Perdidos e achados

Santa Bárbara, Lisboa, domingo 15 Março

[dropcap]N[/dropcap]ão voltarei a usar a palavra coincidência. Assim que afastei a frase percebi que não lhe escaparia. No trambolhão das circunstâncias, «Lourenço é nome de jogral», de Fernanda Botelho (luxuriante capa de Maria João Carvalho, algures na página), volta a tombar-me nas mãos, a ecoar-me nos dias. E por inúmeras razões, ei-lo incandescente, a queimar-me. (Nas frase seguintes arrisco estragar alguma surpresa em hipotéticos leitores, mas estamos perante um daqueles casos em que a narrativa e seus acontecimentos interessam pouco.)

Ampliemos um detalhe: parêntesis – que uso na versão diferente, parêntese, da autora por me sugerir o plural, pelo grafismo dos «esses» a definirem desfiladeiros na paisagem. No exacto momento em que temos a vida entre parêntesis, eis romance onde a autora os usa como lâmina, goiva, formão. A sua estrutura polifónica, coral também no sentido animal, na qual cada capítulo corresponde a uma voz, quase sempre na primeira pessoa, como que é interrompida por afinações, evocações, falas de pessoas outras, explicações breves, mas também longos pensamentos, cinzelamentos, acertos e pequenas histórias, e, por se tratar de vida, comentários aos modos de narrar, ao definir das personagens. «(Ao regressar deste parêntese, dei-me conta de que o veneno estava intacto dentro de mim, mas o conhecimento da sua inevitabilidade, acrescentado ao cansaço e à doença, serviram-me de pretexto para uma aquietação razoável.)»

Lourenço é o núcleo deste ecossistema, que rodará à velocidade da nossa leitura, abrindo com a fala do filho e que em diálogo com ele se fechará, com um «Eu» a ensaiar respostas trémulas ainda que finais: «se pudesse e soubesse, responder-te-ia. Sou isto que sou.» Lourenço está morto, suicidado?, e as vozes que o velam talvez sejam orquestradas pelo próprio para que se revele a si mesmo no círculo fechado de espelhos que são os outros. Dirá, em outro momento, na sequência de alinhamento das dúvidas, das espectativas, das crenças: «sou um homem só, mas um homem só é um absurdo.» Lourenço perdeu-se nas múltiplas bifurcações, as da sua condição, as da sua esperança, as do seu potencial. «Eu, céptico? Sou muito pior que isso: sou burguês.» O burguês, inquieto e culto, aberto ao mundo e ao humano, como labirinto. Sem saída.

«Dou-me conta do meu cansaço, da minha incapacidade, duma qualquer inutilidade que também me engloba. As ejaculações de Catulo e de Rimbaud serão resposta a uma nossa exigência essencial, serão uma metáfora da nossa congénita vocação de absoluto, ou serão, simples e exclusivamente, parte do instrumental de sopros e percussão que vai ritmando, entre agudos e graves, a marcha colectiva para um futuro qualificado?»

Forço conclusões, debruçado sobre a mesa de autópsias, desrespeitando a mestria de Fernanda Botelho nas subtilezas, no sugerido, na transparência que esconde. O grupo de amigos que rodeia Lourenço para o definir dizendo-o, são figuras de corpo inteiro, de carne viva, sobretudo as mulheres, Matilde e Luzinha. E também os seus dias surgirão, nunca de forma linear, como «contas dum colar, todos eles enfiados na linearidade do tempo, à espera dos que hão-de vir, mais contas para o colar que nos estrangula.» Quando a máquina da memória se liga «verificamos nessa altura (e com que surpresa!) como, vista assim em panorâmica, a nossa vida não foi uma simples sucessão de dias, antes uma confusa hierarquização de quebras, fagulhas, lapsos, deslizes, golpes, turbilhões, ciclones, mortes». A cultura, musical, literária, surge líquida, em baixo contínuo, pano de fundo, próxima e estruturante. (Rabelais por exemplo, atravessa a paisagem enquanto fantasma.) E em relação estreita com outro dos grandes temas: o corpo, como lugar onde nos cumprimos, e o desejo como ferramenta para o moldar. São incontáveis as passagens fulgurantes, que resultam do entendimento dos modos, da observação aguda, da explosão telúrica. «Só o corpo é meu em exclusivo.», canta Luzinha. «Ele é a parte que se deve a si própria, e apenas. É através dele que me exprimo natural; não quero chegar à metrópole torturada da alma com a nostalgia de não ter passado pela selva esconjurante do corpo, nunca estaria completa na metrópole, consagrada por inteiro às funções da metrópole, nunca, sempre dividida entre dois pólos opostos, à procura duma amostra de selva, e insatisfeita sempre, com a minha pretensa unidade comprometida, desconcentrada.» O corpo faz-se folha em branco, sujeito a uma escrita que abre a noite, mas que nos pode enclausurar. Por que porta se entra na perdição, em que momento falhamos o encontro? Falhar torna «a dor como forma única de sobrevivência»?

