Carlos Morais José VozesA era do pós-indivíduo [dropcap]Q[/dropcap]uando hoje passeamos pelas chamadas redes sociais reparamos num fenómeno sintomático: seja qual for a ideia, opinião ou evento rapidamente se formam dois lados, dois partidos, duas facções, que mutuamente se insultam e destilam ódio como se em causa estivesse realmente um futuro qualquer. Ao contrário do que se poderia pensar, depois das experiências do século XX, nomeadamente da crítica das metanarrativas, o mundo voltou a ser a preto e branco. A “verdade” voltou e vingativa. Afinal, qual de nós não é hoje o detentor da “verdade”, pura, crua e sem remissão? Ter dúvidas, hesitar, reflectir, pensar, não está na moda. É mesmo horrível, coisa de gente fraca, pouco digna de guerreiros de teclado. A coisa agora é mais insultar, excruciar, reclamar, excluir. Ao contrário do que seria esperado, parece haver uma compulsão para se pertencer a algo, habitar num grupo de “amigos” cujos valores estão previamente formatados, tudo pronto e embrulhado para consumo rápido e certeiro. Não se trocam ideias, insulta-se o que discorda de nós. No fundo, é um descanso, um torvelinho parado, um remoinho que não sai do mesmo sítio e por isso deve ter um efeito hipnótico e calmante. E lá vamos: cantando o que nos fazem cantar, recitando o que nos fazem recitar. Orgulhosos de pertencer e de não ser. Entrámos, seguramente, na era do pós-indivíduo.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasUm adeus invisível [dropcap style=’circle’] A [/dropcap] s redes sociais vieram revolucionar a forma como fazemos negócios, como acedemos à informação ou como ouvimos música. Mas acabaram por mudar, ainda que mais subtil e gradualmente, a forma como nos relacionamos. Por um lado, alargaram o campo de possibilidades: a nossa presença online permite-nos não depender do corpo e da sua geografia existencial para encetar ou manter contacto com alguém. Habituámo-nos a dispor de duas formas de apresentação distintas: no Facebook (e restantes redes sociais) e pessoalmente. Uma não exclui nem complementa a outra. São dois mundos que – embora por vezes se possam sobrepor – têm uma existência perfeitamente independente. Esta adjudicação mais ou menos involuntária de um património alargado de conhecimentos virtuais não acontece sem um acréscimo de ansiedade da nossa parte. De repente, este “outro mundo” passa a exigir-nos uma atenção existencial: há toda uma série de comportamentos e de reacções digitais que nos convidam a estar atentos e a interagir. Seja na apreciação do conteúdo que os outros colocam na rede, seja na análise do modo como os outros reagem ao que fazemos online. Este mundo fosforescente não é – ainda – um substituto da realidade física e do leque de estímulos e perspectivas que esta possibilita. É antes um faz-de-conta assaz elaborado que nos permite ter uma presença social semi-velada, semi-comprometida de que podemos dispor sem o receio de que as nossas escolhas tenham as consequências que estas costumam ter no “mundo real”. Mas esta vida dupla não acarreta somente a ansiedade da notificação. Traz também o conforto de ter sob a alçada dos polegares um conjunto de situações no formato da disponibilidade. Se fulano não pode sair hoje há sempre sicrano ou beltrano – e, coincidência, até estão online; se a mulher ou homem com quem estou decide, por algum motivo, deixar-me, não fico refém da minha limitada geografia existencial para suprir as necessidades que uma relação colmata. Mas nem precisamos de chegar ao limite supra-enunciado: o próprio balancete a que estão sujeitas todas as relações – e que lhes determina o futuro – é afectado pela aparente amplitude de possibilidades que o virtual dispõe sobre o tecido do tempo. A paciência para solucionar as fricções que necessariamente advêm do contacto continuado entre duas pessoas é menor; a disposição para fazer as mudanças que permitem aumentar o grau geral de tolerância numa relação diminuem. Tudo o que é difícil parece ou fica mais difícil. Desde logo, encetar ou terminar uma relação parecem ser os únicos momentos em que as coisas são mais fáceis que dantes. Ghosting é a palavra escolhida para o fenómeno que consiste em determinado sujeito eclipsar-se numa relação. É o equivalente contemporâneo a “ir comprar tabaco” e a forma mais eficiente de alguém se ver livre de um compromisso sem as consequências que advêm de verbalizá-lo. Sem conversas, sem justificações, sem lágrimas. A forma como já tínhamos higienizado da morte da vida contemporânea estendeu-se agora aos finais de relação. Para quê perder tempo e apanhar uma camada de nervos quando dispomos do silêncio para anunciar a nossa saída de cena? No máximo um “não sei o que te dizer” ou “deixo-te as chaves” e o outro que resolva as ambiguidades de sentido. É fácil. É tudo fácil.