Rui Filipe Torres h | Artes, Letras e Ideias“Diamantino” e o cinema Bimby [dropcap]E[/dropcap]streou a 4 de Abril em 22 ecrãs em Portugal, o filme vencedor do grande prémio da crítica do festival de cinema de Cannes. “Diamantino”, 96 minutos, já passou em perto de 60 Festivais Internacionais, entre estes; Toronto International Film Festival, London BFI, New York Film Festival, ou Cannes como referido. Teve estreia comercial de cinema no Brasil e em França. Em Portugal, nos primeiros 4 dias de exibição em sala, foi visto por 3.898 espectadores, a que corresponde a receita bruta de 20.967,04 euros. É provável que para além dos elogios da crítica tenha sucesso comercial. Quando o filme começa, a história já aconteceu e o protagonista narra-a com o recurso quase constante à voz-off, é uma viagem por dezenas de excentricidades esta em que acompanhamos Diamantino, é esse o nome do protagonista, e que nos narra os momentos próximos da falência da sua carreira de hiper-estrela do futebol mundial. Fora dos relvados procura de um novo sentido para a vida, e, apesar de só querer fazer o bem, como pelo próprio nos é dito, ou talvez por isso, entra numa odisseia delirante construída como alguns pratos na cozinha doméstica contemporânea. A construção narrativa resulta de uma mistura de ingredientes como nas máquinas de cozinha Bimby; é introduzida uma ou duas cenas que gravitem em torno do neofascismo, mais duas ou três, em torno da crise dos refugiados, um nó narrativo em torno da ficção científica aplicada à modificação genética, ao trans-género, duas ou três ideias com capacidades especulativas e facilitadoras do género comédia, a ideia parola e simultaneamente multimilionária do jogador de futebol de topo mundial caído em desgraça, carrega-se no botão, a coisa mistura, e saí a narrativa. Sai sempre uma coisa qualquer. Saí uma história com um tempo narrativo, em que a questão da verosimilhança, do verosímil, sendo sempre um aspecto central para a adesão do espectador ao que vê e vive no ecrã, não é a questão central. Ou pelo menos se tomarmos a questão da verosimilhança enquanto cópia, reprodução do modelo. Estamos em território do cinema onde por definição tudo é possível, e mais do que um mimetismo do real nos territórios da ficção, o que se precisa para admissibilidade por parte do espectador da possibilidade do real, são pequenos toques, lugares de contacto, raspões, ou, se possível, toques em profundidade perfurando a carne e chegando ao osso da realidade, o cerne ou átomo primeiro. Acontece que este cerne da realidade em territórios do cinema não tem a obrigatoriedade de ser uma imagem reprodutora a realidade pré-existente ao filme. O cinema tem esta coisa fantástica, todos nós perante o ecrã nos disponibilizamos para a viagem, e aceitamos outro regime estético do que o da colagem ou da figuração do real. E é aqui que o filme “Diamantino” se joga, e, paradoxalmente se ganha, e se perde. Há elogios rasgados em vários jornais; “Divertimento leviano e seriedade ideológica” jornal Público, “É um delírio de monta raro no cinema Português”, jornal Expresso, “Diamantino” é um objecto de uma energia nova no cinema Português”, estamos próximos, mas não tanto assim, do genial cinema do Federico Felini, ou caminhado na direção do país do Brexit, e de outra estética cinematográfica, dos filmes Monty Python. O que por si não retira qualquer valia ao filme, mas mais do que a singularidade da obra, “Diamantino” confirma um dos caminhos que o cinema contemporâneo tem vindo a percorrer, o da sucessão episódica de acontecimentos numa estrutura narrativa fragmentada de múltiplas ideias que chegam e partem sem particular discussão ou profundidade. “Diamantino” confirma a tendência do cinema contemporâneo neste trabalhar da eficácia da desconexão, ou nas palavras de Jaques Rancière, na tradução de José Mirando no “O Espectador Emancipado”: “ … a eficácia estética significa propriamente a eficácia da suspensão de toda e qualquer relação direta entre a produção das formas da arte e a produção de um efeito determinado sobre um público determinado….uma rotura entre as produções das diversas modalidades artísticas de saber-fazer e fins sociais definidos, entre formas