Kafka e o medo do anonimato

Alfred Perkins Jr. (1923-2001) foi professor de literatura comparada na universidade de Stanford durante décadas, publicando vários livros e textos em revistas da especialidade, até ao aclamado «Medo do Anonimato», em 1996.

Neste livro, na primeira parte, Perkins Jr. traça uma evolução do romance ao longo dos séculos e, na segunda, mostra-nos como a ideia de anonimato sempre foi o grande propulsor do romance. Perkins Jr. conduz-nos através de uma dialéctica subterrânea que se estabelece entre o medo do anonimato e as personagens que o escritor cria.

Antes de mais, temos de ver aquilo que o autor define como anonimato: «No escritor, o medo do anonimato não é o medo de não se tornar conhecido, mas antes o medo de não se conhecer a si mesmo, de não encontrar a “sua voz” como escritor. Assim, anonimato é ser igual aos outros, mesmo que se seja muito conhecido. No fundo, aquilo que acontece a tantos escritores de sucesso. O caso mais paradigmático é o de Kafka. Mais do que querer ser conhecido, ele queria conhecer-se, não no sentido do filósofo, mas no sentido de encontrar a sua expressão autêntica, a sua identidade. Porque a identidade do escritor firma-se na página escrita.»

Alfred Perkins Jr. estabelece então, ao longo de toda a segunda parte de «Medo do Anonimato», uma dialéctica entre as personagens dos romances de Kafka e o medo do anonimato. «No escritor, o medo do anonimato transforma-se na vontade de superação de si mesmo ou, de um modo que assenta melhor no que aqui está em causa, o medo do anonimato leva o escritor a “tornar-se aquilo que se é”, como escreve Nietzsche em “Ecce Homo”.

O medo do anonimato é, assim, não apenas o propulsor do escritor, mas fundamentalmente o propulsor do romance. É no exercício da escrita que o escritor deixa o anonimato.»

Este medo espoleta uma dialéctica entre escrita e escritor ao ponto de as personagens se tornarem, elas mesmas, campo de batalha entre o «anonimato» e o «tornar-se quem se é», como nos casos exemplares – segundo o autor – de K. em «O Castelo» e «O Processo» ou Gregor Samsa em «Metamorfose». Leia-se esta passagem acerca deste último livro: «Desde o início, Gregor Samsa é a expressão máxima do medo de não vir a ser quem é, não apenas pela família que carrega às costas, pelo trabalho que lhe ocupa todo o tempo ou pelo mau patrão que tem, acima de tudo o medo do anonimato advém de desperdiçar a vida que tem por pôr a responsabilidade pelos outros acima da responsabilidade pela vida que lhe deram. Saber quem é é a tarefa a que não pode furtar-se, mas à qual se tem furtado continuamente. Por isso, e como uma espécie de maldição, não apenas acorda transformado num insecto desconhecido, mas tem de viver até à morte a tentar compreender não apenas o que é, mas como lhe aconteceu vir a ser o que é. No fundo, aquilo que deveria ter feito antes da transformação.»

As análises de Alfred Perkins Jr. surpreendem-nos continuamente ao longo do livro, principalmente na segunda parte, onde pairam as sombras de Platão, de Kierkegaard, de Nietzsche e de Heidegger, ainda que o autor só faça menção a esses pensadores e não reflexões acuradas. Veja-se, como exemplo, esta passagem sobre K. de «O Processo»: «Contrariamente a Gregor Samsa, K. não acorda transformado num insecto, mas num anónimo infinito. Gregor, desde o início, que é instigado a descobrir quem é, K. acorda tendo a noção clara de não saber nem quem é nem o que está a fazer e o que estão a fazer com ele. K. é a expressão acabada do “das mann” de Heidegger em “Ser e Tempo”. [Podemos traduzir “das mann” por “o impessoal” ou até por “os muitos”, para ligarmos à expressão de Platão “oi polloi”, mas “das mann” é traduzido literalmente pelo “on” francês. Como escreve, Alfred Perkins Jr.: «No fundo, trata-se de não ter voz»]

Se não fosse o romance de Kafka, K. nunca chegaria a descobrir que não é ninguém. K. não é instigado a tornar-se ele mesmo ou a descobrir quem é, é notificado de que não é ninguém, de que não tem voz. É como se K. recebesse uma notificação do estado a dizer-lhe: “Você não tem voz. É um dos muitos, indistinto, impessoal. Você não chega a ser pessoa.” Ou melhor, ele é uma pessoa que não chega a ser pessoa, como a esmagadora maioria de nós todos.»

