O outro lado do silêncio

Esse lugar ideal que, nunca alcançado, é apesar de tudo sempre perseguido como uma ânsia de espelho. Ou de outro, ou de um outro “outro”, mesmo que reduzido a um olhar do eu sobre si próprio. As cidades são também seres que se dão a momentos de abandono.

Naqueles lugares em que subitamente se encontram sós, escoadas as pessoas que as tomam ou tomam todos os lugares dela de assalto, e se encontram de novo com um silêncio que é somente aparência, porque dele se ouve como destilado do mais profundo da sua alma de lugar, uma voz subtil e nítida, contudo, que somente se faz ouvir depois da exaustão, antes dela ou para lá do esquecimento. Lugares que, ao contrário do que se imagina não encontramos pelo acaso da conjugação desses factores, mas pelo contrário parecem ter vindo ao nosso encontro e de um olhar também ele silencioso ou mergulhado em cuidado. Ou como se essa voz em surdina, que então se faz ouvir qual canto de sereia, se faça urgente e conduza.

Apropriação de um lugar é fazer dele reflexo de uma determinada constatação. Um reflexo no verdadeiro sentido da palavra reflexo, atribuída a uma imagem vista ao espelho. Se ela é real e se ela é rigorosa, quando sempre depende de um olhar, mesmo do sujeito que se abeira e se vê chegar. Talvez mesmo de um espelho negro, desses em que as superfícies de obsidiana que adulteram em profundidade, a idealmente verdadeira pureza das imagens reflectidas. Misteriosamente tornadas fantasmagóricas aparições de uma outra realidade.

Um inesperado “algo mais”. Gostar dos silêncios da cidade convocados e coleccionados, por tantos lugares que por momentos são esquecidos. Por tantas marcas do tempo, que, esse nunca esquece as matérias nem as deixa parar o seu percurso para a morte.

Penso que morte é a dos fungos, das oxidações a adulterar as cores das massas e das tintas, que morte é essa de beleza a tirar a respiração. Que velhice, que vida, que tempo activo e imparável e que não retém memórias sem fabricar resíduos sem alterar suportes, sem cair e desprender e sem admitir restauros que não sejam, esses sim, o esgotar dos sinais que remetiam para outro tempo contínuo. Paragem, o restauro, encerra uma vida das matérias, forçadas a revestir-se de uma nova existência estética.

Gosto de salitres e humidades, ferrugens e corrosões, gosto da actividade desse tempo que parasita as matérias e tem uma voz própria. Texturas abstractas que reinventam mapas de destinos. Que seduzem para criaturas inventadas por quem distraidamente vê. Como monstros que saem do espaço em busca de território fértil para atormentar ou causar o riso.

Fantasias próprias do espelho que somos. Mas não deixo de pensar que, cicatrizes são as do corpo, as que saram. Não este percurso para a destruição. São lugares devolutos. O que perdem em privacidade, ganham em intimismo. Gosto de encontrar lugares de uma cidade em que temporariamente se instalou esse silêncio próprio para tudo fazer ouvir. Também somos seres que se corroem por dentro e envelhecem por fora. Do lado de lá e do lado de cá do espelho. Mas não sei se não ficaremos sempre do lado de cá. Acorrentados a uma imaginação invocada no lugar ou por ele, mas que se refaz como movimento para um interior qualquer a que o lugar é na verdade estranho. Somos sempre nós. E também estranhos.

15 Dez 2022

10 Fantasia | Embrace the Rainbow – “An Emotional Outlook” até 28 de Setembro

As exposições estão de regresso ao espaço 10 Fantasia, ao lado do Albergue SCM, sob a batuta organizadora da Ark-Association of Macau Art. Até 28 de Setembro, está em exibição Embrace the Rainbow – “An Emotional Outlook”, que reúne trabalhos de U Weng Kam, Cheong Un Mei entre pinturas a óleo e composições mistas

 

Depois de as nuvens se dissiparem, os primeiros raios de sol no céu artístico de Macau voltam a brilhar. É com essa filosofia de retorno que a Ark-Association of Macau Art retoma o ciclo de exposições no segundo andar do espaço 10 Fantasia, ao lado do Albergue SCM, aberto ao público todos os dias, excepto à segunda-feira, das 11h às 18h.