sensíveis, as significações que nelas podemos ler e os efeitos que podem produzir. Dizendo de outra maneira, trata-se da eficácia de um dissentimento. O que entendo por dissentimento não é um conflito de ideias ou de sentimentos. É o conflito de vários regimes de sensorialidade. “ Afirmam os realizadores Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt, que nesta sua primeira longa-metragem tinham como assunto “…fazer um filme principalmente sobre uma pessoa muito rica que adotava uma pessoa muito pobre e os problemas políticos inerentes a essa situação”. É uma premissa válida como qualquer outra, seguramente uma linha narrativa de grande potencial para o desenvolvimento de uma telenovela, género que também precisa, e muito, de renovação. No filme “Diamantino”, os criadores do produto telenovela podem encontrar um toque seminal para um caminho onde a comédia excêntrica se torne núcleo estético central no desenvolvimento da narrativa. Se assim vier a acontecer estaremos num processo ao contrário do caminho percorrido pelo Pedro Almodóvar, que tão exemplarmente explorou o Kistch na filmografia, partindo muitas das vezes do pequeno ecrã, ampliando a dimensões gigantes a intensidade dramática das personagens nas diversas situações e ambientes e de um quotidiano urbano vivido nos inícios de uma “Madrid me mata”. As linhas de filiação no cinema contemporâneo são sempre muitas e diversas, um dos filmes que pode ser convocado a propósito do “Diamantino” , embora com outro tema e um outro exercício, mas onde o “excêntrico” é o filão explorado é o BORAT, de 2007. O filme de Larry Charles; Borat: Cultural Learnings of America for Make Benefit Glorious Nation of Kazakhstan, produção dos EUA. Estreou em 837 salas nos Estados Unidos, e no primeiro fim de semana fez 26,4 milhões de dólares. Neste filme, Borat Sagdiyev (Sacha Baron Cohen), é um jornalista do Cazaquistão que resolve deixar o seu país e viajar para os Estados Unidos, com a intenção de fazer um filme documentário. Durante sua viagem pelo país, ele conhece pessoas reais que, ao reagir ao seu comportamento primitivo, expõem o preconceito e a hipocrisia existentes na cultura americana nos dias de hoje. É certo que aqui estamos num outro regime estético, o de um cinema que assume o híbrido, a contaminação entre cinema e documental na sua construção e processo. No entanto se repararmos na caracterização do personagem principal que é apresentada como se segue: “ Filho de Asimbala Sagdiyev e Boltok, o Estuprador — de quem também é neto e genro—, nasceu em 30 de julho de 1972 na vila fictícia de Kuzcek, no Cazaquistão. Diverte-se jogando pingue-pongue, dançando música disco e fotografando mulheres enquanto elas vão ao WC. Viúvo, comemora a morte da primeira esposa Oxana — violentada e comida por um urso — que, apesar de cozinhar bem e ser boa no arado, passado três anos de a ter comprado — ao completar 15 anos — começou a ficar com a voz grossa, ganhar pelos no corpo e ficar com a “vagina parecida com a manga de um feiticeiro”. Tem um filho de 13 anos chamado Hooeylewis e dois gêmeos de 12, Biram e Bilak, sendo também avô de dezassete crianças — algumas ele planeia vender para a popstar Madonna. Na sua família ainda estão a irmã mais velha Natalya — a quarta melhor prostituta do país (sexta durante a turnê das Pussycat Dolls) — e o caçula Bilo — retardado mental com a cabeça em forma de espiga e mais de duzentos dentes. Em sua viagem aos “US and A”, como chamava os EUA, em busca de um romance com Pamela Anderson, conheceu Luenell nas ruas, com a qual uniu laços. Respeitado apresentador de telejornal na sua pátria natal, é membro do quadro de honra da Universidade de Astana, onde se formou com louvor não só em jornalismo mas em inglês e no estudo de pragas. Prestou durante longos anos serviços ao governo criando cinco novas pragas que devastaram cinco milhões de cabras no Uzbequistão, sem contar a época em que fez gelo, foi guardador de sémen de animais, caçador de ciganos e removedor de pássaros mortos em um computador. Pagão até fazer amizade com os pentecostais e converter toda a sua vila ao cristianismo, admira a visão política de Joseph Stalin por causa do forte e poderoso pénis do ex-ditador