Ficção real

[dropcap]N[/dropcap]uma escala reduzida, estamos a viver nas páginas de uma obra literária viva, com pulso e personagens reais submersos em mundos equiparáveis aos de Huxley, Orwell, Atwood e das narrativas distópicas mais plausíveis de ficção científica. A humanidade há muito que não partilha a mesma angústia globalmente, um calvário cuja natureza talvez só equiparável de uma forma muito restrita e local a Chernobyl.

Vivemos guerras que abalaram o planeta, com ondas de choque a chegar a todos os cantos da Terra, genocídios em toda a parte do globo e ao longo de toda a nossa história. Passámos de raspão pela ameaça de aniquilação nuclear, treva mortífera à distância de um botão.

Vimos abismos em abundância desde a ascensão da espécie da insignificância ao topo da cadeia alimentar. Genocídio, barbárie e ódio assassino estão na natureza de todos os humanos. Mas isto soa diferente, há aqui novidade pintada a tons de surrealismo.

No meio do natural entrincheiramento dos poderes para preservar a subsistência em tempos de crise, este recolhimento total é algo que nos une, a auto-reclusão traz um sentido de partilha remoto.

Mas no meio deste episódio de “Black Mirror” não vejo medo nas pessoas, pelo menos em Macau. Com maior ou menor estoicismo, os que chegam a Macau são isolados em quartos de hotel, como se a vida se materializasse em blue-ray ou streaming.

Nos próximos capítulos, ou séries futuras, não me parece desfasado que o recolhimento e a inevitável reflexão tragam conclusões sobre a forma como vivemos. Isto pode ser um reset nos modos como as sociedades estão estruturadas actualmente, com uma actualização que beneficia o retorno ao essencial em detrimento do supérfluo, a solidariedade e empatia em vez de avareza e egotismo, o poder da união face ao antagonismo.

Neste momento, largas centenas de pessoas são semeadas por largas centenas de quartos de hotel, com 14 dias de solidão e separação do mundo pela frente. Não avisto qualquer fetiche governativo a delirar com cárceres hoteleiros e a magicar experiências sociológicas que procuram o cúmulo do room service.

O mundo, que nunca antes havia estado tão aberto e conectado, recolhe-se individualmente em prol de todos. Cada pessoa é uma cidade, um país, uma ilha, encerrada entre quarto paredes, com níveis diferentes de intensidade de clausura. À porta dos hotéis menos óbvios de Macau, familiares e amigos formam filas para levar amor aos seus enclausurados.

Há sempre alguém que conhecemos nesta situação. Também eu levei bens a uma pessoa querida. À entrada do hotel/mosteiro/prisão de hospital, fomos conduzidos para lá do cordão de segurança em grupos de cinco para depositamos os sacos numa mesa. Cumprimos a nossa parte.

O resto é uma encenação entre a normalidade e um cenário de filme. Os sacos são colocados nos típicos carrinhos de bagagem dos hotéis. A carga de coisas e afectos é depois passada a uma pessoa completamente coberta por um fato cirúrgico, com uma máscara que abarca a cabeça toda, que conduz as coisas para dentro da fortaleza hoteleira.

Os sacos são colocados à porta do respectivo quarto e a pessoa desaparece antes que o enclausurado abra a porta. Tudo isto é matéria extraída do universo da fantasia, do sonho, da realidade para a efabulação.
Concordo em parte com os que acham que um acontecimento desta dimensão e natureza pode mudar a forma como as sociedades funcionam. Concordo porque acho que a experiência do Covid-19 se vai repetir no futuro, e a chapada de realidade que todo o mundo está a levar é um prenúncio do que está para vir.

Porém, solidariedade momentânea em momentos de aflição ou de terrível aborrecimento não tem a bruta e letal força argumentativa do capital. Facto trágico ao qual se aliam os lobos solitários, agentes de dissonância alimentados pela ideia de que só eles entendem o que se está a passar. Eles é que sabem, são os únicos de olhos abertos. Não me entendam mal, é natural e saudável suspeitar de todos os governos e esferas de poder, mas os limites da resistência param no umbigo.

A liberdade precisa de protecção constante. Mesmo quando falamos da fronteira final do nosso derradeiro arbítrio, da soberania exclusiva que temos sobre o nosso corpo.

Se a medicina diz que estamos a arriscar a vida se continuarmos a entupir a cara com bacon, cigarros, whisky e açúcar, especialmente depois de um problema de saúde, temos a liberdade para fazer o que acharmos melhor, de não seguir conselhos e acarretarmos as consequências das nossas decisões.

A diferença é que jamais iremos contaminar alguém com o nosso AVC ou ataque cardíaco. Já agir irresponsavelmente com esta doença, que é do mundo, pode significar graves problemas para outros. A facilidade de contágio e a perigosa camuflagem da ausência de sintomas, transforma este bicho numa coisa diferente.

Quer se reconheça, ou não, vivemos tempos históricos e potencialmente transformadores, saídos da dimensão ficcional e sem um último capítulo à vista.

23 Mar 2020

Como encontrei o amor em 10 dias

[dropcap]N[/dropcap]o seu mais recente romance, Andrew Neill leva a sua técnica preferida, a ironia, à perfeição, a começar logo pelo título: «Como Encontrei o Amor em 10 Dias». O leitor mais distraído será levado a pensar tratar-se de um livro de auto-ajuda, que pretende ajudar-nos a encontrar eficazmente o amor, e num curto espaço de tempo. Mas o Amor é um Golden Retriever que fugiu do narrador do livro, John Walmsley, durante uma viagem que fizeram juntos numa carrinha a Pasadena, Califórnia, desde Denver, no Colorado. Numa das paragens que John faz numa Estação de Serviço, perde o Amor.

O narrador conta-nos essa história de um modo simultaneamente divertido e reflexivo. «Tivemos sempre problemas em público, Amor e eu. Sempre que o chamava, com um tom mais severo – Amor, vem cá; ou Amor, senta –, caiam sobre mim olhares reprovativos, e nesse dia em que o perdi não foi diferente. Estava a pagar, dentro da Estação de Serviço, quando vejo o Amor sair a correr atrás de algum animal que viu. Deixei de imediato a carteira sobre o balcão, e virei-me a gritar “Amor, volta; Amor, volta”, para espanto das pessoas que estavam na fila, não se coibindo de fazerem comentários.» As reacções dos outros, não à relação entre John e Amor, mas entre John e quem eles julgam que possa ser, é uma constante no livro e sublinha o nosso ponto de vista usual na condenação pronta que fazemos aos outros ou, como Neill escreve: «Antes de tentar compreender, estamos já a condenar. Falar é sempre mais rápido do que reflectir, e muito mais distrativo também. Falar não custa nada e distrai-nos de nós mesmos. Há algum remédio mais eficaz para não pensarmos na merda de vida que temos do que falar mal de alguém ou de alguma coisa?» Evidentemente, Amor é um cão e não é um cão. É, porque se trata do Golden Retriever de John, e não é, porque ao longo do livro é sempre descrito como metáfora do próprio amor que todos nós perdemos na vida. Não só pessoalmente, cada um de nós a perder outro, mas a humanidade, ao entregar-se à fala, a um contínuo e imparável falatório, que tem como motor o mal. Em «Como Encontrei o Amor em 10 Dias», o mal é a fala e esta representa a distração, a falta de reflexão, no fundo, a falta de amor, pois este quer atenção, como a leitura ou a aprendizagem. Assim, o livro pode também ser lido como forma de aprendermos ou reaprendermos o amor, de como voltarmos à atenção perdida, como abandonarmos o mundo do falatório e começarmos a trilhar o caminho do amor. E, neste sentido é também um livro de auto-ajuda, ainda que num sentido mais alargado e talvez menos eficaz do ponto de vista comercial. De qualquer modo, o escritor consegue manter uma tensão contínua ao longo do livro entre realidade e simulacro, no tocante ao género

Andrew Neill é conhecido pelas posições polémicas e assuntos delicados que trata nos livros que escreve e este romance não é diferente. Se estais lembrados, já em o «Não Conheço Esse Senhor», que provocou uma enorme celeuma nos EUA, Neill contava de modo irónico a história de um político desde a sua terra Natal, Gillette, pequena cidade em Wyoming, até Washington DC. Ian Bolden, o político, vai subindo na carreira através de situações e pessoas obscuras, e sempre que era confrontado pelos jornalistas acerca dessas ligações respondia «Não conheço esse senhor», apesar de haver fotos que o desmentiam. Ian Bolden mentia sem pudor, compulsivamente, adiantando as mais bizarras desculpas. A sua táctica mais arrojada, que era usada apenas quando já nada mais restava fazer para acreditarem nele, era a de que estavam a tentar destruí-lo. Diz num programa de televisão a uma jornalista que o entrevista, com um semblante entristecido:

«Ellen, eu sei que parece que estou a mentir, que tenho culpa de tudo o que me acusam. Sei muito bem disso. Mas sabe porquê, Ellen, sabe porque todos pensam isso? Porque a teia de intriga que montaram foi muito bem feita. Aqueles que me querem destruir são muito poderosos. E eles sabem bem que eu sou uma pedra nos seus sapatos. Sabem que sou um obstáculo aos seus planos de subjugar o nosso país aos interesses das multi-nacionais.» Neste livro, o aproveitamento dos bens públicos para benefício próprio está tão ligado à prática comum da política, que não deixa de ser incómodo para toda a sociedade, para todo o eleitor, como quando Neill escreve, através de um cartaz que aparece nas mãos de Sherry Smith: «Votar é escolher aquele que te rouba».

Em «Como Encontrei o Amor em 10 Dias» o tom é igualmente reflexivo, se bem que mais divertido. A ironia é levada ao extremo do seu rigor, da sua duplicidade. Para não estragar o fim àqueles que ainda não leram o livro, não poderei adiantar muito mais. Termino apenas por dizer que essa viagem de 10 dias no Oeste dos EUA em busca do Amor – e a do dia em que o perdeu – é uma viagem ao nosso quotidiano, ao nosso modo de vida mais próximo. Talvez mais do que «como encontrei o amor em 10 dias», o livro mostre «como acabei de me dar conta de que perdi o amor, em 10 dias». Seja como for, é um livro a ser lido, do melhor de Andrew Neill.

3 Mar 2020

A paródia religiosa

[dropcap]A[/dropcap]inda que tenha deixado o seu último romance inacabado, Angel Jesus Tornado pintou uma das maiores reflexões acerca de São Paulo no seu “Ninguém em Damasco”. Foi sempre visível ao longo da sua obra a obsessão pelas figuras marcantes da história e por um tom reflexivo na sua escrita. Apenas como exemplo, lembremos estes três livros: “Um Homem É Uma Ilha”, centrada na figura de Napoleão; “Existência”, cuja narrativa percorre o ano em que Kierkegaard rompe o seu noivado com Regine Olsen; e “Queimar o Mundo”, onde Jesus Tornado explora as tentações de ódio que assaltam o humano na sua relação com o mundo através da figura de Nero.

Mas em “Ninguém em Damasco”, Jesus Tornado transfigura-se e transfigura a sua própria ideia de prosa. Talvez a proximidade da morte seja a responsável pelo tom mais metafísico do livro ou, então, seja o próprio tema, a conversão, que assim o exija. Pois toda a conversão é metafísica. “Ninguém se torna outro sem um pé no além”, escreve Juan Mantero, historiador que é o narrador do livro. O salto para o desconhecido implica necessariamente fé, seja ela religiosa ou de outra dimensão. Em “Existência”, Jesus Tornado já havia tocado na questão do salto, imagem tão querida a Kierkegaard, mas o tom do livro mantinha-se junto às sebes, rente ao muro, sem pé no além. No decorrer do romance, Mantero descobre uma pequena passagem de São Paulo, apócrifa, que talvez nos coloque na pista certa: “A morte não é ninguém; quem um dia foi não pode deixar de ser. Morrer é apenas deixar o corpo, pois a morte não passa de tudo o que nunca foi.” Esta descrição de poder morrer e nunca atingir a morte, deixa profundas marcas no narrador do livro, ao ponto de se converter ao cristianismo. Até aí, o seu interesse por São Paulo e pela religião era estritamente “científico”. Mas no romance ficamos a saber que, mais do que o teor da passagem, a responsabilidade da conversão de Mantero se deve à sorte de ter encontrado esses pergaminhos, a que ele chama “Confissões de São Paulo”. Essa descoberta pareceu-lhe um sinal divino, como se São Paulo lhe falasse directamente, como se o tivesse escolhido. Através deste episódio de Mantero, Jesus Tornado tece longas reflexões acerca da necessidade de transformarmos coincidências em sinais, de conferir sentido ao que não tem. “O contrário da morte é Deus e morrer é encontrá-Lo.”

Muitos têm visto em Juan Mantero um alter-ego de Angel Jesus Tornado, intuindo assim uma conversão tardia por parte do autor. Talvez fosse isso mesmo que ele pretendeu que nós disséssemos. Talvez tenha entrado na morte nos enganando, ou tentando nos enganar a todos, fazendo-nos confundi-lo com Juan Mantero. Mas não acredito que contrariamente a Saulo e Mantero que se convertem ao cristianismo, Tornado tenha convertido o seu coração ao além. Mais do que ler “Ninguém em Damasco” como se um romance autobiográfico se tratasse, devemos lê-lo como uma acusação, como uma paródia religiosa. Juan Mantero é já ele mesmo uma paródia de São Paulo, e os pergaminhos encontrados, “Confissões de São Paulo”, uma paródia das Epístolas. No fundo, talvez todo o livro seja, não apenas uma paródia à religião, mas uma paródia à humanidade, na sua contínua busca de pergaminhos, de textos antigos, de palavras que nos iluminem a vida. Mas ainda assim, seria sempre uma paródia à religião. Pois a procura de sentido para a vida nas palavras é um acto religioso por excelência. Angel Jesus Tornado deixa o seu livro inacabado com a seguinte frase, escrita por Mantero: “No aeroporto de Roma, percebi que a minha vida ganhava finalmente sentido. Só quem alcança este estádio percebe que nunca esteve realmente vivo.” Tornado depois morre, não Mantero.

