Adornar

CCB, Lisboa, 1 Dezembro

[dropcap]O[/dropcap]utra folha no calendário, se as tivesse, amarfanhando a miserável anterior, com a tristeza pingando para a deste mês. As linhas são pequenas ondas de maré, quem nota perceberá a chuva miudinha? É que me espera, finda esta conversa, tarefa lutuosa. À mesa beira-Tejo do Obra Aberta sentaram-se engenheiro e ilustrador, ambos senhores de outros ofícios. O mano Tiago [Ferreira], da Conserveira de Lisboa e da Academia versão robótica, inclusão de última hora a substituir poeta adoentado, trouxe mão-cheia de questões prementes e desafiantes: a sustentabilidade do comércio tradicional, a inteligência artificial e o absurdo delirante do quotidiano. André [Letria], muito a pretexto do seu – na ilustração, e do pai, José Jorge Letria, no texto –, «Guerra» (ed. Pato Lógico), pintou nuvens ainda mais negras do que as que pontuavam a paisagem e encharcavam camones ao de leve. Bastou trazer as leituras de «O Mundo de Ontem, de Stefan Zweig (ed. Assírio & Alvim), e de «Sobre as Falésias de Mármore», de Ernst Jünger (ed. Vega). O testemunho de uma Europa a cair para dentro, a cavar precipícios no seu coração, ressoa nos nossos dias como nunca. E a brutal alegoria de um Jünger esquecido parece querer ganhar corpo de verdade um pouco por todo o lado. Como bem sabe qualquer objector de consciência, a guerra jamais nos abandonou, apesar dos momentos de ilusão pacificadora. Pior: insecto insidioso, mancha os mapas em inúmeros lugares, faz-se subtil que nem bota da tropa e morde-nos os calcanhares.

Mymosa, Lisboa, 3 Dezembro

Valha-nos Santa Coincidência! Meio a despropósito, partilhava com velho amigo a minha admiração pelo trabalho sobre a memória, em prosa estilhaçada e vibrante, que o João Paulo Borges Coelho entreteceu em «Ponta Gea» (ed. Caminho). Eis senão quando o escritor atravessa as mesas ao meu encontro. Demorei uns nanosegundos a fazer-me crer no que os meus olhos viam. Um nada, mas que me iluminou o dia. Adiámos prolongamento da conversa e não estou seguro que tenha levado a sério aparvalhada estória. A maré dos pensamentos levou-me depois a uma das personagens maiores do romance, publicado muito antes da Beira, em Moçambique, se liquefazer. «É a primeira e mais persistente lembrança: a água como substância da cidade. Uma água quieta, no mangal como nos capinzais, nos tandos de arroz e nos baldios urbanos cuja noite o monótono som dos grilos trespassava; insidiosa também, na onda paciente que escavava a areia grossa e se espraiava até lamber a raiz torturada das casuarinas, enchendo os corvos de maus presságios e de indignação; e avassaladora, nas chuvadas súbitas e no ar carregado que toldava o horizonte e nos pesava, derrotados, sobre os ombros. Uma água cálida onde nadam todos, aqueles de cujo rasto ainda a espaços me vou apercebendo, e os outros, os que vogam em círculos como peixes aprisionados no aquário do esquecimento.»

Barraca, Lisboa, 4 Dezembro

A ditadura das circunstâncias foi empurrando a apresentação dos «Poemas», de Georg Trakl, em Lisboa. Para mais queríamos incluir um pequeno concerto dos «No Precipício Era o Verbo», abrindo apetites para novo projecto que se avizinha, todo ele em torno deste poeta do soturno. E foi um dos momentos da noite, o caminho dedilhado do Carlos [Barretto] em direcção a paisagens sonoras graves e pujantes, a corpo a fundir-se com instrumento e a prolongar os versos, deixando-os a ecoar algures no mais íntimo. «Tu regressas sempre, melancolia,/ Oh, doçura da alma solitária./ Um dia dourado abrasa até ao fim.// Humildemente, o paciente curva-se perante a dor/ Ressoando harmonia e uma leve loucura.» Quem, como Trakl o farmacêutico, canta a contumaz melancolia? Esperava que o mano António [de Castro Caeiro], dissertasse um pouco esse obscuro objecto de desejo, mas conteve-se ao mínimo. O Fernando [Pinto do Amaral] encenou belo e cabal enquadramento para o poeta e a época, a vida e os temas, enfim, as paisagens, no fora da geografia como no dentro dos versos. Vão rareando, mas ainda se encontram bons leitores.

