O Inverno do nosso descontentamento

Não acredito que em Novembro venhamos a ter quaisquer notícias sobre a eminência da paz. Além disso, o Inverno que se aproxima vai ser amargamente frio devido às condições climáticas e às terríveis acções praticadas pela humanidade.

Com a guerra russo-ucraniana a aproximar-se do oitavo mês, a Ucrânia deu início a uma contra-ofensiva nos territórios ocupados a leste e a sul do país. O impasse da guerra deixou inúmeros ucranianos sem-abrigo e muitos soldados russos morreram no conflito. A NATO impôs sanções económicas à Rússia que, por sua vez, cortou o fornecimento de gás natural à Europa. Neste cenário de guerra, nenhum dos beligerantes sai vencedor.

Os europeus estão a preparar-se para um Inverno muito difícil sem o fornecimento do gás russo. Se conseguirem sobreviver a este Inverno rigoroso, acredita-se que o fim da guerra energética marcará o início da guerra convencional.

Vai haver, sem qualquer dúvida, uma quebra no abastecimento de gás na Europa. Embora Hong Kong e Macau estejam localizados numa zona de clima temperado, os seus dias invernosos podem ainda não ter acabado. Nos últimos anos, o clima de Macau tem arrefecido em Novembro, pela altura em que se realiza o Grande Prémio. No entanto, este ano, o tempo arrefeceu significativamente em meados de Outubro.

De qualquer forma, a população de Macau não precisa de se preocupar com os rigores do Inverno, mas talvez o mesmo não se possa dizer em relação ao congelamento económico provocado pela pandemia, associado à implementação da política da China de zero casos de Covid. A taxa de desemprego em Macau atingiu picos por diversas vezes e o declínio do seu PIB foi o mais grave de sempre.

Sem levantar as restrições de entrada aos turistas em Macau, o Governo da RAEM volta a dar mais um subsídio de vida no montante de 8.000 patacas para aliviar a pressão financeira na vida dos residentes causada pela epidemia, com prazo de utilização de 8 meses e limite máximo diário de utilização de 300 patacas. Devido às mutações constantes das estirpes do coronavírus, vai levar muito tempo até que possa desaparecer completamente, ou em alternativa, ser capaz de forma dinâmica de atingir “zero casos” de infecção em Macau.

Assim sendo, acredito que o congelamento da economia de Macau se vá estender muito para lá deste Inverno.
Hong Kong, também ela uma região administrativa especial à semelhança de Macau, alterou as regras de quarentena para quem chega à cidade para três dias de auto-gestão de saúde, com o intuito de revitalizar a sua economia atraindo pessoas de fora. Por enquanto, ainda não há certezas quanto à eficácia deste método, já que foi implementado há muito pouco tempo. Por outro lado, o Hang Seng Index de Hong Kong caiu abaixo do nível psicológico de 17,000 pontos a 11 de Outubro e fechou a 16832.36 pontos no próprio dia, tendo atingido o nível mais baixo em 11 anos.

Emitir opiniões favoráveis tornou-se a nova moda em Macau, como podemos ver no caso da revisão da “Lei Relativa à Defesa da Segurança do Estado”. A maior parte dos pontos de vista relativos à revisão da “Lei Relativa à Defesa da Segurança do Estado” são favoráveis. Apenas uma revista mensal e a Associação dos Jornalistas de Macau estão de alguma forma a manifestar um certo descontentamento com vários aspectos do conteúdo revisto.

Além disso, as intervenções feitas pelos actuais deputados da Assembleia Legislativa de Macau não fazem qualquer menção aos pontos de vista e às preocupações manifestadas pela referida revista mensal e pela Associação dos Jornalistas de Macau. Aparentemente, a frialdade gélida da política de Macau é muito mais severa do que a sua congelada economia. Acredito que a revisão da “Lei Relativa à Defesa da Segurança do Estado” levada a cabo pela Assembleia Legislativa vai ser tão suave como deslizar no gelo.

