Imagens passando

Mymosa, Lisboa, 13 Maio

 

[dropcap]P[/dropcap]arece Primavera, mas os dias não sabem a projecto. E, no entanto, ei-los que aportam a este cais poroso e desabrido, instável. Clássico e original à vez, este de que falo sem o nomear, deixa-me entusiasmado. Enlevado, até. Uma obra completa das radicais, com tanto por descobrir, ainda incómoda e desafiante, um pensamento de fio de navalha. Cheira-me que surgirá novo abysmo escrito pela mão de autor redivivo. E na conversa lhana que lhe dá sequência, Deus aflora, a querer suscitar outros fôlegos, sempre adiados. A tristeza recolhe-se por umas horas e deixo-me tombar na noite. Sem consolo.

Casa da Cultura, Setúbal, 14 Maio

São uma mão, as vezes que me sento a apresentar, pouco antes, a Festa de Ilustração. Custa-me cada vez mais subir o degrau daquele palco. Este ano, dá-se atenção redobrada ao humor desenhado, com a Cristina [Sampaio] no papel de convidada, e um olhar sobre o famigerado Tignous, um dos tombados do «Charlie Hebdo», modesta homenagem quando os tempos mandam sinais de que a liberdade não foi, nem será, conquista definitiva. Os medos entranham-se. O autor clássico, Manuel Lapa, não escapará das leituras proto-censórias que procuram a todo o custo reescrever a História, antes mesmo de a entender, no conforto dos gabinetes das academias. Assim se incomodem a ir espreitar a exposição, desta vez prolongada Verão adentro, antes de começar o digladiar das bandeiras. Do muito para ver e ler e até ouvir, mal ficaria não destacar a sempiterna «Ilustração Portuguesa», mai-las suas centenas de imagens. «Reúnem-se aqui apenas por coincidirem no ano que passou? Ou algum nexo, um estilo, uma cor as pode reunir? São estrelas solitárias a comporem uma constelação. Mais do que iluminar a noite escura, brilham para nos mostrar de que somos feitos: poeira de luz. Muitas destas imagens fortes continuam a voar sob o radar da atenção. Quantos de nós se deitam de costas a mirar o firmamento? Não perdem, por isso, a capacidade de nos atrair. Pela dança estética das formas, pelo que dizem ou mostram, por parecerem pedaços partidos de espelho. Parte de nós encontra-se aqui, estilhaçada. Vale muito a pena perdermo-nos à nossa procura.»

Casa da Música, Óbidos, 16 Maio

Por um triz não me vejo obrigado a deixar Lisboa sem o livro, que chega segundos antes da minha boleia se fazer à estrada. Óbidos recebe-nos chuvosa e fria. Acabo a montagem mesmo em cima da abertura do Latitudes, que mistura «Literatura e Viajantes». Demoro-me sempre mais do que devia nas imagens deste «Atrito», do André [Carrilho]. Viajo da maneira mais confortável, através dos olhos e das palavras dos outros. Não será o mesmo, mas quantos conheço que se fartam de andar pelo mundo estragando tanto para trazerem tão pouco? Não se aplica a regra a este andarilho, que anuncia parar com tais aguarelas nascidas no sítio em que o tocam. Não me canso de o sublinhar, acompanhadas depois por textos saborosíssimos. Quase não tive tempo de lamber a cria, a nossa primeira em off set digital, mas estou satisfeito, com a velocidade de produção, claro, mas sobretudo com o resultado vívido, que me permite multiplicar as horas vendo a alma de Macau, espelhada nos emaranhados de linhas ou nos cruzamentos de luz e velocidade (algures na página). Vou ali dar uma saltada a Shenzhen.

«A China moderna ultrapassa todas as expectativas e ri-se das nossas ideias preconcebidas. Quer que a conheçamos, e gentilmente nos estende a mão para uma viagem guiada. Uma viagem que é também o pretexto para conhecer visitantes e os mundos de onde vêm, do outro lado da muralha. Mundos que, à falta de melhor, estão representados nos mitos dos filmes de Hollywood e das grandes obras literárias. Ou, ainda melhor, estão ali ao lado num parque de diversões, espraiado debaixo da minha varanda de hotel.

