João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasEsta que te escrevo Horta Seca, Lisboa, 28 Julho [dropcap]N[/dropcap]ão é gralha, esta data a abrir. Este exercício diarístio mistura-me os tempos ao modo de saudoso whisky sour, agitado sabiamente pelo Bruno [Abreu], no defunto Baliza. Estou aqui a batalhar com as frases, a resistir que nem o ferro das vigas de colunas por encher das casas em construção. O betão do pensamento escorre atropelando tudo antes do erguer de paredes. Os dias recentes fazem do passado e do futuro animais obedientes, festas e pouca disciplina, desobedientes ao que por eles sinto. E sinto muito. Atrasos chegam de par com os projectos, âncoras lúgubres e caprichosos papagaios de papel. Para que o previsto aconteça, tenho que mastigar muito do tardamento, devo desatar nós. Dobrando curva do óbvio, uns são mais rijos que outros: como fazer chegar os livros aos seus leitores? As soluções de hoje não contêm amanhã. Horta Seca, Lisboa, 22 Julho Gosto muito de cartas. Pela parvoeira dos afazeres, de tanto desresponder, deixei de as receber. O meu mano Tiago [Manuel] continua dos poucos, senão o único, a praticar essa disciplina de samurai. E cada uma das que envia inclui lâmina desenhada e o mais que lhe aprouver. Retribuo de outras maneiras, todas frustres perante o gesto magnânimo de aplicar mão e tinta sobre branco a pensar naquela pessoa e não outra. Namorei muito por via postal e não conheço melhores preliminares, afinal, transfigurados em interliminares, pensando no sexo enquanto foz e cais de longas viagens ao encontro do ser, o próprio perdido ali ou em busca de mais além no outro. Disperso. Por tanto gostar de cartas, temo que estas passem despercebidas, devolvidas ao remetente, sem as cores e os passos de Elvis. «Moléstias, Embustes e Pontinhos Amantes» (ed. Arranha-céus e capa algures na página) nasceu dos tratos de polé que Rita Marquilhas, Catarina Magro, Fernanda Pratas, liderando vasta equipa, deram à «Escrita Quotidiana em Portugal entre os séculos XVI e XIX». Trocadilho desajeitadamente com a «pluralidade de juízos – episcopais, inquisitoriais, reais, locais, corporativos, militares – [que] vigiaram o comportamento dos indivíduos de acordo com certos princípios legais e morais» e de onde foram retiradas para nosso deleite estas cartas. Gozo com os aflitos e seus medos, mas em que em melhor matéria mergulha a literatura suas garras criadoras? Este complexo volume (caixa que inclui 100 cartas, embrulhadas em fita lacrada a simular o selo da intimidade de outrora, sem contar com cartaz e livro de instruções) transfigura-se em máquina produtora de experiências. E roubo ainda ao prefácio, para que se perceba mais avante: «Quem as conseguiria inventar? Falam-nos de ladrões todos corteses, de padres nada católicos, de mulheres, numerosas mulheres, ora queixosas ora batalhadoras, mas sempre eloquentes. Há presos em fuga, amores, desamores, vinganças e maledicências. Há várias doenças, descritas quase com prazer, e também muitas viagens. Pelo espaço de duas publicações, uma portuguesa e uma espanhola, distribuímos este amplo fresco, ilustrado por Nuno Saraiva. São retratos de pessoas que viveram há 200, 300, 400 ou 500 anos e usaram um dos mais antigos formatos que o texto escrito pode receber: o da carta.» Enormes figuras, plenas de vulgaridade, aqui se apresentam, com enquadramento de primeira água, em português da época transcrito para a actualidade e ilustrado, com a malandragem adequada, pelo Nuno, e assim facilitando o acesso ao que se queira, da básica narrativa à evolução da letra manuscrita entre a época quinhentista e a oitocentista, das oscilações da língua às mudanças sociais nos donos da capacidade de ler e escrever. E mais, gesto política de aguda actualidade, que só a memória nos resgatará: «o resgate da vulgaridade, como concordam os estudiosos da sociedade, tem de estar presente nas interrogações que dirigimos à história, sob pena de, entre outras mistificações, perdermos o rasto de muitos dos nossos tabus.» «Moléstias» talvez tenha sido, até agora, o mais atrapalhado dos nossos títulos, pela dificuldade em gerir cada dos múltiplos aspectos que o fazem único, do alcance do esforço