Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA primeira vez no deserto [dropcap]V[/dropcap]anina era uma argentina de Buenos Aires a viver em Floripa há mais de 10 anos, desde os seus vinte e poucos. Tocava baixo numa banda de covers nos bares da cidade e era apaixonada por pegar ondas na praia Mole. Vivia ali perto, sozinha, na Lagoa da Conceição. Argentinos na ilha não é incomum. Aliás, é um dos lugares de preferência dos portenhos para passarem as suas férias. No verão, a ilha fica cheia deles. Alguns acabam por ficar ou voltar mais tarde para passarem a viver junto às inúmeras praias da ilha. Conheci Vanina depois de uma actuação da sua banda, através de uma amiga comum, e desde esse dia passámos a conversar com muita regularidade. Apesar de sermos muito diferentes, a começar pelo género e a acabar nos hemisférios onde nascemos e crescemos, havia uma secreta cumplicidade de estrangeiro. Sabíamos que não éramos dali, e toda a gente à volta sabia-o melhor que nós, pois o gosto que tínhamos pela cidade – pelas praias e pela paisagem – iludia-nos amiúde acerca da nossa cidadania. Mas de fora, todos viam claramente que não éramos dali, pelo menos quando começávamos a falar. Tanto ela quanto eu tínhamos sotaque, mesmo falando a língua. Um estrangeiro é sempre um estranho, apesar do gosto que possam ter por ele. É uma afeição exótica que se cultiva, como ter peixes de aquário num apartamento da cidade. Vanina gostava de me visitar a meio da tarde durante a semana. Dizia que “o tempo é uma vida”. Era muito ligada a disciplinas esotéricas, e explicava que há várias vidas em cada momento e que se não nos entregarmos a eles, rejeitamos a vida. No fundo, era uma interpretação do “carpe diem” de Horácio, na sua versão mais alargada: “carpe diem quam minimum credula postero”, aproveita o dia e acredita o menos possível no amanhã. E, na verdade, Vanina era de uma coerência titânica em relação a esse preceito de vida. Evidentemente, a ajudar a sua filosofia havia uma confortável situação financeira, que lhe permitia trabalhar se e quando quisesse. Vanina era fascinante, tinha um claro domínio sobre si, os seus impulsos, e ao mesmo tempo deixava-se levar pelo momento. Dizia: “Controlo perfeitamente os meus desejos, as minhas vontades, mas deixo-me levar pelo que a vida me traz. São coisas muito diferentes, Portuga. Por exemplo, conheço um homem e tenho a plena consciência de que gostaria de ter um envolvimento carnal com ele, mas se ele for muito interessante controlo essa minha vontade, esse desejo, embora me entregue ao momento e possa passar horas com ele; sei que se pusesse o corpo entre nós, isso acabaria. Este é o exemplo concreto de controlo do desejo e de deixar-me levar pelo que a vida me traz.” Quando acrescentei que nem sempre o desejo acaba com o interesse, pode até aumentar, respondeu: “Isso pode até ser, quando é amor. Mas este não cresce nas árvores. Homens e mulheres, sim.” Bebia e fumava muito moderadamente. Aliás, tudo nela era moderado, menos a entrega apaixonada ao momento. Vi-a uma noite sair com um cara e soube mais tarde que passou três dias com ele sem ir a casa. Disse-me depois: “Foi um exemplo claro de aproveitar o que a vida me dava. Sabia claramente que não iria existir nada mais que dois dias, e foram três. Portuga, uma vez segui um mestre hindu, que conheci em Amesterdão, durante meses, por vários países. Conheci-o numa palestra e segui-o. Um belo dia entendi que já não fazia mais sentido segui-lo e regressei a Buenos Aires.” Perguntei-lhe se isso não era um modo de não ter controlo sobre ela, visto ser desviada do seu trajecto sem ter pensado nisso. Mas não. O trajecto dela era a vida e na vida não há desvios. A vida é como o deserto, sem pontos de referência. Para onde quer que se caminhe é desvio. A não ser que previamente se saiba para onde caminhar, mas na vida isso não existe. A vida é uma primeira vez no deserto.
Hoje Macau PolíticaMárcia e Samuel Úria – “Menina” “MENINA” Menina assenta o passo Sem medo ou manha Ou muito te passa da vida Tem que haver quem faça o que muito queira Caminha sem falsa fascinação O teu coração Ainda pára Forçando a apatia pelo medo de dançar Não se avista um dia em que um ego não destrate Uma mais bela parte Escondida em ti. Menina sê quem passa para lá da ideia Quem muito se pensa fatiga Nem vais ver quem são Sem os olhos no chão Os que andam para ver-te vencida a ti. O teu coração Sem querer dispara Força e simpatia ao Ser que te vê dançar Vai chegar o dia em que o medo não faz parte E, por muito que tarde, esse dia é teu. Desfaz o Nó Destrava o pé Desmancha a trança e avança Chocalha o chão Esquece os que estão Rasga o marasmo em ti mesma Vê corações Na cara que pões Vira do avesso esse enguiço Desamordaça a dança para te convencer O teu coração Sem querer dispara Força e simpatia ao Ser que te vê dançar O teu coração Ainda pára Forçando a apatia pelo medo de dançar MÁRCIA E SAMUEL ÚRIA