russo e apoia o presidente Bush na sua guerra de terror. Encontramos a extravagância e o delírio como eixo e fonte para a caraterização do personagem, o que nos aproxima e muito, embora que um grau de complexidade substantivamente menor, da caracterização do personagem “Diamantino”. Carloto Cota , em “Diamantino”. Em “Diamantino” o personagem principal, – Carloto Cotta -, é um jogador de futebol galáctico hiper famoso com pronuncia das ilhas, uma sonoridade próxima dos Açores, faz muita publicidade, e as montanhas de dinheiro que ganha são geridas pela família, no caso duas irmãs gémeas, essenciais na trama, são elas as antagonistas e simultaneamente coadjuvantes do herói da narrativa. As terríveis gémeas acabam por estar na origem de um ataque cardíaco fulminante que retira a vida ao pai. Um crime, acidente, rapidamente secundarizado nas peripécias da narrativa. Este herói tem uma particularidade, uma ingenuidade próxima da debilidade mental e um conhecimento do mundo para além “dos toques na bola” muito incipiente. Tem ainda uma característica definitivamente fundadora da relação que o público estabelece com o personagem e com o filme, quando está em campo, os outros jogadores são por ele vistos como cães de peluche gigantes, é a eles que finta e ao lado deles que corre e pontapeia a bola na direção do golo na baliza adversária. É uma personagem caricatura sem particular evolução do arco narrativo, ou quase, dado que o filme é estruturado em 3 atos, – como são quase sempre todas as histórias do cinema e na literatura oral e escrita-, e no final o protagonista está diferente, descobre e vive o amor físico com o filho adoptado. Incesto e homossexualidade? Não é bem isso, primeiro porque o filho na verdade é filha, e segundo porque a adopção é falsa, resulta de um disfarce para um trabalho de espia de encomenda para a jornalista com quem vive uma relação amorosa e que está investigar possíveis escândalos financeiros de fuga aos impostos do jogador galáctico. Como referido, o argumento, segue a estrutura do 3 actos, e como tal conta-nos uma história com principio meio e fim, aspecto em nada displicente para a relação dos públicos com a narrativa, seja esta qual for e, no caso do cinema, ser excêntrica pode mesmo ser uma vantagem, como é o caso. No entanto o argumento construído, assim parece, com a moderna Bimby que tudo cozinha, acaba por cometer o erro do excesso de ingredientes com dosagem em quantidades próximas do aleatório, – mesmo sendo visível o cuidado com cenas plantadas na linha do tempo que permitem o avanço e o final. Fica excessivo mesmo num filme que trabalha o excesso, uma paleta tão vasta de assuntos, como refugiados do norte de África, fuga aos impostos, jogadores galácticos, Brexit, campanhas para as eleições europeias, genética aplicada, identidade trans-género. Mas é isto tudo o filme, e se por um lado este excesso faz perder densidade por outro lado faz ganhar excentricidade e mantem num muito razoável nível o interesse e o prazer de acompanhar esta singular viagem fílmica. O filme tem um departamento de arte que não acompanha o excesso que carateriza o filme, duas irmãs gémeas com grande destaque e um protagonista que se entrega sem reservas ao filme, e um pai que estranhamente parece não tem o sotaque dos filhos. Ainda assim é um filme bem construído e ousado no panorama nacional. Não é todos os dias que se vê um jogador galáctico que quer só “fazer o bem” e alimentar com crepes de Nutella e Chantily essa gente negra para ele desconhecida que atravessa quase a nado o mediterrâneo para chegar ao paraíso do continente Europeu. Um continente que vive e se olha a si próprio, por vezes, como neste caso, com ironia e sátira. O filme teve efeitos especiais da Irmã Lúcia e apoio financeiro do ICA, Euro-Image, e Fundo Ibero-Americano. Vai continuar em cartaz e é uma das produções que vai marcar a colheita cinematográfica deste ano nas salas nacionais.