Nacional, Lisboa, 5 Dezembro

Palco soprado bola de cristal dá nisto. «O Futuro Próximo» não apazigua ninguém, antes perturba e desinquieta. Depois dos vibrantes, e bastante mais espelhados, «Presente» e «Futuro Distante», sempre baralhando os tempos, encontro-me prisoneiro de asilo de velhos. Em apneia, estendo as mãos e só toco línguas. Avancemos por entre o patético e o angustiante, com passagem pelo ignominioso. À terceira, o Gonçalo [Waddington] fez entrar «O Nosso Desporto Preferido» definitivamente no campo do negro, ou este cinza-escuro da nuvem que a Ângela Rocha estacionou sobre o lar-palco, sistema vital que ora configura volutas de intestino ora circunvoluções do cérebro. (Ver foto de cena de Filipe Ferreira algures na página). Cérebro-intestino, eis o reflexo maior de uma civilização sem necessidades. Tudo se torna chão, os prazeres e os dissabores. Mas chão enlameado de tanto sentido espezinhado, de tanta ideia perdida, de egos purulentos, de gargalhadas hiperbólicas, de lágrimas tóxicas. De novo: a gargalhada e a lágrima podem bem ser excrescências espremidas na lamela do dia, sem direito a serem vistas ao microscópio. O humano está reduzido a uma erecção, inextinguível priapismo. Até a poesia foi reduzida a automatismo, aqui laudatório, além sentimentalista, sempre nauseabundo. As máscaras, queridos caretos da Antropologia, surgem como sinal gritante da decadência, sem nisso tolherem a expressividade das Carlas [Bolito e Maciel], da Teresa Sobral, do Tónan Quito ou do Gonçalo-Michel, apesar deste, uma vez morto, ter ganho direito ao seu rosto. No envelhecer perdemos individualidade, todos os velhos de manhã serão iguais? Escrito isto, estou ansioso pelo desenlace, que este final soa-me a falso. Um peido.

Salitre, Lisboa, 7 Dezembro

Em preparação de projecto próximo, o Álvaro [Rosendo] põe-me no complexo sistema mãos-olhos um enormeno catálogo. Pequeno no formato, fechado em mais de cinco dezenas de dobras, mas enorme nos metros desdobrados. E nos instantes que dá a ver. «Tempografias», oriundo de exposição no século passado em galeria sobrevivente e por isso Monumental, capturou o movimento de modelos e estruturas. Não estão nas fotografias a fazer nada, estão a acontecer, mesmo quando um túnel subterrâneo brinca com a luz ou um armário de chaves dança e envelhece a olhos vistos. Mais uma máquina de contar tempo, o mesmo é dizer, gente.
Bem que gostaria de ter visto o alvarolhar sobre opíparo jantar de trufas brancas, servido pelo querido Tanka Sapkota, no Come Prima. Desprezamos o peso do perfume. Na mão, no olhar.

Tejo, Lisboa, 8 Dezembro

Dois pés de cada lado, nunca um no cais, outro na embarcação. O mestre grita, mas soa a sussurro. Nenhum dos três periga, nem marujo ou cais, menos o casco que me recebe com gemido de madeira. Aceitei o elogio e tentei retribuir com vigorosa ternura quando lhe pus a mão, com indirecto respeito, no leme. Fixo o olhar no bugio e o balanço atravessa-me a floresta estúpida de burocracias, temendo que sejam infestantes, inúteis até para chá; e a mortandade inquieta a pedir horizonte de quietude, ou melhor, a gestão dos quedos a trazê-lo à babugem dos dias; mai-lo ego de próximos sorridentes espraiado lago fétido, balde pequeno de vírgulas e embirrações, sinais parados, mortiços, logo antes da mordedura. Atento às profundidades, diz o mestre, foge das margens. Um dos marinheiros de água doce passou repete vezes sem conta, sem ponta de narcisismo: Que belo espelho!
E está. Espreito para me ver nas urgências esquecendo o importante. Portanto, adorno.

11 Dez 2019

Diário incerto

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]verbo ser. O mais universal poema da língua portuguesa: eu sou, tu és, ela, ele, isso é, nós somos, vós sois, elas, eles, essas coisas são. Solipsismo lírico diz o poeta. Rumo a sul. Há tantas coisas para fazer: máquinas de lavar. Levar a mãe ao médico. Uma palavra desconhecida que se vai ver ao dicionário. Um almoço quotidiano. E mais nada, mais nada. Lembro-me daqueles dias. Onde estão os amigos? Abrir um livro. Ter de escrever vezes sem fim. Quando não há que escrever, copia-se quem escreve. Uma música imitada mal na guitarra. Uma canção ecoa no vento de verão.

Dia 9

Vejo-te descer uma rua. Tenho a certeza de que tenho: solipsismo lírico, sul, máquinas de lavar, médicos, palavras desconhecidas, almoços, dias, amigos, livros, fins, escrever. Há uma música que ecoa. É verão. Uma canção, talvez.