Páro, e ao parêntesis inicial respondo com dois pontos, deixando-me pendurado, tal me encontro. Estou agora no meio da conversa de Lourenço consigo mesmo. «Lorenzaccio, meu irmão, meu gémeo, meu arquétipo, somos os fundadores duma classe onomástica com os pés no inferno, o espírito no impossível paraíso e o cérebro rasgado na confusão das trevas terrestres. Somos realmente os gigantes da angústia perplexa, megalómanos do sonho irrealizado.»

Horta Seca, Lisboa, segunda 16 Março

Decidimos o inevitável. Encerrámos as janelas luminosas, da rua deserta sobra apenas a contingência da gestão da economia estar em horta seca. Esperamos que a porta fechada não ganhe o peso do concreto. Enchemos o peito de ar e agora de cronometro medimos o tempo que aguentamos debaixo de água (sem lançamentos, livrarias, feiras e o sobrante e poroso e descarnado exoesqueleto).

Horta Seca, Lisboa, sexta 19 Março

Em instigante entrevista ao Le Point, Peter Sloterdijk aconselha como leitura para os dias Bocaccio e «Decameron», por responder ao mal contando histórias que libertam o desejo de viver. Contemo-nos histórias. E lança o repto: estudar uma ciência inexistente, a labirintologia. No labirinto, as saídas não se descobrem à primeira e a vetusta bifurcação não responde aos desafios, não descobre se não portas. Fechadas.

25 Mar 2020

Fragmentos de um discurso qualquer

Horta Seca, Lisboa, 24 Novembro

[dropcap]N[/dropcap]ão preciso do fim do ano. A obrigação destas linhas abre, a cada semana, espaço de avaliação, tantas vezes cruel, ou pelo menos, frio que nem mármore como devem ser as ditas, bases de autópsia. Outras vezes, são mesmo as circunstâncias que a isso me obrigam, mãos forçando cabeça, a ver o feito, o desfeito, o prometido, que será sempre devido. Circulou, há pouco, pedaço de entrevista do Orson Welles – vaya huevos – no qual falava do artista que era, incapaz de sacrificar a amizade em nome da arte. O mais importante não é arte, ainda que por ela morra. Isso não disse, mas pro falta de tempo. Valorizava muito aqueles artistas que o faziam, mas no seu caso, não conseguia – silêncio – ser profissional. Ele ia sendo – silêncio – aventureiro. Se fosse arte, o que faço nos intervalos do que vou sendo, seria mais aventureiro do que profissional. E tal não se encontra contaminado pelo romantismo. Nalguns momentos, o que de nós enfrentados na perspectiva espelhada dos autores ganha a carne da dor. O editor-aventureiro está sempre a falhar, algures e com alguém. E o ano foi pródigo em falhanços, alguns tão rotundos que estou capaz de por eles me apaixonar.

Horta Seca, Lisboa, 25 Novembro

A Lua empurra outra maré e nela marulham páginas e mais páginas a exigir leituras. Alguns textos, com e sem encontros, fazem esquecer o lápis do carpinteirar, despertando logo o leitor, alegrando-o, erguendo-o, sustentando-o até. Metade do meu dia devia ser desta matéria e não de outras. Esta põe-me nas nuvens, as outras atrasam-me, deslassam-me, esmagam-me.

Horta Seca, Lisboa, 25 Novembro

De súbito e à mesa, um, dois, três projectos. Pressinto sol além do nevoeiro, matinal o dia inteiro. Este, sendo pessoal, talvez me obrigue a escapadela pela criação, tão maltratada. Serei capaz? Aquele, colectivo, colado à poesia, ainda para mais, permite ensaiar a ideia de editora como plataforma de, dizendo com corpos e vocações envolvidos, empresas. Venceremos as oposições que se alevantam? Estoutro, em colaboração estreita, pode satisfazer necessidades e, talvez, trazer algum proveito. Saltaremos os obstáculos? Estou nas nuvens. Até que a chuva me doa.

Horta Seca, Lisboa, 26 Novembro

Tenho nas mãos, e não deixo de o manusear, o segundo volume das Obras Completas da Fernanda Botelho, «A Gata e a Fábula», um dos notáveis e dolorosos atrasos do ano que finda, quando me apetecia esmagá-lo – vã tentativa de o mudar. Dói a demora no que afecta das vidas vividas da Joana [Botelho] e da Paula [Morão]. Adiante: outro romance ímpar, pano de fundo intenso e colorido para as deambulações de mão-cheia de belas personagens, esculpidas em carne e osso. Alguns fragmentos iluminam-se peças de teatro, outros desafazem-se em guião de filme ou composição de quadro modernista, ou seja, o romance acontece em todo o seu esplendor e potência. Com extrema subtileza, somos transportados no tempo, em direcção aos encontros e desencontros que nos fazem ser isto ou aquilo, de uma maneira ou de outra. Também o podemos visitar como museu próximo, mas cada um vai onde quer. As plantas carnudas e carnívoras da capa da Maria João Carvalho florescem em luxuriante e (pictórica) metáfora, ou seja, evocação [algures na página].