Os fogos da guerra não conseguem aquecer a Terra e as Nações Unidas desempenham um papel crucial para prevenir que o mundo inteiro enverede por um caminho trágico para todos. O fracasso da Liga das Nações no passado serve-nos de dolorosa lição. Os maiores desafios que se apresentam ao mundo dos nossos dias, de que não havia memória há praticamente cem anos, são de facto instigados por quem está no poder. Embora o poder possa subjugar a verdade, nunca a pode substituir.

Precisamos de ter esperança para produzir a mudança. Com a chegada do Inverno, será que ainda temos de esperar muito tempo pela Primavera?

13 Out 2022

Está quase, já passou

Daqui a pouco, a Primavera. Que faremos então com tanto sol?
É mais fácil confinar no Inverno; mais intuitivo. É mais fácil respeitar as regras de distanciamento social, as recomendações de que se evitem contactos desnecessários, as proibições das festas. A Primavera – onde ela existe – foi sempre uma época de renovação e de festejo; está ligada a bonança das colheitas, à fertilidade, ao engordar do dia. Os animais reaparecerem na Primavera e pontuam a paisagem onde tudo quanto é verde se estende em direcção ao sol e ao céu. Tudo é mais suportável na Primavera.

Esta poderá ser a segunda Primavera de que seremos subtraídos. Pouco me importa que me levem o Inverno e boa parte do Outono; está frio, chove. Podem ficar com os poucos dias de clemência meteorológica. Já a Primavera é outra coisa. É como acordar de um longo sono salpicado de sonhos oblíquos e estranhos estados de vigília e não poder sair da cama para celebrar a vida na igreja das coisas.

Quando vivia em França, com os meus pais, uma boa parte da infância, numa cidade do interior ladeando uma cordilheira de vulcões dormentes – Clermont-Ferrand – onde o clima era particularmente inclemente – Invernos nevosos e Verões infernais, a Primavera, muitas vezes tardando em aparecer até despontar, tímida, nos últimos dias de Março, como se tivesse prurido em chegar, era a única altura da vida da cidade em que o corpo parecia estar em sintonia com o ambiente.

Eu estava sempre doente no Inverno, amiúde no Outono, e calhavam-me sempre pelo menos duas sessões de amigdalite no Verão. Na Primavera descobria o que era ser como os outros miúdos – sempre muito mais robustos do que eu. Na Primavera éramos todos imortais. Na Primavera o meu pai atrevia-se a tirar-me da segurança de casa aos fins-de-semana para fazermos piqueniques à beira-rio com a trupe de emigrantes com que partilhávamos pão e histórias da terrinha. Íamos pescar trutas – de que eu fingia gostar à mesa mais do que na verdade gostava –, ver a procissão dos bichos a caminho das múltiplas peripécias da vida (isto é um gaio, filho, isto é uma lebre, vês como têm as pernas muito mais longas do que as dos coelhos, isto é…), e no caminho de regresso, o meu pai ia apontando – para desespero da minha mãe, que insistia em que ele olhasse antes para a estrada – onde tinha trabalhado, onde tinha comido a melhor perdiz estufada, onde tinha bebido uns copos a mais. Era a topografia do adulto de meia-idade antes da chegada da mulher e filho, a segunda adolescência numa terra em que uma estranha liberdade eclode do anonimato.

Tenho poucas lembranças da minha infância – felizmente. Essas poucas lembranças são bastante desproporcionais em relação aos sítios de onde elas vêm e ao tempo que neles passei. Estava quase sempre na cidade, enfiado em casa ou na sala de aula. Lembro-me vagamente da casa em França, uns pormenores difusos, o sítio do fogão, o padrão do papel de parede, a cor com que pintaram as janelas. Da escola lembro-me ainda menos; umas rampas que tínhamos de descer ou subir para entrar nas salas de aulas, um pátio enorme onde as crianças mais façanhudas se entretinham a humilhar as crianças mais reservadas, duas freiras extremamente meigas que eram o meu porto de abrigo quando as coisas não faziam sentido ou o almoço era fígado guisado.

