Velhos conhecidos

[dropcap]E[/dropcap]la (que gosta muito de estalar os dedos encostando as mãos em mim e fazendo pressão de um lado e do outro até se ouvir aquele crac-crac-crac e eu reclamar), bateu com a cabeça pouco antes de eu apanhar o comboio para ir ao seu encontro. Mandou-me uma fotografia de um galo gigante, com um pequeno furo que em breve começaria a jorrar sangue (esta parte não vi, foi ela quem mo contou, e eu acreditei). Logo se encaminhou para o hospital e, trocando-me pelo namorado que foi lá ter, deixou-me entregue a mim mesma e à missão do dia: comprar óculos pela primeira vez em anos. Eu bem insisti que poderia acompanhá-la, mas há dias em que o que nos aguarda o faz sabendo que não lhe vamos escapar. Na óptica, deambulei de um lado para o outro, experimentando todo o tipo de armações, cores e preços, fazendo caretas, tirando fotos e enviando-as às amigas pacientes para que me dessem a sua opinião.

Na mercearia, fico a saber da morte de Tiago, o gato amarelo que vi pela primeira vez de lombo solarengo estendido num banco da paragem do 729 da Carris, num qualquer domingo a descer a Calçada da Ajuda, antes mesmo de vir viver para o bairro. A chinesa Lili, dona do estabelecimento, diz-me que foi atropelado esta manhã. Ela própria, tentando conter as lágrimas, fala de quão triste está o marido, que se levantava sempre mais cedo para ir procurar este agora falecido vizinho e dar-lhe comida. Outra cliente, com a qual a conversa começou, na verdade, lamenta a perda e as saudades que a Doutora (não fixei o nome) da farmácia, terá. Eu mesma já vira Tiago à porta da farmácia algumas vezes, sossegado, observador, pertencente a todos e a si mesmo sobretudo.

Falta um mês para o meu aniversário. Finalmente mudei a minha morada no banco, mas não me tenho sentido em casa senão quando estou fora. Comecei mais uma vez a carta que não consigo escrever e sempre acaba no lixo. Fiz um bolo de limão e saí sem saber bem se para ir comprar açúcar em pó ou para resolver a minha vida. Deixei dois rolos a revelar, ao fim de onze meses.

Quando estiverem prontos talvez eu também esteja. Comprei açúcar e farinha. Liguei ao meu irmão. Ontem soube que a mãe dele faleceu. E fiquei muito triste, apesar de não saber quase nada sobre ela. Então finalmente liguei à minha própria mãe. E recebi uma mensagem do destinatário da carta que não escrevi.

Aprendi outro dia que sonhos, para os brasileiros, são cuecas viradas e que aquilo que para nós são bolas de berlim é que eles chamam de sonhos. Tudo isto me parece da maior importância. Como o post-it amarelo que deixei a marcar a página trinta e dois de “The Genius and the Goddess”, de Huxley. Um livro que ainda não li, na verdade, mas que marquei com uma lista de que constam: duas alfaces, duas latas de atum, duas couves lombardas, dois frangos para assar, quatro cenouras, tomate para salada, salsichas frescas, um pimento, dois litros de leite magro e dois quilos de carne picada. Não sei quanto tempo tem a lista ou o porquê da obsessão com o número dois. De volta à mercearia: uma velhota dispara, ao entrar e sem dizer bom dia, “Mãos nos bolsos dão mau aspecto”, para o dono, sorridente atrás do balcão. Minutos mais tarde ouço-a refilar outra vez “A culpa é das mulheres. Onde estão as mulheres?!”. Foi no corredor do pão.

«“The trouble with fiction,” said John Rivers, “is that it makes too much sense. Reality never makes sense.”
“Never?” I questioned.
“Maybe from God’s point of view,” he conceded.».

Faltam duas semanas para o meu aniversário. Há um bolo de laranja que, por este andar, ninguém vai comer porque, embora o tenha feito muitas vezes, as últimas foram sempre na minha cozinha mental. Páro muitas vezes o que estou a escrever para olhar as nuvens sobre o rio, nesta casa abençoada a que vim parar quando a anterior foi vendida. Voltei a ter vista de rio, como há três casas atrás. Hoje estão particularmente interessantes, as nuvens, ou então este assunto é-me particularmente difícil. Escreveu Daniel Faria “Socorre-me / Devolve-me a leveza / da tão primeira nuvem que avistares”. A pessoa tenta. Hoje ia dormir uma sesta feliz, a cabeça naquele lugar estratégico onde bate mais o sol, mas as horas passaram, estou lenta, sonolenta e a luz mudou entretanto. É que precisei, primeiro, de voltar a um outro lugar, de luz branca forte e cruel. Precisei de voltar à óptica, há muitos meses atrás, a ver o meu meio-irmão pela segunda vez na vida, ele a escolher óculos como eu, ele a bater-me ao de leve no ombro, ele a abraçar-me. Como vizinhos ou velhos conhecidos.

