Esgrima | Medalha de Ouro de Hong Kong aumenta procura de aulas em Macau

O impacto da medalha de ouro na esgrima no Tóquio2020, conquistada pelo floretista de Hong Kong Cheung Ka-long fez-se sentir em Macau. A fundadora do MF Fencing revela que nos últimos dias, o número de interessados em praticar a modalidade cresceu exponencialmente. Treinadores e atletas locais consideram que os esgrimistas do território podem alcançar patamares de excelência. Para o campeão europeu em 2000, Álvaro Monteiro, a medalha “não foi inesperada”

 

Nunca Hong Kong tinha vibrado tanto com um toque de esgrima. Quando Cheung Ka-long conquistou o 15º ponto frente ao, até então campeão olímpico e principal favorito à vitória olímpica, Daniele Garozzo, a explosão de entusiasmo de várias centenas que se reuniram em espaços públicos do território vizinho para apoiar o atleta de 24 anos, foi enorme.

Afinal de contas, a conquista da medalha de ouro por Cheung Ka-long na categoria de Florete Masculino nos Jogos Olímpicos de Tóquio, além de representar uma conquista inédita na modalidade de esgrima, foi também a primeira desde os Jogos Olímpicos de Atlanta em 1996, em que Lee Lai Shan conquistou o ouro para Hong Kong na vela.

Além disso, a medalha do floretista representa também o primeiro ouro olímpico conquistado por Hong Kong após a transferência de soberania para a República Popular da China em 1997.

Os ecos da vitória provenientes do território vizinho não tardaram a fazer-se sentir em Macau, sobretudo entre atletas, praticantes e outros elementos pertencentes à comunidade esgrimística do território. Mas alargaram-se, desde logo, ao interesse pela esgrima, com efeitos visíveis no número de interessados em praticar a modalidade.

Helena Cheang, fundadora e consultora do MF Fencing, clube de esgrima nas redondezas da Avenida Ouvidor Arriaga, conta ao HM como após a vitória de Cheung Ka-long, a procura por esgrima em Macau tem sido “muito maior”. Nos dias que se seguiram, o número de pedidos de informação e inscrições foi anormalmente elevado para esta altura do ano, mesmo em período de Jogos Olímpicos.

“Esta vitória vai ter um impacto muito bom no nosso clube e ao nível da prática de esgrima em Macau. Depois da vitória do Cheung Ka-long a procura tem sido exponencialmente maior. Nos últimos dois dias tivemos mais de 20 pedidos de crianças ou adultos a perguntar por informações e pela possibilidade de se inscreverem nas aulas de esgrima”, começou por explicar.

“Sem dúvida que conseguimos sentir o efeito desta medalha em Macau. Se isto não tivesse acontecido acho que teríamos um ou dois pedidos de informação, apenas devido aos Jogos Olímpicos. Mas depois da vitória do Cheung Ka-long na prova de Florete, os pedidos não param de chegar”, rematou.

A responsável perspectiva ainda que, nas próximas semanas, “o número de pedidos vai aumentar ainda mais”, até porque a equipa de Florete de Hong Kong irá participar numa outra competição no Interior da China e avizinham-se novas conquistas. “Acho que vai haver ainda muito mais pedidos de residentes de Macau interessados na prática de esgrima”, prevê.

Motivação renovada

Também para o atleta e treinador de esgrima, Kit Iu, a vitória de Cheung Ka-long vai contribuir certamente para “encorajar mais pessoas a dar o primeiro passo rumo ao início da prática” da modalidade no território. Além disso, defende, devido à proximidade, o sucesso de Hong Kong deve servir de motivação e referência, não só para os praticantes locais, mas também para o desenvolvimento da esgrima de Macau.

“[A medalha de Cheung Ka-long] deve servir de inspiração para os esgrimistas locais trabalharem arduamente para alcançar os seus objectivos. Mas, mais importante ainda, é que o Cheung Ka-long pode servir de referência para jovens esgrimistas e também para o desenvolvimento da esgrima de Macau”, disse ao HM.