O tom metafísico da prosa deste seu último livro revela-se então, ele mesmo, uma paródia. O tom metafísico é a formalidade perfeita desta paródia. Sem esse tom, poderíamos ser levados a ver o livro como uma crítica, como uma reflexão séria e condenatória à religião. Assim, não. Angel Jesus Tornado entrou na morte a rir-se dela e de nós, fazendo-nos acreditar numa pseudo-conversão. Não procurou imortalizar a alma, mas imortalizou a sua gargalhada.

25 Fev 2020

Romances de bordel

[dropcap]N[/dropcap]ão percebia a razão que proibia o uso de adjectivos na literatura. Ficava em pulgas por não poder dizer que a vista era incrível, ou que a sua mulher era soberba, ou o canto do pássaro divinal. Não, não podia, senão tornava-se um escritor vulgar. E também não devia usar artigos e pronomes indefinidos, um ou uma, nem a omnipresença do sujeito nos tempos verbais, transformando o narrador em figura divina. Nem ser egocêntrico. Estar sempre a escrever “eu isto” ou “eu aquilo”. Isso já era burrice. E assim nunca iria ser alguém no mundo das letras, esse planeta longínquo sem qualquer espécie de órbita.

Não o iriam convidar para representar o seu país em feiras do livro no estrangeiro. Nunca iria a Guadalajara ou à Ilha da Madeira. Se fosse não seria por causa dos seus livros banais cheios de predicados e eufemismos. Irritava-o que as regras tenham sido determinadas desse modo e só lhe apetecia desistir e mandar toda a gente para o catano – era outro dos seus disfarces no estilo, face ao veto linguístico incutido dentro dele que o refreava nas expressões obscenas, em detrimento do tom coloquial. Nem uma asneira caía da sua pena, com medo de fugir ao preceito da gente educada. Nunca na vida iria grafar “casa de putas”.

Se calhar – lembrara-se – devia escrever peças de teatro, aí ninguém iria reparar que era mau escritor, ficaria regido em espaço limitado envolto em cenografias e pontos de luz. Poderia uivar os seus atributos mais contidos e largar as vísceras em cima do palco. O público não lhe apontaria o dedo com indiferença. Não notaria os erros gramaticais, ou as vírgulas fora do lugar, como ervas daninhas na planície de uma página. Sobretudo, porque não seria publicado. Porque se fosse escritor de peças de teatro recusaria o material impresso. Seria apenas dito, ficando a ecoar no juízo descontinuado dos espectadores.

Tinha temas na sua cabeça que lhe ocupavam o horizonte com tempestades que largavam brasas. Onde ultimamente rumorava o cego Gaudêncio e a sua mazurca funesta, “Ma Petite Marianne”, que nunca ouvira, mas que fora tocada quando mataram Baldomero Afoito e Fabian Minguela, na província galega de Ourense, escorria ainda a guerra civil pelos poros dos protagonistas. Duas mortes contabilizadas no título do romance de Camilo José Cela: “Mazurca para dois mortos”. Gaudêncio Beira, seminarista que os padres expulsaram quando cegou, e que mais tarde se tornou acordeonista no bordel onde proliferava a sua sobrinha Benícia. Estilo sujo e preenchido, em autor de fazer inveja.

Nem uma asneira caía da sua pena, com medo de fugir ao preceito da gente educada. Nunca na vida iria grafar “casa de putas”.

Consumira tudo sobre a Guerra Civil Espanhola, desde o documento cronológico ao romance ficcional, regurgitado a várias mãos. Via-se nas brigadas internacionais a experimentar a vida densa para depois a contar. Uma escrita de homenagem à realidade vivida. Ocupara o seu tempo a lambiscar a história antiga de Gregos e Romanos. Imaginava-se em épocas memoráveis, na pele de Quinto Horácio Flaco, por exemplo, poeta romano, contemporâneo dos feitos de sumos imperadores, descerrando os seus dias nas urgências que levaram à morte de Júlio César – o velho Gaudêncio não chegou a tempo para lhe dedicar uma mazurca – ou na luta bélica contra Marco António e Cleópatra. Tempos tão idos como a presença dos acontecimentos correntes. O mundo passava-lhe ao lado. Não ligava aos assomos da sociedade, não interferia em discussões relevantes, não tomava partido. Frequentava sessões ofegantes com alguns amigos escritores, mas tudo aquilo lhe sabia a bombinha de carnaval. A língua morta. Para escrever tinha de estar imbuído numa casa de má fama, onde tudo pode acontecer e onde não medram as teorias da literatura.

E para quê escolher essa profissão? Questionava-se. Porque razão se inscrevera na faculdade com esse objectivo primário? Ainda tinha idade para abarcar outro futuro, que não incluísse o rebordo do estupro fonético. A universidade tinha sido uma tortura. O pouco que lá estivera servira-lhe de boa lição. Levar de supetão com as disciplinas mais teóricas, intransigentes na sua medula há décadas. Aguentar professores perdidos no classicismo sem a ponta de aventureirismo contemporâneo. Os cânones da literatura, a veneração aos clássicos. A moldávia frásica sem fendas, no artifício conotativo e polissémico. Termos que vomitava nos intervalos encostado ao pavilhão da reitoria. Sim, também gostava de Horácio, mas havia limites. Não aguentara o primeiro semestre. Logo no segundo mês as faltas eram frequentes, sem estímulo vagueava pelo bairro universitário sem destino, bebendo álcool e inspiração.

Mas a ideia fixa de autor de ficção permaneceu. Era inventivo. Armazenava livros no seu quarto, que debulhava em qualquer estação do ano. Ter concorrido para ser publicado em jornais para jovens esperanças nacionais já era outra história. Os jovens literatos, sim, não se podia qualificá-los. Não se podia escrever que eram fenomenais, isso já era adjectivar a brigada. Essa nova vaga – ainda imberbe na composição, diriam os seus mestres-escola – eram meras tentativas para o progresso da língua portuguesa. Não eram bons nem maus. Cumpriam a função no caderno de encargos da cultura nacional. Estavam na rampa de lançamento, encostados ao foguetão, em linha de partida. Como o cego Gaudêncio a tocar uma sarapitola e a levar com um balázio pelo ouvido adentro. Talvez fossem seleccionados por alguma editora e se publicassem um livro até podiam escrever sobre eles nas revistas da especialidade. Ou mesmo uma chamada de capa no Jornal de Letras. Quem não almeja uma página sobre o seu nado impresso e umas quantas estrelas? Uma resenha redigida por outra sumidade escolhida a dedo. Sim, isso tudo, mas nada de adjectivos.

16 Jan 2020

Homem das cavernas

[dropcap]C[/dropcap]omeçávamos a beber logo pela manhã. Dormíamos com uma garrafa ao pé da cama e a primeira coisa que fazíamos ao acordar, à medida que abríamos os olhos, era pegar nela e levá-la à boca, como o bebé faz para encontrar a mama da mãe depois de uma noite agitada, às cegas vai tacteando com os lábios até encontrar o gargalo. Era exactamente assim, mas um pouco ao contrário. Antes que a consciência chegasse, optava-se vigorosamente pela inconsciência, corrida de arranque e pura velocidade para ver quem chega primeiro à meta, cruzam-se em algum lado do corpo e talvez pisquem os olhos. Eu sei que será difícil perceber, mas também não posso explicá-lo de outro modo. Até agora o meu lado inerte e espontâneo tem ganho sempre e espero manter essa hierarquia intacta. Quanto ao que estava dentro da garrafa, não é o mais importante. Vodka, uísque, vinho. Algum licor, os restos de um litro de cerveja. Por vezes, absinto ou tequila, para o choque frontal e sangria do espírito. A receita era a mesma: esquecer o dia que nascia com indiferença e que a cada trago se dissipava dentro de nós. Não falávamos, o limite era o olhar cúmplice ao espelho, como quem acabou de comprar bilhete para o comboio e corre para entrar na primeira carruagem, já em movimento.

Sentávamo-nos no bar e pedíamos o que houvesse de mais forte para amortecer os solavancos da viagem. O dia externo a levantar-se, imparável, sol a entrar pela janela, a garganta calejada e arranhada do álcool e de tudo o que o que tínhamos feito na noite anterior, que não nos lembrávamos. Não existia ressaca porque a substituíamos sempre por nova rodada. As árvores a passarem lá fora, o balanço do vagão a embalar-nos o esquecimento com que se ocupava o viver e o hábito, enquanto o ferro gravava o caminho. Viajávamos quase sempre em pé, no chocalhar do abalo a bebida corria melhor, nem era preciso segurar o manípulo, acompanhávamos o ritmo dos carris até ao fim da linha. Balanço sem fim à vista. E pouca terra.

Quando saíamos para a rua – temos sempre de atestar a adega em algum lugar, não é? – sentíamos as fisgas dos olhares que nos rodeavam, como quem diz: “Lá vem ele!” A todo o momento esperavam pela desgraça, que um eléctrico nos passasse por cima e desse cabo do nosso desejo. Que tropeçássemos no varandim da ponte ou simplesmente que desfalecêssemos ali mesmo, em plena calçada, desfazendo a dupla que afinal se engalfinhava dentro de um só corpo. Mas não, o amor aguentava-nos, o amor pela bebida, a manchar-nos a alma de manhã à noite. Sem variar, trazia mão amiga não para o abraço, mas para o empurrão, combustível para mais uma jornada que nos levava até ao apeadeiro seguinte. Com pouca terra.

Até que apareceu a porta aberta. A luz a entrar. Anos fechado naquela complexidade existencial, podia finalmente sair. O caminho estava ali, delineado, a chamar-me; se escutasse com atenção diria que gritava pelo meu nome, para que lhe esticasse a mão. Apesar da derrota, o ser vigilante que a espaços sobrava cá dentro sempre desejara sair daquele covil, deixando a pele de cobra para trás. Mas agora que podia fazê-lo, hesitava. O que encontraria lá fora? Pensei que a janela de oportunidade não ia durar muito e não estaria aberta para sempre, nem sequer por uma mão cheia de minutos. A decisão teria de ser tomada naquele momento. A solidão era penosa. A vida que o álcool afogava invadia os dias e não deixava aperto para mais, tornando-a vazia para o contacto abissal do outro. A companhia era só o copo na mão. Não havia necessidade de reflexão. Se ainda sobrasse um pouco de lógica, a escolha era óbvia e estava tomada.

Sentávamo-nos no bar e pedíamos o que houvesse de mais forte para amortecer os solavancos da viagem. O dia externo a levantar-se, imparável, sol a entrar pela janela, a garganta calejada e arranhada do álcool e de tudo o que o que tínhamos feito na noite anterior, que não nos lembrávamos.

Despertara, foi isso, sem querer e sem plano. Palavras que desconhecia o significado esperavam do lado de lá do rebordo entreaberto. O limiar primário tinha agora uma fresta para o amanhã. E tanta ilação desnecessária quando devia apenas andar. “Anda!”, pediam as pernas, velejadas no ímpeto do sofrido de uma rotina desagregada e encolhida. Não ficava ninguém para trás, os anos passavam e a imaginação era o meu único segredo. E a fenestra, ali, a vivificar todas as minhas ausências. Iria encontrar o abraço, o sabor sonhado do beijo. “Vai!”, pedia-me o corpo. A soletrar a partida, passo a passo, percorrendo factos e seriedades. A caixa escura esventrada à luz universal. Floresta densa, estrelas e varandins, por onde se pode escorregar para o transeunte sedento aplaudir. “Lá vem ele!” Paisagens que dão nome aos sentimentos. Iluminação natural, uma cabine ampla e amortecida. Saía ou entrava? O motivo da dúvida obscurecia a evidência transformada em tentação. O fruto da árvore infinita, de múltiplos ramos, escolhas sem restrição, equações vorazes. E como era difícil a preferência, assim como era a extinção.

Que ponto era aquele? Não tinha reparado nas tabuletas, o cobrador não viera picar o bilhete. Teria adormecido na viagem, parado no destino e sem saber voltara para a origem, para debicar a mama da mãe? Os solavancos, uma leve dor de cabeça que trazia o sintoma nunca vivido do rebentar da presença em bruto e não líquida. Sim, a vista dali era curta e sem pretensões. Era pouca, a terra. A vida era deglutida de uma só vez pela preguiça. Sombra nos tímpanos, tacto mórbido, idioma encortiçado. O esperado ocorria entre os limites mais rasteiros e o despertar não trazia vantagem. No dia não se via o céu. Inverno. Verão. Era igual. Já nem o frio se sentia, quanto mais o calor. A capacidade vestia a definição, não se movia, não iluminava. Alambiques, tonéis, dornas. Definido em centilitros e copos de dois dedos, o alimento era a suficiência. O tempo, a chegada. “Sair?” A dúvida a anoitecer e a abrir a cama. “É isso que tu queres?”, falava o corpo, falava o vício. A porta escolhida na calha da resolução, quadrada, despida. A mente não ordenava, a estática sofria por ficar. A mudança desconhecida penetrava na inexatidão, amortecendo a humanidade e devolvendo o futuro. Para quê sair se cá dentro existia todo o universo, lá fora haverá alguém? Haverá mundo? Não há, com certeza.

21 Nov 2019

Filhos de um grande apito

[dropcap]O[/dropcap] guarda-redes foi o primeiro a ceder, não fez por mal, talvez estivesse um pouco distraído, e quando se esticou para impedir que a bola entrasse dentro da sua baliza, não conseguiu. Estava assomado com dores de cabeça, o dia não tinha começado bem, momentos antes viu-se a pensar noutro assunto que o levou para longe da sua pequena área. Eram coisas que que se arrastavam e que não andava a conseguir resolver. Questões de heranças que lhe tiravam o sono à noite e impediam que descansasse como convém. Remoía, distante, sem reparar que o capitão da equipa contrária galgava na sua direcção trazendo a bola à frente, já desprovido de opositores que lhe amainassem o galope. Só acordou quando o remate foi desferido, meditando que todo aquele esforço o tinha a si como destinatário e era dirigido aos seus reflexos. A potência do remate, o ângulo, a destreza do rival ao ter conquistado tal posição na ponta do terreno. Chegara a vez de mostrar a sua elasticidade, razão primária por estar no interior daquelas quatro linhas, exactamente à hora marcada, numa das equipas principais e icónicas do país.