Curiosamente, na primeira parte do livro, o autor identifica os textos da Bíblia como os primeiros textos em que se expressa o medo do anonimato. Leia-se: «O anonimato é definido apenas em relação a si mesmo, ao identificar Deus como a origem de si mesmo, o escritor está a lembrar ou a sublinhar a importância de descobrir a sua própria voz. Só ao encontrarmos a nossa própria voz, podemos ser ouvidos por Deus. Desde a Bíblia, o medo do anonimato não se define pelo medo de não ser ouvido pelos outros, mas por Deus.» Ao longo do tempo, Deus muda de face, de identidade, até deixar de existir, mas nunca se transforma nos outros. Um exemplo que Perkins Jr. dá, ainda na primeira parte do livro, é o das personagens de «À Espera de Godot», de Samuel Beckett. Escreve: «Aqui, Deus é o Absurdo. O escritor sabe que chegar até a si, até à sua voz, é chegar ao “absurdo”. “Absurdum” não é apenas aquilo que é contrário à razão, mas aquilo que não se consegue ouvir (ab-surdum). Assim, o escritor tem a noção clara de que se encontra num tremendo paradoxo: a voz própria que procura, ele mesmo, não se pode fazer ouvir. O escritor suspeita que não está mais só com Deus e nem sequer só com ele mesmo, está só com nada. Ele mesmo não pode ser ouvido. E este não poder ser ouvido não é apenas pelos outros, é por ele mesmo. O absurdo é ele mesmo, que não se pode fazer ouvir e nem sequer ouvir-se a si mesmo».

No momento em que se celebram os 20 anos da morte de Alfred Perkins Jr. e os 25 anos de publicação de «O Medo do Anonimato», sugiro que se volte a ler esta preciosidade.

23 Mar 2021

Combater a insónia

10/09/2019

 

[dropcap]S[/dropcap]alvaguardei-me da insónia desta noite com dois dos meus hits, Nabokov e Cioran. Do romancista, o impagável «Pnin», que me devolveu uma palavra: «rododendro» – dá-me cem gramas de rododendro mal passado, por favor? – e me fulminou com um adjectivo: «toucinho opalescente.»

Mas depois de excursionar cinquenta páginas pelo russo-americano fui navegar nas águas do franco-romeno Emil Cioran. Um pequeno livro de aforismos, de título Sillogismes de l’amerture/Silogismos da amargura. Normalmente passamos pelas palavras numa pressa atabalhoada, com o Cioran isso não é possível, e vai-se sentindo o terreno como o cego apostado numa corrida de cem metros obstáculos: sentindo o risco não só em certas partes mas em todas as partes, e sofrendo o embate dos seus aforismos lapidares.

«Que não nos falem mais de povos submetidos, nem de seu gosto pela liberdade; os tiranos são sempre assassinados demasiado tarde: essa é a sua grande desculpa.», ou:

«Dizer: “prefiro este regime a tal outro” é flutuar no vago; seria mais exacto dizer “prefiro esta polícia à outra”. Pois a história, com efeito, reduz-se a uma classificação de polícias; pois de que trata o historiador se não da concepção do policiamento que o homem foi perpetrando através dos tempos?».

E às tantas, dou de caras com o capítulo Sobre a Música. Como também eu, apesar de intermitente, sou um melómano opalescente (hum, será que funciona?) entretive-me a traduzir:

SOBRE A MÚSICA

Nascido com uma alma normal, pedi outra à música: foi o começo do desconcerto, de desastres maravilhosos…

Sem o imperialismo do conceito, a música teria substituído a filosofia: teria sido então o paraíso da evidência inexpressável, uma epidemia de êxtase.

Beethoven viciou a música: introduziu nela as mudanças de humor, deixou que nela penetrasse a cólera.

