Ainda não mataram a cultura

O tempo de confinamento devida à pandemia causada pela covid-19 deixou um grande número de portugueses sem trabalho. Mas, as mulheres e homens das artes foram os que mais sofreram. Os concertos musicais onde trabalham artistas, músicos, técnicos de som e de iluminação, produtores, motoristas dos camiões que transportam o material, operadores de câmara, editores de vídeo e todos aqueles que se envolvem trabalhando para o espectáculo ficaram radicalmente sem ganha-pão. Caso idêntico aconteceu com o mundo do teatro e cinema.

As editoras começaram a responder aos escritores que tudo estava parado. Um amigo nosso da Sociedade Portuguesa de Autores transmitiu-nos que muitas obras estavam escritas e prontas para serem lançadas, mas que as editoras têm tomado algumas atitudes que só prejudicam os escritores. As pessoas das artes em geral protestaram e apelaram ao Governo que os ajudasse. O apoio foi praticamente nulo, com excepção para o programa Protege da Câmara Municipal de Lisboa.

A cultura em Portugal está cada vez mais desprezada e o que interessa aos governantes são os aeroportos, os TGV’s, as barragens e que hajam muitos empresários a edificarem hotéis para os turistas. A cultura para quem governa é algo semelhante a uma sanita. Mas, felizmente, ainda há quem lute em defesa dos valores culturais e organize eventos que incentivam os escritores e premeiam as suas obras. Foi o caso exemplar do evento Correntes d’Escritas que se realizou, mais uma vez, no final do mês passado, na Póvoa de Varzim.

Correntes d’Escritas é uma lufada de ar fresco no panorama cultural da literatura e os autores sentem que a organização de uma reunião deste tipo só alenta quem se sente inspirado a escrever. E Portugal tem escritores de enorme valia, mesmo admirados a nível internacional, tais como António Lobo Antunes, Afonso Cruz, José Luís Peixoto, Lídia Jorge, Válter Hugo Mãe, Carlos Morais José e Gonçalo M. Tavares, entre outros. Este ano, a escritora portuguesa Luísa Costa Gomes venceu o Prémio Literário Casino da Póvoa 2022 atribuído no âmbito do encontro literário Correntes d’Escritas, com o livro “Afastar-se”. O júri do concurso decidiu distinguir a obra desta escritora de 67 anos, de Lisboa, considerando a coerência na diversidade deste livro de contos, género em que a autora se tem destacado ao longo de vida literária, bem como a constante procura da forma adequada que

Luísa Costa Gomes persegue em cada conto. “No domínio da escrita, o trabalho da autora persiste com rigor constante”, destacou o júri, constituído por Ana Maria Pereirinha, Carlos Quiroga, Carlos Vaz Marques, Isabel Lucas e Isabel Pires de Lima, salientando ainda “o contundente uso da ironia na escrita de Luísa Costa Gomes”.

Mas, vocês acreditam que os canais de televisão mal fizeram referência a um evento desta tão importante envergadura no panorama cultural? É verdade, as televisões só se preocupam em programas para atrasados mentais, do tipo “Big Brother”. Uma vergonha e falta de profissionalismo de quem dirige esses órgãos de comunicação social. E esta foi a primeira vez que o principal prémio dos encontros Correntes d’Escritas foi atribuída a um livro de contos.

Luísa Costa Gomes, licenciou-se em Filosofia, foi professora do Ensino Secundário, dirigiu a revista “Ficções”, dedicada à divulgação de contos, e, além de ser autora de romances, contos, crónicas, faz tradução literária. O seu primeiro romance, “O Pequeno Mundo”, ganhou em 1988, o Prémio D. Diniz da Casa de Mateus enquanto a obra “Olhos Verdes” venceu, em 1995, o Prémio Máxima de Literatura. Com “Contos Outra Vez” conquistou em 1997, o Grande Prémio de Conto da Associação Portuguesa de Escritores. O seu romance “Ilusão (ou o que quiserem)” recebeu, em 2010, o Prémio Literário Fernando Namora, pela inovação e ágil registo estilístico.

No encontro Correntes d’Escritas participaram mais de 60 autores ibéricos, o que nos dá uma ideia da dimensão e importância deste evento cultural. Felizmente, Portugal sempre teve entre os seus melhores grandes mulheres escritoras, desde Florbela Espanca a Agustina Bessa-Luís.

E foi outra mulher, a escritora Lídia Jorge, que já tem um espólio valiosíssimo de distinções obtidas no nosso país e no estrangeiro, que também recentemente foi a vencedora do Grande Prémio de Crónicas e Dispersos Literários, da Associação Portuguesa de Escritores, com o livro “Em Todos os Sentidos”. Orgulhosamente os portugueses têm de constatar que a cultura é fundamental no seu quotidiano. Relembro a alegria que sentimos há dias, ao ver subir ao palco o nosso amigo Ruy de Carvalho com 95 anos de idade e 80 de carreira. Um feito memorável que mostra ainda a todos os imbecis que nada fazem pela cultura, que esta não tem idade ou género.
Impõe-se que o evento Correntes d’Escritas continue pelos anos vindouros para que possamos sempre afirmar que ainda não mataram a cultura.

