“Diamantino” | O filme premiado em Cannes foi a única representação portuguesa no MIFF

“Diamantino”, a primeira longa-metragem de ficção de Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt, foi o único filme português seleccionado para a 3ª edição do Festival Internacional de Cinema de Macau. Diamantino é um retrato de uma realidade “universal” com toques de surrealismo e de comédia que se tem mostrado do agrado de diferentes públicos e críticos trazendo ao ecrã uma odisseia delirante, que envolve neofascismo, crise dos refugiados, modificação genética e a busca pela origem da genialidade. Além de Carloto Cotta, o elenco desta coprodução entre Portugal, Brasil e França inclui Cleo Tavares, Anabela Moreira, Margarida Moreira, Carla Maciel, Filipe Vargas e Manuela Moura Guedes. Daniel Schmidt esteve em Macau para apresentar a película e numa entrevista colectiva falou sobre o sucesso inesperado de “Diamantino”, um filme que pensava vir a ser um desastre

 

De que trata o filme “Diamantino”?

[dropcap]É[/dropcap] um conto de fadas contemporâneo, que se passa em 2018, sobre um jogador de futebol famoso, um ícone nacional, que perde a final de uma taça do mundo por falhar um penálti. Diamantino entra em crise psicológica e começa à procura de um novo significado para a vida. Acaba por adoptar uma criança refugiada. Ao mesmo tempo, Diamantino está rodeado de pessoas que tentam manipular a sua fama, e que vão desde o representantes do Governo português à sua família. Todos tentam perverter a sua vida. Mas porque se trata de uma pessoa muito inocente e que tem, de alguma maneira, uma relação ambígua com o mundo, Diamantino acaba por distorcer o que lhe fazem e por se proteger.

O que quiseram dizer com este filme?

Penso que há muitas coisas de que queremos falar através de “Diamantino”. Um dos temas que tratamos é o excesso de temáticas. Vivemos constantemente expostos a isto, a todos os tipos de media em todo o lado, a todo o tipo de histórias. Depois temos uma celebridade que teria uma espécie de poder, mas que acaba manipulado por todas estas coisas. Queremos que as pessoas olhem para esta personagem e vejam como acaba por ser explorada por este tipo de forças. Há uma questão política e mesmo humana: esta personagem em vez de responder às ameaças que recebe de uma forma vingativa, não, Diamantino enfrenta os obstáculos com abertura e inocência e até com um certo grau de inaptidão para perceber a complexidade do mundo actual. Tem uma perspectiva simplista do que é o amor e a aceitação, e mostra até que ponto esta atitude é uma forma de responder a algumas das insanidades que vivemos hoje em dia.

Trabalhou com um realizador português. O filme é em língua portuguesa e passa-se em Portugal. Como foi para si fazer um filme que usa uma linguagem e cultura que não é a sua?

É um desafio e um privilégio. O Gabriel é português e já trabalhámos juntos antes em filmes em línguas que desconhecemos. Penso que estamos interessados em trazer uma espécie de linguagem de Hollywood para situações de outros países. Não como uma força colonizadora, mas como uma forma de destabilizar ou mesmo perverter Hollywood. Quisemos olhar para a sociedade contemporânea na perspectiva dos reality shows de Kim Kardashian, por exemplo. Há um certo grau de farsa neste filme. Por outro lado, foi uma forma para olharmos para a crise na Europa, a crise dos refugiados que vão além de Portugal. Mas há também muitas piadas portuguesas. Muitas delas eu não conhecia e tiveram que mas explicar. Para mim foi muito bonito fazer este tipo de trabalho dentro de um contexto que eu não compreendo completamente e em que aprendo mais do que no típico filme que é suposto eu fazer.

De onde vieram os cãezinhos felpudos? Onde está Cristiano Ronaldo? E as irmãs de Diamantino, são as da Gata Borralheira?