Mas sendo atleta de alta competição não podia compadecer-se com tais recolhimentos, completamente fora das suas funções. Na centelha do desportista não há tempo para que o pensamento chegue ao raciocínio, quanto mais conseguir que volte para trás dando ordens aos órgãos do corpo que habita. No campo só funciona o instinto, a intuição e, claro, o esplendor físico. Nada mais. Raras excepções, têm a inteligência na ponta dos pés. Não era o caso. Ainda saltou, percebendo exactamente onde a bola, que surgia a velocidade estonteante, se iria cruzar consigo. Mas fê-lo com desapego, como se naquele momento estivesse a ligar a televisão preparando-se para ver a partida sentado no conforto da sua sala. “Olha o guarda-redes a saltar. Não a vai apanhar.”

Quando tomou consciência do acto, já o árbitro apontara para o centro do campo e vários jogadores saltavam para as costas do felizardo goleador, construindo um castelo de carne humana por cima dele. Das bancadas, alguns assobios e exclamações menos próprias da claque desiludida, abonecada até ao nariz com as cores da sua equipa. Tinham recebido uma facada nas costas. E doía. O coração pingava. Colocou o dedo polegar de uma das luvas para cima, pretendendo afirmar que estava tudo bem, que a partir dali ia redobrar a atenção e valer-se dos seus atributos. Quis suster o furor dos adeptos, para que amparassem os seus ídolos e não estivessem já de lâmina afiada nos dentes. Pelo rumo dos acontecimentos, iriam precisar deles com máxima energia, era injusto cortarem o cordão umbilical logo ali ao primeiro desaire. “Ok!”, quis transmitir, sabendo de relance que nem o bramido de um estádio cheio a puxar por si iria elevar a sua moral. Continuava de braços caídos. Olhou para o céu. Um avião lá em cima a passar. Não conseguiu distinguir a companhia aérea. Ia para Norte.

Tinham decorrido apenas vinte minutos de jogo quando isto aconteceu. Havia ainda um período largo para recuperar, mas o rolar do relógio tanto podia funcionar a seu favor como contra. Depois, foi um defesa que falhou um passe. Tinha-se organizado de maneira a enviar a bola lá para a frente, para os avançados, para se ver livre da responsabilidade de ter o esférico a queimar-lhe as botas. Era assim que fazia, não retinha a bola mais do que dois ou três segundos em seu poder, pressentia o movimento da equipa e batia lá para a frente, de modo certeiro. Era essa a sua maior qualidade, pela qual era muitas vezes referenciado nos jornais desportivos, os passes de longa profundidade. Mas qualquer propósito o fez mudar de rumo, talvez falta de confiança momentânea ao não sentir a deslocação propícia dos seus companheiros como era hábito, a soprarem com vento adverso, e como recurso fez um atraso; muito mal articulado, diga-se. Um adversário que o perseguia à laia de predador faminto, esticou a perna e o rechaçar da bola fez com que saltasse um pouco mais para a frente, onde estava outro jogador isolado com a mesma cor de camisola. A partir daí, foi só dar um toque por cima do homem da baliza, que mais uma vez saiu atarantado da sua área para a defender, e esperar pela alegria das bancadas e o estribilho dos homens da rádio a esticar a goela até ao prancha das unhas dos pés. Dada a movimentação das peças naquele hectare, a física ditava que não havia muito que pudesse ter sido feito de outra forma. Nem o monstro do lago Ness, nas terras altas da Escócia, conseguiria defender aquele remate, saído directamente da linha sábia de um ângulo de bowling. Uma coisa assim deixaria qualquer um de olhos tortos.

Os tempos eram outros, a época áurea dos futebolistas de maior renome começara naquela altura a preencher anúncios de óbitos dos jornais. Só assim eram recordados. E feitos, depois de mortos, grandes homens, às costas do pretérito de inusitadas homenagens. “Ah, morreu!” Aí, as pessoas lembravam-se e vinham para a rua chorar, escrevendo grandes emolumentos.

Lá saltaram e festejaram o golo. O marcador triturado pelos camaradas de partido que lhe abafaram o corpanzil numa moche de heavy metal. Não havia muito mais a realizar, a desmoralização colara-se às chuteiras de toda a equipa. Eram soldados prostrados, indiferentes ao canhangulo do inimigo. O guarda-redes não deixava de pensar na santa terrinha e na família desavinda que se fraturou pela ambivalência do dinheiro, ao recortar o legado paterno via interpretação desconcordante. Ajuizados na cobiça de um futuro que nunca tiveram, agarraram-se esfaimados ao que não lhes pertencia. Ele, que não precisava de nada e tinha a vida feita, assistia incrédulo àquilo tudo, no lugar mais baixo do camarote, sem nada poder fazer. No entanto, pelo arrasto dos detritos, o sentimento trespassava as redes da sua baliza e vinha agachar-se na sua conduta. Assim como a família, a linha de simpatizantes que o acarinhavam como jogador de futebol estava pronta a descambar. Vinha duvidando se algum dia iria voltar aos grandes palcos internacionais e às grandes vitórias, que vivera com grande alegria. Pressagiou que a partir dali, soava naquela altura o apito do árbitro a finalizar a primeira parte, o rumo da sua carreira seria apenas descendente e que num par de épocas estaria a jogar na divisão inferior ou em clubes asiáticos, só para continuar a ter algum proveito financeiro.

Ainda tentaram ir lá para a frente – “Às armas! Às armas!”, ralhava o mister desesperado – acreditando que era possível virar o resultado. Mas não. Um remate para as nuvens, um canto mal marcado, um passe longo demais; foi esse o resumo dos acontecimentos. Se na primeira parte o jogo já estava perdido, na segunda foi a catástrofe de uma ponta à outra. Nem arma secreta no banco existia, tal era o desfalque efectuado ao longo dos anos pelos órgãos administrativos que por ali passaram. Tirando o guarda-redes e mais dois ou três, que tinham um historial considerável, a estrutura definida para defender aquele emblema centenário era formada por um bando de ilustres desconhecidos ou por apostas vagas de treinadores e cabecilhas diletantes, executando negócios que só interessavam aos bolsos dos empresários. Eram tão maus que nem o penteado lhes souberam instruir. Os tempos eram outros, a época áurea dos futebolistas de maior renome começara naquela altura a preencher anúncios de óbitos dos jornais. Só assim eram recordados. E feitos, depois de mortos, grandes homens, às costas do pretérito de inusitadas homenagens. “Ah, morreu!” Aí, as pessoas lembravam-se e vinham para a rua chorar, escrevendo grandes emolumentos.

E o pior de tudo, era que a realidade não indicava bom augúrio para o resto do campeonato, que se iniciara precisamente com aquele jogo. De um ano para o outro, o treinador ficara à condição e arrastava-se, era mais um que nem a sombra das comemorações da república iria ver ali sentado. Ao sair do estádio já levava o rabo a tremer. O presidente de olhos postos no relvado, a conjecturar forma de pagar as dívidas, nem deu pela sua presença. Todos tinham observado o que aí vinha, só um louco ou um pescador do lago Ness poderiam ditar o contrário. Não havia como evitá-lo. Seria mais um ano perdido na cauda da tabela e longe do brilho dos foguetes. Era óbvio, a herança ficaria por resolver. Ad eternum.

28 Out 2019

Tropa do vento que passa

[dropcap]C[/dropcap]ontinuo à espera. A última mensagem que recebi foi de que não tinha conseguido apanhar o hidrofólio a jacto. E pior: que aquele era o último, porque os barcos tinham ido todos ao fundo. Não acreditei. Julguei que estava a usar linguagem literária, que “fundo” era metáfora para a situação que se tem vivido. Como beco sem saída ou a penúria de um poço. Lugar onde o retorno não é possível face ao tumulto em pleno andamento. Antes, faláramos e informou-me de que as tropas tinham entrado. Vinham carregadas de fuzis balísticos de exagerada dimensão, “só para mostrar força e poderio”, explicara. Aparelhos colossais que patenteavam suprema inovação tecnológica, até ali, inexistente em lado algum. Entraram, sem sobreaviso, como quem vem para uma parada de Domingo, aperaltados de fulgor e mudança. Assim que chegaram à Avenida, os manifestantes que até aí estavam a gritar as suas deixas de mundo ideal e pacífico, enervaram-se e quiseram enfrentá-los, pondo-se à frente dos primeiros blindados, gritando: “Saiam daqui, esta não é a vossa terra!” Umas formiguinhas com catarro, terão notificado as unidades no terreno aos seus oficiais. Aos magotes: “Isto é nosso!”

Contou-me os acontecimentos ao pormenor, mas escutava sem crer no que estava a entrar-me pelos ouvidos, ao não conseguir unir factos. “Sim, sim…”, concordava, só para manter a conversa acesa, tentando conjecturar o relato. Ainda no sofá, ligara a televisão para testemunhar as lagartas metálicas a pisar o alcatrão, imaginando outra época, que à luz daqueles novos acontecimentos tinha avançado para distância mínima. Mas não estava lá nada. O trânsito rolava incólume. Os canais continuavam com a programação corrente, nenhum rodapé a relatar o sucedido. Nem directos nas redes sociais ou comentários exasperados, não existia palavra sobre o assunto fosse em que lado fosse. Aparentemente, os negócios decorriam da forma usual. Como sempre.

Só por via das dúvidas, dirigi-me ao Terminal, onde ainda me encontro. Vi barcos atracados, mas nenhum a aproximar-se. Perguntei a razão e garantiram que por vezes acontecia. Não foi preciso apertar-lhes o pescoço. Que não tinham chegado à hora marcada, podiam ter-se atrasado, uma corrente mais forte, julgaram, mas não tentaram obter mais informações, continuaram ali de cócoras à espera que a Lua curvasse no céu. Fora isso, sentia-se a tranquilidade a desprender-se para o estado de decomposição. Ali, nada sabiam.

O burburinho electrizante das luzes sussurrava por entre a névoa do costume, que trazia a amnésia do fundo do rio apinhado de pérolas, como uma orquestra de grunhidos desafinados. Bagagens por embarcar. Os solavancos da água do mar a fazerem-se sentir em terra como se o mundo estivesse todo a abanar e em convulsão. A esfera rolante a querer fugir debaixo dos pés para outra galáxia qualquer, deixando as pessoas na mesma posição geográfica, entregues a si próprias. No imediato, sem desculpa, o planeta já não estava cá. Evaporizara-se. Deixando o vácuo e o abalo. Mais coisa, menos coisa, essa era a sensação. Mas a mordaça imperava.

Poderá acontecer algo assim, um controle total da informação que se dissipa pelo éter sem deixar rasto? Põe-se a mão e tapa-se para a posteridade a fisionomia das tropas que avançam de forma inédita pelo território contíguo, vaticinando o futuro de todos os seus habitantes, transpondo para a realidade, ao invés, anúncios de desodorizantes e paraísos turísticos. Para que o público em terminais próprios continue a regozijar-se na sua abundância paralela.

“Sim, sim…”, persistimos deste lado, incrédulos. Barcos desocupados presos às vagas dos paredões, tentando acompanhar o ritmo da superfície onde estão pousados. Marujos em terra, salpicados com a hidrosfera das suas amantes, num mundo que flui impávido. Vendedores que delongam folhetos apinhados de sonhos adulterados. A figura risível do vento que passa a transportar a imaginação das trevas da outra margem. Hinos emparelhados nas botas cardadas que se puseram a marchar, cheias de satisfação. Veia seca sem fios. A ilusão marcha. Zangões armados até à lufa a impelir a desordem. Marcham! A brisa que emudece a desgraça. Será tudo fantasia?

As comunicações interrompidas. Já não sou o único no pavimento esquivo do Terminal. Outros seguiram as suas preces crendo que os seus entes regressavam. No tempo, a saudade inebria o juízo e nem a sombra da mais ignóbil miragem os acode. Acocoramo-nos em sintonia de olhos postos nos simbióticos ecrãs que auscultamos entre os dedos. O jornalismo emudeceu. Afrontamos o baço do horizonte que não devolve reflexo. Ou ponta de eco. Os homens, onde estão os homens? O tino a esfarelar-se, a deixar-nos cegos e a respirar por máscaras.

Diz-se que entraram. “Entraram, eles entraram!”, repetem, tentando dedilhar nos aparelhos a ocorrência escondida, como se a realidade fosse uma aplicação. Não se fala em ofensiva, nem invasão. Alguns usam restabelecimento, como se o termo fosse um analgésico. Toma-se e o efeito é imediato. Também segredam – sem acreditar – que os barcos se afundaram. Que a calamidade é extrema. E que o escurecimento é integral. Mas a sonolência da informação não certifica nenhuma vírgula do discurso. O que nos chega é a normalidade clara de um mundo abaulado, na sela híbrida do telemarketing. A tecnologia celular perdeu as funções vitais e deixou de transmitir esclarecimento à geração seguinte, talvez abalroada por doença degenerativa.

Sem cenário do destino, a imaginação corre desenfreada. Confundidos entre filmes de guerra e ficção científica, protagonizados por Jeff Goldblum a fazer de Karate Kid, remexe-se a memória para a prospecção de tais actos. O visto e o previsto. Cilindros e betoneiras a remoer as estradas, levando tudo à frente, deixando o mundo fininho como um boneco animado. Filmes mudos que avançam na rotação errada numa tempestade de postais deslustrados. A cidade murada a expandir-se das suas ruínas. Mais miséria do que opulência. Como se recoloca a ordem na virtude venérea do livre arbítrio a não ser pela sua derrocada?

