Rosely e Julieta

[dropcap]A[/dropcap] realidade encontra sempre várias formas de contrariar teorias e modos de pensar. Depois de Dilma Roussef, naquele que seria o seu segundo mandato, ter vencido Aécio Neves nas eleições para Presidente do Brasil, por uns escassos milhares de votos, parte da população brasileira veio para a rua exigir uma intervenção militar, de modo a depor Dilma e a instalar uma ditadura militar. Rosely, uma mulata alta e esbelta, de cabelo curto, com pouco mais de vinte anos e que trabalhava numa lanchonete na Rua Augusta, estava na Avenida Paulista junto com esse povo, gritando por uma tomada de posição do exército, que se fizesse alguma coisa, pois antes presa num regime militar, que livre numas eleições ganhas pelo PT, a “esquerdalha”, como muitos chamavam, e que se alargava para lá do partido dos trabalhadores.

O povo foi-se juntando na Avenida. E junto a esse povo havia jornalistas e fotógrafos de várias partes do mundo. Julieta, à beira dos trinta anos, era uma dessas fotógrafas, “freelancer”, activista dos direitos LGBT, que tinha vindo de propósito de Lisboa para seguir estes tempos conturbados do Brasil. Quando a câmara de Julieta captou Rosely, no meio daquela confusão de gritos e movimentos, não mais a quis largar. Julieta esqueceu a razão que a levara ali àquela manifestação e passou a fotografar exclusivamente a mulata. Não demorou a que Rosely se sentisse cativa da câmara. Demorou a perceber que era para si que elas olhavam, Julieta e a sua câmara, mas quando finalmente a fotógrafa lhe sorriu, devolveu-lhe o sorriso. Saíram da manifestação e foram para um boteco conversar. Julieta tocou em Rosely e esta descobriu em si sentimentos que desconhecia. Ainda antes da manifestação por uma intervenção militar terminar, já Rosely e Julieta estavam apaixonadas e se beijavam na boca, como que para salvar o Brasil, o mundo, o planeta, o ser humano. Rosely esquecendo os militares, Julieta esquecendo a continuação da presidência de Dilma. Julieta era a primeira mulher que Rosely beijava, o seu primeiro amor feminino. Agora, tinha a certeza de que sempre tinha sido lésbica, ainda que não o soubesse. A ironia de descobrir o amor numa manifestação pela intervenção militar não atrapalhou as contas dela em relação ao que pensava, embora agora a política se desvanecesse no corpo e nos sentimentos de Julieta.

Duas semanas depois, a fotógrafa regressa a Portugal com a promessa de tudo fazer para que Rosely se mudasse para Lisboa. Rosely, apaixonada como nunca tinha estado na vida, pensava o tempo todo na viagem sobre o Atlântico. Finalmente Julieta conseguiu um trabalho para Rosely e esta comprou o bilhete de avião, minutos depois. Por “skype”, a mulata ia dizendo, dia a dia, “faltam vinte dias para chegar à tua boca”, “faltam quinze dias”, etc.. À chegada ao aeroporto, Julieta esperava o seu amor com um enorme ramo de flores silvestres e um beijo demorado. Um beijo que tentava apagar a distância e o tempo que estiveram sem se encontrar.

Os dias em Lisboa foram passando, com ambas a viverem o idílio amoroso em casa da fotógrafa portuguesa. No Brasil, esse lugar tão longe da boca de Julieta, Dilma foi demitida e Temer assumiu o seu lugar. Na cerimónia de posse, um sinistro deputado do Rio de Janeiro, Jair Bolsonaro, evocou a memória do torturador de Dilma Roussef, no tempo da ditadura militar, que o deputado dizia não ter sido de ditadura, mas de heróis que salvaram o país do comunismo. O Brasil cai num dos seus momentos mais tenebrosos. Começara entretanto também a operação Lava-Jato, que desmontava uma enorme teia de corrupção na esfera política e empresarial. A violência aumenta exponencialmente em todas as cidades do país, causando um novo êxodo dos brasileiros em direcção à Europa e aos EUA.

Ao longe, Rosely vai esquecendo a política do Brasil. Ao fim de três anos, o amor não desvanecia, mas começava a ter a competição das saudades de São Paulo, da família, dos amigos, de um determinado modo de se estar o mundo, que é tantas vezes difícil de ultrapassar ou esquecer. Apesar do amor, Rosely entristecia. Julieta sugere que ela tire uma semanas de férias e vá a São Paulo visitar a família.