Hoje Macau EventosMais de uma dezena de filmes portugueses estreiam-se nos próximos meses [dropcap]O[/dropcap]s premiados “Chuva é cantoria na aldeia dos mortos” e “Diamantino”, as histórias biográficas sobre Snu Abecassis e António Variações e o documentário “Debaixo do céu” são alguns dos filmes portugueses a estrearem-se este ano nos cinemas portugueses. De acordo com dados compilados pela agência Lusa junto de exibidoras e produtoras, pelo menos uma dezena de produções portuguesas vão chegar ao circuito comercial nos próximos meses, entre as quais “Terra Franca”, a primeira longa-metragem de Leonor Teles, já no dia 10 de Janeiro. Distinguido em quase uma dezena de festivais, “Terra Franca” é um documentário sobre a vida de Albertino, pescador em Vila Franca de Xira, e a sua ligação ao rio Tejo e à família, tendo sido rodado ao longo de quase dois anos. Em Janeiro vai estrear-se ainda outro documentário, “Debaixo do céu”, de Nicholas Oulman, com histórias de judeus que passaram por Portugal durante a Segunda Guerra Mundial. Nicholas Oulman, filho de uma família francesa judia fixada em Portugal desde 1920 e que ajudou outros refugiados, quis encontrar e ouvir os relatos pessoais de alguns dos judeus que procuraram refúgio temporário em Portugal, porta de saída para o Ocidente, em fuga desde a Alemanha, onde foram perseguidos pelo regime Nazi. No trabalho de pesquisa, foram encontrados cerca de 20 sobreviventes, todos com mais de 80 anos e a maioria a residir nos Estados Unidos. No filme entram sete, que à época eram crianças, que vão relatando histórias, ilustradas com imagens de arquivo. Neste mês estão previstas ainda as estreias da comédia “Tiro & Queda”, de Ramon de los Santos, com Manuel Marques e Eduardo Madeira, e de “Os dois irmãos”, de Francisco Manso, a partir de uma história verídica e do romance homónimo do autor cabo-verdiano Germano Almeida. Em Março, no dia 7, é esperada a estreia de “Snu”, filme de Patrícia Sequeira sobre a relação entre a editora Snu Abecassis e o político Francisco Sá-Carneiro. No papel do casal estão Inês Castel-Branco e Pedro Almendra. A 14 de Março, quase um ano depois de ter recebido o prémio especial do júri “Un certain regard” de Cannes, chegará às salas de cinema portuguesa o filme “Chuva é cantoria na aldeia dos mortos”, de João Salaviza e Renée Nader Messora. O filme foi rodado durante nove meses numa aldeia brasileira no estado de Tocatins e é protagonizado por Ihjãc, um adolescente indígena dos Krahô. Março será ainda o mês de estreia de “Gabriel”, filme de Nuno Bernardo, protagonizado por Igor Regalla, no papel de um jovem cabo-verdiano que descobre o pugilismo quando ruma a Portugal à procura do pai. Em abril, estrear-se-ão “Diamantino”, de Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt, “Hotel Império”, de Ivo M. Ferreira, e “Quero-te tanto”, de Vicente Alves do Ó. “Diamantino”, com estreia para 4 de Abril, é a primeira longa-metragem daqueles dois realizadores e cruza comédia, drama, policial e ficção científica, a partir da história de um futebolista, tendo sido distinguido no ano passado na Semana da Crítica, em Cannes. “Hotel Império”, em exibição a partir de 18 de Abril, foi rodado em Macau, e conta a história de uma portuguesa nascida na cidade – interpretada por Margarida Vila-Nova – que, juntamente com outras pessoas, habita um antigo hotel em vias de ser destruído para dar lugar a um edifício moderno. Vicente Alves do Ó estreará em Abril a comédia “Quero-te tanto”, protagonizada por Benedita Pereira e Pedro Teixeira, e depois no outono vai ter nos cinemas “Golpe de Sol”. Sem data de estreia, mas aprazada para o verão, está a longa-metragem “Variações”, de João Maia, sobre o músico António Variações, que morreu em Junho de 1984. Com Sérgio Praia no papel principal, “Variações” foca-se sobretudo na transformação de António Ribeiro em António Variações, num período de vida entre 1977 e 1981, a época em que um barbeiro ambicionava viver da música. Este ano é esperada ainda a estreia de “A Portuguesa”, de Rita Azevedo Gomes, a partir de “Die Portugiesin”, de Robert Musil, e deverá estrear-se também “O homem que matou D. Quixote”, de Terry Gilliam, ambos sem data. Em 2018, segundo dados do Instituto do Cinema e Audiovisual, estrearam-se 38 filmes portugueses e de co-produção portuguesa, com “Pedro & Inês”, de António Ferreira, a ser o mais visto, com 46.717 espectadores.
