sobre a actual Ningbo e seus arredores, nem da cidade esplendorosa desde a dinastia Tang até à Song do Norte, que com o nome de Mingzhou foi um dos principais portos da costa chinesa, o que continuou na dinastia mongol dos Yuan. Com a abertura dos caminhos terrestres, a cidade começou a perder importância e caída no esquecimento, quando em meados da dinastia Ming, o , dominicano Frei Gaspar refere, os portugueses “a invernar nas ilhas de Liampó e estarem nelas tanto de assento e com tanta isenção que lhes não faltava mais que ter forca e pelourinho”.

Tal estabelecimento inicial dos mercadores portugueses em Liampó terá ocorrido em 1540 e segundo Rui Loureiro, Liampó tanto designava nas nossas fontes quinhentistas a cidade de Ningpo e área circundante, como o estabelecimento português que floresceu entre 1540 e 1549 em Shuang-hsü, uma das ilhas do arquipélago de Chu-san, no litoral fronteiro a Ningpo.

Complementa Victor F. S. Sit, ” Em Shuangyu, os portugueses envolveram-se com piratas chineses e japoneses (wokou) em negócios ilícitos de elevados lucros, dando, assim, origem a uma colónia portuguesa, a segunda maior da Ásia, de importância apenas inferior à de Malaca. Lá viviam 10 mil comerciantes, entre os quais 1200 portugueses. Havia mil casas, uma municipalidade, uma assembleia, um tribunal, várias igrejas e um hospital. Esta povoação mais parecia um estado dentro da China”.

A muy nobre e sempre leal cidade de Liampó

Ainda antes do estabelecimento em Macau dos portugueses, segundo Montalto de Jesus refere, “da leitura de outro relato contemporâneo, a famosa Peregrinação de Mendes Pinto, ressalta que Liampó foi sempre considerada como a mais bonita, a mais rica e a melhor abastecida colónia que os portugueses tiveram na Ásia – um município oficializado como cidade portuguesa e intitulado, nos testamentos e escrituras, Esta muy nobre e sempre leal cidade de Liampó, pelo Rey nosso Senhor, como se se situasse em Portugal. A colónia atingiu o auge da sua prosperidade depois da descoberta do Japão (ocorrida entre 1542 e 1543). O comércio, calculado em mais de três milhões de cruzados de ouro, rendia três ou quatro vezes o capital investido. A comunidade era de mil e duzentos portugueses e mil e oitocentos orientais, que por ali prosperavam sem ser molestados pelos piratas. Ao Sul, no entanto, os portugueses eram muitas vezes vitimados e o comércio entre Malaca e Liampó disso se ressentia fortemente. Certa vez calhou a António de Faria, que arruinado resolveu vingar-se. Com o apoio dos seus companheiros equipou uma expedição contra o seu saqueador, o famoso corsário Coja Acém, terror da costa chinesa. A partir do Sião, Faria esmagou muitos piratas poderosos – e uma das vitórias impressionou tanto os chineses que estes lhe enviaram uma deputação, oferecendo-lhe um tributo de vinte mil taéis e solicitando a sua protecção como rei dos mares. Ele de boa vontade aceitou e emitiu salvos-condutos, pondo como condição que os portugueses fossem tratados de forma fraternal pelos chineses sempre que se encontrassem.” (…) “a expedição teve a seguir a fatalidade de naufragar numa ilha deserta – e a perseguição teria terminado aí não fosse o apresamento de um barco que casualmente lá aportou para se restabelecer de água. Então, com a frota de um pirata chinês, Faria terá eventualmente conseguido alcançar, derrotar e matar Coja Acém e a sua horda, não dando quartel nem aos feridos e doentes encontrados em terra. A frota vitoriosa, carregada de ricos espólios, perdeu-se parcialmente num tufão”. Tal terá ocorrido por volta de 1541 e é preciso lembrar que por essa altura, e desde 1521, após a primeira das duas batalhas navais ocorridas entre navios mercantes portugueses e a armada chinesa, as autoridades chinesas decretaram a expulsão dos portugueses e por isso, eram estes ali considerados piratas.

Os piratas japoneses

Tributários da China no século V a.n.E., durante a dinastia Zhou do Leste, os japoneses ao longo dos tempos até à dinastia Ming continuaram a receber do erudito país constantes influências, tanto culturais como religiosas, de onde lhes veio na dinastia Tang, o Budismo, o modelo com que estruturaram a sua hierarquia Imperial, a arquitectura das casas e muitas outras influências. Já na dinastia Yuan, por os japoneses não quererem em 1266 ser tributários da dinastia mongol, em 1274 e 1281 foram invadidos pelas tropas de Kublai Khan. Nessas duas vezes, na primeira invasão os 30 mil mongóis e coreanos foram repelidos por uma tempestade e na última, com 140 mil soldados, “ao fim de dois meses de luta, nova tempestade – Kamikaze, vento divino – dispersa a frota invasora. Novamente Kubilay se prepara para tomar as ilhas, organizando um quartel-general para o ataque em 1293. A sua morte em 1294 susta esta tentativa. O regente dos Hojo, mantém, no entanto, o alerta militar até 1314”, segundo Gonçalo Mesquitela. Estas tentativas mongóis de invasão levaram os japoneses à construção de embarcações, ficando assim guarnecida a capacidade marítima do Japão. Anteriormente e desde longo tempo, “o comércio exterior japonês estivera entregue a navegadores coreanos e chineses. A ameaça mongol, como dissemos, desenvolveu a classe marítima nipónica. Nas décadas que se lhe seguiram, instituíram-se numerosas comunidades japonesas na costa, (…), aventurando-se depois no mar da China”, como refere Mesquitela. E com ele continuando, “Nos princípios do século XIV, os japoneses começaram as actividades de pirataria e saque das costas, tendo daí advindo para estes barcos japoneses o nome de Wako, oriundo da bandeira invocadora do deus da Guerra que ostentavam. Este carácter de pirata resultava também da clandestinidade a que as autoridades da Coreia e da China obrigavam o comércio marítimo, considerado indesejável, pelo que o pretendiam suprimir ou, pelo menos, restringir fortemente”.