Ontem, foi inaugurada a 4.ª e penúltima edição do ciclo Embrace the Rainbow, intitulado “An Emotional Outlook”, que reúne trabalhos das artistas U Weng Kam e Cheong Un Mei.

Segundo a Ark-Association of Macau Art, a exposição que estará patente no espaço 10 Fantasia até ao dia 28 de Setembro representa a saída de um período negro em direcção a um horizonte colorido. “Depois da neblina surge o sol, e o arco-íris vem sempre depois da tempestade. O título desta série de exposições gira em torno das ideias de esperança e recuperação. O que nos aconteceu durante a pandemia? O que merece a nossa gratidão? O que nos inspirou?”, questiona a associação.

A organização da mostra realça a importância da arte no reajuste de mentalidades e no reforço da confiança e esperança. A estética e a expressão artística são instrumentos para encontrar paz interior, num mundo ditado por distâncias sociais e restrições de toda a ordem.

Na apresentação da peça de U Weng Kam, é referido o aspecto permanente da existência de arcos-íris, apesar da presença ou não de seres humanos. “Animais e plantas que povoam o planeta vão continuar a viver, partilhando os recursos da Terra em harmonia contínua. Talvez um arco-íris não tenha significado para eles, porque é apenas um fenómeno físico”, teoriza a artista.

U Weng Kam acrescenta que a sua expressividade artística é impregnada por elementos existencialistas, que procura questionar a posição do ser humano e das sociedades organizadas, e a forma como a pandemia veio baralhar tudo.

Raízes no território

U Weng Kam é mestrada em pintura a óleo e educação artística pelo Instituto Politécnico de Macau. Além da criação artística, lecciona em centros de educação no território.

No que à inspiração diz respeito, U Weng Kam entende que a arte vai muito além da apreciação do que é belo, passa também pela interacção entre artista e público, na busca de espaços de reflexão, exploração, alívio e entendimento sobre as realidades sociais e pessoais.

Cheong Un Mei teve um percurso semelhante à sua companheira de exposição, também passando pela formação em artes visuais no Instituto Politécnico de Macau, hoje em dia designado como Universidade Politécnica de Macau.

Apesar de não se dedicar exclusivamente a uma forma de expressão artística, Cheong Un Mei tem predilecção pela arte conceptual e interactiva, em particular em peças tridimensionais e escultura que provoquem reacções.

A Ark-Association of Macau Art irá organizar mais uma exposição depois de “An Emotional Outlook” para completar o ciclo de mostras que pretendem apresentar a criatividade e a esperança depois da pandemia.

14 Ago 2022

O lado B

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão sei se é, e sempre, a vida partida em duas, como um baralho de cartas em início de jogo. Ou se é simplesmente uma carta e as suas duas faces, em momentos diferentes que se alternam. A face que determina, inexorável, a face que esconde e tudo permite imaginar ou sonhar. Face de padrões que variam de baralho para baralho, mas padrões que são como tapetes confortáveis à alma, no imaginar de uma mão favorável, um desígnio inesperado, a realização do que se espera passivamente, como se à vida fosse dado chegar sem querer forçar. Coisa que não é. Faces de uma moeda que se lança ao ar. E cai o momento. E a possibilidade de visualizar, como através de um prisma, miríades de cores e formas adulteradas que não pelo efeito da razão. Mas sim pela densidade do cristal que se interpõe ou do cristalino físico do olhar que se dispõe – e porque não? – num momento diferente de outros a ser assim. Outras, que não mais que pelo elaborar mental imparável e cego. Como se o olhar fosse imagem prévia a abrir voluntariamente e não processamento inadvertido da postura dos olhos face ao real. Que real? Pergunto.

O de fantasiar todo um tempo vindouro possível. O de arrumar contas da vida material dos dias que passam sem saber a que propósito dar contas.

Esse real de fazer medo. Que medo esse que empata os dias como se monstro a alimentar-se de indefinições, ou a esperar, estoico, a resolução da ineficácia que os torna iguais, idênticos em tudo que não na página da agenda.

