Nuno Miguel Guedes Artes, Letras e IdeiasO sono da razão Este tempo parece avançar devagar, numa espiral descendente. Até os temas dos dias começam a ser recorrentes, demasiado recorrentes. Não se admire o leitor que também este pobre cronista fique umas vezes refém ou outras vezes soldado contra a agenda que lhe querem impor. Por isso foi sem surpresa que desde há algumas semanas ando obcecado com um quadro de Francisco de Goya (1746-1828) : chama-se O Sono da Razão Produz Monstros e nele se vê o que alegadamente é o pintor num sono que se percebe atribulado pela posição desconfortável do seu corpo. Atrás dele, corujas e morcegos surgem das trevas, ameaçando-o. Goya foi um filho do Iluminismo e como tal endeusava o uso da Razão que colocava como o centro de toda a actividade humana. Mas este quadro parece ter ganhado uma vida terrível no presente. A razão – ou pelo menos o bom senso – está adormecida. Ou pior: tende a estar policiada e presa. Já não vale a pena considerar aquilo que podemos assistir quotidianamente como episódios isolados. Não: os cancelamentos, as proibições, as constantes modificações da linguagem são sinais claros de que a nova ortodoxia está para ficar se nós deixarmos. A supressão do debate está instalada desde o início da década de 90 do século passado, intimamente ligado ao que ficou conhecido como Politicamente Correcto. Peter Coleman, um antigo ministro australiano do Partido Liberal chamou-lhe uma “heresia do liberalismo” e foi mais longe: “O que começou como um assalto liberal à injustiça tornou-se, não pela primeira vez, uma nova forma de injustiça”. Sobre este “não pela primeira vez” há muito que dizer. Mas antes olhemos para o agora. E agora, só para falar nos tempos mais recentes, há isto: Pepe Le Pew, uma doninha ultra-namoradeira e protagonista de um desejo animado, é banida por supostamente “incentivar à violação”. Outro personagem de ficção, James Bond, para além de sofrer pressões por corresponder a uma minoria supostamente privilegiada e de sexualidade condenável para esta Ortodoxia (leia-se branco e heterossexual) é ainda censurado por “induzir a comportamentos alcoólicos”. Uma antropóloga brasileira de méritos académicos exemplares e conhecido activismo anti-racismo, Lilia Schwarcz, foi linchada nas redes sociais por um texto em que criticava (!) o visual africano de Beyoncé no Black Is King . Principal argumento dos que a atacam: é branca. O caso dos requisitos para quem queira traduzir o poema da tomada de posse de Joe Biden escrito por Amanda Gorman – uma jovem negra – é também já conhecido: para o poder fazer é necessário ser negro e de preferência activista. Seis livros de um dos mais acarinhados escritores de livros infantis, Theodore Seuss, foram retirados de circulação por conterem “elementos racistas”. Os autores canónicos da literatura ocidental (expressão que já por si é perigosa de utilizar neste período inquisitorial) estão a ser retirados dos currículos académicos por representarem a opressão heteropatriarcal, o imperialismo ou a supremacia branca. E sim, falo de Homero ou de Shakespeare. Perante este assustador estado de coisas alguns liberais moderados reconhecem as causas e identificam a sua origem. Um dos exemplos é Ross Douthat, que escreveu a 6 de Março uma importante reflexão no New York Times. Cito-o sem tradução: « What does this say about the condition of liberalism? Something not so great, I think. (…) But it was a good thing when liberalism, as a dominant cultural force in a diverse society, included a strong tendency to police even itself for censoriousness — the ACLU tendency, the don’t-ban-Twain tendency, the free-speech piety of the high school English teacher.» Outra excelente contribuição é a de Edward Skidelski no The Critic. Ao conceito de Politicamente Correcto prefere abertamente o de Totalitarismo, não o adjudicando exclusivamente à esquerda mas também à extrema-direita. Os métodos diferirão: a primeira, com mais reconhecimento social, age de forma aberta enquanto a segunda prefere o anonimato da internet. Mas os objectivos são os mesmos: suprimir o que é incómodo para o que se quer um pensamento dominante. Skidelski: « This — note — is very different