Mas o bolso volta a tremelicar. Acordo da alucinação e atendo. “O que aconteceu?”, grito exasperado. Alegro-me pela linha restabelecida. E não invadida ou ofensiva. Todos se levantam, apinhados no confim escorregadio do Terminal, alguns escorregam e tombam no reboliço das águas. Perscrutam. Tentam captar o sopro da certeza. Os silvos enternecem a realidade, prenunciando as luzes das embarcações que se avistam. Espantamo-nos com os relatos de desodorizantes e paraísos turísticos que descem dos auscultadores. A descrição da figura robusta que desaponta os iludidos dos naufrágios e perdições de toda a sorte. “Não entraram!”, ralham. Frustrados pelo volte de face da moeda, como se a máquina tivesse ficado com o troco. Não há como abaná-la, pensam ainda. Passado que foi o cabo das tormentas, a vida continua. De hidrofólio a jacto.


IMAGEM © Randy Lewis
10 Out 2019

A verdade superior

[dropcap]Q[/dropcap]uando regressei ao jornal depois de umas semanas afastado, sem dar qualquer tipo de explicação aos leitores ou aos colegas, tinha bem visível na minha secretária uma indicação para ir falar com o chefe. Já sabia o que me esperava. Começou por dizer que apreciava muito o meu trabalho, que sempre acreditara em mim e no que era capaz de provocar, tanto na ira como na exaltação do público leitor. Mas não conseguia gerir as minhas ausências, desaparecia por semanas sem dizer água vai, e isso irritava-o sobremaneira, não podia controlar o exaspero que se assolava dele, por vezes, capaz de esmurrar alguém. Logo agora que ele tentava adoptar uma filosofia ancestral de bem-estar, incentivando a arte da quietude.

Para além disso, dava erros, deixava frases incompletas, ideias difusas difíceis de compreender, uma engarrafamento com a pontuação, metia os pés pelas mãos e escrevia com as unhas ainda por cortar, como as garras de um animal faminto. E a seguir, o inevitável. O usual. Sim, já não era a primeira vez, mais cedo ou mais tarde acontecia: “Está despedido!” E eu: “Espere”, nestas alturas formais não havia a camaradagem do trato por tu, “isto é capaz de dar uma boa história”, e fui buscar um caderninho para tomar notas, na esperança de que ele dissesse algo surpreendente.

Mas não disse. Notificou-me, apenas. “Arrume as suas coisas, pode ir embora, não precisamos mais de si.” Mas ainda assim, apontei o que lhe saiu da boca, palavra por palavra, sem deixar nada de fora. “O que está para aí a escrever, não disse para se ir embora?” E quando redigi o último ponto de exclamação passei-lhe o bloco para a mão. Quando o leu, olhou para mim de relance, já com qualquer coisa a querer sair-lhe do nariz. Mas antes que isso acontecesse a curiosidade levou-o de novo para o que tinha entre as mãos, e tomou a atenção nos seus dedos que começavam a dedilhar as folhas cosidas e encadernadas entre uma capa grossa e negra.

Fez uma pausa para respirar, como se os ensinamentos que tinha vindo a aplicar o tivessem alertado de que era necessário estancar o veneno que se soltava dentro dele, levando-o à meditação e à perscrutação do seu eu a qualquer momento do dia. Indagava e seguia o âmago do seu lado primata, sem sensação exterior e só consciência. À minha frente, via-o cerrar os olhos suavemente, inspirando o ar congestionado que nos rodeava e exalando-o ainda mais devagar, refeito. Fez isto uma ou duas vezes, como se estivesse sozinho e rodeado de floresta densa, onde o pipilar de aves exóticas e o doce escorrer da chuva tropical fizessem parte do cenário. As pálpebras que caiam sem pressa e o levavam para a frondosa natureza que desabrochava dentro de si.

Já nas nuvens espessas do seu ser, recitava naquele instante o título do Sutra do Lótus em sânscrito, a língua sagrada, fazia-o de modo continuado para eliminar as energias negativas acumuladas. Seguia os ensinamentos do monge budista Nichiren, que no 28.º dia do quarto mês lunar de 1253 elaborara esse mantra, o Daimoku. Deixava entrar o místico da inimaginável profundidade da vida que transcende a compreensão humana. Idealizava a flor de lótus, a flor e a semente que germinam ao mesmo tempo. A causa e efeito em simultâneo, numa só vereda, a abreviarem-lhe o entendimento. Sem dar por mim ou pelo caderno. Ou pelo facto de me ter despedido segundos antes.

Desde que entrara nesta completude de espírito, sentia um fascínio pleno pelo conceito de Dharma, um termo que encerra toda a compreensão do universo num grão de areia. Sentia-se glorificado por tê-lo descoberto. A Lei, era assim que o considerava quando a ele se referia. O fio por onde tudo se delineava e seguia de modo ajustado. Como se todos os remoinhos do cosmos se tivessem integrado numa plena gota de água e daí irrigassem toda a criação em redor, gerando rios, mares e a essência da vida. Tanto que escutava essa harmonia e tão grato estava por ter encontrado essa verdade superior. Sentia-se elevado.

Em tudo isto, no ir e vir, consegui ainda abrir e fechar os olhos e acalmar-me também. Dando azo às sensações auditivas, não entrando dentro de mim, mas fora, encostando-me ao que poderia estar a passar-se do outro lado da parede quando pegasse nas minhas coisas e saísse dali. Para todo o sempre, estava em crer. Não que sentisse o desapego dos meus colegas ou a troça a afunilar-se. Embora não privasse muito com eles, eram cúmplices de instâncias e vontades comuns. Estávamos no mesmo comprimento de onda. Em suma, iríamos ficar tristes e, possivelmente, com saudades. Mas nada que o tempo não curasse. Não, apesar da sintonia, não existia ali grande afecto.

Naquela altura só desejava ir-me embora. Já estava com os olhos lá fora, no futuro. Na mesa que ia abandonar, no computador que me feria a vista e deixaria de me apoquentar.

O caderno estava cheio de rabiscos e ideias avulso. Pensamentos tresmalhados que me saltavam da tampa e que tinha de apontar, como fiz com o encanto daquela hora de despedida. Depois perguntou-me o que era aquilo. E eu disse-lhe: “Nada!” Sim, não era nada, eram apenas fantasmas soltos que me davam insónias e que passava para o papel durante as madrugadas. Mas era realmente mato denso e havia ali muita coisa que nem eu sabia e que nunca pegara com o intuito de ler com a atenção de um averiguador. Já não me lembrava o que lá estava, e estava agora a observar a primeira pessoa a entrar naquele pipilar de pássaros. As gotas a escorrer nas folhas densas de amazónia milenar. A torrente feita nascente. O desdito nexo. E o autoclismo do espírito a fazer-se soar. Página atrás de página.

Estancou particularmente na personagem do irmão do Governador, que tinha sido inspirada no degredo que eu era, e que de tempos a tempos ia desenvolvendo. “Que é isto?”, e leu em voz alta: “Há medos, quase certezas do desfecho. O diário completa. O irmão que lhe veste a pele e prossegue.” E eu respondi que eram ideias para um romance que queria escrever sobre o território. “Agora que vou ficar sem trabalho talvez tenha tempo para o desenvolver”, como se aquilo fosse uma frase feita que me acompanhava a vida inteira, e o tempo perdido não fosse uma constante da minha existência, e fiz tensões de me levantar para me ir embora, esticando o braço para ele me devolver o caderno e um aperto de mão. Mas ele, pelo contrário, não correspondeu aos meus ensejos. “Espera”, disse finalmente, aquilo surgia quase como uma ordem e para quem tinha acabado de ser despedido não soava nada bem. Para além disso, voltáramos a tratar-nos por tu. “Tens aqui coisas muito boas.”

Mas não queria saber, naquela altura só desejava ir-me embora. Já estava com os olhos lá fora, no futuro. Na mesa que ia abandonar, no computador que me feria a vista e deixaria de me apoquentar. Os calções de banho que já tinha por baixo, a pensar onde tinha ficado a toalha. O guarda-sol, os chinelos. O comboio a gasóleo que tinha de apanhar, que me daria muito tempo para pensar, e o encontro com o que tinha ficado à minha espera, estendido ao sol. O meu Dharma.

“Fique com ele”, disse-lhe, já estava cansado de pensar na história do Governador e aquilo não ia dar em nada, “talvez tenha sido escrito por um monge budista.” E quando deu por isso, já os meus ex-colegas estavam com um aperto no coração.

26 Set 2019

Intoxicação elementar

[dropcap]O[/dropcap] relógio pára, alguém se senta à mesa e começa a escrever. Tenta arrumar pensamentos e debitar no papel ideias sobre a China. Deixa o cursor correr livremente sem apreensões do que verá escrito ao passar a ponte que separa a verdade da mentira – ficção da realidade, presente do futuro – ou a dúvida da exclamação. De janela aberta para o mundo, saboreia a brisa que corre para outras realidades. Bandeira ao vento, cheio de obstáculos, expõe o que lhe vai no discernimento, apregoando: nós, humanos, estamos aqui!

Arriscará essa pessoa fazer sombra a desmedida soberania, argumentando teimosias como um banal  “Homem do Tanque” – saquinho na mão, silêncio, dor –, de quem nunca se sabe identidade ou paradeiro? Esse homem que atravessou a ponte sem olhar ao precipício, cansado, com o desejo único de chegar a casa e respirar. Atarraxado à surdina da sua teimosia, enfrentou o colosso metálico com uma serenidade relampejante e ao fazê-lo deixou inscrita na retina da humanidade, colada ao ecrã, a bravura no seu esplendor. Trecho para sempre gravado, momento único e sublime. Já deu. Ocupou todos os canais. Mas será interdito falar neles, nos homens do tanque? Onde estão, já se foram? Passam a que horas?

Administrar um país não é tarefa fácil, há malhas irrequietas de indivíduos dotados de raciocínio para ajustar. São cativados a cada pulsar para que tomem determinado partido e direcção. Ao princípio, como todas as relações, é uma história de amor e pura sedução, repleta de alegrias e momentos dóceis. Mas com o passar do tempo outras ânsias se intercalam, o feitio começa a ser visto como defeito; os galanteios, importunações; os afagos, brutalidade; e por aí fora. A linha que define os extremos esfuma-se e a vida torna-se uma extensão perene de conflito e incerteza. Apesar das retractações, pedidos de escusa e elevações de espírito, nada volta a ficar como antes. Em casa, as malas chegam-se à porta. Num país, as ruas ardem e os governos mudam. Para mais tarde, em ambas as situações, o baile voltar a ser o mesmo e a cantilena regressar ao horário nobre da sabedoria. De todos os donos de casas.

Ao tomar conta de uma nação, existe o dever de proteger os ocupantes que nela germinam, dando-lhes conforto, educação e ciência. Este é o cardápio básico. A partir do momento em que a flor brota, os regentes da pátria tentam alistá-la no seu viço, para a vida inteira. Fazem-no na qualidade de jardineiros, assim como os progenitores que inscrevem os filhos ainda por rebentar no clube da sua predileção. É complicado regar esta planta, não basta o gota-a-gota. Em muitos casos, o nutrimento estanca, o gume desprende-se da faca e sementes adversas espigam. Som e fúria. Contrariando as necessidades de um vegetal, o desafio dos animais racionais não é só físico, mas mental. E aí não há sortilégio que atenda a complexidade das carências colectivas em uníssono. De cabeça perdida, o amante opta pelo impulso do malho no cinzel para esculpir o seu dito mais duro. Os governos, por seu lado, não se diferenciam. Apodrece-se o povo, para que se transforme e vingue num verão melhor. E tanta coisa se faz com matéria que apodrece. Um bom vinho, um bom queijo. A colheita precisa de fermentação. O tempo tudo cura.

No juízo vigilante, as redes ilimitadas da sociedade convergem para o mesmo ponto, o mesmo pedaço de alcatrão. Em sequência, as criaturas vão aparecendo no ecrã. “Estás lá?” Caminham juntas, por padrão, ainda ao lado dos famélicos da terra e do ar, encaixados nas caras dos livros, face ao poder dominador sempre que este se expande como domador de leões. Falamos de autoritarismo sem freio. Apesar da mordaça e da mais sofisticada disrupção propagandista, não há como negá-lo, o protesto ergue-se. Convocam-se liberdades. O ser. A voz. Algo que em anuências déspotas é negado na escarna política. Por demais exemplos na História – não é necessário tirar um curso para o aprender –, o ser revolta-se, a dor grita. Esta é a ordem congénita da natureza humana. Não há nenhum homem com o direito de privar outro dessa universalidade. Qualquer um. A liberdade é o ensinamento que circunscreve a identidade de cada indivíduo. Seres análogos. Uma espécie só. Cabeça, tronco e membros. Na semelhança se pungem diferenças. Como franjas de vocabulário.

Em casos alguns, grande parte do poderio é canalizado para toldar o progresso com realidades lineares e sem flatulências. Nem que para isso tenha de se produzir a falsidade e a “re-história”, erguendo a deseconomia e, mais à frente, a extinção. Criam-se modelos ordenados para enfrentar os juízos do povo, moldando clamores com poderes exacerbados que misturam modulações sociais, separando o trigo do joio, ora subindo o tom, ora baixando as acústicas mais graves. O sistema coloca-se em posição, em estéreo, para provocar a indolência. O técnico experiente e equitativo intende para que não se chegue à distorção, para que se entendam todas as nuances – dos instrumentos às vozes – instaurando a harmonia e a ponderação. O funcionário obtuso, às mãos de forças superiores, fá-lo espalmando a circunstância. Como um algoritmo, corta raízes, força pela anulação. Estingue. Seria ideal se todos tivessem oportunidade, sem que se façam das electrónicas estados de direito.

Os ponteiros avançam. Pessoas sem medo enfrentam poderes magnânimos, cá e lá, sabendo de antemão ser causa perdida. Antecipam-se e arrastam o universo às costas. Os astros rebolam, as ciências despertam. Porque o fazem? Modorra, urticária, infortuna? Poder-se-ia pensar que os homens que detêm o domínio na China são gente flexível, capaz de distintas perspectivas e sensibilidades para ultrapassar as limalhas da História ou o rigor do plano mestre. Não dá certo, tenta-se outra configuração, dando um passo maior do que as pernas. No país do meio, que já não é o de outrora, abre-se sempre um novo embrulho. Porque não é este país como o nosso? Será apenas pelo número infinito de gente?