Do que me lembro bem era do cheiro acre da terra na Primavera, do meu pai procurando os meus dedos magros e frágeis para me ajudar a passar por um curso de água, dos gaios para que apontava com minúcia de coleccionador. Da Primavera que tudo renova.

26 Fev 2021

Se não me puderes amar no inverno, quando?

[dropcap]P[/dropcap]alavras que sejam, elas próprias, desempenho, e, mais do que adejo, corte sob a pele.
Não há outra medida para o escritor, mentira que lhe valha.

Por isso, continuemos, venha o que vier: os pálidos gestos de ternura, as tempestades, os descalabros invisíveis da História ou o paliativo do quotidiano. Mesmo os que não nos consolam os tremores íntimos anónimos, aqueles que feriram, apesar de aparentemente irrelevantes; eu em miúdo odiei ter sabido que um bigode pode ser à Cantiflas – e, sim, o humor não resgata tudo.

Contudo, só porfiando algo se articula, um raio ou uma face arregalada pelo desarme. Só transformando a escrita em vivência ela arranca à viscosidade do caos uma repetição equiparável à buzina com que Harpo Marx inscrevia no silêncio uma nova linguagem.

Um novo ano, e nada me ocorre senão aquele começo poderosíssimo de Camilo José Cela em Ofício de Trevas 5: «es cómodo ser derrotado a los veinticinco años aún sin una sola cana en la cabeza sin una sola caries en la dentadura sin una sola nube en la conciencia con sólo dos o tres lagunas en la memoria y mirar el mundo desde el cielo desde el purgatorio desde el infierno desde más acá de los montes pirineos y la cordillera de los andes con frialdad con indiferencia con estupor».

Conheci tantos em quem vi a comodidade de serem derrotados aos vinte e cinco. Antes de, devido à intransigência que cabe aos jovens, conseguirem sequer adivinhar que afinal nada há de intransitivo na vida.

Ou melhor, que a única coisa intransitiva na vida é a idade – a única aprendizagem que se entranha. O mais é puro derrame de uma coisa noutra, contágio, intersecção, simbiose e corrupção. Só a idade nos retém e aparvalha – uma besta enfurecida – entre maxilares. E mesmo aí temos direito a momentâneos vislumbres fora da caixa palatal que nos rumina. Enquanto, merda, ficamos tardios, a congeminar que a roleta do mútuo consentimento nos abandonou e que ao selvático empenho de amar se sobrepôs o respeito, a defeção. O que quer que isso seja. Sem outro ganho que o de reconhecermos: sob a dura casca de noz que nos subjuga lateja ainda um jovem assombrado pelo tumulto das luzes que nos cegou no seio do labirinto.

A chegar aos sessenta (faltam dezoito dias) pergunto-me quantos livros li até ao fim? Necessariamente um terço dos que comecei a ler. E acima das trezentas páginas contam-se pelo dedo. O Moby Dick, Dostoievski, Tolstoi, alguns Dickens, Saul Bellow, dois ou três volumes do Proust… ou livros que tive de ler por trabalho. Fico sempre banzado, no estrangeiro, quando vejo multidões nos comboios e no metro aferrarem-se a setecentas páginas de irrelevâncias.

Li mais até ao fim Saramago do que Lobo Antunes. É-mais fácil. Há em Saramago um admirável trabalho de relojoaria, a que se segue o ronrom. Com Lobo Antunes levanta-se uma questão de densidade – prescinde da trama, abro qualquer livro e leio cinquenta páginas como se mergulhasse no mercúrio. É retemperador, mas preciso de pausas entre cada dose.

Escusam de me perguntar de quem gosto mais, sou incapaz neste caso. Já entre Eça e Camilo alinho por este último.

Demasiadas vezes interessa-me mais o processo do que a história do livro.

Há escritores a quem cheguei cedo e outros a que acostei tarde.

Ao Ruben A. cheguei temprano e ainda hoje me admira ser tão desconhecido da maioria, ao Augusto Abelaira cheguei tarde, à primeira só o Bolor me agarrou, mas trinta anos depois de não o ler comprei no metro O Triunfo da Morte e Sem Tecto, Entre Ruínas, e percebi que aquela liberdade livre é rara e só por extrema deficiência na educação dos leitores ele não é, foi, um sucesso.

