Vistos Gold | Investigadoras dão conta das mudanças de perfil do investidor chinês

A socióloga Sofia Gaspar entende que surgiu, nos últimos anos, um novo perfil de investidor chinês através da política dos vistos gold. Outro paradigma novo, é o residente de Hong Kong que compra casa em Portugal como “segunda opção”, sem se mudar de imediato. As conclusões constam de um novo livro, editado por Sofia Gaspar e Irene Rodrigues, sobre a comunidade chinesa em Portugal e no espaço lusófono

 

Quem são hoje os chineses que investem hoje em dia em Portugal através de vistos gold? Anos depois da criação de uma política de captação de investimento no sector imobiliário, que muitas críticas têm gerado junto da classe política portuguesa, uma nova realidade emerge com uma classe média/alta que sai da China para fugir à poluição ou para inscrever os filhos num sistema de ensino europeu.

Para a socióloga Sofia Gaspar, ligada ao Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), o investimento pela via dos vistos Gold “é um fenómeno cada vez mais diversificado e mais complexo do que alguns partidos políticos querem fazer crer”. A investigadora entrevistou nos últimos meses investidores chineses para um trabalho académico, ainda por publicar, e assegura que este fenómeno “contraria muito a ideia existente de que entre os requerentes de vistos gold existe apenas um grupo investidores que compra casas para investir e que está muitas vezes associado à corrupção internacional”.

Desta forma, “há uma heterogeneidade de perfis que está muito ligada à procura de cidadãos chineses por estilos de vida no Ocidente”. “Não digo que não exista a vontade de aceder à cidadania ou residência privilegiada em relação a outros imigrantes económicos, porque é evidente que existe. Uma pessoa que tenha 500 mil euros para viver em Portugal, investindo, tem esse privilégio económico e financeiro. E é evidente que há desigualdade no acesso à residência legal; mas penso também que não podemos apenas ver os vistos gold como uma ‘simples lavagem de dinheiro’. É um fenómeno muito mais complexo do que aparenta ser”, acrescentou.

Sofia Gaspar e a antropóloga Irene Rodrigues, do Instituto do Oriente, editaram recentemente um livro que aborda os vistos gold ao longo de vários capítulos. “A presença da China e da diáspora chinesa em Portugal e nos territórios de língua portuguesa” é editado pela Brill e conta a história da emigração chinesa desde os primórdios do século XX, ao longo dos vários fluxos que foi conhecendo.

Mães deixam empregos

O trabalho de campo realizado por Sofia Gaspar até à data visa compreender as motivações dos investidores chineses ao optarem por Portugal. Alguns compram casas como investimento, com o objectivo de arrendamento, mas tem surgido ultimamente “um outro grupo de pessoas, não falado e descrito, e que os meios de comunicação social não incluem, e muito menos os dirigentes políticos que muitas vezes usam os vistos gold para fins partidários, que são os cidadãos de uma classe média privilegiada”.

Estes “têm capacidade económica e vêm para Portugal essencialmente para educar os filhos num ambiente europeu e ocidental, e eventualmente para ‘fugirem’ de uma certa degradação ecológica e da poluição que existem em algumas cidades chinesas”.

Sofia Gaspar confessa ter ficado surpreendida com estas motivações, “referentes a um melhor estilo de vida em países mais relaxados, onde se saboreia a vida de uma forma mais lenta”.

Ao contrário da comunidade chinesa que tem os seus próprios negócios, a maioria com restaurantes e lojas, estes cidadãos chineses tentam integrar-se na comunidade portuguesa.

“Esta nova classe média alta vende as suas casas na China e compram cá apartamentos bons e confortáveis. E muitos colocam os filhos em escolas privadas portuguesas ou estrangeiras. E nem todos vivem entre grupos de expatriados. De facto, entre eles, existe grande diversificação dos estilos de vida e uma tentativa de se aproximarem da sociedade portuguesa. Este grupo é mais acessível e tenta integrar-se mais.”

O investimento através de um visto gold implica, muitas vezes, uma forte mudança na estrutura familiar, assegura a socióloga.

“Normalmente, as mães têm formação superior e empregos estáveis na China e demitem-se para poderem acompanhar os filhos cá. Alguns pais, muitas vezes trazem os negócios para cá, e outros vivem de rendimentos. Outros ficam na China. Mas, estas pessoas querem, sobretudo, sair da China por motivos ecológicos e de educação dos filhos, e o esquema dos vistos gold permite-lhes facilmente ter acesso à residência em Portugal.”

“Segunda opção” para Hong Kong

Irene Rodrigues, que também tem dedicado a carreira académica a estudar alguns fenómenos da emigração chinesa, conta que os investidores de vistos gold “às vezes trabalham, abrem negócios além da compra do imobiliário, mas nem sempre”.

“Não é isso que, à partida, os traz para Portugal. Isso acontece depois. Das pessoas que entrevistei, nenhuma delas tinha pensado em Portugal, mas sim em outros países. Quando lhes foi colocada a hipótese de Portugal acharam uma boa ideia. Isso reflecte-se depois noutras pessoas que também pensam que é uma boa ideia.”