Que dizer dos residentes de Hong Kong que protestam há meses rabiscando o seu destino? Ritual de fim-de-semana transformado em conexão sagrada, tentando – pasme-se! – que o território onde nasceram possa navegar ao sabor dos seus ventos. A base da revolta? Um “país” que possa viver livre. Surdina, colosso, relampejo. Palavras que não definem democracia, mas que a tentam sintonizar, com velas desfraldadas às ventoinhas do artifício.

Que pretendem os homens do Norte – e do Sul – quando esticam e apertam a corda? Que tencionam demonstrar ao mundo? Torná-lo melhor? Sorte ou azar daqueles que nascem num país com liberdades diminutas por uma questão de ideologia, idolatria ou desconfiança. Que pena, não serem livres e determinados sem mão ajustadora a abrir-lhes o caminho desde a nascença. Que fazer quando se cai dentro de um espaço limitado sem o horizonte amplo da vida? Poderá falar-se da China sem rodeios, aconselhando os homens que estão lá em cima com um caderninho na mão? Uma nação global a várias velocidades, onde o desencanto e o sublime rolam em paralelo, gota-a-gota. Dúvida ou exclamação? Que fazer dessa magnitude, com tanto de imperial a correr-lhe nas veias, quando o mundo real se desagrega? Quem o vigia, quem tem o plano mestre? O romantismo autocrático necessita de folga. Na fantasia das grandes muralhas a faísca ateia labaredas e pega-se ao fruto proibido. Quem o apaga?

A inteligência purifica o doping da democracia. Em que rua está escrita esta frase?

É relevante dar importância ao que se escreve, não o fazendo levianamente. Por esta altura, a cadeira já se partiu e o escritor nada escreveu. Escorregando por ideias esparsas, mistura modulações para que se entendam as nuances. Tira as coisas do lugar. Um rodízio de sentenças com semanas de maturação para que se leia e se oiça, chegando a outro escrutínio. Sobem-se escadas para se ler mais alto, para se ouvir melhor. Palavras que passam de mão em mão, como a sede que chega à boca, feita história de encantar. Escrito retirado a fórceps do meio de uma cabeça perdida, que ao alinhar esta exacta palavra precisa de a recuperar, para que a flor não murche. Escreve sem olhar, libertando o fantasma da realidade que não se dá a disputas regionais. Face ao escritor que usa as pernas e se põe a correr liso e sem relevo. Que palavras usar, como descrevê-lo?

A China. Pausa. Hoje não se vive. Amanhã, quando tudo isto passar, a vida retoma o seu lugar. Que fazer, Senhora? Que acústica usar para que o comboio chegue ao fim da ponte sem perder carruagens? “A inteligência purifica o doping da democracia”. Será com aspas? Em que rua está escrita esta frase? Os indivíduos irrequietos não calam o seu raciocínio. Consegue alguém colocar-se dentro da vida de outra pessoa? Os famélicos sobram e escoam para outros países. Hong Kong escoa para o mundo, na cola do ecrã. Um mundo perdido e a afundar-se. Se Deus é cinco, o Diabo é seis. Se o Diabo é seis, o Homem é sete. O técnico experiente não deixa chegar à distorção. A melodia persiste. This monkey is gone to heaven.

30 Ago 2019

Sacerdócio da invenção e do desconhecimento

[dropcap]A[/dropcap] história começou quando resolvi não voltar a mentir e começar a dizer, pela primeira vez na vida, a verdade. Estava farto daquele modo de viver. Acordava com uma nuvem em cima da cabeça, corrosiva. Dores no corpo. Má disposição permanente. Nessa manhã, entrei na esquadra da polícia de livre vontade e fiquei à espera que me chamassem. Não foi há muito. Ficaram surpreendidos por me verem ali, mas não liguei e agi como cidadão normal que sou. Havia um aparelho de rádio pequeno em cima da secretária do primeiro escriturário, sintonizava a Antena 2 e passava aquela obra mais famosa de Listz. Nunca consigo dizer o nome, nem agora nem nesse dia, mas desperto e fico deliciado. Toca-se à noite.

Adoro certas passagens, lembro-me de epopeias, e naquela ocasião veio-me à memória uma imagem de campos de batalha ao fim da tarde. Húmidos e desertos onde a luta ainda estava por passar ou já tinha ido sem deixar rasto. E estava absorto nesse poema musicado de Liszt quando chamaram o meu nome e indicaram um gabinete ao fundo do corredor. “O inspector vai recebê-lo, senhor Ministro”, informaram-me. Entrei, era um homem de bigode, figura de Lua cheia, muito sorridente, que me saudou, perguntando-me ao que vinha. E eu disse-lhe, que estava ali para contar a verdade. Que andava cansado de mentir “ao povo”, todos os dias, e que agora chegara a altura de dar com a língua nos dentes. Não perdi tempo e comecei a desbobinar.

Fui logo pelo início, para que não faltasse pitada da história. O inspector de olhos arregalados ia apontando no seu caderninho, tentando apanhar aquela avalanche de informação que me entupia a boca e que na dele deixava escorrer um fio de baba.. Ao princípio não acreditou, mas à medida que fui descrevendo as situações com todo o pormenor, não esquecendo o nome de ninguém, percebeu que não estava a mentir e que estava a contar, tintim por tintim, tudo o que a sua brigada e a nação inteira andavam a tentar descobrir há anos e que até ali só suspeitavam. Aquilo era um tsunami na investigação, ia virar o país e deixá-lo de pernas para o ar. Era a verdade pura e dura.

Claro, a retaliação não se fez esperar. Semanas depois, quando o esclarecimento já se deslocara para outros destinos, dou com uma trupe de cavernícolas à porta do ministério. Apesar das trombas com que vinham, não lhes fiz frente e deixei-os entrar. “Façam favor”. Foi tudo muito natural. Não disseram logo ao que vinham, não eram de grandes falas. Deram-me um papel para a mão e sugeriram que não resistisse, que deixasse as coisas andar, que era melhor. Abri o papel dobrado em duas partes, li. Era só isso, vinham tomar conta dos incidentes. Queriam castigar-me. No papel vinham escritas as razões, queriam libertar-me do remorso, asseguravam, em letras grandes. Que desse um passo atrás. Que voltasse à esquadra e repetisse tudo, mas ao contrário. Disse-lhes que não valia a pena, que essa coisa da liberdade já estava gasta, agora a luta era outra. “Que se foda a liberdade!”, gritei. Sim, a luta é a vida, sem vida não há liberdade. Por isso, escusavam de estar para ali a inventar e a fazer perder-me tempo. Empurraram-me e ataram-me com uma corda. Se não me calasse e não fizesse o que pediam, penduravam-me da janela, pelo pescoço. Para dar o exemplo.

Nada estava certo naquela cena, e não havia qualquer ponta de justiça. Mas isso já era de esperar, a  maior surpresa era virem falar em liberdade. Tinham era de engolir. “Que querem vocês com a liberdade, que vão fazer com ela?”, mas nem pestanejaram. Um deles estava mais enervado do que os outros e estava prestes a perder o autodomínio. Queria ir-se embora. Achava que aquela ideia de me atormentarem não ia dar em nada. Que se calhar até tinha razão em ter dado com a língua nos dentes. A coisa não estava a correr bem, transpuseram a porta da rua e logo encalharam num problema de consciência. O que viria a seguir? Informei-os de que atrás da próxima porta estaria o comissário da polícia com um batalhão inteiro que ia dar cabo deles.

Era inédito, estava sozinho no edifício e prestes a sair quando simpaticamente eles tocaram à campainha. Sim, saio desprotegido, não ando com guarda-costas. “Mas estejam à vontade”, garanti-lhes. Atrás da porta não havia ninguém. Ganhava tempo e instaurava a desconfiança. Ouvia-se o piano de Liszt a ressoar nos corredores, a anunciar a obscuridade. Desta vez, não havia epopeia, ninguém se fez ao caminho para o campo de batalha. E pedi para que acabassem com aquela história da corda, estava a magoar-me. Que levassem toda a papelada que quisessem, era um favor que me faziam. Mas em vez disso atiraram-me da janela, como tinham prometido. Pelo menos eram homens de palavra. Hoje em dia, já é raro.

E foi assim que, meses depois, chegamos ao epílogo. O caso é muito sério. Os governantes vão ser demitidos e os seus cúmplices vão para a cadeia. Não há lugar para recurso, a sentença do tribunal é superior e final. Fizeram merda e vão ter de pagar por isso. Devolvem as benesses e as propriedades e é uma sorte se ninguém os agredir na rua. O preço a pagar é mesmo esse. Vão e não voltam. “O governo por inteiro abandona o seu pelourinho”, já se adivinha na primeira página dos jornais. Não há cá “mas” nem “ses”, vai tudo parar atrás das grades e, diga-se, que merecem. O que me vale, são os cuidados intensivos.

A notícia caiu desenfreada no gabinete do Primeiro-ministro, que apesar de toda a trafulhice não estava à espera de semelhante desfecho, aquilo era um complô para o deitar abaixo, berrou ao telefone, não se inibindo de empregar estrangeirismos. “Só podia!” Tentou falar com o gabinete de relações públicas para saber o que era possível fazer, mas de lá não vieram ilações positivas. Podiam fazer um comunicado a negar qualquer relação com o acontecido, o que não estaria muito longe da verdade, mas a opinião pública estava formada e, como tal, tudo o que dissessem seria mais um prego no enorme caixão colectivo. Então, reuniu o Conselho de Ministros, só para saber quem era o autor daquela tramoia. Bastava olhar para a cara do prevaricador para compreender quem tinha sido. Pelos vistos, estava mal informado, os homens da corda não tinham vindo da sua parte. Só soube que eu tinha escorregado do primeiro andar e caído da janela. Há uma coisa que se chama “protecção de testemunhas”. Mas não sei se me volto a pôr em pé.

Na sala, enquanto cumprimentava a sua equipa, passou revista a todos, como se estivessem na tropa. Nem tentou disfarçar. Olhou cada um, homem ou mulher, fixamente nos olhos sem pestanejar, e quem lhe despertou verdadeiramente desconfiança foi o Ministro da Defesa. Sim, ele teria a ganhar com tudo isto, assumiu sem receios. É dos poucos que não será beliscado quando o futuro vier tomar conta da situação e poderá assumir a chefia do governo numa nova candidatura. Sim, tinha sido ele. “Que grande filho da puta!”

29 Jul 2019

Isto não está a correr nada bem

[dropcap]N[/dropcap]ão vai acabar já, diz-se que ainda vai durar um par de décadas ou pouco mais. O sopro. Durante o intervalo, coisas estranhas acontecem. Algumas, rasto de ideias. Outras, erguem-se sem entendimento. Indiferente, o argumento diário continua a ser escrito. Quem segura a pena? Debruçado sobre a bancada, a separar palavras: bonitas para um lado, feias para o cesto da reciclagem, para que possam ter outra vida. O pensamento surge, murmura e apoquenta-se. Faltam ligaduras. Mas isso também se arranja no mercado dos domingos. O indispensável visco que liga a semente ao solo e forma um texto comprido. Com vírgulas extraviadas. Que atravessam ruas.

Materializando, a coisa vai. É país, empresa, aplicação. Um bocado de lata? Não se pode dizer ao certo. Ouve-se falar. Vê-se. Para que a nação avance, o poder está caído para um dos lados. Seres ímpios e invisíveis. Maquinismos que contêm todo o conhecimento e riqueza. Não são homens em cima de guindastes, são aquilo a que chamam números, ou contas de somar. O valor está sempre a subir, como o brilho que ilumina a ignorância. A. B. C. É esta a sigla. Das cronografias.

Só uma, para começar. Conceberam essa coisa a que não puseram nome, mas a que todos chamam de Centro. É uma experiência. Como o vulcão ou o colapso de uma mina. Aí, nesse lugar, espaço aborrecido e desmesurado, fica o âmago de tudo. Foi assim que escreveram no livro das cobranças. Teologia base: o âmago de tudo. Medula, talento, clave. Um parafuso no meio do solo. Pense-se num lugar, escolhido com o dedo na esfera a girar: aqui! E o imaculado cosmos nasce. O meio onde se dividem as frequências. É linguagem encriptada, não compreensível na totalidade. Deve deixar-se assim, com pontas soltas e nada em claro, como segurança para o imprevisível. Olhos menos bem-intencionados afloram tentações suicidas. Medo, muito medo.

O meio. Na grafia chinesa é um pequenino rectângulo horizontal com um traço vertical que atravessa exactamente o ponto central, deixando uma mão cheia de pixéis de cada lado a cobrir o espaço vazio. Para esta determinada posição, no Centro, convergem milhões de seres vivos munidos de razão desviados dos seus caminhos através de cartografia digital, contradizendo as indicações boca-a-boca. Mapas da Google, da Apple, da Microsoft e outras versões open source, assim como as aplicações que os usam, ou os guias Michelin que se desdobram igualmente com as mãos, prestam indicações desacertadas. A todos eles, num raio de cem ou mais quilómetros, essa é outra incógnita, foi dito que era preciso passar por ali. Que passando por ali, pelo âmago de tudo, se encontrava o melhor itinerário. O mais rápido, o mais interessante para a vista. Ao chegarem, atraídos por um magnetismo raro, que lhes empurra as hormonas para fora da tampa, os condutores ou transeuntes desvairados, param. Fazem-no sem juízo aparente. Os carros avariam, a gasolina falta, não há como evitar a necessidade desmesurada de aliviar a bexiga, que emerge sem aviso. Por todas as razões a direcção é aquela.

O trânsito é imenso, todas as estradas confluem para o mesmo ponto, exactamente onde está o parafuso, simbolicamente encriptado e colocado como a marca do caos, só para se ter a certeza de que existe. Um ponto no meio de lugar nenhum. Um campo vazio com milhares de toneladas de pavimento onde todos confluem. O primeiro viajante reza, os outros ressoam e transcrevem as coordenadas. Fazem contas à vida. Despedem-se das famílias. Perdendo a compreensão, não chegam a entranhar. Os que regressam, não voltam a ser iguais. O resultado não favorece ninguém. Alguns ainda gritam pela mãe. Engarrafamento milenar.