posto no enquadramento e na transcrição, pela quantidade das ilustrações, pelo desenho da caixa, pelos desafios técnicos da fita fechada com lacre a simular a experiência original, e mais isto ou aquilo. Mas sobretudo, por termos sido, por uma vez, incapazes de comunicar com o designer, resguardado sob pseudónimo de Melting Spot. Acontece, mas, à excepção da ausência, por vez primeira, do volume na data aprazada de lançamento, não se nota nódoa no essencial. Casa dos Bicos, Lisboa, 23 Julho Era suposto orientar debate, mas temo ter deitado conversa fora. O pretexto era a edição de «O Rasto de García Lorca» (ed. Levoir para o Público, colecção Novela Gráfica), com desenho e argumento de Carlos Hernández, e El Torres a «limpar, brilhar e dar esplendor». Juntámo-nos à mesa, Sílvia Reig, a editora, José de Freitas, coordenador editorial, e Pedro Rapoula, que comoveu a sala com leituras de alguns poemas menos conhecidos, mas ferozes na celebração da alegria e do amor. Pilar del Rio deu início ao assunto, do mesmo modo que o faz no volume, de par com Mercedes de Pablos, falando da ferida-Lorca a partir deste «caleidoscópio de 12 faces-cenas». Hernández recolhe vestígios de modo a compor o rosto fugidio do símbolo, a partir de fragmentos do homem. Ainda hoje a figura do poeta se faz incómoda, recusando Granada as tradicionais homenagens aos que se erguem identidade. No rasto do rosto final, conversa do autor com seu pai, fica claro que o presente não quer que regresse do passado este fantasma. Que força tão temível possui esta figura? O carisma que transgredia as arrumações, burgueses e camponeses, operários e actores? A homossexualidade a perturbar o modo como nos vemos e nos relacionamos? Um gesto que fazia do teatro, da poesia, da cultura, ferramentas de múltiplas possibilidades? Não traz respostas, esta bd, mas ajuda no labirinto de ruínas. «Sem encontrar-se. / Viajante pelo seu próprio torso branco. /Assim ia o ar. // (…) As nuvens, em manada, / ficaram adormecidas contemplando / o duelo das rochas contra a aurora. // Vêm as ervas, filho; / já soam suas espadas de saliva / pelo céu vazio. //Prepara teu esqueleto; /é preciso ir buscar depressa, amor, depressa, / nosso perfil sem sonho.» Temos que voltar à escrita de cartas, como afinal este «Rasto…» acaba sendo, ao pai do artista e à cidade de ambos. Os tempos exigem-nos. Na sua última carta, responde à do seu namorado, Juan Ramírez de Lucas: «En tu carta hay cosas que no debes, que no puedes pensar. Tú vales mucho y tienes que tener tu recompensa. Piensa en lo que puedas hacer y comunícamelo enseguida para ayudarte en lo que sea, pero obra con gran cautela. Estoy muy preocupado pero como te conozco sé que vencerás todas las dificultades porque te sobra energía, gracia y alegría, como decimos los flamencos, para parar un tren». Energia, graça e alegria, receita para parar comboios.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasA morte saiu à rua num dia assim Federico Garcia Lorca (5 de Junho de 1898 — 18 de Agosto de 1936) [dropcap style=’circle’]D[/dropcap]ezanove de Agosto de mil novecentos e trinta e seis. E, naquela noite de Estio, cumprir-se-ia um destino singular às margens do Guadalquivir: Federico Garcia Lorca assassinado pela corrente Falangista na sua Granada natal onde se havia refugiado, cede ao cansaço de estar fechado em casa e passeia-se na noite luarenta, alguém o reconhecera -volta a casa – e não tarda a baterem para o irem buscar, naquilo que foi talvez aquele instante: estou pronto e só. Porém, ele aninhara-se no seu berço para fugir ao perigo que a partir de Julho se afigurara real, fugiu para a sua terra onde politicamente tinha amigos das duas facções rivais, certo estando que nada aí lhe poderia acontecer. E, mais uma vez, se estende a questão: ninguém deve abrigar-se na sua terra em caso de perigo, é aí que estão os delatores, os algozes, talvez até entre insuspeitos que secretamente jamais perdoaram a vitória de alguns. Este erro, aliás, é cometido por todos. E todos aí encontram o mesmo fim. Lorca seguiu sempre o trilho da sua própria universalidade não estando filiado em nenhuma das correntes que fizeram a guerra. Exigir tais coisas a personalidades assim