É difícil a unanimidade, mas livros há que me espantam de não a terem. O Alface impingiu-me um autor francês que, orgulhoso, só fui ler depois da precipitada morte dele, o Maurice Pons e o seu As Estações. Até chorei depois da leitura do livro por não o ter lido antes, para comentarmos o livro. É extraordinário, um dos maiores exercícios da imaginação que li na vida. Contudo, já o tentei vender a meia dúzia de pessoas que não compreendem o meu entusiasmo. Há contágios que só passam de escritor para escritor, sendo necessário lidar com os limites da imaginação própria para reconhecer um acto pleno. Em França há clubes de fãs de As Estações, em Portugal foi um fracasso absoluto.

Há livros nas minhas estantes cujas edições se desfazem de tantas vezes serem relidos, dobrados e riscados, como Debaixo do Vulcão, de Malcolm Lowry, o Empresta-nos o seu marido?, de Graham Greenne ou o Mulheres e Homens, do Richard Ford; outros, apesar de lhes reconhecer a excelência, deixam-me frio e abandono-os invariavelmente a meio, como os livros do Sebald, que têm todos um ar espantosamente novo.
Agora, com um pé nos sessenta, sinto-me ejectado para o espaço. É o momento de fixar um livro de memórias. E tudo só pôde começar porque arranjei um título convincente, e desta vez não lhe mudarei uma sílaba: Se não me puderes amar no inverno, quando?

Será em três volumes, o primeiro sobre a infância, o segundo em torno dos amores e o terceiro sobre a escrita. O primeiro é o que me ocupará neste mês de Janeiro. O segundo escrevê-lo-ei em Janeiro de 2020 e assim sucessivamente.

Será o modo de atar o meu corpo ao compromisso de durar mais uns anos, viés sobre o qual às vezes tenho dúvidas.

Que as letras me catapultem e se rendam à hipótese de que existe uma realidade para além das imagens, suscita-me o desejo de toda a luz e é o projecto possível para quem não nasceu para ser discípulo do Mallarmé.

3 Jan 2019

O Inverno do nosso contentamento

[dropcap]Q[/dropcap]uando alguém está desesperado, pode chegar ao suicídio. Se uma sociedade vive sem esperança, enfraquece aos poucos. Quando os governos sabem que só têm mais um ano de mandato, não é expectável que prestem atenção ao descontentamento do povo, nem que empreendam mudanças radicais. Ao actual Governo de Macau resta apenas um ano em funções. Para além do Chefe do Executivo, acredito que alguns Secretários também se estão a preparar para sair.

Durante o debate anual das Linhas de Acção Governativa para o ano financeiro, na Assembleia Legislativa, o público só tem acesso a parte do Relatório, ao passo que a versão mais detalhada das Linhas de Acção Governativa, nas diversas áreas, só é facultada às partes directamente interessadas, como os membros do Governo, os deputados e os jornalistas. Na versão do Relatório das Linhas de Acção Governativa para o ano financeiro de 2019 distribuída ao público, os conteúdos de cada área mal ocupam 30 páginas. Mas, na versão detalhada, a parte que cabe à Área de Transportes e Obras Públicas tem 37 páginas, muito inferior às 91 páginas referentes à Área de Segurança e às 61 da Área de Assuntos Sociais e Cultura. Será que o Secretário dos Transportes e Obras Públicas já finalizou as suas tarefas e pouco mais tem a acrescentar sobre as matérias da sua competência?