A visita de Rosely ao Brasil coincide com a campanha eleitoral e com a facada ao candidato à presidência, Jair Bolsonaro, na cidade de Juiz de Fora. Aquando do episódio, que se torna planetário, pelo menos transatlântico, a troca de mensagens entre Julieta e Rosely tornam-se amargas e rapidamente espaçadas. As amantes estavam claramente em lugares opostos da barricada: a brasileira defendia o candidato, a portuguesa atacava-o, apesar de lamentar o sucedido. Julieta começava a temer que Rosely não regressasse a Portugal. A política, a febre de mudança, de que o Brasil vai finalmente dar certo, grassava a sociedade brasileira, transversalmente. E Bolsonaro, apoiado pela bancada evangélica e a extrema direita encarnava o símbolo dessa mudança. Para Julieta, Bolsonaro não defendia valores, atacava valores, sendo o direito à diferença o mais importante. Apesar de inexplicável, Julieta estava certa, o seu receio tinha fundamento. Mas não foi só Rosely que saiu em defesa de Bolsonaro, figuras importantes da defesa dos direitos LGBT também o fizeram, e publicamente. Um dia, Julieta recebe uma mensagem de Rosely, que diz: “Meu amor, meu país precisa mais de mim que tu. Vou ficar.

Tenho de adiar o amor. Até sempre, Rosely”. Não sabemos se ainda continua a acreditar que é com Bolsonaro que o Brasil vai mudar, que vai dar certo, mas podemos imaginar que Julieta pense – ainda que possa não ser verdade – o quanto o seu amor era pequeno. Quando, entre amigas, Julieta tentava explicar a razão pela qual a sua amada a deixara, ninguém entendia. Num mundo como o de hoje, como entender que uma mulher troque o amor por Jair Bolsonaro?

10 Set 2019

Evandro Teixeira, fotojornalista: “Os políticos no Brasil são vergonhosos”

Evandro Teixeira esteve onde poucos conseguiram. Subiu nos palanques, fotografou a ditadura militar e captou o exacto momento em que um jovem cai no chão para morrer logo a seguir. A sua lente registou a febre do futebol no Maracanã, a pobreza das favelas, as visitas oficiais. São 81 anos de vida, 50 anos de carreira. Chegou a ser preso, mas nunca pensou em desistir: afinal de contas, o único fotojornalista que fotografou o corpo de Pablo Neruda numa maca de hospital sempre trabalhou por paixão. Até amanhã as suas imagens estão no Clube Militar, na exposição “Introspecção”, uma iniciativa da Associação de Fotografia Digital de Macau

[dropcap]A[/dropcap]ntes de falarmos das histórias por detrás das imagens, perguntava-lhe como surgiu a oportunidade de fazer esta exposição aqui em Macau.
Veja bem: o ano passado estive na China três vezes, onde fiz algumas exposições. E conheci o curador desta exposição numa dessas viagens. Aí ele perguntou-me se eu gostaria de fazer a exposição aqui em Macau. Foi muito curioso e gratificante estar aqui para ver a exposição porque em 1995 estive aqui, acompanhando a comitiva presidencial de Fernando Henrique Cardoso. Mudou muita coisa, mudou radicalmente.

Quase tudo.
Sim. Eu viajo muito, já expus no mundo inteiro – França, Alemanha, Suiça, sei lá mais onde. Tenho dez livros publicados sobre fotografia, todos esgotados. Trabalhei durante 47 anos no maior jornal do país [Jornal do Brasil], que fechou em 2010. E aí parei. O que faço hoje é dar palestras no Brasil e fora também, e faço workshops. Continuo a fotografar muito.

O ponto mais alto desta exposição serão as imagens que captou durante o período da Ditadura Militar. Como foi fotografar quando havia censura no país?
O Jornal do Brasil teve uma actuação muito grande durante o período da ditadura. Sempre fiz tudo por prazer, e como era contra a ditadura, a minha maneira de brigar com os militares era fotografando. Subir no palanque para fotografar. O Jornal do Brasil foi contra a ditadura e pagou caro por isso. Chegou a fechar. Há uma foto ali, e por causa dela eu fui preso. O jornal era muito inteligente e fazia frases irónicas. E o Governo não gostava. Muitos foram presos, caçados, intelectuais, muitos mortos. Com uma das fotos, no dia seguinte o Presidente me mandou chamar para estar presente no palácio. E aí ele me disse “como ousa publicar uma merda destas na primeira página, e o Presidente tão pequeno ficou lá atrás?”. E eu ri, pedi desculpa e disse que era uma questão de edição. E ele me respondeu “edição é a filha da p…” e me mandou prender. Quando os jornalistas não eram pegos na rua, e quando se publicava algo que os militares não gostavam, acontecia isso.

Desse período tem também uma foto rara de uma marcha que foi feita em 1978.
Estava ao lado do Vladimir Palmeira [político brasileiro] fotografando, e quando vi aquela faixa [que dizia “Abaixo a ditadura – poder ao povo], cliquei. No jornal seleccionamos aquela foto para a primeira página, mas havia dois militares censores lá. Eles perceberam e não deixaram publicar essa, só a que não tinha a faixa. Alguns anos mais tarde publiquei a foto num livro e a designer desse livro se descobriu na foto e o marido, que estava no meio da multidão. Aí começaram a descobrir muita gente, e aí tivemos a ideia de fazer um livro com todas essas pessoas. Quarenta anos depois publicámos as histórias de cem pessoas que estiveram nesse local, e fotografei-as como se tivessem olhando para o Vladimir Palmeira. Esse livro esgotou.