Helena Cheang concorda que o modelo de Hong Kong deve servir de referência para Macau e que, através do aumento da cooperação entre as duas regiões e do apoio do Instituto do Desporto (ID), os atletas de Macau podem almejar, um dia, conquistar resultados ao nível do feito de Cheung Ka-long.

“Desde o dia em que fundei o clube de esgrima, o meu objectivo passou por seguir os modelos de Hong Kong, pois acho que o desenvolvimento desportivo de Hong Kong deve ser a nossa principal referência. Na minha opinião, acho que se o Instituto do Desporto desse mais apoio, os atletas de Macau poderiam alcançar [resultados] do mesmo patamar que o Cheung Ka-long. Acho que poderíamos aprender com os métodos de treino de Hong Kong e investir na cooperação”, sublinhou.

Apontando que na esgrima “tudo pode acontecer” e que o resultado de Cheung foi “surpreendente”, Kit Iu considera que o próximo passo da esgrima de Macau passará, em primeiro lugar, “por chegar a lugares cimeiros a nível asiático”.

De acordo com a Associação de Esgrima de Macau, sem contar com os praticantes das competições escolares, onde cada evento conta com a participação de mais de 400 esgrimistas, estão registados em Macau 184 atletas. Quanto aos locais de prática, existem na RAEM quatro salas de armas ou clubes, havendo também entre 10 a 15 escolas onde é possível praticar esgrima.

Aqui tão perto

Quando chegou a Hong Kong para ser treinador de esgrima do Fencing Sport Academy (FSA), Álvaro Monteiro ficou impressionado com o facto de o clube acolher, por si só, cerca de 700 atletas, distribuídos pelas três armas da esgrima [ver caixa] e uma equipa técnica volumosa com cinco treinadores a tempo inteiro.

Actualmente, a treinar a equipa de Florete Masculino do Qatar, na Academia Aspire, em Doha, o floretista português que foi Campeão da Europa em 2000 por equipas, conheceu de perto a realidade da esgrima de Hong Kong e teve a oportunidade de conhecer também Cheung Ka-long quando este pertencia ainda ao escalão de Cadetes (sub-17).

Para o ex-atleta da selecção nacional portuguesa, desde cedo foi possível observar que o floretista de Hong Kong era um “fora de série” e, por isso mesmo, defende, a conquista do título de campeão olímpico não foi uma surpresa.

“O Cheung Ka long é um talento fora de série. Lembro-me de o ver em 2014, era ele ainda cadete, a ganhar o Hong Kong Open, prova do escalão Seniores. Já nessa altura ele era um elemento seguro da equipa de Hong Kong”, começou por dizer ao HM.

“O Cheung foi campeão Asiático em 2016 quando ainda era Júnior [sub-20] e venceu também a prova de qualificação olímpica para o Rio de Janeiro. Não foi uma medalha inesperada, na minha opinião. O talento e vontade de trabalhar estavam lá e, com o ingresso no HKSI [Hong Kong Sports Institute], criaram-se as condições base para o seu desenvolvimento”, acrescentou.

O que faz um campeão

Quanto às características de Cheung Ka long, Álvaro Monteiro destaca tratar-se de um floretista canhoto “alto, rápido e destemido” que tem um “sentido de timing incrível”.

“Desde que saí de Hong Kong falo dele a colegas de profissão, dando sempre a opinião de que um resultado desta dimensão de Cheung Ka-long era uma questão de tempo. Nestes Jogos, vi um Cheung mais maduro, mais experiente e habituado a grandes palcos. Estou muito feliz por ele e por Hong Kong”, vincou.

Como não poderia deixar de ser, a felicidade na região vizinha foi particularmente sentida por quem dá o corpo ao manifesto da esgrima, como Lau Kam Tan, treinador principal do Fencers Club Hong Kong. Contactado pelo HM, o treinador mostrou-se “honrado” por ter testemunhado a vitória de Cheung Ka-long nos Jogos Olímpicos de Tóquio, acreditando que o segredo da vitória esteve no “trabalho de preparação árduo” feito pelo próprio e pelos seus colegas de equipa.