Sem Bach, a teologia careceria de objecto, a Criação seria fictícia, o Nada peremptório.
Se alguém deve tudo a Bach é sem dúvida Deus.

Que são todas as melodias ao lado da que afoga em nós a dupla impossibilidade de viver e morrer?

Para quê reler Platão quando um saxofone pode igualmente fazer-nos entrever outro mundo?

Sem meios de defesa contra a música, estou obrigado a sofrer o seu despotismo e, segundo o seu capricho, a ser deus ou maltrapilho.

Houve um tempo em que, não logrando conceber uma eternidade que pudesse separar-me de Mozart não temia a morte. O mesmo me sucedeu com cada música, com toda a música.

Chopin elevou o piano ao esplendor da tísica.

O universo sonoro: onomatopeia do inefável, enigma desdobrado, infinito percebido e inacessível… Quando se sofre a sua sedução, já só se concebe o projecto de fazer-se embalsamar num suspiro.

A música é o refúgio das almas ulceradas pela dita.

Toda a música verdadeira nos faz palpar o tempo.

O infinito actual, paródia para a filosofia, é a realidade, a essência mesma da música.

Se tivesse sucumbido às meiguices da música, às suas chamadas, a todos os lugares que ela suscitou e destruiu em mim, há muito tempo que, por orgulho, teria perdido a razão.

A propensão do Norte para idear outro céu engendrou a música alemã – geometria de Outonos, álcool de conceitos, ebriedade metafísica.

À Itália do século passado – um bazar de sons – faltou-lhe a dimensão da noite, a arte de exprimir as sombras para extrair a sua essência.
Há que escolher entre Brahms ou o Sol…

A música, sistema de adeuses, evoca uma física cujo ponto de partida não seriam os átomos mas as lágrimas.

Talvez tivesse esperado demasiado da música e não tomei as precauções necessárias contra as acrobacias do sublime, contra o charlatanismo do inefável…

De alguns andamentos de Mozart desprende-se uma desolação etérea, como um sonho de funerais na outra vida.

Quando nem sequer a música é capaz de salvar-nos, um punhal brilha nos nossos olhos; já nada nos sustém, a não ser a fascinação do crime.

Como gostaria de morrer pela música, como castigo por haver duvidado da soberania dos seus feitiços.

12/09/2019

De novo insone, releio. Não apenas para ficar surpreendido pelo que sublinhei então, à vista de outras passagens que ganharam com o tempo, mas também pelo que anotei nas margens. Aqui deixo algumas três notas:

Conta Joni Mitchell: um dia na primária copiei uma casota de cachorro mais direitinha do que a dos meus colegas e então pensei vou ser artista. Eu sempre me julguei o cão de uma casota demasiado perfeitinha, que só desarrumada poderia salvar uma alma.

E só aceitei que era escritor aos quarenta e cinco quando intui que me condenara à pobreza e que aí mais valia enveredar por alguma forma de dignidade.

Desde então não minto e à noite apedrejo os semáforos.

Kafka desejava saber em que momento e quantas vezes, estando oito pessoas a conversar, convém tomar a palavra para não passar por calado. E estando trinta pessoas a conversar? Ou oitocentas na palheta? E estando um tigre e um galo?

“Todo o decoro que sustém o turbilhão”, escreveu Sílvia Plath – e mais nenhuma ramagem precisaria de assombrar para adivinharmos a sua silhueta, invisível, no meio dos flamingos que grasnam, garimpando o branco, na líquida púrpura do poente.

Entretanto, lastima-se uma rouca voz feminina atrás de mim (“à minha atrás”, se diria em escorreito moçambicanês): “O meu telefone inventou de tomar banho!”. Melhor, só se alguém entrasse para anunciar, Foda-se, numas escavações do Peloponeso, achou-se a gravata do Aristóteles.

19 Set 2019

Israel recupera documentos de Franz Kafka 

[dropcap]A[/dropcap] Biblioteca Nacional de Israel revelou esta quarta-feira documentos recuperados do escritor judeu checo Franz Kafka, terminando uma saga judicial sobre a sua propriedade com mais de dez anos. Quando lutava contra a tuberculose num sanatório austríaco, o autor de “O Processo”, sobre os labirintos e extravagâncias do sistema judicial, e “A Metamorfose” pediu ao seu amigo Max Brod para destruir todos as suas cartas e escritos.