Os abusos da ditadura militar no Brasil © Evandro Teixeira

Acredita que muitos se esqueceram da ditadura? É preciso lembrar a história novamente?
Na verdade a memória do povo brasileiro é muito curta. Hoje em dia faço muita palestra e sempre fotografei no contexto da história. Mostro imagens do Vietname, da Ditadura Militar e também do golpe do Chile, onde também fotografei muito. Fotografei o chileno Pablo Neruda, também fiz um livro sobre Neruda, intercalado com os seus poemas. Nas palestras que dou há muitos estudantes, e isso é bom porque hoje em dia, nas universidades, o período da Ditadura Militar está muito esquecido. Um pouco de propósito da parte do Governo e também das universidades.

Como vê o Brasil dos dias de hoje, depois do impeachment a Dilma Rousseff?
Na verdade a situação do país está tão caótica que as pessoas voltam a falar de ditadura para dar o baixa. Essas pessoas que berram e que cantam isso não viveram essa época da ditadura militar, quando todo o mundo foi massacrado, artistas presos, o Chico Buarque, o Caetano Veloso, músicas censuradas, pessoas mortas. Mas também falam isso porque os políticos são tão corruptos e safados que deixaram chegar o país a este estado. Todo o mundo rouba, mas não tanto como fizeram agora no Rio de Janeiro. Lá está uma loucura, funcionários públicos sem receber. As forças federais foram enviadas pelo Presidente para tentar conter a violência nas favelas.

Esperava encontrar a mesma realidade que fotografou nas favelas, nos anos 60, tantos anos depois? Tinha esperança que algo mudasse?
Houve abandono e não houve um governo para tentar. Todo o mundo foi abandonado. Isso também não justifica o que está acontecendo. A revolta nos presídios, Rio Grande do Norte, Pernambuco, com matanças, é um absurdo. Isso não pode acontecer. Os políticos no Brasil são vergonhosos, e fico pensando: agora vamos ter eleições em 2018. Vamos votar em quem? Não temos um líder.

Não há confiança.
Acompanhei o Lula com o Jornal do Brasil e antes não falava com ele, tinha horror dele. Aí quando ele ganhou as eleições, em 2003, viajei com ele por todo o Brasil, de ônibus. Passei a adorá-lo, amá-lo, porque o que ele dizia parecia que ia mudar o mundo. Ele é bom nisso [aponta para a garganta]. O primeiro Governo dele foi muito bom, e a coisa depois chegou no que chegou. Ele não era aquilo que pregava. O pai do ex-governador do Rio de Janeiro, é Sérgio Cabral, escritor, é meu contemporâneo. Uma figura maravilhosa e começámos na mesma época. Vi o Serginho nascer, e agora o governo do Rio não tem dinheiro nem para pagar a polícia.

Teve momentos em que sentiu medo, quis desistir?
Pelo contrário. Estou com 81 anos, e fisicamente não tenho mais a sua força. Mas de cabeça e memória continuo bem. Não vou pensar em desistir. Em nenhum tipo de cobertura minha disse: “não vai ser possível”. Sempre fiz tudo para conseguir. Houve situações que me diziam “não vai entrar aqui”. Mas eu entrava. O Pablo Neruda, por exemplo. Todos os jornalistas naquela época ficavam no Hotel Carreira, no Chile. E nós estávamos no terraço e tínhamos de cumprir o recolher obrigatório. O Pinochet, o chefe do golpe, não recebia jornalistas. E queríamos achar o Pablo Neruda, que era o conselheiro do Presidente e a pessoa mais importante do país. Soubemos que estava preso. Uma informante minha me disse o hospital onde ele estava, mal tratado. Cheguei lá e o director do hospital não me deixou entrar porque não gostava de jornalistas. Disse-lhe que era amigo dele mas não era nada, era só conversa jogada fora. Quando liguei depois, às dez da noite, ele já estava morto. No dia seguinte o hospital estava cheio de gente, tinha a câmara Leica escondida aqui debaixo do casaco, filmes no bolso. Não tinha como entrar, mas fiquei lá. Passou uma hora, uma das portas abriu por acaso e eu entrei. Quando entro, está o poeta morto na maca. Fotografei primeiro, depois falei com a esposa dele. No dia seguinte fomos para o cemitério, a bandeira do Chile estava no caixão. Pinochet convocou a imprensa, achou que todos iam largar e correr para ele. Eu fiquei lá. Foi emocionante ver todo o mundo no cemitério. Foi lindo. Foi talvez o momento mais dramático e importante da minha vida. Depois de vários anos se soube que ele foi morto alvejado pelos militares. E fui agora ao Chile prestar depoimento, contei o que estou contando agora pra você.

Que Brasil lhe falta fotografar?
Tudo. O Brasil é muito grande, o mundo é muito grande. Toda a viagem onde vou, fotografo. Aqui também fotografei. Outro dia viajei para o Ceará, vi uma menina na rua vestida de bailarina, e disse para o meu amigo: “pára o carro”. Fotografei. Me perguntaram se tinha levado a menina para aquele lugar, mas aconteceu assim.

26 Set 2017