Dos diferentes sectores sob a alçada dos cinco Secretários do Governo da RAEM, a Área de Transportes e Obras Públicas é a que tem sido mais sobrecarregada por uma série de problemas. O plano de construção da quarta ligação Macau-Taipa transformou o idealizado túnel sub-aquático numa ponte, sob o pretexto de que as motas teriam dificuldade em aceder ao túnel. Espera-se que a ponte esteja pronta em 2024. Para além disso, está em curso um estudo de viabilidade para a construção de uma quinta passagem sobre as águas (sem referência à data de construção). Este projecto nada tem a ver com o melhoramento do fluxo de tráfico entre Macau e as ilhas, nem com o reforço das capacidade de resistência da cidade à agressão dos tufões e compromete seriamente a possibilidade de construção de uma ponte ferroviária, para a passagem do metro ligeiro, na Zona A dos Novos Aterros. A ideia no seu conjunto revela a falta de uma visão global sobre o planeamento do sistema de transportes. Quanto ao projecto do Metro Ligeiro, ainda se espera que a Linha da Taipa esteja a fincionar em 2019 e que a Linha de Seac Pai Van Line esteja terminada em 2022. Já a ligação para a Estação da Barra não vai estar pronta antes de 2024. Também não há novidades sobre a Linha Leste do Sistema de Metro Ligeiro, nem sequer quanto ao seu traçado. O projecto de construção do Metro Ligeiro em Macau deixou de ser um “elefante branco” e passou a ser digno de uma candidatura aos “Recordes Guinness” da história ferroviária, pela quantidade brutal de dinheiro envolvido e pela demora em se ficar a saber a data da sua conclusão. Pela apresentação das Linhas de Acção Governativa do Secretário Raimundo Arrais do Rosário, depreende-se que é um fiel seguidor do Chefe do Executivo Chui Sai On e que se irá retirar com ele.

Alguns jornalistas publicaram no Facebook que a melhor parte do debate das políticas do Governo, foi o lanche com tostas de carne, fornecidas pelo quiosque da Assembleia, que os ajudou a sobreviver ao tédio das sessões do parlamento.

Quem se preocupa verdadeiramente com o futuro de Macau, deveria estar presente nestas sessões de debate. É a única forma de perceber o desempenho dos membros do Governo e dos deputados. Quem conhece a verdade não deixa os seus assuntos por mãos alheias.

Quando se realizou em Macau a Consulta sobre Desenvolvimento do Sistema Político, em 2012, mais de 100.000 pessoas subscreveram um abaixo-assinado em apoio à proposta “2+2+100”, o que provocou um retrocesso do processo democrático. Nas eleições directas para a Assembleia em 2013 e em 2017, o suborno e a corrupção foram incontroláveis e, em consequência, o populismo e os interesses instalados triunfaram sobre a democracia. Da total cumplicidade entre o Executivo a a Legislatura advém a perda da função reguladora da Assembleia e os améns a todas as decisões do Governo.

Devido ao aquecimento global, o Inverno deixou de ser Inverno. As pessoas andam iludidas e esquecem-se que é preciso fazer preparativos para o frio. No entanto, as leis do desenvolvimento económico ensinam-nos que o suposto “desenvolvimento sustentável” é mera propaganda usada pelos políticos, mas a acumulação dos problemas sociais acabará por vir a ser a força motora da transformação política. Nos 20 anos que passaram sobre o regresso de Macau à soberania chinesa, a cidade atingiu o pico económico. Quanto ao que virá a seguir, tudo irá depender das capacidades do quinto Chefe do Executivo. Como diz o ditado, nada é eterno neste mundo. Quando o Inverno bate à porta, a Primavera já não está muito longe. O Tempo abre janelas de oportunidade para quem está bem preparado.

14 Dez 2018

Uma história feliz com lágrimas

“É proibida a entrada a quem não andar espantado de existir”
José Gomes-Ferreira

 

[dropcap]N[/dropcap]oite lívida e chuvosa.
Chove – as gotas, grossas e pesadas – sem cessar.
Faz frio.

Gosto do convívio da noite («a noite muda a imagem e o sentido das coisas») – estava-mos em pleno Inverno.

A noite estava pura e transparente – «A noite é amável, tapa as mazelas, adoça os traços, esconde as impurezas».

Os vidros do quarto estavam todos, todos, mas todos, sem excepção, embaciados.