Logo desde o início da dinastia Ming, em 1373 o Imperador Hong Wu (1368-1398) “mandava ao Japão dois monges como seus enviados, pedindo que cessassem as actividades Wako contra a navegação e as costas chinesas”, Mesquitela e continuando com a sua ideia, em 1401 o Japão tornou-se de novo tributário da China, prometendo acabar com os wako a troco de uma viagem de dez em dez anos. Nesse decénio houve seis. “Com um acordo comercial mais liberal, recomeçou o comércio em 1432, sob a mesma base de uma embaixada decenal, mas com mais navios”. Por essas ligações de barco receberam então os japoneses a influência chinesa nas artes e na técnica.

Navegação marítima interdita

Após a chegada da última das sete viagens do Almirante Zheng He, em 1433 o Imperador Ming, Xuande (Zhu Zhanji, 1425-35), “desencorajara abertamente quaisquer ligações marítimas de chineses com o estrangeiro, instituindo penas severas para os infractores, que, no entanto, nunca deixaram de se multiplicar”, segundo Rui Manuel Loureiro. E continuando com Frei Gaspar: “E ainda ao longo da costa, nem de uma parte para outra na mesma China, lhe é lícito ir sem certidão dos loutiás da terra donde partem, na qual se relata para onde vai e o negócio a que vai, e os sinais de sua pessoa e a idade que tem. Se não leva esta certidão é degradado para as partes fronteiras”. (Existiam os passaportes internos para os chineses viajarem dentro na China). “O mercador que leva fazenda leva certidão da fazenda que transporta e como pagou direitos dela. Em cada alfândega que há em cada província paga uns direitos, e não os pagando, perde a fazenda e degradam-no para as partes fronteiras.

Sem embargo das sobreditas leis, não deixam alguns chineses de navegar para fora da China a tratar; mas estes não tornam mais à China. Destes vivem alguns em Malaca, outros no Sião, outros em Patane e assim por diversas partes do Sul estão espalhados alguns destes que saem sem licença. Pelo que destes que já vivem fora da China, alguns tornam em seus navios a navegar para a China debaixo do amparo dos portugueses. E quando hão-de despachar os direitos de seus navios, tomam um português seu amigo a quem dão algum interesse, para que em seu nome lhes despache os direitos. Alguns chineses, desejando ganhar o remédio para sua vida, saem mui escondidos nestes navios destes chineses a contratar fora e tornam mui escondidos que o não saibam nem seus parentes, porque se não divulgue e não incorram na pena que os tais têm. Pôs-se esta lei porque achou el-rei da China que a muita comunicação das gentes de fora lhe podia ser causa dalguns alevantamentos, e porque muitos chineses, com achaque de navegarem para fora, se faziam ladrões e salteavam as terras de longo do mar”, segundo escreveu o Frei Gaspar da Cruz.

Foi após os problemas ocorridos entre 1521 e 1522 e sobretudo pelos desmandos de Simão de Andrade, que levaram à expulsão dos navegantes portugueses da costa chinesa, que estes chineses a viver fora da China os encaminharam “a que fossem a Liampó fazer fazenda, porque não há naquelas partes cidades nem vilas cercadas, senão muitas e grandes aldeias ao longo da costa, de gente pobre, a qual folgava muito com os portugueses, porque lhes vendiam seus mantimentos, com que faziam seu proveito. Nestas aldeias eram estes mercadores chineses que com os portugueses navegavam aparentados e por serem conhecidos recebiam ali por sua causa melhor os portugueses, e por eles negociaram com os mercadores da terra trouxessem suas fazendas a vender aos portugueses. E como estes chineses que andavam entre os portugueses eram os que terçavam (interceder a favor) entre os portugueses e os mercadores da terra nas compras e vendas, tinham deste negócio mui grande proveito. Os loutiás pequenos de longo do mar recebiam também mui grandes proveitos deste trato, porque recebiam grossas peitas de uns e doutros, pelos deixarem contratar e lhes deixarem trazer e levar as fazendas. Pelo que esteve este trato entre eles muito tempo encoberto d’el-rei e dos loutiás grandes da província.

Depois de se haverem feito por algum tempo assim encobertamente as fazendas em Liampó, foram-se pouco a pouco estendendo os portugueses e começaram a ir fazer fazenda ao Chincheo e às ilhas de Cantão. E também já outros loutiás, pelas peitas, os iam consentindo por todas as partes, pelo que chegaram alguns portugueses com a contratação até além de Nanquim, que é já muito longe de Cantão, sem nunca el-rei ser sabedor deste trato. Sucederam as contratações de maneira que começaram os portugueses a invernar nas ilhas de Liampó”, Tratado das Coisas da China de Frei Gaspar da Cruz.

Em 1542/3 chegaram os portugueses ao Japão e “Liampó tornou-se numa importante base comercial para os Portugueses nas viagens para o Japão, que aí desafiavam todas as ordens proibitivas em vigor para o comércio externo. Um incipiente comércio popular, no dizer dos governantes, e o comércio clandestino, agravaria ainda mais o problema da pirataria japonesa”, segundo referem Jin Guo Ping e Wu Zhiliang.

29 Jul 2016