Após a morte do escritor em 1924, Brod, nascido em Praga e também judeu, sentiu não poder responder aquele pedido. Em 1939, quando trocou a antiga Checoslováquia ocupada pelos nazis por Telavive, levou os papéis de Kafka numa mala. Publicou depois numerosas obras e contribuiu para a celebridade póstuma de Kafka, considerado uma das principais figuras literárias do século XX.

Mas a morte de Brod em 1968 deu início a uma “história kafkiana” sobre o destino daqueles arquivos, resumiu a porta-voz da Biblioteca Nacional de Israel, Vered Lion-Yerushalmi.

O tesouro foi dividido e uma parte roubada antes de ser posta à venda na Alemanha. Desde Março de 2008, a Biblioteca Nacional lutava para juntar e guardar a colecção em Israel, disse o seu presidente, David Blumberg, numa conferência de imprensa.

“A Biblioteca Nacional reivindicou a transferência dos arquivos pois era o que Brod dizia querer no seu testamento”, declarou, adiantando: “Iniciámos um processo que levou 11 anos e terminou há duas semanas”.

Em Maio, após a decisão de um tribunal alemão, Berlim entregou milhares de artigos e manuscritos que terão sido roubados há dez anos em Telavive para serem depois vendidos aos Arquivos literários alemães de Marbach e a coleccionadores privados. Outros documentos encontravam-se no frigorífico de um apartamento em ruínas em Telavive, assim como em cofres bancários na mesma cidade. Um último lote encontrava-se num cofre-forte da sede do banco suíço UBS, em Zurique, e foi uma decisão recente da justiça suíça sobre este lote que permitiu à Biblioteca Nacional de Israel acabar com a saga.

9 Ago 2019

A inocência e a plenitude

27/01/2019

 

[dropcap]U[/dropcap]ma rede de olhares mantém unido o mundo, não o deixa cair. As palavras são forcas onde aos poucos penduro a razão. Pago em goles de sangue pela respiração. Temos sede, pressa e golpeamos com o osso de uma flor na treva. O cervo vai a beber e na água aparece o reflexo de um tigre: o cervo bebe a água e a imagem e torna-se igual ao seu inimigo; só damos vida ao que odiamos.

Todos os que têm pontos de referência no espírito, quero dizer de certo lado da cabeça, em zonas bem delimitadas do cérebro, todos os que dominam a sua linguagem, todos aqueles para quem as palavras têm sentido, quantos crêem que existem alturas na alma e correntes no pensamento, os que são o espírito da época e assim designaram essas correntes de pensamento, penso nos seus trabalhos precisos e nesses guinchos de autómato que a todos os ventos empresta o seu espírito – são uns porcos.

Esta rede de versos e estrofes de diversos poetas que traduzi e que montei acima é a minha rede de caboclo que não deixa cair o meu mundo. Durante dois ou três anos traduzi dezenas de poetas e várias línguas, só para não me exasperar e recuperar o humor nas flutuações da minha vida em Maputo: os poemas funcionam como respiradores. Um terço deles, num volume de quase duzentas páginas, onde antologio vários dos meus poetas hispânicos, vai conhecer edição, pela Letra Livre, que agora me propôs isso. Foi um bom convite.
Aqui deixo dois poemas transcriados por mim e de que gosto muito. O primeiro é de José Ángel Valente:

ÚLTIMA REPRESENTAÇÃO
A parlar d’ira, a ragionar di morte.
Rime:CCCXXXII

Os deuses/ desta Primavera/ não me foram propícios/ e cautelosamente os execro, mãe/
incógnita, blasfémia, fonte do rogo.//

Dispuseram os seus praticáveis negros/ sobre o tablado./ Começa o espectáculo,/ mas só um final se representa. //

Ao centro da cena, um homem/ ou a figura de um homem/ de macilentos zigomas ostenta/ uma pesada cornadura./ Por cada um dos cornos/ faz beber sujos detritos líquidos/ à sua exânime estirpe.//

Excremental o homem./ Nada / com ele nem nele podia/ crescer, multiplicar-se./ Nem sequer o pranto./ Povoai a terra./ Oh deuses,/ desatino sem fim, sem fundo, o deste sonho. //

Fita as lamparinas, deslumbrada,/ a mulher nua que alumia/ com uns límpidos e ofuscados olhos o nada. //

Começa a cair o pano./ A sombra/ ameaça cair outra vez sobre a sombra. //

Só eu aplaudo, na sala apinhada/ de espectadores mortos.