Os neurónios não saltavam, não brincavam, não mostravam a sua habitual tendência para a fuga «sem sentido físico do pesadelo», – visões dos vários lados das penumbras, muitas, imensas – estavam calmos.
Embevecidos perdidamente pela música do «compositor preferido dos matemáticos», Bach, (se fosse um Homem dos dias de hoje, seria certamente um jazzman), faziam reflexões entrecortadas com bocejos carregados de ócio – a preguiça pura e dura. Vivia na desorganização típica dos sonhos, submersos na miséria do esquecimento. Percorrer o «vazio», sem representações. Sobravam as interrogações e as ausências.

“Foi em pleno Inverno que aprendi que há em mim um Verão invencível” – um pouco na linha de pensamento de Albert Camus. Estremeci sem me aperceber do quê nem do porquê. Fixei o olhar. Percebi então finalmente a dose de alegria que me banhava.

“O exílio interior é o refúgio procurado como defesa da integridade”

As vicissitudes do poder geralmente carregam azias, indisposições, mal-estar. O progresso é tendencialmente limitado. Traz quantidade em vez de qualidade, foge da cultura com medo da revolução – pacífica a das ideias. Estas são contudo as que nos definem – “existo, logo penso” -, depois de devidamente acamadas nos patamares do conhecimento. Sempre através de um «dom» maior a palavra.

Fugimos com medos – que nós próprios construímos -, passamos a percorrer labirintos. Sim labirintos, perdemo-nos, não temos saídas. Embrulhamo-nos no quotidiano. Sonhos construídos em simples folhas de papel que, facilmente se desfazem, se destroem, voam porque o vento gélido continua a soprar lá fora.
Faz frio.

A chuva refracta a luz e esbate contornos.

A cidade dorme – já é tarde -, sinal do cansaço. Massacram e torturam-na diariamente. A beleza da cor e das formas, são já memórias quase esquecidas. Perpetuar já não se sabe conjugar, humilham-nos.
Entre o fim- da- estação e a ocasião, o discurso. Alegrem-se. Pensar, planear, executar, tudo a bem da população. Merecemos. Brindemos!

Lá fora o sector da loucura está repleto – isso vai e vem -, são cérebros pertencentes a seres desprovidos de empatia e remorsos – existem coabitam connosco, mas não são nossos Amigos -, impingem-nos os negócios da loucura. Fazem-nos ingénuos.

Usam o poder deliberadamente, revelam uma espécie de “hiperconsciência” dos métodos e técnicas que utilizam, nas suas verdades secretas, invisíveis. Existem?

Percorremos ainda alguns espaços – os que não querem -, numa cidade recheada de afazeres, preocupações, intrigas, misérias – por imposição -, não por vício ou má formação de quem a vive.
Gente simples. Gosto!

“Entre existir e viver há a mesma diferença que entre olhar e ver e que entre redigir e escrever” – segundo António Patrício.

Uma ruptura de afirmações, sobrevivência (?), – o movimento das palavras, pensamentos (?), dentro de um círculo fechado (?) – a existência, a Vida (?).

A vida é rápida, turbulenta, tumultuosa – pelo interesse e pela adversidade.
Um futuro por construir.

Andar e saborear o tempo e o espaço – parques, jardins, ruas, becos e pátios -, são oposição, as chamadas «forças de bloqueio», o tecido social de equilíbrio e harmonia desaparece.

A «nova era» requer mais poluição ( « ar poluído de banalidades») e menos saúde, mais casinos e menos direitos, mais consensos e menos harmonia, mais especulação e menos valores – tudo mas tudo subordinado ao «pequeno» poder do Jogo.

Falta coragem, vontade e capacidade de fazer -, com autoridade, mas sem autoritarismo. O governo está ao serviço de interesses e não ao serviço de valores…

A cidade continua abençoadamente calma – Santo Nome de Deus!

Este meu Inverno, foi diferente de todos os outros Invernos…

«Um dia tudo será excelente, eis a nossa esperança, hoje tudo corre pelo melhor, eis a nossa ilusão»
Voltaire (1694/1778)

29 Nov 2018