Poemas de Jacques Prévert

Jacques Prévert (1900-1970) foi um poeta e roteirista popular da França. Participou do movimento Surrealista juntamente com o escritor Raymond Queneau e com o roteirista Marcel Duhamel, sendo, mais tarde, um dissidente deste grupo. Muitos de seus poemas foram cantados por Marianne Oswald, Yves Montand e Edith Piaf. Os poemas aqui seleccionados foram retirados do livro Parole (1946) e são apresentados em português do Brasil.

 

Tradução de Luís Márcio Silva* – * Escritor, tradutor e editor da Revista Piparote, https://revistapiparote.com.br/, com a qual o Hoje Macau inicia assim uma colaboração

 

 

O BUQUÊ

O que faz aqui, garotinha,

Com estas flores recém-cortadas?

O que faz aqui, jovem menina,

Com essas flores, essas flores secas?

O que faz aqui, bela mulher,

Com essas flores que murcham?

O que faz aqui, decrépita mulher,

Com essas flores que morrem?

Estou à espera pelo triunfante.

 

LE BOUQUET

Que faites-vous là petite fille

Avec ces fleurs fraîchement coupées

Que faites-vous là jeune fille

Avec ces fleurs ces fleurs séchées

Que faites-vous là jolie femme

Avec ces fleurs qui se fanent

Que faites-vous là vieille femme

Avec ces fleurs qui meurent

J’attends le vainqueur.

 

NA FLORICULTURA

Um homem entra numa floricultura

E escolhe umas flores

A florista embrulha as flores

O homem leva a mão ao bolso

Para pegar o dinheiro

O dinheiro para pagar as flores

Mas subitamente

ele coloca

A mão sobre o coração

E cai

No momento em que cai

As moedas rolam pela terra

E depois tudo

Cai ao mesmo tempo

as flores

o homem

o dinheiro

E a florista fica ali

Com as moedas que rolam

Com as flores que murcham

Com o homem que morre

Tudo isto é muito triste evidentemente

E é preciso que ela faça alguma coisa

A florista

Mas ela não sabe o que fazer

Não sabe ela

Por onde começar

Há tantas coisas por fazer

Com o homem que morre

Com as flores que murcham

E com as moedas

as moedas que rolam

Que não param de rolar

CHEZ LA FLEURISTE

Un homme entre chez une fleuriste

et choisit des fleurs

la fleuriste enveloppe les fleurs

l’homme met la main à sa poche

pour chercher l’argent

l’argent pour payer les fleurs

mais il met en même temps

subitement

la main sur son cœur

et il tombe

En même temps qu’il tombe

l’argent roule à terre

et puis les fleurs tombent

en même temps que l’homme

en même temps que l’argent

et la fleuriste reste là

avec l’argent qui roule

avec les fleurs qui s’abîment

avec l’homme qui meurt

évidemment tout cela est très triste

et il faut qu’elle fasse quelque chose

la fleuriste

mais elle ne sait pas comment s’y prendre

elle ne sait pas

par quel bout commencer

Il y a tant de choses à faire

avec cet homme qui meurt

ces fleurs qui s’abîment

et cet argent

cet argent qui roule

qui n’arrête pas de rouler.

 

A MENSAGEM

A porta que alguém abriu

A porta que alguém fechou

A cadeira onde alguém se sentou

O gato que alguém acariciou

A fruta que alguém mordeu

A carta que alguém leu

A cadeira que alguém derrubou

A porta que alguém abriu

A estrada onde alguém ainda corre

O bosque que alguém atravessa

O rio onde alguém se joga

O hospital onde alguém morreu

LE MESSAGE

La porte que quelqu’un a ouverte

La porte que quelqu’un a refermée

La chaise où quelqu’un s’est assis

Le chat que quelqu’un a caressé

Le fruit que quelqu’un a mordu

La lettre que quelqu’un a lue

La chaise que quelqu’un a renversée

La porte que quelqu’un a ouverte

La route où quelqu’un court encore

Le bois que quelqu’un traverse

La rivière où quelqu’un se jette

L’hôpital où quelqu’un est mort.

VERÁ O QUE VERÁ

Uma moça nua nadando no mar

Um homem barbudo andando sobre a água

Onde está a maravilha das maravilhas

Do milagre anunciado acima?

 

VOUS ALLEZ VOIR CE QUE VOUS ALLEZ VOIR

Une fille nue nage dans la mer

Un homme barbu marche sur l’eau

Où est la merveille des merveilles

Le miracle annoncé plus haut ?

DOMINGO

Entre os canteiros de árvores na avenida Gobelins

Uma estátua de mármore me conduz pela mão

Hoje é domingo, os cinemas estão lotados,

Os pássaros nos galhos observam os humanos

E a estátua me abraça, mas ninguém nos vê,

Apenas uma criança cega que nos aponta os dedos.

DIMANCHE

Entre les rangées d’arbres de l’avenue des Gobelins

Une statue de marbre me conduit par la main

Aujourd’hui c’est dimanche les cinémas sont pleins

Les oiseaux dans les branches regardent les humains

Et la statue m’embrasse mais personne ne nous voit

Sauf un enfant aveugle qui nous montre du doigt.