O segundo é de um tremendo poeta flamengo, Hugo Claus:

Sexta, 14 de Novembro, aniversário de Dante,/ laureava no meu jardim, o crepúsculo estava clemente,/ e cismava em Dante. /Sou assim feito, penso em Dante sem parar./
Tenho qualquer coisa dele, acho. Em moderado.//

Então chegaram os dogues voadores numa nuvem de enxofre/ penas e ganidos, mesmo aos meus pés. /Vazados, como num fragmento de Canto, / essa corja abateu-se sobre o meu relvado / e pôs-se a esgaravatar e a gralhar num chavascal / odioso, um verdadeiro pesadelo,/ as penas espalhavam-se ao quintal dos vizinhos/ entre os seus moinhos miniatura e os seus gnomos./ Depois, de repente, eclipsaram-se. Uma verdadeira visão de Dante.//

Escutem, eles deviam evidentemente ter-se contido./ Acreditem-me, uma fúria daquelas,/ aquela crepitação de garras e asas, mais a berraria / e o pivete que se entranhou por semanas no vestuário,/ não, como erudito, aquilo agradou-me pouco.//

Sobretudo, e é disso que se trata, que o meu móbil / tenha passado por um momento tão indigno, que digo eu,/ eles chamaram-lhe um figo – tragaram-no.//

Tinha-o construído eu mesmo, à Calder, airosa e / ingenuamente suspenso em cores primárias,/ um triângulo, um círculo e um quadrado: eis tudo,/ que era também, por acaso, o tudo/ a que eu chamava o meu “Universo”, /pois não simboliza o triângulo o corpo/ físico, oral e mental, / e não é o quadrado a água o ar e o fogo e a terra, / e não é o círculo, digo bem, o círculo, unicamente / a realidade terminal? / Aos três elementos, ligados por um esvoaçante fio de ferro,/ tinha-os pintado de rosa, a dar para o salmão, /com o seu quê de elegante.//

Como eu disse aos polícias: «Essa bicheza / comezinha e irresponsável não apenas demoliu / e se empanturrou com uma obra onde eu in-ves-ti / anos de trabalho manual,
mas também com a projecção da minha alma e da minha ética./ E quem, meus Senhores, me poderá alguma vez indemnizar?»//

«Caro Senhor», disseram os polícias, «o infinito / contém em si múltiplos elementos informes».//
Eles anotaram a minha queixa. Queixa /contra uma grandeza desconhecida /de digestão infinita. / Odeio a minha mulher e os meus rebentos./ Dante é a minha única consolação.

28/01/2019

Escreveu Paul Auster: «Aquilo que admiro em Perec é a rara combinação, na sua obra, de inocência e de plenitude. É raro encontrar estas duas qualidades juntas num mesmo autor. Cervantes possuía-as, Swift e Poe também; e há vislumbres delas em Dickens e Kafka. Por inocência entendo uma pureza de intenção absoluta. A plenitude traduzo-a por uma fé absoluta na imaginação. É uma literatura caracterizada pela efervescência, um riso demoníaco, a alegria. Não é a única experiência que podemos obter com os livros, mas é a experiência fundamental, aquela que rende possível todas as outras», e eis, aliás, o que eu gosto nos dois. E é o sentimento de termos logrado esta feliz combinação que pode tornar jubilosa a conclusão de um romance.

Foi o que me aconteceu agora com A Porta Entornada, o romance que dei por terminado, onde pela segunda vez julgo ter conseguido criar um mundo autónomo, com personagens à altura dessa dimensão “marciana”.
Estou um pouco arrombado, mas feliz.