Os cães vieram de um desejo de mostrar o que se passava dentro da cabeça de Diamantino. Não queríamos ir à procura do cliché. Queríamos alguma coisa de surreal e com alguma imaginação. Acabámos por ser inspirados por textos de um autor que se debruçava sobre o génio dos atletas e que defende que alguns estão aptos a ter um desempenho excelente sob pressão por terem uma faceta mais idiota, ou seja, defendem que existe uma espécie de estupidez que lhes permite atingir excelentes desempenhos no que fazem. Ficámos interessados nesta ideia que considerámos bastante perversa. Mas não queríamos ter no Diamantino apenas um idiota. Queríamos ter uma coisa mais leve, com alguma ambiguidade e imaginação e mesmo com inocência. Os cachorrinhos apareceram como sendo uma boa opção. Cristiano Ronaldo é uma referência óbvia no filme, mas queríamos ter uma visão mais alargada dos jogadores de futebol. No que diz respeito à aparência, há muitos jogadores que usam aquele tipo de brincos de diamante, aquele penteado, que têm uma cara bonita e aquele tipo de físico. Queríamos chegar àquele aspecto até porque ajuda o público a perceber mais rapidamente e a identificar o personagem. Mas psicologicamente tirámos muito pouco do que poderá ser o Ronaldo, o Messi ou outros jogadores famosos. Para a sua personalidade tivemos em conta uma grande variedade de referências, desde a Britney Spears, a Forest Gump e Michael Jackson. Também procurámos personagens muito diferentes de Diamantino, mas que de alguma forma se podiam encaixar como Lance Armstrong. Cristiano Ronaldo não é uma referência directa, mas obviamente que dada a sua nacionalidade e a do filme e dada a sua profissão, é muito claro que até certo ponto o Diamantino pode ser identificado com ele.

E as irmãs?

Quantos às irmãs de Diamantino, foram definitivamente inspiradas nas irmãs da Cinderela. Queríamos que o filme fosse uma espécie de conto de fadas. Queríamos trazer esse espírito que todos conhecemos para assuntos contemporâneos. Claro que parece perverso, mas se olharmos bem para os contos de fadas que conhecemos, são histórias muito perversas e muito violentas, e que respondem a questões muito contemporâneas. Por outro lado, elas também adicionaram com a sua representação uma componente ligada ao cartoon e forma como representam não é nada diferente por exemplo da forma como as Kardashians por exemplo gritam uma com a outra. Há esta relação escorregadia entre a realidade e outros aspectos.

O que mais gosta neste filme?

Acho que é interpretação de Diamantino feita pelo actor Carloto Cotta. O Gabriel e eu sempre tentámos alcançar o prazer visual, mas nunca tínhamos feito nada com esta carga humana e carismática e que de alguma forma toca o coração das pessoas. Quando começámos a partilhar o projecto com o Carloto percebemos logo que tínhamos ali um terceiro colaborador além de nós os dois. Ele acabou por ser um de nós, desenvolveu o personagem e fez exactamente o que os grande actores fazem.

Como é que tem sido a reacção do público?

A reacção tem sido muito encorajante, ficámos muito surpreendidos. Pensávamos que o filme ia ser um desastre. Quando acabámos de filmar estávamos extremamente deprimidos e começámos a pensar o que iriamos fazer com aquilo para que não fosse vergonhoso. Acabámos por melhor do que isso. As pessoas parecem realmente gostar do filme. Conseguimos não só estar em Cannes como ser premiados. Outro aspecto que considero interessante é a abrangência de audiência que o filme tem tido. Já disse ao Gabriel que um dia podemos fazer um filme melhor, ou um filme com ainda mais visibilidade, mas acho que jamais faremos um filme que parece agradar um público tão diversificado. “Diamantino” tem sido seleccionado para festivais dedicados a guiões experimentais, ao cinema experimental, ao cinema fantástico, a filmes de género e para Cannes.

Porque é que isso acontece?

Penso que fizemos um filme que tenta abordar muitos dos assuntos contemporâneos. Os media por exemplo, estão sempre a interromper as nossas vidas. É um filme que acaba por tocar numa variedade de assuntos que vão de encontro a diversos públicos. Alguns consideram que é um filme que brinca com a temática do futebol e é o que querem ver. Outros acham que é um filme que usa de uma forma experimental o formato 16mm e alguns efeitos visuais. Outros acham que é um filme que tem uma história de amor comovente. Outros ainda pensam que é um filme sobre a crise política ou mesmo de ficção científica. Ao tentar abordar todos estes assuntos, o público consegue identificar-se sempre com algum aspecto. Digamos que é um filme que consegue encaixar em muitas gavetas.

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