PARA O MEU AMOR

Eu fui ao mercado de pássaros

E lhe comprei pássaros,

Meu amor.

Eu fui ao mercado de flores

E lhe comprei flores,

Meu amor.

Eu fui ao ferro-velho

E lhe comprei correntes

Pesadas correntes

Para ti,

Meu amor.

E depois fui ao mercado de escravos

E procurei por ti

Mas não lhe encontrei,

Meu amor.

POUR TOI MON AMOUR

Je suis allé au marché aux oiseaux

Et j’ai acheté des oiseaux

Pour toi

mon amour

Je suis allé au marché aux fleurs

Et j’ai acheté des fleurs

Pour toi

mon amour

Je suis allé au marché à la ferraille

Et j’ai acheté des chaînes

De lourdes chaînes

Pour toi

mon amour

Et puis je suis allé au marché aux esclaves

Et je t’ai cherchée

Mais je ne t’ai pas trouvée

mon amour

7 Mar 2022

O leme secreto

Num dos muitos inspirados serões da rue du château em Paris – corriam os anos vinte do homónimo século – Marcel Duchamp, Jacques Prévert e Yves Tanguy inventarem o chamado “cadáver esquisito”. Cada um escreveu uma sequência de palavras, antes de enrolar a folha e passar ao outro. Resultado: um enunciado em que se perdia a noção de autor – anátema que perseguiu boa parte das teorias do século XX -, em que se parodiava a noção de controlo e em que, finalmente, se atingia uma expressão de desejado vínculo espontâneo. Poucos dias se passaram e Yves Tanguy com a ajuda de André Masson transpuseram a ideia para imagens. 
 
Seis décadas depois, conheceste em Amesterdão um artista polaco chamado Henryk Gajewsky que te convidou a participar num projecto intitulado “networking”. A ideia baseava-se numa gravação em cassete que rodava entre as moradas de vários artistas. Cada um gravava o que achava por bem – voz, leituras, sons de paisagens, misturas, ecos, palavras, narrativas curtas, devaneios, etc. – e enviava ao seguinte que constava da lista. O trajecto, sempre inacabado, viria depois a ser exposto com apoio de material visual (lembras-te de um violoncelo em que o arco tinha luz e de uma miscelânea final que faria lembrar um desengonçado concerto da Meredith Monk). 
 
No caso do cadáver esquisito, o diagnóstico situava os males da modernidade (imposição de alto controlo a partir das máquinas, da violência, da velocidade e das linguagens técnicas) e virava-se contra eles ao jeito fugidio de todas as vanguardas da época. No caso do networking de Gajewsky, a acção enfatizava bem mais a ininterrupta interacção em rede e menos os efeitos da linguagem, entendidos como arma fosse contra o que fosse. O resultado era e foi, neste último caso, uma surpresa sem carga de manifesto, mas tão-só de júbilo estético. E isto apesar de Gajewsky ser, na altura, estávamos nos derradeiros anos da guerra fria, um exilado político. 
 
Os dois casos aqui evocados ilustram dois modos de nomadismo que marcaram o século XX. Um primeiro instrumental e contestatário e um segundo essencialmente paródico (e capaz de assimilar e de truncar tudo o que as vanguardas haviam produzido até ao final dos anos setenta). A identidade do século XX como que avançou de múltiplas resistências a poderes muito claros (violentíssimos e verticais) para a era do paradoxo – que chega até aos dias de hoje – em que os poderes se diluem e avolumam, organizando-se também eles em rede. 
 
Tens razão quando afirmas que o poder é, hoje em dia, uma espécie de polifonia: um vasto conjunto de vozes que irrompe de todo o lado, não se detectando, na maior parte das vezes, de onde provém e para onde segue. É uma toada que desejaria subjugar ou imobilizar tudo o que mexe e que se impregna em todos nós, pobres mortais. Como escreveu Barthes, na sua famosa Lição (1977), é discurso de poder todo aquele “que engendra a culpa e, por conseguinte, a culpabilidade daquele que o ouve”. Os poderes fazem parte da teia humana. Eles são o grande parasita do maior predador do planeta, o que quer dizer que passaram a estar muito para além das galáxias políticas e das (muitas) redomas dos costumes. Até estas linhas, dirás tu a sorrir, serão um pequeno apêndice de poder. 
 
Hoje tudo se tornou em cadáver esquisito: as imagens que se atropelam na net, a informação e as suas “fake news”, o constante palimpsesto publicitário e até mesmo as contaminações pandémicas. E a arte passou a ser – sei que é o que pensas – uma recolecção em viagem que procura atravessar e radiografar estes vaivéns sem fim, tentando que as suas marcas falem por si. E o que restará, por fim, à literatura? Dirás: ser o leme secreto que há-de incitar os resíduos de todas estas vastas operações a reorganizarem-se no seu próprio silêncio.

13 Mai 2021