O Windows of the World é a última etapa da estadia, obrigatória, e não desilude. É um gigantesco campo de percepção distorcida e, obviamente, diz tanto do Ocidente aos chineses que o visitam, como revela aos visitantes estrangeiros a ficção que a China tem do resto do mundo. (…) Mais adiante outra pequena ilha aloja o Capitólio de Washington, completa com uma multidão em miniatura que a visita e tira fotos. E eu tiro fotos também às miniaturas de turistas que tiram fotos às réplicas de monumentos americanos transplantados de uma fantasia chinesa. Mais adiante estão as Pirâmides do Egipto, mesmo ao lado da Esfinge de Gizé, e o respeito que lhes é dado é evidente, pela área desafogada que ocupam, à laia de deserto. Faz sentido, uma vez que provavelmente são as atracções cujos originais mais poderiam rivalizar com o que a civilização chinesa produziu ao longo de cinco séculos. (…) Acabamos o último dia em Shenzhen a rir das representações que a China faz do que vê à distância e que só podem ser em miniatura. E levamos connosco a suspeita de que o Império do Meio poderá um dia meter o Ocidente no bolso.»

Casa Saramago, Óbidos, 17 Maio

Não foi à primeira, como se o poeta se quisesse ficar pelo traço desenhado com as palavras do Carlos [Morais José], que tentou substituir o projector em panne. Um dia depois, lá se conseguiu ver «Pe San Le – O Poeta de Macau», da Rosa [Coutinho Cabral], com sucessivas aproximações a Pessanha através das reflexões e da omnipresença do Carlos, no papel de entendido e dilecto apaixonado. «Imagens que passais pela retina / Dos meus olhos, porque não vos fixais? / Que passais como a água cristalina / Por uma fonte para nunca mais!…» São hipnóticos os longos travellings que vão sugerindo uma Macau de outros tempos, ainda que fixada no âmbar dos gestos de hoje.

Livraria Santiago, Óbidos, 17 Maio
Não foram muitos os que ouviram o José Luiz [Tavares] dissertar acerca do lugar em que se encontra, entre línguas, a portuguesa, que maneja como poucos, e o crioulo materno. Temo que esteja condenado a esta ponte sobre um nada tão substancial, que percorreu agora em insuspeitadas direcções com estes fados, litanias, toadas, lengalengas e sarabandas, algumas que nos entram carne dentro. Ou dela partem. (Bem que tentámos preservar uns quantos mais afoitos, mas a guilhotina, não só não o permitiu como acabou atraindo a atenção para o que se queria recatado.) Nem a «Arder A Vida Inteira» se livra o poeta da sua sombra maior: Camões.

Artes e Letras, Óbidos, 18 Maio
Continua chuvosa a manhã, pelo que postámos as velhas carcaças, a do Luís [Gomes] e a deste vosso criado, nos famosíssimos cadeirões de contemplar prateleiras jamais virgens. Não sem antes dar saltada a uma África gravada há muito no olhar de exploradores holandeses, papel que se desfaz, volume que fala. Folgo em ver assentar esta irrequieta livraria, pejada de memórias vivas, finalmente protegida por muradas.

Casa Saramago, Óbidos, 18 Maio
É de vida feito, este «Anastasis», percurso sinuoso do Carlos [Morais José] por entre ruínas e textos, ajaezado agora com capa vítima da espontaneidade do traço livre do Rui [Garrido]. O copo que se derruba quer apenas dizer que a conversa está a meio. Há ainda a última história, pensamento que se esconde no verso, um reconhecimento por fazer. A poesia que aqui se apresenta de peito feito, desafiante, diz de quem preza tanto a casa que não consegue parar de partir.

29 Mai 2019

Julieta na porta de saída

[dropcap]L[/dropcap]idas ou ditas, as relações entre ficção e realidade são relações entre palavras. Palavras que semeiam imagens. Imagens que colamos a factos em polvorosa. Factos que, na maior parte das vezes, já perderam o seu entrecho próprio. Só no precipício do imediato essas relações fazem soar as suas turbinas. Talvez por isso mesmo, sejam turbulentas, difíceis de aplanar, de conter, de absorver. Ir a Verona visitar Julieta (“God knows when we shall meet again!”*) ou percorrer um romance e nele entrever uma espécie de ‘self-fulfilling prophecy’ são modos de viver esse tipo de relações como se elas irradiassem (ou forjassem) um fantasma de que não nos conseguimos dissociar.

Entre ficção e realidade fluem fantasmas, mas esses fantasmas somos nós próprios. Olho para a porta do pátio e a sua efígie reaparece-me no lóbulo occipital, embora encadeada com outras portas – e com mil ciladas espontâneas cheias de mais e mais portas – que rememoro e conjecturo. A certa altura, o que vejo são maçanetas e batentes em forma de gnomo que não cabem nas palavras (como tudo o que é fundamental na vida). Não saberei nunca onde comecei a ficcionar e a deixar de ver ou onde comecei a ver e a deixar de ficcionar. Uma flutuação sem fim que fez estalar a intenção inicial que me levara até à porta do pátio para onde ainda não parei de olhar (Romeo: “I dreamt my lady came and found me dead”*).