Relativamente a Macau, Álvaro Monteiro considera que “tudo é possível quando se criam as condições necessárias”, mostrando-se optimista quanto ao trabalho que tem vindo a ser desenvolvido na região.

“Macau terá certamente um longo caminho a percorrer, mas vejo que se está a desenvolver a um bom ritmo. Esta medalha irá certamente motivar e atrair novos talentos para os clubes. Talvez o próximo passo passe pela criação de um centro de alto rendimento e pela contratação de treinadores com experiência em alta performance”.

 

As três categorias que compõem a esgrima e respectivas regras

O Florete, categoria na qual Cheung Ka-long se especializou, é uma das três armas que fazem parte da esgrima desportiva, diferindo entre si, não só ao nível das regras, mas também, da própria morfologia das armas e zonas válidas de toque que se traduzem na atribuição dos pontos. Para além do Florete, a esgrima inclui também as modalidades de Espada e de Sabre.

Sendo a mais leve das três armas, no Florete o toque tem de ser concretizado com a ponta da arma, apenas no tronco (barriga, peito e costas). Além disso, por ser aquilo a que se chama uma “arma convencional” está condicionada pela regra que dá prioridade ao esgrimista que ataca. Na prática, isto significa que, se os dois atletas conseguem atingir simultaneamente a zona válida do adversário, o ponto será atribuído apenas ao atleta que atacou.

Mudando de arma, tal como no Florete, na Espada, para o toque ser válido, deve ser também concretizado com a ponta da arma. A zona válida corresponde a todo o corpo e não existe qualquer tipo de convenção, sendo o ponto atribuído ao esgrimista que tocar primeiro ou aos dois atletas caso o toque seja dado em simultâneo.

Por fim, no Sabre, o toque deve ser concretizado com a ponta ou a lâmina da arma, sendo que este será válido no tronco, cabeça e braços. Tal como no Florete, por ser uma “arma convencional”, no Sabre os atiradores estão condicionados pela regra que dá prioridade ao esgrimista que ataca.

Leis da luta

Na esgrima, independentemente da arma, cada encontro opõe dois adversários, sobre uma pista metálica com 14 metros de comprimento e 1,5 metros de largura. O vencedor de um combate de eliminação directa, como aqueles que podem ser vistos nas competições dos Jogos Olímpicos, será aquele que for capaz de conquistar 15 pontos (15 toques) antes do adversário ou que, chegado ao final do tempo regulamentar (composto por três períodos de três minutos), tiver conquistado mais toques.

30 Jul 2021

Do fundo do tempo

[dropcap]E[/dropcap]stamos, humanos, a assistir de fora e de dentro. A uma imutável mutação constante, que nos vem dos confins do tempo. Imersos no paradoxo. A teoria do devir, em que se encontram, nessa guerra de opostos, o princípio e o fim desenhados num círculo perfeito. Heráclito de Éfeso, na Jónia, no pensamento expresso pelo aforisma: “Tudo flui como um rio”, encontrou a imagem que deu forma ao que já os filósofos de Mileto intuíam sem problematizar: o dinamismo das mudanças na physis. E assim tudo passou a se nos apresentar. Pelos seus olhos, ao nosso lado, à beira do mesmo rio. O mesmo, mas outro. Em mudança. Como alternância de contrários, em que cada coisa tende para a outra numa inércia perfeita. Como um devir. Em que tudo é movimento, tudo se move, excepto o próprio movimento.

E foi a Jónia que nomeou uma das ordens da arquitectura clássica. De colunas-árvores mais elegantes, enervadas de canelulas a desenhar um olhar em altura, para a ilusória perfeição do entabelamento.

Construía-se uma geometria imperfeita para, na correcção da perspectiva, se fazer perfeita ao olhar. Eram mais altas e leves, de capitel em volutas, talvez a ilustrar a espiral do tempo. Mas também demonstram, se assim o quisermos olhar, como perfeição ou o seu contrário, não são ideias estanques e podem conviver numa mesma ordem, tendendo uma para a outra numa pequena e simples oscilação do foco. O olhar, ou a realidade mensurável.