Outro exemplo, um restaurante. Fica na Metrópole. Projecto pioneiro deixado nas mãos da robótica e da Inteligência Artificial. A polémica estalou quando foi anunciado que neste empreendimento, área com vários milhares de metros quadrados, não iria existir um único empregado. Espaço amplo, como se sugere. No meio – pequeno rectângulo com traço por cima –, fica a cozinha. Eixo autónomo que roda sobre si como os dias que passam, lá em cima, no fuso do guindaste. Lugar ermo, aparafusado, onde por meio de refrigeração severamente controlada se guardam os ingredientes possíveis para a elaboração de todas as gastronomias. Armários metálicos e gavetas desenhados na perfeição. Aqui, por uma equação liminar é possível preparar qualquer receita, ao gosto de cada cliente. O código está aberto.

O pensamento surge, murmura e apoquenta-se. Faltam ligaduras. Mas isso também se arranja no mercado dos domingos. O indispensável visco que liga a semente ao solo e forma um texto comprido. Com vírgulas extraviadas. Que atravessam ruas.

A preferência é executada através de uma aplicação móvel, que acompanha, examina e notifica, sem esquecer o instante mais residual, o batimento cardíaco de cada bálsamo, a desagregação visceral a determinado elemento, a mais oculta agitação do palato. Tudo é contabilizado. A escolha criteriosa do que se vai comer só é efectuada nas primeiras ocasiões, a partir daí a processo de cálculo que navega no dispositivo sugere e, por critério pleno, acerta. Acerta sempre. Conhece o mais íntimo desejo, aquele ainda não presente na consciência. Representações animadas com a volumetria ideal completam o processo. Imaginação lúdica. Um oceano cresce nas membranas gustativas.

O cliente chega, pára à porta do restaurante e a viatura é prontamente recolhida no tapete rolante, para um lugar na rede de estacionamento horizontal e vertical. Lá dentro, já configurado pelo engenho que traz no bolso, encaminha-se para a sua mesa, seguindo indicações cintilantes no chão por entre o labirinto de mesas. A aterragem ocorre sem turbulência. Os passageiros batem palmas. A ergonomia do assento vai sendo melhorada a cada utilização, eliminando desconfortos e aperfeiçoando posturas. Todo o ambiente conferido ao lugar da refeição é recolhido do imaginário. Aromas, sensações, reminiscências oníricas. Traduzidos em calorias, proteínas e nutrientes.

A aplicação é configurada de modo a repercutir o gosto do utilizador, não esquecendo desprazeres e alimentos passíveis de rejeição física. Mas até aqui, ao longo dos tempos, o mecanismo vai agregando novos elementos, necessários para a melhoria física e uma saúde melhor, combatendo maus hábitos e ânimos rasos. We are what we eat. As rotinas alimentares traçam o gosto e o desgosto. Uma câmara com reconhecimento facial cria padrões de satisfação e proporciona ajustes em tempo real. A miríade de opções é infinita. Na cozinha, um bailado de braços robóticos sincroniza-se entre si, recolhendo os alimentos frescos, cortados na altura, os refrigerados e os naturais. Corte e temperaturas ideais, fornos e dispositivos a vapor. O resultado é encaminhado para as mesas por uma tapeçaria rolante. Apurado a cada garfada, a escolha e o resultado são sempre perfeitos para o cliente, estabelecendo um padrão biográfico sem igual. As quantidades são ajustadas às necessidades e à purificação da alma.

O restaurante também une e proporciona associações entre os utilizadores, juntando-os à mesma mesa. Para os mais ávidos ou solitários, uma companhia virtual que ouve e dialoga é a opção a tomar. De igual modo, o conhecimento flui, proporcionado tempo de qualidade. Nada é desperdiçado. O piscar de olhos. Eficiência energética, estrito controle de produtos e despesa nula com funcionários, minimizam os custos deste prazer gastronómico. No final, a conta é debitada na aplicação e o transporte está à porta. Na segunda oportunidade a primeira impressão é sempre revigorada. O carro não avaria, a gasolina não falta. O cliente volta para novo fluxo de indicações boca-a-boca.

Haveria mais para dizer. Ainda não foste à Metrópole? Então estás à espera de quê?

16 Jul 2019

Tarde demais

[dropcap]D[/dropcap]urante meses percorremos a costa para averiguar o estado do litoral. O nível de erosão geológica, o avanço urbano, a contaminação marítima e, sobretudo, os resíduos sedimentados junto à linha dos mares. Captámos imagens e vídeos com meios tecnológicos avançados, drones e lentes de precisão. Mapeámos o terreno, tornando-o tridimensional aos olhos dos mais leigos. Reputámos o canto dos pássaros. Fizemos gráficos, desenvolvemos um estudo ambiental e, por fim, tirámos conclusões e apresentámos medidas a tomar pelas entidades competentes. Em suma, fizemos o nosso trabalho, sem apoios estatais, sem subsídios públicos. Fizemo-lo porque tinha de ser feito, porque o país precisa destes relatórios. Não nos interessa se é caro ou barato, não é razão que nos impeça de prosseguir. Somos uma equipa pequena, com equipamento próprio e muita formação na bagagem. Se há alguém com recursos na matéria, porque não avançar e apresentar resultados? O planeta agradece.

Com o material na mão, fizemos cópias e enviámos para os ministérios, autarquias e instituições. Encaminhámo-lo igualmente para as associações ambientais e para o fluxo de empresas que de algum modo poderiam melhorar práticas e daí tirar mais proveitos. Não esquecemos os que a todo o momento agridem o meio-ambiente e que não são advertidos e colocados de sobreaviso. Apesar das chaminés e descargas para os leitos cândidos dos rios, nada os distingue no papel. Não há penalizações para os transgressores porque a linha de transgressão ainda está por definir. Também eles receberam um postal no correio.

O Estado agradeceu-nos o esforço e louvou o nosso trabalho, agendando para mais tarde um encontro para aprofundarmos a matéria e colocar planos em cima da mesa, encaminhando-os para uma linha definida de execução. Há muito para fazer, insistimos. Já vamos tarde.

Não interrompemos o trabalho de observação. Aproveitando esta linha primária de comunicação, elaborámos um sucessivo fluxo de notícias frescas e pertinentes sobre a realidade, acrescentando factos para o contexto da situação. Sugerimos leituras, o convite dos maiores talentos na matéria, ciclos documentais para a consciência da população. Orgia iniciática necessária para o volte de face. Do outro lado, o fio contínuo mudo em ecrã escuro de inactividade, como se o coração colectivo tivesse deixado de bater. Outros valores, de pé mais comprido, se intrometiam.

Reportando ao paradigma das praias, sobre o qual se debruçou grande extensão da nossa análise. Na sua maioria, a olho nu, encontravam-se limpas. Não há como evitar os detritos que se acumulam no alto-mar, a origem é global, e com teimosia acabam por se albergar na nossa costa. Há escarpas nas zonas não classificadas com os estandartes de qualidade que requerem uma acção prolongada e, acima de tudo, persistem as descargas feitas nos fluxos aquíferos que quebram a harmonia ecológica. Os nossos dejectos diários. Por outro lado, o nível da água subiu vários metros e as marés vivas aproximaram-se da borda das povoações, engalfinhando estradas, parques de estacionamento e pequenos edifícios construídos ao largo da costa, ora para domicílio ilícito ou como baiucas veraneantes para refresco dos turistas. No passado, ignorou-se o cerne da questão, diluindo apenas o imediato. Construíram-se muralhas rochosas para apaziguar o poderio infinito do mar, procederam-se a demolições, transplantaram-se areias delapidadas de outros corpos celestes. Dragaram-se goelas de rios. A curto prazo, dissolveu-se o prurido e as bolas de Berlim voltaram a ser o apetite mais premente. Mas a raiz continuava a avariar.

Os primeiros estudos foram efectuados há vários anos. Na enxovia do poder, várias caras foram atravessando os currais das assembleias, sorrisinhos para aqui e para ali, promessas eleitorais. Mas em uníssono, apesar das palmadinhas nas costas e missivas floreadas, nenhum deles puxou a corda. O parlamento discutiu, sim, aprenderam a matéria dada, mas não reunimos com ninguém à altura da mudança, nem sequer com o motorista, para nos ceder passagem. Apesar disso, de olhos bem abertos, continuámos a efectuar o nosso trabalho. Desistir não faz parte da ementa. Até que outros veículos se movimentaram, não temendo a corrente do acelerador. Aparelhos desobstruídos. Trindade caída.

Aconteceu de modo natural e intrínseco. Não era propositado o facto de irmos todos juntos, mulheres e homens, de várias origens e lonjuras. Os sinos das igrejas não tocaram, ninguém tocou a rebate. Foi-se confluindo para caminhos análogos, que se uniram num só. Não havia tempo a perder. A luz já tinha despertado em alguns, mas ainda não existia a coragem de nos pormos à estrada. Mas quando aconteceu, foi repentino para a maioria, sobretudo quando a palavra começou a circular de boca em boca. Vamos? Aí soubemos que tinha chegado o tempo certo, de nos manifestarmos, de lutarmos pela importância das coisas. Já não iria existir uma inversão de marcha. Não ia ser como sempre foi. De ouvirmos calados. De deixar a carruagem passar, ao sabor de um nó de gravata ou de um par de óculos de garrafa. O senhor director está ocupado. Sim, erámos pacíficos e tal, mas contra o nosso número, uma união coesa de vontade e revolta, nenhum outro poder teria força para nos impedir. Nem o império do mar. Aconteceu na avalanche, que desce a montanha e faz rebolar o pequeno floco de neve que bate forte dentro do peito, transformando-se a cada rotação em ser distinto, elevando-se e multiplicando-se, para uns metros mais à frente existir num colosso imparável. Irreparável.

Como se poderia ignorar tal temor a pulular-nos nas veias? De que valiam os estudos nesta altura, a ignorância, o saber? O nível das águas, a febre a dilatar-se, o granizo fora de época. Os drones e as lentes de precisão. De que servia determinada tecnologia naquela confluência de elementos? Sua excelência o ministro, pedia-lhe encarecidamente, deixo-lhe os meus melhores cumprimentos. A empresa tal desvia os seus esgotos para a ribeira xis. As emissões de carbono atingiram níveis indesejáveis. Alertamos para o perigo imediato. Quadro negro. Pelo resultado atingido, as gavetas dos gabinetes aquartelavam dezenas de estudos como os nossos. O exame não era corrigido. As pautas não eram lançadas. A inclinação tombou. Os pássaros deixaram de cantar.

Enquanto o monitor cardíaco se enleava, a direcção passou a um só sentido. A idade ou estatuto não contavam. Deixámos de olhar para as criancinhas como peças soltas com futuro inserto num caldeirão, a chupar refrescos em baiucas de veraneantes. A travessa, a rua, a avenida. Uma injecção. Alunos, professores e pessoal de limpeza. A fauna era variada e pungente. Entre nós, até existiam alguns elementos da autoridade, forças armadas, militares insatisfeitos, polícias desregulados, que tinham deixado o armamento em casa, mas que vinham preparados para tudo. Finalmente, tinha chegado o dia de pôr cobro ao grande circo que rolava sem travões há tempos infindos. Como o mar. A muralha rochosa erguia-se em penedo da antiguidade, no leito cândido dos rios. A História iria ter um volte de face e não era preciso escrevê-la, os papéis estavam todos no ar, despedidos que foram do mofo dos gabinetes.

Ainda tentaram colocar-se do nosso lado, os governantes, com o intuito de ganhar tempo e criar um grupo de transição, de onde fariam parte. O povo é sereno, gritavam, quando passámos por cima da linha da frente e os atropelámos. Seríamos nós a ditar as regras do país e as transformações estavam muito bem delineadas. Há imenso tempo que elas eram faladas – dirigido ao senhor coordenador do gabinete do secretário, pedimos deferimento, acaloradamente – era só pôr tudo em prática. As grandes empresas teriam de se reger por princípios rígidos e só assim podiam subsistir. Não havia tempo para encubar mais ideias. Ou financiar espíritos criativos e cimeiras de botõezinhos. O filho pródigo regressava a casa. Seriam os princípios da humanidade e da natureza, era assim que ia ser daí em diante. Não havia tempo a perder. E ninguém diga que gostamos de chegar atrasados.

Hoje, já vamos tarde.

5 Jul 2019

Plano director

[dropcap]O[/dropcap] arquitecto veio a correr escada acima, atropelando a porta, a rugir que a obra estava toda malfeita. Que não era nada daquilo que vinha nas plantas que me tinha dado ou nos modelos tridimensionais que tínhamos passado a pente fino no seu computador e aprovados pelo município. Eu achei impossível e disse que ia com ele. Ainda a semana passada a vistoria tinha sido feita pela sua equipa, eu passo lá todos os dias ao fim da tarde e não me pareceu ver nada fora do lugar, aliás, não havia tempo para realizar uma transformação assim tão profunda e radical que levasse àquela algazarra. Por isso, achei que ele estava a ser demasiado meticuloso e que um desvio de alguns decímetros que fosse não seria caso para tanto chinfrim.

Tentei acalmá-lo, mas não me deu ouvidos. Passámos por cima da porta, ele pediu-me desculpa pelo sucedido e lá fomos. Estava exaltado como nunca o tinha visto, parecia até outra pessoa, completamente esbaforido, com outro tom de pele, que desalinhava toda a sua figura. Ele que primava pelo recato. A cara então parecia estar a entrar em estado de combustão. “Isto não pode ser!”, dizia. “Não é possível! Como permitiu?”

O edifício ficava numa zona de relevo irregular, traçado sobre a encosta de uma colina escarpada, aligeirando as diferenças entre as curvas de nível como uma volumetria de luva. Tinha uns andares mais em baixo e outros a um nível superior, como qualquer edifício, que acompanhavam as linhas da encosta, mas nos quais não se podia determinar qual era o piso térreo. Nos pontos altos deslocámos algum do terreno e fizemos aplanações. Transladámos o verde autóctone. Fizemos interligações à superfície e perfurámos alguns túneis que acolhiam escadarias várias, a escoltar toda a rede eléctrica, as canalizações e fibras ópticas e todo o mundo paralelo da malha de esgotos, das caixas para a circulação de ar e do aquecimento central. Por cima, um sem-fim de telhas solares e zonas ajardinadas no topo da construção e nas paredes laterais. O uso de materiais ecológicos e a toxicidade de toda a estrutura tinham sido definidos há muito e eram o pré-requisito principal no caderno de encargos. O plano era uma construção limpa e orgânica, que se imiscuísse na natureza sem ferir tanto o ambiente como a paisagem.