Sofia Margarida Mota Eventos Festival Internacional de Cinema - Especial“Diamantino” | O filme premiado em Cannes foi a única representação portuguesa no MIFF “Diamantino”, a primeira longa-metragem de ficção de Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt, foi o único filme português seleccionado para a 3ª edição do Festival Internacional de Cinema de Macau. Diamantino é um retrato de uma realidade “universal” com toques de surrealismo e de comédia que se tem mostrado do agrado de diferentes públicos e críticos trazendo ao ecrã uma odisseia delirante, que envolve neofascismo, crise dos refugiados, modificação genética e a busca pela origem da genialidade. Além de Carloto Cotta, o elenco desta coprodução entre Portugal, Brasil e França inclui Cleo Tavares, Anabela Moreira, Margarida Moreira, Carla Maciel, Filipe Vargas e Manuela Moura Guedes. Daniel Schmidt esteve em Macau para apresentar a película e numa entrevista colectiva falou sobre o sucesso inesperado de “Diamantino”, um filme que pensava vir a ser um desastre De que trata o filme “Diamantino”? [dropcap]É[/dropcap] um conto de fadas contemporâneo, que se passa em 2018, sobre um jogador de futebol famoso, um ícone nacional, que perde a final de uma taça do mundo por falhar um penálti. Diamantino entra em crise psicológica e começa à procura de um novo significado para a vida. Acaba por adoptar uma criança refugiada. Ao mesmo tempo, Diamantino está rodeado de pessoas que tentam manipular a sua fama, e que vão desde o representantes do Governo português à sua família. Todos tentam perverter a sua vida. Mas porque se trata de uma pessoa muito inocente e que tem, de alguma maneira, uma relação ambígua com o mundo, Diamantino acaba por distorcer o que lhe fazem e por se proteger. O que quiseram dizer com este filme? Penso que há muitas coisas de que queremos falar através de “Diamantino”. Um dos temas que tratamos é o excesso de temáticas. Vivemos constantemente expostos a isto, a todos os tipos de media em todo o lado, a todo o tipo de histórias. Depois temos uma celebridade que teria uma espécie de poder, mas que acaba manipulado por todas estas coisas. Queremos que as pessoas olhem para esta personagem e vejam como acaba por ser explorada por este tipo de forças. Há uma questão política e mesmo humana: esta personagem em vez de responder às ameaças que recebe de uma forma vingativa, não, Diamantino enfrenta os obstáculos com abertura e inocência e até com um certo grau de inaptidão para perceber a complexidade do mundo actual. Tem uma perspectiva simplista do que é o amor e a aceitação, e mostra até que ponto esta atitude é uma forma de responder a algumas das insanidades que vivemos hoje em dia. Trabalhou com um realizador português. O filme é em língua portuguesa e passa-se em Portugal. Como foi para si fazer um filme que usa uma linguagem e cultura que não é a sua? É um desafio e um privilégio. O Gabriel é português e já trabalhámos juntos antes em filmes em línguas que desconhecemos. Penso que estamos interessados em trazer uma espécie de linguagem de Hollywood para situações de outros países. Não como uma força colonizadora, mas como uma forma de destabilizar ou mesmo perverter Hollywood. Quisemos olhar para a sociedade contemporânea na perspectiva dos reality shows de Kim Kardashian, por exemplo. Há um certo grau de farsa neste filme. Por outro lado, foi uma forma para olharmos para a crise na Europa, a crise dos refugiados que vão além de Portugal. Mas há também muitas piadas portuguesas. Muitas delas eu não conhecia e tiveram que mas explicar. Para mim foi muito bonito fazer este tipo de trabalho dentro de um contexto que eu não compreendo completamente e em que aprendo mais do que no típico filme que é suposto eu fazer. De onde vieram os cãezinhos felpudos? Onde está Cristiano Ronaldo? E as irmãs de Diamantino, são as da Gata Borralheira? Os cães vieram de um desejo de mostrar o que se passava dentro da cabeça de Diamantino. Não queríamos ir à procura do cliché. Queríamos alguma coisa de surreal e com alguma imaginação. Acabámos por ser inspirados por textos de um autor que se debruçava sobre o génio dos atletas e que defende que alguns estão aptos a ter um desempenho excelente sob pressão por terem uma faceta mais idiota, ou seja, defendem que existe