seria o mesmo que amputá-las. Garcia Lorca devia ter o encanto das crianças e a natureza brutal dos homens era-lhe talvez intimamente desconhecida, pois que não se pode ter feito aquela obra com noções estreitas de razão e de vontade. Tudo nele pertence a outros interiores, onde não raro o trágico habita, mas sempre pleno de focos redentores. Com uma aturada atenção dei-me conta o quanto a sua morte está cravejada na sua poesia: uma noção visionária, um destino irredutível, uma visão soberana plasmada nele como uma certeza. Os poetas sabem tudo do futuro das coisas, não sabendo contudo que já sabem, mas uma grande obra poética revela esse assombro para lá das incertezas humanas e das perguntas sem sentido. Ela dá-se onde os outros não têm voz, ela exercita-se nos canais subtis de um mecanismo de sonda que é raro acontecer. Mas está lá, como uma certeza toda de dimensão precisa, outra, inquietante. Este homem tão regional, foi também um grande cosmopolita, um ser que viajou, desde a sua bolsa em Nova Iorque, passando pela América Latina, Europa, Venezuela, conheceu escritores da sua têmpera, recitou, tocou, conferenciou mundo fora. Grande parte da sua obra foi compilada, revista, nas alturas que antecediam as viagens. Depois, ele tinha um enorme encanto pessoal, era imensamente sedutor criando uma aura quase hipnótica, reportando-nos às palavras de Alberti. Existe mesmo na sua morte uma nuvem de enigma tipo “Salieri-Mozart” com o poeta Luís Sales, que se tornaria o poeta do regime franquista, mais tarde, e a quem Lorca propôs o Hino Falangista conjunto, dúvidas que nunca vieram à luz do dia. Ele estava perto e teria podido intervir na sua libertação, teria sido muito fácil intervir…. mas é um assunto controverso. Eles adormecem, com o vinho da noite quando os amigos são condenados à morte, já tinha sido assim com alguém que nos é familiar. O facto de ser seu amigo não excluía que o fosse de todos os vanguardistas como Fernando Del Rio, republicano e fundador do Partido Socialista, onde fizeram parte dos grupos de vanguarda formados por Alberti, Guillin e Salinas, o chamado grupo dos «Poetas de Vanguarda». Não nos esqueçamos que foi ele o fundador da «Barraca» teatro ambulante destinado a educar as massas nas cidades e nos campos (não como a nossa Cilampus) e que em plena ditadura de Primo de Rivera pôs em palco « Bernarda Alba», um hino libertador. Por tudo isto e por muito menos são os homens abatidos e hoje, dezanove de Agosto, nunca é demais lembrar que aquilo que um poeta avança numa geração precisam os homens por vezes de séculos. Claro que fora descuidado e confiante, claro que facilitou a vista ao algoz, mas porquê matar um homem assim?! «Romanceiro Gitano» é das obras mais belas do mundo, todo um poder regional condensado a obra universal, pois que ainda agora quando desejo o cheiro das laranjas, meninos a correr, ciganos, pombos, burros e cães procuro-os nestas páginas de um chão transfigurado em Poema, tão sagrado como a Galileia, tão divina Granada como Jerusalém. O seu corpo nunca foi encontrado, para que serve um corpo, quando se é Lorca? Talvez para amar e morrer de amor, estes corpos têm coisas estranhas por dentro. Mas morto, é a universalidade que o instala sem sombras no nosso espectro de luzes. 19 de Agosto de 2015 Amo a Federico, nada me poderia ser mais amante, mais tocante, mais rasante a todas as lágrimas de agradecimento que o seu luminoso exemplo de Poeta. O amor vive-se a muitos níveis – sabem-no eles – e, mesmo que os corações sejam de lama e carne, existirá um reduto de outros elementos que batem por este belo ser em uníssono, sem tempo, nem distância. Mais meridional que os seus imensos olhos castanhos, nem as fogueiras de Saloon, mais passivo que o seu semblante, nem as impressões de Cristo, e mais belo que o seu saber, nem mesmo Salomão. Os políticos hão-de todos morrer, os homens fortes e os fracos, as coisas boas e más, mas o que fica (recorro agora à bela frase de Holderlin)« o que fica, os poetas o fundam». “Do Oriente ao Ocidente Levo tua luz redonda. Tua grande luz que sustém Minha alma, em tensão aguda. Do Oriente ao Ocidente. Que trabalho me dá. Levar-te com teus pássaros. E teus braços de vento!”