Contemplava a cama desarranjada com um olhar diferente de outros dias. Nos outros, os dias em que estava, olhava a cama revolta com o olhar de olhar uma cama revolta a pedir ordem e alinho, lençóis frescos e as palmadinhas firmes nas almofadas. Puxar as orelhas ternurentamente à noite de antes e deixar um sinal de renovação e começar de novo à noite que vinha. Ao sono e ao ombro de um calor ali. Mas olhava, agora a cama, a mesma cama, com um olhar de contemplação porque a cama era outra e o dia a anteceder a noite um dia diferente para entrada numa noite diferente e sem o ombro adormecido onde poisar a face, a insónia, aquela extensão do dia a não querer terminar mergulhado no sono esquecido. Era o olhar de contemplação do lugar da ausência e do lugar desfeito da presença passada. O lugar da presença desfeita em sinais como os de outros dias só que agora com a tonalidade definitiva da ausência para um tempo. De um corpo. Que se desfez de formas sensíveis e palpáveis por proximidade.

E as formas confusas e sem estrutura que não a dos acasos dos gestos, recusavam a dizer mais do que a longínqua – já – razão de serem assim. A ausência reduzida à mesma desordem do costume. Desesperante, sempre. Triste vestígio a querer reter, agora.

Ou para sempre, nessa arqueologia do dia antes, deixar estar tudo a prolongar o impossível. A passagem. Por isso não era o simples olhar da vontade de arrumar. Essa desarrumação de corpos que revolvem como as águas de uma maré turbulenta ou como se rolados pela força da maré repetida e calma. Na navegação nocturna. Não era o olhar da subsequente arrumação cega, rotina de dias em mansa continuidade, mesmo que se terna e ritual. A de todos os dias a impor a ordem, numa perspectiva de eterna renovação e desarrumação logo a seguir. Por isso era uma contemplação parada, melancólica e firme na contenção do momento. Para que não fugisse como areia entre os dedos. E desse momento de nostalgia do corpo que já não vivia ali em futuro próximo, só o olhar concentrado e nítido, a perpetuar. Partiu de tarde e começou a partir muito antes. Porque tinha que ser. E foi. À vida que precisa continuar mesmo que ultrapassando portas e portas sucessivas e deixando para trás a mágoa de quanto não se compadece com a existência de várias vidas em simultâneo. Foi porque tinha que ir. Não querendo. Não querendo eu. E agora simples lençóis de algodão amarelo pálido e límpido a desfocar uma despedida que já fora. E a necessidade de apagar o rasto do corpo naquela cama. Adiada, no entanto. Amanhã. Amanhã desfazer as formas ainda com a temperatura, hoje dormir na rebelião da memória feita embalo e saudade de quem já não está visível, mas quase.

Eu vou dali desse olhar que não quer desprender-se e na janela sigo-lhe o rasto já indefinível Vou, de um modo geral, talvez num barco nocturno a um lugar qualquer sem ele, porque de efeitos de luz se apresenta como tal. A noite de não dormir mais. Os contrastes mais difusos do que na torrina do sol. Que eu amo. Mas não descurar a nitidez das sombras nesse gostar da luz. Não fugir à aparência virtual de fogo-fátuo intermitente e difuso, que só na noite, do dia, se apresenta. Nunca sou noite do dia excepto à noite, mesmo. Não se pode imputar à ginástica do olhar a perversão da luz. Da luz que falta ser farol ou que encandeia de inabilidade diurna. Ir num barco de sombras e reflexos não é ir efectivamente. Não é ir, nem nada, senão a procura da bússola. Acendo um cigarro como outros mas nunca são iguais. Os cigarros as luzes e os outros de face escondida por detrás da luz. Acendo este cigarro. Este do momento específico de ser agora e acendo o cigarro secretamente desesperado assim tal e qual como os outros. Mas acendo. O cigarro. Diferente em todas as semelhanças. Este. E penso. E embarco na noite do que o dia não trouxe nítido. E levou, e não deverá trazer de volta. A linguagem é um território de não comunicação. De desfocagem a exigir persistência. A ouvir. A aprender a partir daí. A arrumar como as roupas desalinhadas que ficaram esquecidas por ali. Fui com ele, naquele dia, e como num tabuleiro de jogo, até à casa da partida. Partimos. B. partiu e nunca voltou ali mas a outros lugares. Deixando sempre o mesmo ruidoso recorte de ausência nas coisas. Um silêncio que dura até hoje.

22 Set 2017