Por vezes, não é fácil entender que ‘ter os pés em terra’ não é uma coisa muito diferente de ‘andar sempre no ar’. Caracterizar a realidade é um pas de deux que tende amiúde a esconder o seu rosto inevitavelmente ficcional. Ao falarmos de realidade, falamos de uma foz tumultuosa onde desaguam episódios mutáveis, dando-nos a ilusão de movimento contínuo. Um cortejo com cordão umbilical, pois o mundo e todos nós vagueamos juntos e somos parte também dessa foz em constante deriva tectónica (e onde não há separação entre sujeitos e objectos).

Derivar é rastrear todo o hemisfério com uma mão de carne e osso, de um lado, e com uma outra mão que é a desse fantasma que também sou eu, do outro. Se por acaso decidisse silenciar a palavra “realidade” e a palavra “ficção”, o que restaria era apenas a água da foz tumultuosa, bravia e revolta. Apesar de tudo isso, subo ao estrado com ligeireza, continuo a dar as minhas aulas e sei perfeitamente quem sou e que papel estou a desempenhar, ainda que, ao mesmo tempo, esteja a realmente voar. Realizo e ficciono: duas asas do mesmo voo.

Todos voamos enquanto desempenhamos. Ser actor não é coisa do teatro. Se, um dia, os humanos se deram ao trabalho de inventar o teatro (Derrick de Kerckove dizia que foi para voltar a unir as pessoas que haviam sido afastadas pela invenção do alfabeto), foi justamente porque ele faz parte daquilo que somos de mais viral e autêntico. Num mesmo pasmo, somos percorridos por essa corrente de ar que nos faz ser autores, actores, partes de cenas quebradas, parcelas de actos que se reabrirão, didascálias solenes, quebrantos murmurados, encenações inteiras (“Juliet: O comfortable friar! where is my lord?/ I do remember well where I should be,/ And there I am. Where is my Romeo?*).

Somos um corpo e um ser de tentáculos obscuros feito para construções do mundo que semeiam imagens. Imagens que colaremos a factos em alvoroço. Mas factos que logo se desenrolam e despegam do cardume das coisas vividas e desejadas. Avançamos e as passadas apagam o próprio avanço ficcional em que nos revemos. Sobrará a invisibilidade do espanto, talvez.

Foi o que me aconteceu na semana passada. Vi-me atolado pelo espanto em estado puro, se é que isso existe. Eu explico: é no mínimo extravagante uma pessoa escrever um romance há duas décadas e, depois, a coisa tornar-se acontecimento (e, para mais, com um lastro verdadeiramente trágico e displicente pelo meio). Refiro-me ao aluimento da estrada entre Vila Viçosa e Borba, meu trilho de infâncias e de piqueniques na tapada real, mas também cenário do final do meu romance ‘A Falha’ (1998). Bem sei que no filme do João Mário Grilo (que adaptou o romance em 2002), a tragédia era ainda mais clara do que no romance.

Confesso que, nos últimos dias, me senti a andar no ar com os pés ligeiramente em terra. Tal como escrevi no dia do desastre, nunca foi minha aptidão insuflar de realismo os meus romances. É coisa que não está em mim e quem me conhece sabe-o. No entanto, quando escrevi ‘A Falha’, tinha a consciência plena de que havia alguma verossimilhança na abordagem. E os factos comprovaram-no. Só no precipício do imediato, esta estranha relação entre realidade e ficção faz soar as suas turbinas, é verdade. Julieta bem podia ser o nome da porta que dá para o meu pátio que, como se sabe, não é em Verona mas sim em Lisboa. O meu pátio que, afinal, é um grande teatro que habita na minha cabeça e em mais lado nenhum (“Prince”: “(…) Came to this vault to die, and lie with Juliet.” (…) / “Montague: But I can give thee more:/ For I will raise her statue in pure gold;/ That while Verona by that name is known,/ There shall no figure at such rate be set/ As that of true and faithful Juliet”*).

*Shakespeare, W.; Romeo and Juliet, Simon & Schuster (The Folger Shakespeare Library), Editors: Barbara A. Mowat and Paul Werstine; Washington D.C., 2011, pp. 57, 65 e 294-96.

29 Nov 2018