A antropóloga defende que está na altura de repensar o objectivo inicial da política dos vistos gold. “Neste momento, não haverá já tanta oferta disponível para estes investidores, e sei que nos últimos anos houve esta construção propositadamente para este tipo de investimento. Isso deve ser motivo de reflexão. O modelo já teria aqui outro tipo de objectivo que não o inicial, dar dinamismo ao imobiliário de luxo que tinha ficado algo parado. Já não estamos exactamente na mesma situação.”

Relativamente ao interesse de residentes de Hong Kong na compra de imobiliário em Portugal pela via dos vistos Gold, Sofia Gaspar assegura que a maioria procura “uma segunda opção” caso decida, um dia, deixar o território vizinho.

“Este tipo de investidor não vem logo para Portugal, pois tem normalmente um bom emprego em Hong Kong. Mas uma vez que a situação política se está a agravar, eles precisam de uma segunda opção, caso queiram sair.”

As duas editoras do livro assinam um capítulo que traça um olhar histórico sobre a emigração chinesa para o Ocidente a partir de meados do século XIX, com o comércio dos cules. Mas depois surgiram outros fluxos migratórios. Irene Rodrigues destaca que os cidadãos chineses só começaram a emigrar para Portugal, de forma directa ou a partir de outros países europeus, nos anos 80 e 90 do século XX.

Antes dos vistos gold, a principal vaga migratória era constituída, essencialmente, por pessoas sem grande capital para investir e que usaram o seu próprio capital para fazer a viagem. “Numa primeira fase, estas pessoas iam à procura de oportunidades de trabalho. Numa segunda fase, procuraram abrir os seus próprios negócios como uma maneira mais rápida de conseguirem sucesso económico em sociedades onde dominam mal a língua, por não terem qualificações suficientes ou por dominarem mal o mercado de trabalho”, concluiu.

Numa outra acepção, Sofia Gaspar considera que é ainda cedo para avaliar o verdadeiro impacto da pandemia nesta política. “O crescimento dos vistos gold sempre foi bastante expressivo, sendo que a maioria dos requerentes destes vistos continuam a pertencer à comunidade chinesa. Mas é evidente que houve um constrangimento na mobilidade. Veremos agora no período pós-pandemia como é que isso se recupera e se altera, porque a lei também sofreu alterações.”

“A presença da China e da diáspora chinesa em Portugal e nos territórios de língua portuguesa” é uma das primeiras obras a nível europeu a abordar, de uma forma multidisciplinar, a presença da comunidade chinesa em Portugal. O livro contém ainda um capítulo dedicado ao papel de Macau como plataforma entre a China e os países de língua portuguesa, da autoria da investigadora Cátia Miriam Costa.

Vistos ‘gold’: Investimento chinês cai 13% em 2021 para 136,8ME

O investimento oriundo da China captado pelo programa vistos ‘gold’ no ano passado caiu 13%, face a 2020, para 136,8 milhões de euros, segundo dados do SEF pedidos pela Lusa. Entre janeiro e dezembro de 2021, o investimento proveniente da China atingiu os 136,8 milhões de euros, o que corresponde à concessão de 270 vistos (ou Autorização de Residência para Investimento – ARI).

Aquele valor compara com 158,1 milhões de euros captados em 2020, num total de 296 ARI atribuídas. Também o investimento vindo do Brasil registou igual tendência, tendo diminuído 41% entre 2020 e 2021.

No ano passado, o investimento brasileiro totalizou 49,5 milhões de euros, num total de 70 vistos ‘dourados’ atribuídos, o que compara com 83,9 milhões de euros um ano antes (126 ARI). Em sentido inverso, o investimento de origem norte-americana aumentou no ano passado face a 2020.

De acordo com os dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), o investimento oriundo dos Estados Unidos totalizou 51,6 milhões de euros em 2021, um aumento de 4,6% face ao ano anterior, com 101 vistos ‘gold’ concedidos.

Em 2020, o investimento norte-americano somou 49,3 milhões de euros, com 75 ARI concedidos. No ‘top 5’ de investimento por nacionalidades no ano passado constam ainda a Rússia e a Índia. A Rússia foi responsável por 33,6 milhões de euros de investimento captado por este instrumento, tendo sido concedidos 65 ARI no ano passado.

Por sua vez, o investimento indiano somou 17,1 milhões de euros, a que correspondem 34 vistos ‘gold’ concedidos ao longo de 2021. Em 2020, integravam o ‘top 5’ a África do Sul e a Turquia, com investimentos de 36,2 milhões de euros e 34 milhões de euros, respetivamente, a que correspondeu a concessão de 74 e 72 vistos ‘gold’, segundo a mesma ordem. O investimento captado via vistos ‘gold’ caiu 28,7% no ano passado, face a 2020, para 460,8 milhões de euros.

No ano passado foram atribuídos 865 vistos ‘dourados’, dos quais 55 em janeiro, 100 em fevereiro, 73 em março, 98 em abril, 52 em maio, 67 em junho, 41 em julho, 64 em agosto, 61 em setembro, 87 em outubro, 83 em novembro e 84 em dezembro. Em mais de nove anos deste instrumento, os vistos ‘gold’ somam mais de seis mil milhões de euros.

13 Jan 2022