Dia 8

Não ouço música há anos. Os dias passam com um problema linguístico. E, depois, vem a velhice. Vem a doença. Não se sabe o que fazer: ante a velhice nem a doença. “Agora, é que ela me deu”. É um sítio banal. Se calhar, uma porta de elevador. “Agora, é que ela me deu!”. “Ela” era a morte. Vamos ao rio. No rio, vemos Alcântara mergulhar no oceano. Bebemos uma água. Queres conversar. O teu melhor amigo está a ir-se. Choras. Olho para ti.

Dia 7

Não queres comprimidos. “Se aparecer uma miúda que ames, casa com ela”. Não vias nada. Às vezes, uma matrícula.

Dia 6

Aparecias-me atrás de mim. Acordavas três vezes durante a noite. Tomavas banho e escanhoavas-te. Perguntava-te por que razão. Voltavas para a cama. Ia resgatar-te vezes sem conta. E era o banho. Ensaboava-te. E o cabelo branco! Depois, dizias que não querias ir para o Hospital de INEM. Íamos de táxi.

Dia 5

Passou muito tempo. Querias uma cerveja. Dei-te muitas cervejas. Bebias um golo. Querias ir até sul. E fomos. “Quando encontrares um amor, diz para vir”. “Não importa nada. Vais encontrar um amor.” A tortura da gota é tremenda. Não queremos ficar fechados num quarto estreito. Não podemos bater em ninguém nem fugir. “O avô ama-te”.

Dia 4

Queria ser tudo: soviético. Fui alemão. Fui todas as nações. Cantei o nosso hino. Dizia: 10, 9, 8, 7, 6, 5. Onde estás? Pedias o Andy. Era atrás de mim. Vinhas de gravata. Íamos comprar o Público e o Diário de Notícias. Às vezes, Jogo. Se eu te perdia, atravessavas a Junqueira. Acenavas. “Estou aqui”! Dizia-te qualquer coisa como se tu me dissesses a mim. Regressávamos a casa ou o que era a casa.

Dia 3

Já te mijavas todo. Não sabias onde era o Norte da tua cama. De manhã, dizias-me: “vamos, então.” Depois, perdeste-te. Só se perde quem se encontrou. Tinhas pena de não ter nem namorada, muito menos mulher. Os teus filhos adoram-te.

Dia 2

Há uma rapariga que desce uma rua. Anos depois de teres morrido. Era, afinal, da mesma rua onde te prenderam. Tu que perdoaste quem te denunciou. Não foi aí que me declarei. Mas ela ficou tudo para mim. Não te vou explicar como ela é. É por pudor. Ela é linda. Mas sabias que seria assim. Ela tem um carácter indefectível. Ela desce uma rua com o “telefone portátil”, como dizias. Apoia tudo no lado esquerdo. Tem o braço direito livre. Sorri como ninguém. Faz-me lembrar a vida. Tu perdeste a tua. Eu gostava de ter a minha. Ela desce como ninguém. E, parece-me, encanto-me. Não há ninguém como esta miúda. Sabes: sou terno. Mas não importa. Talvez…

Dia 1

Passaram-se muitos anos. Mas não a fome. Não, o amor. Se calhar, chego a tempo. E chego àquela criatura.

Na rua onde vivemos em tempos diferentes, nos anos em que não podíamos ter-nos conhecido, em todo o tempo em que fomos sem sermos um com outro: esperávamos. E esperamos e esperamos. Não há nada que eu possa fazer.

E eu amo-a. E ela ama-me.
Seguimos o melhor que pudermos.
Não morreste nem o pai dela.
No céu, bebem um copo.
Eu amo-a como ninguém.

1 Out 2018

Dias todos

Horta Seca, Lisboa, 9 Janeiro

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]ia que começa com correio é dia maior; ano que começa assim, espero que expluda. O próprio livrinho vestiu-se envelope, foi trazido pelo e teve que se abrir com corta-papéis. «O ano em que o calendário avariou» contém poema homónimo de Manuel António Pina interpretado pela M2N Press, dos queridos Marta Madureira e Pedro Amado, ou seja, «composto em caracteres móveis de 10 e 16 pt, de Grotesco corrente (Antiga Inglesa) e Bodoni itálico. Impresso em cartolina offset 315 e printeset de 50 g/m2 numa Adana HS2 em Dezembro.» Puro gozo. Os caracteres dançam no que dizem e no que figuram abrindo transparências delirantes, segundas leituras, divertimentos. E depois o verde surge segunda cor, que tinge também a linha que coze os cadernos. A mistura de tempos em que vivemos na arte das impressões em papel pode multiplicar a fauna no jardim das delícias. «Naquele ano espantoso/cada um podia ter à vontade/as suas manias/porque todos os dias eram os dias todos». Obrigadinho é que lhes desejo.

