Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasO dilema [dropcap]H[/dropcap]á uma história que se conta na Estónia chamada «Dilema de Kreutzwald» e com a qual o escritor estónio Andrus Nool começa o seu romance «Encurralado»: «Um homem vai ao médico e queixa-se de que quando bebe os outros ficam muito violentos. O médico diz-lhe “então não beba e deixe os outros beberem”. Ao que o homem responde “já tentei, mas depois sou eu que fico violento e eles não”.» Este dilema, que é uma espécie de piada na Estónia, ao que parece foi criada pelo escritor e médico Friedrich Reinhold Kreutzwald (1803-1882), ou pelo menos a ele é atribuído e daí deriva o seu nome. Depois desta citação inicial, o romance de Nool continua: «É precisamente assim que vamos encontrar August Jaansen em frente ao espelho da sua casa de banho, num dilema em que faça o que fizer nada irá mudar, porque no fundo ele não quer que mude. Que dilema é esse? Não o sabemos. Mas ele existe e dá origem ao romance.» É um início impressionante, que nos remete para duas realidades completamente distintas: por um lado, o lugar comum e a história de uma comunidade; por outro o mistério e o mais recôndito do indivíduo. Tal como no romance, que se move continuamente entre os outros, o comum, a História, também nós assim nos movemos. Lê-se à página 21: «Mais do que entre a vontade de deixar a empresa e a necessidade do emprego, August sentia-se encurralado entre não saber quem era e o que a comunidade e o país e a família fizeram dele.» O romance estende-se ao longo de 155 páginas e mostra-nos a segunda-feira de August Jaansen, homem de 32 anos que trabalha numa empresa de logística internacional. O dia em questão é em Fevereiro, o que faz com que não haja grande distinção entre dia e noite (um dia tem de uma a duas horas de luz). Lê-se à página 16: «A falta de luz de Fevereiro agradava-lhe. Reconhecia mais nuances no escuro que a maioria de nós. Talvez por amar a indistinção, o indefinido, ou simplesmente por assim sentir-se mais próximo da inexistência de qualquer possibilidade de Deus.» A narrativa segue o seu dia de trabalho – de telefonemas e introdução de dados e confirmação de outros no computador – e alguns aspectos da sua história pessoal, até ao regresso a casa, às 16h, momento em que começa a beber vodka. É agora que o narrador nos traça um pequeno retrato de August. Lê-se às páginas 70-1: «Apesar de ser um homem novo, sentia a vida como acabada. Tinha uma magreza esquelética desde criança que se acentuara desde que, no fim da adolescência, atingira um metro e noventa e três de altura, quando passou a parecer-se mais com uma cegonha. Bebia muito. Dormia mal e acordava pior. O seu estado de desinteresse era tão grande quanto a parte submersa de um iceberg. Em casa bebia, via televisão e pornografia, dividia rigorosamente o tempo entre esquecer e estar distraído. De manhã, em frente ao espelho, voltava o dilema. Ficava ali parado a olhar para si ou para quem via naquela imagem. Por vezes pensava que gostava de ter um gato tão grande quanto um urso. Lavava a cara, os dentes, despia-se e entrava no chuveiro. […] Ia de carro para o trabalho. Apesar da vida, gostava do escuro da manhã como de uma chávena grande de café.» Evidentemente, neste momento o narrador conduz-nos por uma anacronia, pois August não saiu nem por um instante da sua sala de estar entre o esquecer-se e o distrair-se. A seguir à passagem supracitada, encontramo-lo sentado no sofá a ver um programa da televisão estónia. Não percebemos bem do que se trata, embora seja possível que um leitor estónio identifique o programa, mas é uma espécie de concurso de perguntas e respostas. August vai ao frigorífico buscar mais vodka, muda de canal. Durante página e meia lemos o contínuo zapping que vai fazendo, sem qualquer reflexão acerca do mesmo. Apenas os sons e as imagens do que está a ver nos é mostrado. Depois volta o anacronismo. August num almoço de família, com os pais e o irmão, mais novo do que ele, em que todos falam de trivialidades. Não há sorrisos. E o pai lamenta que o filho tenha desistido de estudar direito. Percebemos que August sente culpa por isso. Sente que ter desistido do curso, mais do que uma derrota, foi uma traição ao pai, que esperava vê-lo a colaborar na sua empresa de advocacia. O filho mais novo tornou-se engenheiro e trabalha bem longe de casa, no Ártico Oriental, num dos poços de petróleo da petrolífera estatal russa Rosneft. Visita os pais duas vezes por ano. A mãe é dona de casa e, pela narrativa, parece invisível. Página 103: «Ana [a mãe] tinha dado à luz dois filhos, cuidado deles e do marido e agora ia tendo cada vez menos utilidade.» August continua a beber vodka pondo likes em posts de uma qualquer rede social. Não sorri com nada. Ali fica até quase se arrastar para a cama. A narrativa acaba ali, mas o livro continua com outra anacronia, a última, que mostra August pela manhã em frente ao espelho da casa de banho olhando-se a si mesmo tentando resolver o dilema, sentindo-se encurralado entre a imagem que via e aquilo que sentia dentro de si, entre o que via e o que um dia imaginara. Ao longo do livro, nunca ficamos a saber qual o dilema de August Jaansen, embora através da narrativa claustrofóbica de Andrus Nool tenhamos uma suspeita. Como tudo na vida, enfim.