from the older liberal principle of “no tolerance for the intolerant”. That principle served only to rule out the Lenins and Hitlers of this world, preserving a wide scope for disagreement. But if what is required is not just tolerance, but affirmation, the scope for disagreement is nil. All must affirm, or else face “cancellation”. Herein lies the secret of that strange and horrible metamorphosis whereby the champions of “diversity” and “inclusivity” have become the most zealous persecutors of the modern age.» Poderia continuar e receio que o faça numa outra oportunidade. Apenas direi que uma das origens deste clima cultural e até político está identificada por todo o espectro ideológico moderado e é paradoxalmente o lugar onde o debate e a liberdade de expressão sempre foram valores blindados e desejáveis: as universidades. Agora o caso é outro. Num ensaio disponível no site academia.edu com o título Academic Inquisition: Are Universities Centres of Higher Education or Higher Indoctrination?, o professor de Linguística Alaric Audé descreve bem o ambiente académico que se vive: « Professors are behaving as zealots and activists rather than remaining neutral where possible and acting as facilitators of complex discussions and problem solving skills. Professors themselves partake in violent demonstrations (Bostock, 2020) and encourage their inexperienced students, not to act with reason, but condone and justify repulsive behaviors in their students. They have forsaken the art of teaching and instead revel in the power and influence that comes with indoctrination. Instead of providing stimulating and through provoking lessons, they water down education and create “safe spaces” as if their students were young children that needed mental protection». E faz mais: estabelece uma genealogia do fenómeno – o tal “não pela primeira vez” que salientei no início da crónica – que já há muito também foi identificada mas que é sempre assustadora: o totalitarismo nazi e soviético, onde professores e alunos com vozes dissidentes eram perseguidos, despedidos e às vezes pior. O verdadeiro problema é que esta mentalidade já passou para os estudantes, também eles os primeiros a denunciar, proibir ou cancelar toda a possibilidade de opiniões contrárias à ortodoxia vigente. A razão parece continuar adormecida. Os monstros estão bem acordados e não se recomendam.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasAssalto ao “Reichstag” [dropcap]B[/dropcap]erlim. 30 de Agosto de 2020. Uma manifestação contra as medidas sanitárias impostas pela Covid-19 reuniu facções da Afd (Alternativa para a Alemanha) de extrema-direita. “Horror – escalada de violência nas escadas do Reichstag” lê-se no site do canal ARD. Na página do FB da AfD, lê-se, porém: “Assalto ao parlamento (Sturm auf den Reichstag)”. O título no site da ARD foi, entretanto, corrigido para “Ataque ao coração da nossa democracia (Angriff auf das Herz unserer Demokratie)”. Um eufemismo tão grave não podia passar despercebido. Há uma invisibilidade mais difícil de detectar do que todas as outras. É quando tudo se faz às claras. Os prestidigitadores, os mágicos, os desportistas exímios e como é óbvio os políticos mais hábeis são os grandes mestres da simulação e da camuflagem. A finta consiste em dar a entender uma acção ou um movimento com um sentido contrário do que vai acontecer. Para simularmos é preciso sermos capazes de fazer crer ao outro que a nossa intenção está absolutamente expressa na nossa acção, no nosso movimento, na nossa palavra. O desportista finge que vai para um lado e vai para outro, que sobe e afinal desce. Dá a sensação que vai avançar e recua ou que vai recuar e avança. Adia até ao limite ou antecipa-se. O pugilista finge bater no rosto do adversário com uma mão para bater no tronco com a outra. O nosso olhar absorvido pelas mãos do mágico não tem folga para percebermos como tira o coelho da cartola. O que acontece na simulação, na finta, é trabalhado tecnicamente. Os diálogos de Platão desmascaram a sofística por ser isso mesmo que faz: prestidigitação. Mas é na vida que a dissimulação se forma. Esperamos que se deem coisas que não acontecem. Há outras que, contra a