Era um edifício e peras. O traçado era enraivecido e singular, inovador em muitos aspectos e auto-sustentável na eficiência energética. A sua abertura iria mudar por completo o figurino da nossa pequena urbe, em termos visuais, de habitação e nos elementos que iria acrescentar ao quotidiano da população. Estava tudo a correr como planeado, com os prazos cumpridos à risca. A satisfação era plena. Mas quando lá chegámos e me deparei com a situação, quase que ia tendo um ataque. Deitei a primeira porta que vi abaixo e desatei por ali aos gritos. Não faltava muito para explodir e entrar em combustão. A minha figura toda desalinhada.

Tentei tranquilizar-me. Olhei para o arquitecto, para o mestre da obra, para os pedreiros e carpinteiros que se encontravam no local. Para o operador da buldózer estacionada no topo da colina que, quase a chegar à hora de almoço, abria a sua marmita, preparada em casa por uma companheira inquieta, tentando concentrar-se noutra coisa que não a realidade que tinha à sua frente. Todos de igual modo estarrecidos com a situação, nenhum deles tinha um esclarecimento e nem se atreviam a alvitrar o que quer que fosse. Gritaram, ao princípio, como os demais, mas depois, dada a complexidade do acontecimento, deixaram que o silêncio lhes tomasse conta do goto. Não havia outra forma de encarar aquilo, senão com a mudez e o benefício da meditação pura.

Visualmente, era impossível de descrever. À primeira vista, poderia supor-se que o edifício tinha sido acometido por uma doença ou um fungo gigantesco, encontrando-se por isso metastizado. O próprio empreiteiro não sabia como continuar com a obra, nem que ordens dar aos seus empregados. De mãos na cabeça revirava os olhos e olhava para as plantas de pormenor, tentando encontrar aquela distopia desenhada no traçado original. Como se por baixo existisse um plano mestre desenhado a lápis que tinha sido sobreposto à rectidão das linhas técnicas. Escondido nas cofragens, nas caixas de electricidade ou nas anotações para o reboco. Não dava conta de si e exasperava-se, ao mesmo tempo que procurava dissimular a sua exaltação. Um homem é de ferro, pensava, enquanto engolia mais uma baforada de ar.

Decidimos reunir na tarde seguinte, para que pudéssemos encontrar uma solução ou tão-pouco uma pequena desculpa para aquele curto-circuito. Acolhidas as coisas, assim à primeira vista, e de modo intuitivo, o facto que decorria desse olhar ignaro era de que o edifício tinha ganho uma vida própria. À roda de uma mesa, cada um divagou por teorias inventivas, repuxando a sua criatividade ao extremo, para que se encontrasse algum pequeno fio perdido no canto da sala, que levasse a uma equação mínima de bom senso por onde pudéssemos prosseguir. Sim, a edificação era agora uma criatura. Ninguém usou o termo monstro, por um lado porque o dicionário se tornara curto; por outro, porque a beleza – também não seria bem esse o termo a empregar – permanecia na essência da composição resultante. De resto, falámos e ouvimos, mas continuámos na escuridão. A casa estava viva.

Como se por baixo existisse um plano mestre desenhado a lápis que tinha sido sobreposto à rectidão das linhas técnicas. Escondido nas cofragens, nas caixas de electricidade ou nas anotações para o reboco.

Era complexa a vida, olhávamos para o céu e procurávamos na luz, um motivo que nos indicasse a razão de estarmos ainda ali. Vivos e a respirar. De um momento para o outro, até o simples trolha, que dias antes salivava por uma estagiária que passava perto dos seus andaimes, se tornara um filósofo. Fazia contas à vida, remastigava a sua existência. Tentava encontrar uma abertura de evasão para outra realidade, que não aquela de gritar para uma mulher bonita, como um regedor troglodita, se “aquilo” era tudo dela. Não se podia induzir apenas pela hipnose que tinha entre as pernas, não era um animal, e o seu cérebro não podia estar castigado na ponta dos braços. Era preciso agir de outra forma. Essa era a única conclusão a que todos tínhamos chegado. Nenhuma outra era mais clara.

Para tornar o processo de avaliação rigoroso era necessário analisar o problema com profundidade. Como tal, instalámos uma série de câmaras de vigilância, entre outros instrumentos de telemetria, para reunir dados precisos para a investigação. Queríamos chegar à origem daquele tumulto, à espoleta da granada. O que nos era sugerido, algo também ventilado na reunião anterior, era o conceito de que ao tentarmos organizar aquela construção em sintonia com a natureza a tínhamos plantado. Ao abrirmos as fundações, a escavadoras estavam a acamar a semente; ao elaborarmos a malha de ferro e vertermos o betão nos moldes, estávamos a iniciar um processo de irrigação que ignorávamos por completo. Como uma árvore, os alicerces desprenderam-se da sua massa corpórea e lançaram sinais para os outros seres em proliferação por baixo do solo. O edifício pejado de verde autóctone e de fibra óptica enraizava-se no subsolo e nutria-se, ganhando viço. Crescendo numa biossíntese de betão armado e vidro e provido de metabolismo próprio.

As imagens recolhidas não nos deram sequer uma vereda por onde entrelaçar os sentidos. O ADN arquitectónico saltou para os escaparates e era agora uma ciência discutida por todo o mundo. O evento tinha sido elevado aos antípodas e depressa se tentou replicar noutros lugares, ainda sem sucesso, a ocorrência na nossa terra, sendo o motivo de inúmeras teses e capas de revista. Sim, aquela obra mudara por completo o figurino da nossa pequena urbe. A todo o momento, sujeito à imprevisibilidade do tempo, surgia uma nova janela, um adelgaçar dos tectos, um andar dissimulado. Não pudemos inaugurá-lo, nem dar-lhe a vida interior que organizáramos nos fundamentos do plano, mas em termos visuais era uma peça única, que nos enchia de orgulho. Era mais do que uma num milhão, era o supra-sumo da arquitectura e da engenharia. Da ordenação e da estética. Do acto divino da criação. Onde se encontrara o Santo Graal que ordenava o Homem no espaço e na sua natureza, em composta melodia celular. Mais, era impossível de ambicionar.

No fundo, estava tudo a correr como planeado.

20 Jun 2019

Afinal, é melhor retirar o que disse

[dropcap]V[/dropcap]ou confessar: era eu que levava o dinheiro. Davam-me uns pacotes com molhos de notas variadas e pediam-me para entregar a tal pessoa. Não sabia quanto era, mas dava para ver que devia ser uma pipa de massa, que esta gente quando fazia as coisas era a sério, não se punha a brincar aos roubos como os banqueiros, que isso é mais coisa de meninos. Falávamos pelo intercomunicador do prédio. Colocavam a tralha no monta-cargas e eu só tinha de pegar nela. Simples.

O nome do destinatário era inventado, era um código que só funcionava no acto de entrega. Mas eu sabia perfeitamente quem eram. A maioria era gente conhecida dos jornais, que precisava de maquia fresca para alguma necessidade mais urgente. Comprar um cabriolé ou um quadro cheio de pó do Miró, que dedos amigos tinham surripiado de uma colecção esquecida na cave de alguma repartição de finanças. Ou coisa parecida. Podia ser também do Bill Viola, que é um gajo que está sempre em voga. Não perguntava nada, não me intrometia em assuntos alheios e quando metiam conversa, para serem simpáticos, ou porque tinham uma vida de merda e não tinham ninguém para desabafar, eu dizia que sim com a cabeça para acharem que era meio surdo ou que tinha um parafuso a menos, e assim acabava-se logo o diálogo. Que fique igualmente neste registo, que não tenho grande paciência para desabafos. Faço o que tenho a fazer e não há espaço para mais dilações, que o mundo não pára. Corre.

A verdade, é que o dinheiro chegava sempre ao seu destino com rigor de especialista, isso não posso negar. Parecia que tinha nascido para fazer aquilo, pegava com uma mão e entregava com a outra. Assim mesmo, como quem salpica umas cores num papel e faz uma obra de arte. Pensando bem, era melhor do que o Miró, pelo menos não tinha que sujar as mãos com o raio da tinta, que é outra coisa para a qual também não tenho ponta de interesse. E para dar aqueles tons é sempre preciso muitos tubos da Caran d’Ache. Não vamos falar de pintores, por favor.

Bom, não sei se havia algum contabilista para toda aquela abundância, o mais certo era não existir nenhum, mas desde o primeiro dia que me cheirou a trafulhice das grandes. E como correu bem dessa vez, pediram-me mais uma e por aí adiante, até lhe perder a conta. Se me perguntarem, não consigo enunciar quantas foram as causas pelas quais andei a percorrer a avenida. Não apontava nada e tenho a memória fraca, nem uma anedota consigo contar e quando vou para entoar o hino, atrapalho-me. Mas para o resto, é isso, tinha bastante jeito para moço de recados ilícitos. Talvez um dia que precise possa arranjar um emprego nos Correios, é só porem-me à experiência.

Quanto às verbas, agora, falam por aí que foram milhões. Milhares de milhões. Ninguém sabe ao certo, até podem ter sido, aquilo era muita massa. Acusaram este e aquele, que eram eles que levavam aquela fortuna de um lado para o outro e das mais variadas formas. Mas é mentira. Fui eu! Não me deu trabalho nenhum. Eu, no metro com um milhão no bolso. O que me ria. Em horas de ponta, muitas vezes com agentes da autoridade que voltavam para casa depois de um longo dia de trabalho, meio desfardados. E eu ali, com o bolo de aniversário na mão. Ou com a consola de jogos última geração. Partida.

Já sei, ninguém me vai acusar porque sou gente miúda e não valho muito no mercado dos bandidos. Não ando para aí a passear-me num rolesroyce ou a ser levado para interrogatórios. Pelo contrário, tenho uma vida discreta, não saio muito e nem uso roupas de marca. É claro, ninguém conhece o meu nome. Mas isso vai mudar, basta escrever umas coisinhas e prolongar a verborreia. Ainda consigo lembrar-me de umas caras e rabiscar uns retratos, daqueles robots como o Miró fazia, cheios de cor e de tinta. Ou então dou com a língua nos dentes e tenho-os aí todos a pedir favores. Que é o que eu sei fazer melhor.

Quanto às verbas, agora, falam por aí que foram milhões. Milhares de milhões. Ninguém sabe ao certo, até podem ter sido, aquilo era muita massa. Acusaram este e aquele, que eram eles que levavam aquela fortuna de um lado para o outro e das mais variadas formas. Mas é mentira. Fui eu!

Por causa de todo o alarido, há uns meses, decidi fazer as coisas à minha maneira. Acabei com os recados de pouca monta. Se por acaso a encomenda era pequena, rejeitava a oferta, deixando de fazer as coisas por tuta e meia. Mas o mais importante: vou arrumar as botas. Fiz contas à vida e foi a decisão que tomei. Que se lixe a fama de ser o maior malandro do bairro. Essas intenções já desbotaram. E na verdade, não tenho fama nenhuma. Mas é desta, foi a última vez. Só mais este servicinho. Não se vai repetir.

Já contei as notas, são dez mil. É o que veio. Não sei bem o que era para fazer com elas. Não apontei, esqueci-me. Dez mil notas de quinhentos é muito dinheiro. Vieram numa caixa de cartão, disfarçadas entre medicamentos para a gripe. Contei-as com redobrada atenção, parece que até lhe estava a tomar o gosto, eu que nunca liguei àquilo. O que fiz foi o seguinte: troquei o conteúdo do embrulho pela comissão que me cabia, que era sempre uma ninharia. Acabam sempre por ser uns forretas, Mas isso acabou, o que ganhava com toda esta história eram apenas umas esmolas. E assim foi, não toquei nos comprimidos para não se perder o volume e porque ainda não tenho dores. Deixei tudo na morada que me indicaram. Um hotel. Foi uma tarefa difícil, é um risco que se corre, eu sei, mas cinco milhões já dá para governar o que sobra dos meus dias. Não é preciso tirar um curso de matemática para perceber isso.

A linha chegou ao fim. Fartei-me. Pensei que podia confiar neles, que não me estavam a enganar, apesar de terem sido sempre bem claros, afirmando com a seriedade que um intercomunicador pode transmitir, de que iam referir o meu nome quando fosse necessário e precisassem de um álibi. Mas não! Até hoje, nada. E leio os jornais todos, dia após dia. Não são eles que me vão agora acusar que os defraudei, com isso não tenho de me preocupar. Dinheiro não lhes falta. Para esses senhores, isto é uma pequeníssima migalha. E ninguém sabe quem sou, não há provas.

Contas. Dificilmente gasto uma nota destas por semana, mas suponhamos que gasto uma. São dez mil semanas. Ora vejam, um ano tem cinquenta e duas, por isso é só fazer as contas. Não estou cá essa vida, nem pouco mais ou menos. É certo que deixo algum aos amigos chegados, companheiros em dificuldades ou com necessidades prementes. Tenho de me lembrar que tenho de o deixar escrito nalgum sítio, pode-me dar um treco de um minuto para o outro e ir desta para melhor, e ninguém vai saber que os meus desejos eram esses. Mais a família, que também precisa. Mas não posso dar muito nas vistas, não vão as pessoas achar que me saiu a taluda. Depois já se sabe como é que é, não me largam, e daí até vir a polícia é um instantinho, levam-me logo para averiguações. Tiram-me aquela fotografia que se vê nas séries de criminologia e venho de lá com os dedos todos pretos. Raio! Por isso, o melhor é não contar a ninguém, que ando nestas andanças. Porque não ando, na realidade, este assunto termina aqui. Quanto ao outro, dos pacotes que entregava sem levantar fervura, também não se vão estar agora a preocupar com questões dessas. Já foi. Ninguém soube, não quiseram dizer que era eu, agora já é tarde para isso. É deixar que os outros sejam acusados e que venham nas parangonas dos jornais, que eles gostam sempre de aparecer, enquanto cruzam as ruas da Baixa nos seus cadilaques.