31 Jan 2019

Caverna de Kafka. Castelo de Platão

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á sempre aquela vista do castelo. De baixo para cima. O meu olhar esperançoso de que desta vez seja por uns tempos e que depois tudo. O tudo de sempre. Volte ao normal, por uns tempos, o normal de sempre. Avanço na direcção da porta. Do castelo. A porta ali ao lado, o castelo em frente, em cima.
Ai, ai ai, ai ai. Rola despedida curva abaixo. O castelo pelas costas. Casario acima. O calor a insuportar. A bandeira pendente.
Ai. Responde a caverna ao vento. Cidade acima, bandeira a adejar. Adejou e parou. Ai. Com um guincho de travões.
Take I – Travo a cadeira de rodas com um joelho e um canto da barriga, só um canto, para poder agarrar-lhe, para além da cadeira, os cotovelos. Inclinar-me para ela. Erguê-la. A cadeira escorada contra o carro de ladeira acima. Ou abaixo para ser optimista, ou, já não sei. Os cotovelos e deslindar-lhe os pés dos apoios para os pés. Que se levantam mas caem. Não encontro o travão da cadeira. Se calhar já não tem. Há um momento crucial em que, para dar o impulso de a entornar, quase assim, coitadinha da minha paciente sempre e sempre paciente em tudo isto, para o banco dianteiro do carro, me distraio do canto da barriga, do joelho na cadeira, e avanço o outro joelho em que quase sentada, há-de deslizar um pouco abruptamente para o banco. Enquanto a cadeira se solta e desenfreada descreve um curva vertiginosa em rota de colisão com a ambulância que avança entretanto numa correria desatada e uivante. Ao lado uns metros entre mim e o castelo, o segurança e um paramédico conversam da vida encostados a uma outra ambulância em repouso. Olham eles. Olho eu. Olho estarrecida, muda e estática a curva da cadeira. A ambulância que corre. A minha paciente que pesa e quase cai. A cadeira, que no seu desvario curvo, vence as leis normais da gravidade e sobe desvairada numa rota já escondida do olhar por detrás do carro. Os cotovelos da minha paciente, paciente, e o joelho a amparar-lhe as pernas vagas. Aterra no assento meio de lado. A ambulância pára mais à frente. A cadeira louca também. O segurança e o paramédico olham, eu olho. E disparato um pouco, alivio os fígados: pediu ajuda? Não, não pedi…
Sento-me no carro, aperto-lhe o cinto e digo-lhe qualquer coisa carinhosa. Respiro fundo, furiosamente. Eu respiro sempre fundo quando há tempo. Olho-a no seu alheamento paciente com desvelo. Porque é para além de tudo o mais. Mas um outro lado de mim, tem uma enorme vontade de rir com todo aquele potencial fílmico. A cadeira desvairada e a ambulância, em rota de colisão como nos desenhos animados. Mas o riso, fica um pouco lá atrás da melancolia de tudo.
Take II – Mais tarde na semana, o carro de ladeira acima, ou abaixo consoante a perspectiva. Os cotovelos, um joelho discreto a amparar a paciente, paciente, e outro a cadeira destravada, devia ter um travão mas se calhar já não tem, e o canto da barriga a ajudar. A paciente entornada com a delicadeza possível no banco dianteiro do carro. O joelho a prender a cadeira que gira um pouco sobre si própria, teimosa e impaciente, a querer libertar-se. Fechar a porta. Suspirar fundo e olhar em volta a querer exibir um ar triunfante. Talvez mesmo um sorriso. Ninguém. A observar, a ajudar. Isto correu bem. Devolver a cadeira.