18 Out 2019

Ti Coelho

[dropcap]O[/dropcap] Ti Coelho não me reconheceu, quando nos encontrámos, por acaso, na quarta feira. Apenas fingiu que sim. “Parece que me lembro, menina, mas não estou a ver de onde…” Nalgum lugar da sua memória, talvez acreditasse no que eu lhe dizia, que nos conhecíamos do Kiwi, o restaurante que ele teve durante muitos anos na Antero de Quental, e onde eu almocei e tomei café quase todos os dias durante pouco mais de um ano, já a crise ditara que se não abrisse à hora de jantar. A crise dele e da esposa, por quem tive receio de perguntar, num dos anos em que eu mais ganhei dinheiro. A minha crise era outra, então. Comida simples, boa e barata, era só descer um pouco e atravessar a estrada. Actinidia deliciosa. A Ariana diz que é a fruta mais bonita e sinto-me tentada a concordar. Havia um grupo de amigos que ocupava a maior parte do espaço a um dia fixo da semana desde há muitos anos. Sempre quis ter essa rotina com alguém, conheço quem tenha e acho saudável. É bonito, quando a amizade é um hábito, porque, de facto, parecemos cada vez mais desabituados uns aos outros. Muitas conversas, reuniões, alguns dramas e piadas, sempre que o Ti Coelho fazia traduções do latim mas dizia não saber o que o carpe diem na tatuagem de alguém significava. Nunca ouvi falar nisso, dizia. Pois é, ele não se lembrava de mim. Não propriamente. Não do modo que faria com que me abordasse com a rapidez e a alegria com que eu o fiz. Não do modo como fez um rapaz na outra semana, quando eu estava a olhar para o horário da roda gigante no Marquês e uma voz confirmou o que eu dizia à Diana, que a roda já estava fechada. Na altura, foi natural o que sorrimos naqueles segundos. Podia ter sido no dia anterior, termos ido trabalhar, ou sair com os amigos, ou voltar para casa a pé. Podia ter sido no dia anterior que ele decidiu ir para casa em vez de ir ver uma amiga que, na realidade, já cá não estava, que já não era ela. Podia ter sido no dia anterior o churrasco da Petra. Podia ter sido no dia anterior o meu aniversário, a vela num queque e a prenda um livro sobre viagens em África, para eu estar “mais em contacto” com as minhas origens. Podia ter sido no dia anterior o carro da Tânia ficar sem bateria. Podia ter sido no dia anterior eu ter começado a levar a máquina para todo o lado, mas eu não via o Cláudio há sete ou oito anos. Mas não pensei nisso, quando vi o Ti Coelho. E eu não o via, a ele, há cinco anos. Ele ainda era ele. Mas depois percebi que não podia esperar que me reconhecesse. Porque aquela rapariga que o Ti Coelho conheceu não era nada parecida comigo. Eu sabia que era eu. Mas quase mais ninguém sabia. Essa é a diferença. Para um, eu nunca fui. Para outro, eu nunca deixei de ser. Como explicamos a alguém que, só agora, de fugida, num corredor de um edifício no hospital onde eu nunca tinha entrado, é que está, realmente, a ver-nos pela primeira vez? E que mesmo assim, ainda falta? Eu não era eu, poderia ter dito. Naquele ano não fui eu que vim, foi tudo o que me aconteceu em anos anteriores. Mas o tempo estava a contar, ele tinha pessoas à espera e eu também, apenas não aquelas com quem ele esperava que estivesse tudo bem. Não lhe disse que não sabia se estava. Não lhe disse tudo o que tinha mudado. Talvez daqui a uns anos nos reencontremos e ele não me reconheça de todo. Talvez eu apenas lhe sorria sem dizer nada e lho perdoe. Talvez os quilos pesem mais do que os anos, na memória de alguém. Na minha, sei que sim. Talvez haja coisas impossíveis de esquecer mas das quais nos possamos ir lembrando cada vez pior, mesmo se vivemos nelas a vida toda. Ou quase. Talvez seja a única forma de nos mantermos sãos. Poderia ter explicado isso, também, mas ultimamente tenho aprendido muito sobre o que é preciso ou não dizer, que é como quem diz, tenho aprendido muito sobre mim, que eu ainda vou ser.

27 Dez 2018