expectativa, acontecem mesmo. O próprio modo como as coisas se dão é diferente do modo como esperávamos que fossem. Há um jogo complexo entre o que achamos que está visível no horizonte e depois o que vem a acontecer. A invisibilidade mais difícil de detectar é a que se dá às claras. Podemos não querer acreditar no que estamos a ver, quando é isso mesmo que está a acontecer. O elemento fundamental da simulação é o tempo. O futuro iminente cria a pressão necessária para termos uma percepção errada do que está a acontecer. Tudo pode mudar para ficar na mesma. Tudo pode parecer que está na mesma e existe em metamorfose. A verdade engana. O povo sabe do que está a falar. Um povo é levado pela verdade, sobretudo pelo poder eficaz com que as verdades são ditas. Elevamos quem nos diz as verdades mesmo que com a aura da impopularidade. Mas quais são as verdades que sempre foram ditas pelos demagogos. A história repete-se quando o povo baixa a guarda. A frustração da desilusão faz baixar a guarda. Ergue-se o ideal de beleza, de triunfo, da juventude, e também o que é anómalo e anormal, o que não cabe dentro desses parâmetros. Nesse ideal de beleza, triunfo e juventude, da “beautiful people”, “jet set” internacional dos célebres e famosos desta vida, não cabem, por exemplo, os judeus ou os homossexuais (Otto Weininger, George L. Mosse), como se pode compreender pela história recente da Europa nem os negros em nenhum lado do ocidente. Mas não são apenas os descendentes da colonização os únicos “apetrechos dotados de alma” – na definição de escravos de Aristóteles – podem ser crianças, mulheres, todos aqueles a quem lembramos sempre que vieram à existência pela porta dos fundos. Os migrantes para a extrema-direita não chegam do norte de África. Existem já nos seus países. São até cidadãos nacionais desses países. Tiveram foi o azar de não pertencerem à étnia da maioria, terem uma pele de cor diferente, outra religião e, quando não, orientações sexuais diferentes, a idade errada. A vida não é para miúdos nem para velhos. O discurso da transparência não usará de subterfúgios. Dirá a verdade. Não poupará palavras na denúncia. Fundará um partido para defesa da “nova ordem” das coisas. Quem manda no partido pode ser um ressentido ou não. Sabe, contudo, para quem fala. Apela ao ressentimento de que todos nós somos portadores e elege um bode expiatório. É que estar vivo é sentir-se ressentido, porque se queremos ter a possibilidade de ter tudo a que temos direito, por outro lado, houve sempre alguém que não nos deixou ter sucesso. Para o homem do ressentimento a força de bloqueio não é apenas quem detém privilégios, a gente bela, as pessoas de sucesso, os que triunfaram. São os outros como eu que estão a mais. O paradoxo é que todos sem excepção estão a mais se não forem os meus. Os outros não têm direito a nada. O ressentimento pode adormecer mas é acordado. Os poderosos sempre souberam acicatar os ânimos. A Krypteia, a polícia secreta espartana, actuava como rito iniciático para os jovens. Abatiam hilotas (a casta dos escravos que trabalhavam a terra) em “raides”. Desde sempre soubemos espalhar o terror. Não pensava Calígula “odeiem-me à vontade desde que me temam (oderint dum metuant)”? Às claras, alastram pela Europa, Portugal não é excepção, manifestações de apego à tradição e ao caracter puro, enraizado das etnias. A alemã AfD (Alternative für Deutschland) voltou a dar sentido às “Mahnwachen (vigílias)”, numa manipulação clara do descontentamento da população contra as medidas sanitárias provocadas pela Covid-19. As manifestações “contra” têm um sentido completamente novo, porque procuram negar a evidência da presença de um mal. Negar as medidas contra o Coronavírus é negar a existência do vírus, como negar as manifestações contra o racismo é negar o racismo. As manifestações destes partidos são anti-manifestações. Não são afirmações da realidade. São formas de perpetuação do escondimento da realidade. Os novos demagogos não têm, como Giges, anéis que os tornam invisíveis. Não precisam deles já. Dizem tudo às claras. Quando o mal é dito às claras, já não estamos perante uma afirmação. Estamos perante uma ameaça, e há ameaças que devemos levar a sério.