Take III – A mesma cena, só que sem paramédicos, ambulância, segurança, cadeira de rodas, paciente. Na verdade a única coisa em comum é o carro de ladeira acima, com a patinha quase a descambar na valeta com sarjeta abismal, porque o segurança diz sempre encoste o mais à esquerda possível, e o nariz bem encostado ao sinal de sentido proibido, porque o segurança diz sempre encoste o mais possível ao sinal. Fecho a porta do carro de ladeira acima e de monco caído. Eu. O carro também por empatia. Não há cadeira tonta, não há paciente, paciente. Nada. Ficou lá. Para ir logo se vê para onde. De resto só aquela figura que diz, monstruosa, o preto, o macaco que está ali, o segurança. Um outro, neste caso. Mais nada. Devia disparatar de dentro para fora, mas estarreci e engoli em seco, como antes, a olhar para a cadeira, e um pouco reduzida a metade de mim, no dia longo. Desculpem-me todos os que leram aquela frase. Sim, não é que me choque mais a cru, é que me sinto morrer mais um pouco. Este humano demasiado humano. O excesso de realidade nos momentos limite. Hospitais devolvem qualquer um ao seu interior nem sempre belo. Mas há momentos feios de morrer. Lá fui de monco caído, como disse. No sentido contrário ao do castelo. Aliviada. Descansada. Ou não. Quase a antever a saga do cobertor azul. O pico anedótico dos episódios seguintes.
Grande plano final – E depois, aquela arrumação provisória de um trecho de vida a recobrir de qualquer outra coisa que distraia, que faça esquecer até amanhã. Fechar uma gaveta e abrir uma outra de onde se evole uma possibilidade de conforto. Voltar a casa. De caminho uma passagem rápida no supermercado. Uma daquelas latas do costume porque tenho a impressão de que ontem ainda não jantei. E num gesto compulsivo agarro com o mesmo desespero que a uma boia de salvação, um pé de orquídea. Minto, dois, na realidade três, pés de orquídeas. Phalaenopsis floridas, delicadas naqueles tons de branco a esverdear e olhos amarelos. E uma, branca mesmo, de olhos purpura, e a imperfeição de um sinal da mesma cor numa única pétala de cada flor. Como um pequenino borrão de tinta. Um sinal curioso e assimétrico de imperfeição. Como aquele sinal do meu pai. Negro e saliente sobre o canto do lábio superior. Não me lembro de que lado. E que os fotógrafos retocavam sempre, a fazê-lo desaparecer como marca de imperfeição. Havia um único retrato dele em que isso não aconteceu. Não lembro qual. Por aí no baú, tenho que o encontrar, mas não agora. E ela rebelava-se tanto. Gostava daquele sinal. Adorava vê-lo inteiro em cada retrato.
Flashback – Durante mais de dez anos nunca lhe falhámos um domingo. A meio da tarde, fizesse o tempo que fizesse. Até quando a ela já lhe custava muito percorrer aqueles passos. Limpar o mármore. Arranjar as flores frescas na jarra. Conversar sucintamente sobre a composição do ramo. Retirar um pé aqui e pôr ali. Ramos de folhagem recém colhida. Sempre variadas e naquela mistura aleatória de que ele gostava. E da quinta, para lhe serem mais próximas. Algumas plantadas por ele. Ainda. Depois ficávamos um pouco em silêncio. Cada uma no seu. Ou a falar com ele, talvez. E íamos. Mais adiante virávamo-nos sempre, mas sempre, para trás a ver como estava. A jarra. Só dizíamos coisas como hoje ficaram bonitas. Estão bem presas, não vão voar com o vento. Está bem. Hoje ficou bem. Quando deixei de poder ir com ela, deixei de ir. É uma dupla mágoa. Ela a limpar com o lencinho o rosto de esmalte da fotografia. Naquele gesto eterno das viúvas. A minha avó fazia o mesmo. Eterna saudade. Escrevemos-lhe. Sim.
E eu levo-as para casa, as orquídeas. Que mesmo em sombras delicadas na parede, me confortam. Junto-as num único vaso branco, na necessidade urgente de afogar os olhos nelas. O desvio. E deixá-las inundar-me com o animismo daqueles olhares benévolos. Encontrar a doçura possível do dia. Como elas, as flores, com uma marca de imperfeição. Mas é assim a vida. Zoom out.
E, pensando em filmes, só me lembro da cena final de “E tudo o vento levou”, com Scarlett O’Hara, personagem talvez por vezes um pouco tonta, mas corajosa, a dizer esse monumental estereotipo: “amanhã é outro dia…” E é… Acordar. Zoom in sobre um copo bonito de sumo de laranja e começar o dia com uma cor veemente…escrever cartas de amor, talvez, sei lá…e o que fôr. E depois.

9 Set 2016