Portanto: bico calado! E se por ventura alguém ler isto, não vai ser fácil porque vou escondê-lo bem, espero que faça o mesmo.

Já sei, vou guardá-las naquela caixa de sapatos e deixo-a dentro do armário, assim como quem não quer a coisa. Vivo num lugar esquecido, não há de vir aqui ninguém. E assim, como não tenho grandes aflições, vou-me servindo à medida das necessidades, não preciso de mexer uma palha nem de ir aos bancos. Pode ser que um dia, entre um século e o outro, precise de adquirir um telhado novo.

16 Mai 2019

Homo Roussus Televisionis

[dropcap]C[/dropcap]omo se chamava ele? Todos o tratavam por Jonas, mas não sei se era o seu verdadeiro nome. Não é importante. Aconteceu tudo demasiado rápido, não deve ter chegado a um ano. Jonas, viemos a saber depois, tinha 27 anos, ainda estava ali para todas as curvas da vida. Mas o que se pode fazer, acontecimentos sem explicação existem por todo o lado. O dele foi o mais surpreendente, não me lembro de ouvir ou de ler alguma coisa assim, nem num livro de ficção científica. É tão rebuscado que ninguém se iria lembrar disto. Há histórias de lobisomens e indivíduos comuns que são picados por um bicho qualquer e se transformam num ser abominável, com poderes extraordinários e mais tarde em super-heróis, se a tramóia for para vender bilhetes. Há também a história de Kafka, em que um homem acorda certa manhã metamorfoseado na figura de um monstruoso insecto, depois de uma noite agitada de pesadelos. O desgraçado do Gregor Samsa. Se calhar, o nosso amigo também se chamava Gregor, dada a firmeza com que a vida foi regurgitada por todos os poros da sua existência.

Com ele foi diferente, apesar da trajectória ter sido veloz, a acoplagem não aconteceu de repente e os sintomas não se notaram de imediato. Talvez tenha sido um tique, um movimento mais brusco do braço, em que a mão se põe a coçar a cabeça de modo irreflectido, talvez à procura de um pensamento com a ponta dos dedos, por entre a floresta do couro cabeludo. De dia para dia, eram mais nítidos esses gestos, só depois vieram as transformações físicas. Mas também aqui podia ser uma perturbação qualquer, nada fazia supor aquele desenlace. As orelhas a ficarem mais planas, o nariz mais achatado, os olhos maiores, como o lobo da avozinha. Mas foi o andar que deu o alerta, perna mais aberta, a coluna laça que o tornava mais atarracado. Teria levado uma martelada na cabeça? As palavras a irem-se, como se tivesse sob o efeito do jogo da Roleta Ruça, que na altura estava na moda. Que se passa Jonas? E ele não dizia, faltava-lhe o vocabulário, não conseguia argumentar e ia-se embora, fascinado pela natureza lá fora. Não era Alzheimer nem um AVC, isso tínhamos a certeza, mas não se sabia o que era, seria contagioso?

Nunca tinha ouvido falar na Roleta Ruça, não acreditei que fosse possível. Pus-me a pensar se seria perigoso, pelo menos não tanto como a outra em que se enfia uma bala no tambor de um revólver e se roda o cilindro. E é azar se o projéctil sai à velocidade do som e nos estoira os miolos, porque há mais probabilidades de o disparo sair em seco. Aqui não, aqui ninguém morre, mas o resultado é de igual requinte. O feitiço é sempre o mesmo, joga-se pelo fascinante desafio. Aposta-se a fala. A cada nível, mantemos ou perdemos vocábulos, até ao extremo de ficarmos sem o conhecimento de todas as palavras. É um jogo, o mais certo é sairmos derrotados, e quanto mais fundo caímos mais sentimos o direito de recuperar esse bem precioso que é o acto de falar. Verbo após verbo, tudo cai na corda do esquecimento. O tambor tange o som do oblívio. Poder-se-á dizer que é uma experiência científica? Talvez seja apenas isso. No início, ligamos o cérebro a um capacete cheio de propulsores eléctricos, cada um com a sua função estimulando zonas distintas da nossa mente. Como um motor de busca, o aparelho pesquisa as palavras armazenadas em cada uma das gavetas da memória e retira-as, eliminando o seu registo. Perdemos a noção do termo, do seu significado e da sua existência. De palavra em palavra vamos ficando vazios, sem nada para dizer. Não conseguimos articular uma fala, a partir deste ponto tudo se apaga, é o fim da vida em sociedade. E não é um sonho agitado, o resultado é idêntico ao de premir o gatilho com a bala a entrar por uma têmpora e a sair pela outra, deixando um rasto de destruição. O rastilho de um homem perdido.

Mas o sistema não é infalível e ao fim de alguns dias a memória é assaltada pela configuração anterior e em pouco tempo a nossa linguagem é restabelecida. E quando damos por isso desatamos às gargalhadas como quando aspiramos um balão de hélio e falamos. É incompreensível. Mas com o Jonas não foi possível mudar os fusíveis, o seu mal foi progressivo e sem retorno.

A sua família assustou-se e tentou encontrar especialistas, do ramo da neurologia ao esoterismo. Fizeram-lhe exames, passou por todas as ressonâncias e aparelhos de rádio. Deitou-se com todo o tipo de marquesas. Consultaram osteopatas, médiuns que captam a energia das estrelas de olhos fechados e as canalizam para o corpo do paciente. Foram à maior sumidade de acupunctura da cidade, guinchou quando lhe espetaram agulhas na nuca. Um homem no Alentejo pôs-lhe as mãos em cima para lhe sentir os males, não encontrou nada. Afagou-o no final e deu-lhe uns pozinhos para tomar em casa. Por fim, uma análise ao DNA revelou drásticas mutações genéticas. Jonas estava a transformar-se num homem das cavernas. Os genes participavam numa orgia. Ninguém acreditou, claro.

Chegado à fase de Neandertal, começou a acalmar e a sentar-se com os pés em cima do sofá para ver os programas da manhã na TV. Babava-se. Olhos arregalados, as narinas cada vez mais largas, onde podia inserir o controlo remoto para retirar algum monco.

No entanto, a comunidade científica começou a interessar-se pelo caso e não o deixou expirar. Estudiosos de todos os quadrantes ventilavam teorias absurdas, uma após outra. Comentadores de fim-de-semana dissertavam as suas sentenças sobre os braços mais compridos desta criatura, agora quase a arrastar no chão, numa desorientação curvilínea. Os pelos que lhe cobriam o corpo, a pele mais escura. Teria sido alguma coisa que comeu? A oposição usou-o como arma de arremesso para criticar o governo, que simbolizava o estado do país. Não foi preciso rodar o revólver. O assunto estava na ordem do dia e os esclarecimentos plausíveis eram nulos. Ainda se pensava que podia contagiar e aparecer novos casos. Para despistar características hereditárias foi feito um rastreio à sua família, mas Jonas permaneceu em casa.

Chegado à fase de Neandertal, começou a acalmar e a sentar-se com os pés em cima do sofá para ver os programas da manhã na TV. Babava-se. Olhos arregalados, as narinas cada vez mais largas, onde podia inserir o controlo remoto para retirar algum monco. Isto chegou aos ouvidos de uma das estrelas que liderava as audiências, a Cristina Pinheiro, por quem Jonas suspirava o maior pasmo, que o quis levar ao seu programa. Tinha uma equipa de médicos e cientistas que iam explicar o caso em directo, nesta altura já mundialmente conhecido. O país parou para assistir a este triste espectáculo. Contra a sugestão da equipa de produção, a anfitriã deixou o seu interlocutor à solta, porque não era natural, mas sobretudo porque queria reverter o andamento da enfermidade, encenando uma voz doce e segurando a mão de Jonas. “Me, Jane. You, Tarzan!”

Num grande plano, enquanto a apresentadora tentava ordenhar uma lágrima, pudemos observar a transmutação para australopiteco e depois para mais longe ainda, num retrocesso de milhões de anos. Já ninguém sabia definir exactamente o termo certo para a espécie, aquele nível era demasiado alto. Os cientistas boquiabertos, sem conseguirem articular uma palavra. Os homo camera com os tambores a ruçarem-lhes as têmporas. A bala a perder-se no motor de busca. No oblívio. Miolos espalhados nas lentes.

Mas o que aconteceu é que perante a figura maior da sua devoção, o nosso ânthropos não se conteve e devorou a dondoca que tinha à sua frente. Não me perguntem como a devorou, porque não vou dizer. De seguida, como quem abandona uma conversa que não lhe agrada, escapuliu-se por entre os seguranças e desapareceu. Saiu a guinchar e já em completa postura primata. Supostamente, deverá ter zarpado para a selva. Patrulhas policiais seguiram-no a todo o gás, com helicópteros e um dispositivo militar numeroso em seu alcance. Iam à procura de um chimpanzé, mas a velocidade do projéctil era tal que o mais certo foi ter-se transformado de imediato num girino, ou num fóssil de dinossauro. Quem sabe, na costela de algum Adão.

25 Abr 2019

Bateu, está batido

[dropcap style≠’circle’]I[/dropcap]

Leiam, leiam até ao fim.

Ele tem nove anos.

Ele tem nove anos e há dias, quase todos os dias, em que não percebe bem onde está, que mundo é este. Eles falam alto, os adultos, falam muito e não o percebem. Ele também tem dificuldade em se perceber. Há coisas que faz e que não queria fazer. Arrepende-se muito depois, mas só depois. Na altura, nas alturas, não sabe onde está. Ele bate noutros miúdos de nove anos, nas miúdas também. Não se defendem tão bem, as miúdas. Mas ele não pensa nisso. Tem nove anos e aos nove anos há dias em que não percebe muito bem quem é.

Foi assim na semana passada. A campainha tocou, saiu da sala, ele tem dias em que não gosta da escola, tem dias em que não gosta de ninguém. Bate nuns miúdos no recreio. Neste recreio há espaço para estas coisas acontecerem. Quase nunca há ninguém a ver e ninguém o agarra. Ninguém o agarra. Bateu nuns miúdos e numas miúdas, o sexo não interessa, bateu, está batido. É assim que acontece, ele só tem nove anos e sabem lá os outros o que lhe passa pela cabeça, os sonhos e os pesadelos em que se movimenta.

O pior veio depois. Na sala. Os outros. Os outros miúdos e miúdas de nove anos. Ele ouviu dizer que ia sentir na pele o que andou a fazer aos outros miúdos. Ele não sabe bem se as palavras foram mesmo estas, mas foi isso que percebeu. E os miúdos bateram-lhe. Uns não queriam. Ninguém queria. Ele também não quer bater mas bate. Bateu, está batido. Bateram-lhe. E havia pernas grandes a assistir.

Ele tem dias em que não percebe os adultos: estava um adulto a comandar a vingança. Estava um adulto a dizer bate, bate. Bateu, está batido. Ele não sabe bem o que é a vingança. E não percebeu que lição é esta, não está nada escrito no quadro, a miúda não lhe quer bater, mas está a bater-lhe, a miúda foi para casa a chorar. Ele não sabe que lição é esta: a mãe diz-lhe para ele não bater. Aquelas pernas daquele adulto são tão grandes quanto as pernas da mãe dele. E aquelas pernas têm uma boca que diz o contrário, bate, bateu, está batido, ele não percebe que lição é esta, toda torta, só ouve que é para bater com mais força. A mãe não está ali.

Ele tem nove anos.

[dropcap style≠’circle’]II[/dropcap] Eles não têm nove anos.

Eles não têm nove anos. Têm muitos. Não cabem nos dedos das duas mãos. Nem nos dedos das duas mãos mais nos dedos dos dois pés. São grandes, enormes. Andam em carros e têm casas e têm filhos. Têm filhos com muitos anos e têm filhos com nove anos.

Têm filhos com nove anos e alguns chegaram a casa a chorar. Vinham da escola com a lição torta. Tinham um conto para contar e, apesar de ser quase natal, não havia renas nem trenós nem meninos jesus em palhinhas deitados. Sabem todos o pinheirinho e as outras músicas todas de cor nas várias línguas que se ouvem naquela escola, mas não era isso. Era a lição torta.

Ele tem nove anos. Sabes, aquele que bate. Bateu, está batido. Disseram-me para lhe bater. Eu não queria, pai. Ela não queria, pá. Sabes, aquele miúdo do costume. E eu bati-lhe, pai. Ela bateu-lhe, pá.

Ele tem nove anos mas é complicado. Nem vale a pena falar no assunto. O assunto não é meu, não me diz respeito. Os outros que resolvam a coisa, eu cá sei de mim e dos meus.

Ele tem nove anos mas é complicado. Deixe lá isso, já se sabe como é, estas coisas passam, não foi bem, não se esteve bem, mas andamos aqui todos há muitos anos, as coisas são assim, amanhã logo se vê.

Ele tem nove anos mas é complicado. As pessoas são todas complicadas, não é? Um dia eles, amanhã nós, toda a gente tem dias difíceis mas eu não sou assim, cá em casa está tudo em ordem, ele chorou mas não faz mal, também chora no cinema, deixe lá isso, deixe tudo como está.

Ele tem nove anos e é complicado, como complicadas são as sombras do mundo de adultos em que vive. Não saias da frente que me destapas, se me viro e tu não te viras ao mesmo tempo vêem-se as minhas costas no teu peito, sombras que somos sempre, sombras que nos protegemos, sincronizadas, no silêncio. Este silêncio poluído.

Ele tem nove anos e um dia destes já não tem, já tem mais, isto ainda lhe passa, ou então não, um dia destes até se vai embora, nós continuamos todos por cá e é deixar estar tudo como sempre foi, somos todos amigos, isto é tudo tão bonito, tão bonito, é pinheirinhos e o natal vem aí, esqueça lá isso que não interessa a ninguém.

Ele tem nove anos.

Leiam, leiam tudo outra vez.

6 Dez 2016