Voltamos ao tempo antigo e a Heráclito, como voltamos sempre ao rio, em contemplação. Esse mesmo rio que não se pode percorrer duas vezes sendo o mesmo. Nem ele, nem nós, substâncias mortais. Nem contemplar as suas águas, as mesmas, porque nunca o são. E também porque o tempo de hoje nos traz pelo pensamento de Z. Bauman, em torno de uma “modernidade líquida”, o retomar da mesma ideia e da mesma realidade intangível, que vemos passar inexorável. E nos faz recuar no tempo, quando tememos o futuro.

Porque o tempo haveria de voltar a avivar, válidas senão desesperantes, as mesmas imagens dos mesmos olhares. De quem vê da margem, como quem a vê, navegante. E como quem se vê como tal. O que nos distingue afinal dos gregos antigos, diz-nos Bauman agora: nada, afinal. O filósofo de desconhecida modernidade, vindo dos confins da antiguidade sem imaginar quanto da sua percepção se haveria de agudizar tantos séculos de ideias e mentes depois. Há um olhar primeiro na primeira ideia imortal. Que nunca mais morre mesmo se adormecida por séculos. A ideia de que tudo flui, retomada hoje por Bauman. Mas que tudo flui demais para a alma humana, tendente a raízes. E de que tudo tende a despojá-la delas. Sempre as quase eternas, de tão longevas, árvores, como contraponto a esta sinfonia que custamos a acompanhar.
O que temos, de árvore ou de rio?

A desgastante impermanência que não nos dá um tempo de sentir o contrário, a exaustiva imutabilidade. A saturação tóxica do que é e sempre é e como foi e sempre será. Que não existe naquela simples constatação de que nada, nunca, será jamais o que foi imediatamente antes. Uma paradoxal nostalgia do que sempre foi mas também a apetência para o que nunca existiu antes. Ambas conviventes num mesmo olhar.
Corredor solitário. Há sempre uma geografia possível a quem não sai do seu lugar. E corre. Uma cartografia que se cumpre, se renova e se palmilha em cada renovar dos dias. Mesmo que a mesma, mesmo nas mesmas indefinições dúvidas ou paradoxos, um caminhar que é desporto, descoberta ou destino. Ou desconhecido sem mais. Sem adversário mais, do que a própria vida nos seus jogos, dificuldades e estratégias e instruções extraviadas. Um corredor solitário é um corredor sem mais gente a atravessar. Ou o corredor que corre, sem mais gente a ladear. Sendo assim, mudo de ruídos estranhos, ou surdo aos ruídos que não há. Respira, livre. Chora, sem testemunhas. Corre por si e para si – ao longe – ao longe. Corredor implica caminho a correr e margem a ladear. Corredor é caminho ou caminhante em corrida. Não é fugitivo, nem o caminho fuga. (O que me leva sempre a Bach, a fuga. Essa estrutura complexa e talvez inacabada, a repetição de um padrão em crescendo. O conceito de contraponto. A imaginar se uma vida se pode escrever numa partitura como essa).

Apurar a passada, ouvir o coração, respirar com disciplina. Ir em frente. Temporariamente, como uma linha tangente ao círculo perfeito. Em passo de caminhada ou de corrida, por entre as margens da visão distraída do que passa, ficando passa, parece passar, ficando para trás mas prolongando-se em frente. O corredor, se é solitário, não mede e não compete. É como o rio. É só e consigo. Nunca o rio se fez pasto de fúria. Nunca corre adiante e nunca corre atrás. As margens não lhe determinam a corrida nem o ritmo nem a pressa nem a venda. Mesmo dos olhos, que não se sabem fechados ou esbugalhados em frente atrás de nada. Corre como deve e como pode. Tende. Ignorando a foz, irresistível para lá flui. Animal manso, rebelde e solitário. Mudança em movimento estático. Nasce e nasce e nunca morre e morre. Como não sabemos que morremos.

Ou então: a esgrima. Um fascínio de precisão. Escolher as armas: sabre, espada ou florete, como flores. Mas na esgrima são precisos dois. É como no amor. Às vezes.

1 Jun 2020