(Paradoxo por resolver: mando cada vez menos cartas.)

Assembleia da República, Lisboa, 10 Janeiro

Ao mesmo tempo impressionante e divertida, a mais comovente das despedidas a Mário Soares: povo que grita, «Soares é fixe!». A simplicidade constituiu-se assim moldura exacta para a solenidade das homenagens. O militante anti-fascista, o político e conspirador incansável, o bon vivant com sentido de humor, o grande leitor e apreciador de artes plásticas, atraído pelos mares, o ensaísta mais ou menos polémico, o cosmopolita bem relacionado, o estadista com causas, o ministro, o primeiro-ministro, o presidente da república, tudo e mais alguma coisa, que o homem foi do tamanho do século, tudo resumido numa frase de campanha, singela e quase banal, uma brisa de Verão. E depois regressei ao dicionário (Houaiss, 2003), como há anos fazia semanalmente, para ver o que se esconde na palavra e logo a surpresa: ajustado, que possui firmeza, confiável, dotado de inteireza, forte, que agrada. Mesmo o primeiro dos significados – rectângulo de madeira ou ferro destinado a sustentar locomotiva – faz sentido se pensarmos no tempo enquanto comboio. De alta velocidade.

Centro Cultural de Belém, Lisboa, 12 Janeiro

Ouvir uma conversa está longe de ser o mesmo que vê-la. A voz, só por si, concentra atenções. Creio que se perderá menos, portanto, do primeiro Obra Aberta quando for transmitido, dia 16, na Rádio Renascença. Ao vivo, em sala cheia, a Maria João Costa geriu, com a mestria que se lhe reconhece, o ritmo do dueto entre os brilhantes professores, tradutores, ensaístas, Frederico Lourenço e António de Castro Caeiro. E com que corpo estas vozes se apresentaram! Não podia ter começado de melhor maneira a primeira fase deste projecto, em boa hora acolhido por Elísio Summavielle. Uma seta disparada na direcção dos tristes pedagogos que dão o ensino da filosofia como tempo perdido, dispensável obstáculo na formação veloz e eficaz das novas gerações. Cada um a seu modo iluminou com cristalino pensamento o tempo que atravessamos. Além das obras respectivas – Novo Testamento (Quetzal), a ambiciosa tradução que marcou este Natal, no caso do Frederico, e para o António, Um Dia Não São Dias (abysmo), tentativa de discernir o modo como apercebemos o tempo –, pedimos aos convidados para atirarem ao lume da discussão outros títulos da actualidade, escolhas que incluíram Fédon, de Platão (Guimarães), a Obra Poética, de Sophia (Assírio & Alvim), Ser e Tempo, de Heiddeger (ed. bras. Unicamp), ou Doutor Fausto, de Thomas Mann (D. Quixote), entre outros. Destabilizadora, esta sabedoria que atravessa o tempo em baixo contínuo. Fiquei a matutar na leitura do António: haverá criação sem amor? «O Fausto da tradição em que assenta o de Goethe vende a alma ao Diabo para comprar tempo de juventude. Era um homem velho cheio de mundo e de vida, mas sem o amor que apenas tarde na vida lhe acena. O Fausto de Mann também vende a alma ao Diabo e é tempo a moeda de troca, mas é um jovem músico. O tempo que pretende é para a criação artística. E é por amor que o Diabo lhe exige precisamente não amar. O olhar do amor passa a ser para Fausto o olhar da perda e da morte. Tudo o que vê morre. Ganha 24 anos, mas pode trocar-se a possibilidade de amar pela possibilidade de criar?»

Desconhecia em mim o nervoso miudinho que me pregou à parede do fundo a jogar pingue-pongue de mãos nos bolsos.

Casa Fernanda Botelho, Vermelha, Cadaval, 15 Janeiro

O pretexto foi a entrega do Prémio Literário Fernanda Botelho dedicado ao conto, patinho feio da edição nacional. «Os portugueses não se interessam por contos…», dizem os nossos editores, como se não dependesse deles tentar fugir aos interesses, ou, pelo menos, expandi-los. E esquecendo Aquilino, Brandão, Herberto, Sophia, Sena, Mário de Carvalho, Cardoso Pires ou a própria Fernanda Botelho, cuja casa visitámos em seguida. Devido ao amoroso dinamismo da sua neta, Joana, tornou-se centro cultural que, além de preservar o espólio, em colaboração com o Centro de Estudos Comparatistas, irradia propostas de promoção de leitura e interpretações multidisciplinares da obra. Outro caso sério, capaz de afinar (em feminino) o nosso olhar sobre o século XX. Em breve, na abysmo.

19 Jan 2017