Horta Seca, Lisboa, 27 Novembro

Cedo, recebo a versão paginada do desafiante «Pensar o Trágico», do José Pedro [Serra]. Que gosto, confirmo, o uso cortante que se faz do incandescente adjectivo! O bom gosto de salão rejeita-o liminarmente, na vã espectativa de fazer bolos sem açúcar. A metáfora é propositada, pois a crítica principal está no efeito meloso. Contudo, não há por aqui pântano, antes floresta de lâminas. Interessa-me o assunto, muito por causa deste regresso dos palcos lisboetas ao clássico, que me entusiasma, mas não sei explicar. O destino na mão? O fim do mundo? Está sempre a acontecer em versão Parque Mayer, não será por aí. Para já, estou concentrado na gestão das notas de rodapé, na transcrição do grego, no cultivo dos índices, etecetera. Assim vença eu a tentação do texto, sem o lápis de carpinteiro, cuja ovalidade só se afia com canivete: «A pergunta sobre a tragédia e o trágico é também pujante porque é vital revisitação, cultura sobre cultura debruçada, arriscado olhar incandescente e interessado sobre o nosso destino de seres históricos. Nessa imensa pujança reside também a sua urgência.»

Horta Seca, Lisboa, 26 Novembro

Na revista Mercurio de Novembro, Diego Doncel, inclui Valério Romão, e o seu tríptico Paternidades Falhadas, nas Voces de la Nueva Novela: «Precisamente en la Francia de la emigración portuguesa nació Valério Romão. Su trilogíaPaternidades falhadas es una de las empresas narrativas más solventes de la última generación. En Cair para dentro (Abysmo) el tema del Alzheimer le sirve para tratar precisamente los sueños, antes y después de la Revolución, fallidos o equivocados, las esperanzas que murieron al mismo tiempo que la política se hacía solo formalmente más democrática. Hay que llamar la atención sobre el recurso narrativo del fragmento que indica el mundo disociado de la enfermedad y el mundo disociado de un país que pulveriza su propia memoria». Curiosa, esta leitura do fragmento como elemento estruturante. E pulverizador da memória.

Folgo em constatar que se vai descobrindo o músculo desta escrita, apesar da desatenção – ou será preconceito? – de um certo bom gosto de salão que teima em exclui-lo das comitivas nacionais. Se, por um lado, resulta desagradável comentarmos listas e nomes, por outro, parece de elementar justiça e mínima transparência que sejam públicos os critérios das escolhas. Nem que seja para confirmar o óbvio, a rimada combinação de mediatismo e amiguismo.

Horta Seca, Lisboa, 30 Novembro

Pela primeira vez, somos visitados pela ASAE, em inspecção de rotina e prevenção em torno do branqueamento de capitais. Pensei e não disse: nesta cave nem os dentes se branqueiam quanto mais capitais. As inspectoras cumpriram a sua missão didáctica, constatando o amarelo sorriso face à ameaça dos crachás policiais, logo percebendo que a arte, por aqui, tem que acumular absurdos para ultrapassar o limite dos mil euros em dinheiro vivo, quanto mais o dos 15 mil que obriga à burocracia. Conferiram a facturação, pelo que ainda nos rimos juntos: o dinheiro aqui está morto. E tal fragmento não se encontra contaminado pelo romantismo.

Santa Bárbara, Lisboa, 1 Dezembro

Atentemos no título, «Tiempo que Dura esta Claridad» (no colófon, corrige para Soledad, pois o autor adora saudade), que explica muito deste álbum que me puxou ao passado, para logo me atirar ao futuro. O cansaço de ser reside todo no tempo, areia a meter-se por todo o lado, nas dobras da pele, nas margens dos livros, na saliva, nos olhos. Esta banda desenhada vem de um momento em que acreditei, quando revistas se erguiam cidade, amizade e tantas rimas: Madriz, Médios Revueltos. Trata-se da antologia de histórias curtas/fragmentos do querido e pessoano Federico [Del Barrio], de mão dada com os evanescentes argumentos de Elisa Gálvez (ed. Reino de Cordelia). Nenhum autor pratica, como ele, o intenso jogo do não dito, o mais solto dos horizontes para a novela gráfica. O branco a ser preenchido pelo leitor, a matar a narrativa, a desmultiplicar a poesia, cada qual interrogando-se ou crescendo no espaço entre os quadradinhos. E depois, quem como ele, pôs gato a pensar abstracto, como eles a traduzir o mundo em pintura?

5 Dez 2018