uma espécie de estupidez que lhes permite atingir excelentes desempenhos no que fazem. Ficámos interessados nesta ideia que considerámos bastante perversa. Mas não queríamos ter no Diamantino apenas um idiota. Queríamos ter uma coisa mais leve, com alguma ambiguidade e imaginação e mesmo com inocência. Os cachorrinhos apareceram como sendo uma boa opção. Cristiano Ronaldo é uma referência óbvia no filme, mas queríamos ter uma visão mais alargada dos jogadores de futebol. No que diz respeito à aparência, há muitos jogadores que usam aquele tipo de brincos de diamante, aquele penteado, que têm uma cara bonita e aquele tipo de físico. Queríamos chegar àquele aspecto até porque ajuda o público a perceber mais rapidamente e a identificar o personagem. Mas psicologicamente tirámos muito pouco do que poderá ser o Ronaldo, o Messi ou outros jogadores famosos. Para a sua personalidade tivemos em conta uma grande variedade de referências, desde a Britney Spears, a Forest Gump e Michael Jackson. Também procurámos personagens muito diferentes de Diamantino, mas que de alguma forma se podiam encaixar como Lance Armstrong. Cristiano Ronaldo não é uma referência directa, mas obviamente que dada a sua nacionalidade e a do filme e dada a sua profissão, é muito claro que até certo ponto o Diamantino pode ser identificado com ele. E as irmãs? Quantos às irmãs de Diamantino, foram definitivamente inspiradas nas irmãs da Cinderela. Queríamos que o filme fosse uma espécie de conto de fadas. Queríamos trazer esse espírito que todos conhecemos para assuntos contemporâneos. Claro que parece perverso, mas se olharmos bem para os contos de fadas que conhecemos, são histórias muito perversas e muito violentas, e que respondem a questões muito contemporâneas. Por outro lado, elas também adicionaram com a sua representação uma componente ligada ao cartoon e forma como representam não é nada diferente por exemplo da forma como as Kardashians por exemplo gritam uma com a outra. Há esta relação escorregadia entre a realidade e outros aspectos. O que mais gosta neste filme? Acho que é interpretação de Diamantino feita pelo actor Carloto Cotta. O Gabriel e eu sempre tentámos alcançar o prazer visual, mas nunca tínhamos feito nada com esta carga humana e carismática e que de alguma forma toca o coração das pessoas. Quando começámos a partilhar o projecto com o Carloto percebemos logo que tínhamos ali um terceiro colaborador além de nós os dois. Ele acabou por ser um de nós, desenvolveu o personagem e fez exactamente o que os grande actores fazem. Como é que tem sido a reacção do público? A reacção tem sido muito encorajante, ficámos muito surpreendidos. Pensávamos que o filme ia ser um desastre. Quando acabámos de filmar estávamos extremamente deprimidos e começámos a pensar o que iriamos fazer com aquilo para que não fosse vergonhoso. Acabámos por melhor do que isso. As pessoas parecem realmente gostar do filme. Conseguimos não só estar em Cannes como ser premiados. Outro aspecto que considero interessante é a abrangência de audiência que o filme tem tido. Já disse ao Gabriel que um dia podemos fazer um filme melhor, ou um filme com ainda mais visibilidade, mas acho que jamais faremos um filme que parece agradar um público tão diversificado. “Diamantino” tem sido seleccionado para festivais dedicados a guiões experimentais, ao cinema experimental, ao cinema fantástico, a filmes de género e para Cannes. Porque é que isso acontece? Penso que fizemos um filme que tenta abordar muitos dos assuntos contemporâneos. Os media por exemplo, estão sempre a interromper as nossas vidas. É um filme que acaba por tocar numa variedade de assuntos que vão de encontro a diversos públicos. Alguns consideram que é um filme que brinca com a temática do futebol e é o que querem ver. Outros acham que é um filme que usa de uma forma experimental o formato 16mm e alguns efeitos visuais. Outros acham que é um filme que tem uma história de amor comovente. Outros ainda pensam que é um filme sobre a crise política ou mesmo de ficção científica. Ao tentar abordar todos estes assuntos, o público consegue identificar-se sempre com algum aspecto. Digamos que é um filme que consegue encaixar em muitas gavetas.