*Texto escrito com a antiga grafia

7 Mar 2022

Manuela Ribeiro e a medula do tempo

[dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap]xistem liturgias: são escritas que irrompem do gelo do quotidiano, suspendendo-o. Por vezes, detêm a locomoção do ramerrame mais trivial, refreiam o trânsito das palavras e disfarçam-se daqueles fossos de orquestra onde se imaginam melopeias ainda por compor. São instantes movidos pela intensidade, podem durar anos, mas passam-se apenas em horas. O jogo dos dias esfuma-se nos raros momentos em que essas florestas compactas se estendem na palma da mão e nos brindam. E nos surpreendem.

Na passada sexta-feira, Hélia Correia afirmava, nas Correntes d´Escritas, que o entusiasmo é um dom que nos é dado pelo deus. A frase (e os seus constituintes, um a um) deverá ser entendida como um ser vivo que se move num território de encantamento e que habitará apenas no ‘passado do passado’: a vorverganggenheit, tal como Blumenberg soletraria. Esse território, que é a ‘Grécia da Hélia’, consiste num mundo líquido que precede o lajeado do pensamento organizado, mesmo aquele que, na etimologia de Platão (no diálogo ‘Íon’), faz equivaler a palavra a “ser tomado pelo deus” (“En+theos” – com a devida assessoria do meu mano António de Castro Caeiro). De lá se resgata a água dos rios perdidos, de lá afloram novos rostos e cumplicidades, de lá se conserta até a complacência da perda.

Em vinte anos de Correntes d´Escritas, passei pelo doce labirinto apenas quatro vezes, mas três nos últimos três anos. Em 2017, foi lá que me imaginei a fechar a porta à morte do meu pai (sim, a morte tem portas: condutas que arrastam a imortalidade para aquele tipo de máscaras que se evaporam na face, achincalhando-a). O ano passado, percebi que os amigos de infância se podem engendrar de um âmago para outro. Este ano, confesso que o portento foi mais terreno, mas fez-me confundir a precisão dos teodolitos com a vaga ideia de que o mundo é um guindaste invisível que nos capta, que nos murmura e que nos captura em segredo (João, o Baptista, pregava no deserto, mas era ouvido e era essa a pujança da coisa).

Não me passa pela cabeça sacralizar a literatura e até creio que a sua força, hoje em dia, decorre do estado de nicho (meio exilado e meio desterrado) a que chegou. E concordo, há muitos muitos anos, com a verdade de que a poesia é mesmo a linha da frente. Vou ainda mais longe: estou em crer que o ‘produto livro’ é cada vez mais um lodo cheio de bacilos nefastos. A única coisa que a poesia e a literatura têm em comum com esse lodo é que encarnam num corpo em forma de livro. Por uma questão de nitidez, adoraria que a poesia e a literatura encarnassem noutra configuração e noutros formatos. E que se vendessem, não em livrarias, mas em poerias e em literarias. Mas isso só seria possível numa espécie de ‘Grécia da Hélia’. Ser contemporâneo (mesmo dos mais íntimos) é desafiar as vagas do poente num mesmo arco do tempo. É essa a inevitabilidade da nossa vida, mesmo para os adoradores da pureza que se imaginam no ar, lançados por catapultas.

Após uma semana de Correntes d´Escritas, voltei a perceber que o entusiasmo é realmente um dom. Eu explico: sabemos que a ciência dos dias tem atrelados de todo o tipo e que a maior parte das carruagens se perde pelo caminho. Esta operação, que é a operação de existir, torna-se ainda mais vincada nestas calendas digitais em que o presente insiste em ser uma ‘black box’ que apaga todos os vestígios à sua volta. Pouco sobra. De qualquer modo, é nestas paisagens de quase desolação que, inesperadamente, se erguem as liturgias. São arquipélagos sem oceano à volta: traços salientes no meio da brancura que permitem decifrar tudo o que afinal é branco. Eu explico melhor ainda: descobri um poeta nas Correntes, chama-se José Rui Teixeira e acaba de ser publicado na colecção ‘Elogio da Sombra’, dirigida pelo Valter Hugo Mãe (‘Autópsia’ – poesia reunida). Trata-se de uma poesia que já se domiciliava no ‘passado do passado’, naquele mundo de liquidez que felizmente subsiste para nos tramar as modas e as vogas… e eu é que lhe cheguei já tarde (ora leia-se e releia-se: “O inferno é uma colecção de borboletas,/ onde domestico cruelmente a beleza/ e exercito pacientemente o escrúpulo”).

Descobrir um poeta é também uma metáfora de muitas outras circum-navegações, é claro. Poderia falar, durante horas, de muitos outros que me tocaram especialmente, mas permitam-me a ênfase para o João Rios (‘Reter o amor do gancho do talho’) e para o José Anjos (‘Uma fotografia apontada à cabeça’), ambos editados pela Abysmo. No restante do vasto descobrimento, testemunhei muitas outras vozes e tentações, ao longo da longa semana em que contracenei com as (vigésimas) Correntes d´Escritas. Uma polifonia de fundo para sacudir os dias: foi um prazer ter trabalhado com dezenas de professores bibliotecários ao lado de um equipa de luxo (Ana Margarida de Carvaho, Filipa Melo, Henrique Correia, Isabel Bezelga, Margarida Fonseca Santos e Paulo Faria); foi um prazer ter levado as Sessões Ícone da EC.ON – Escola de Escritas às Correntes d´Escritas e foi ainda um grande prazer ter apresentado um livro (‘Primeira Linha de Fogo’ de Ana Margarida Carvalho) e ter visto um outro meu (‘Ficcionalidades de Prata’) – ambos com a chancela da Nova Mymosa – ser tão bem apresentado por essa alma antiga que é a Marta Bernardes.

As atmosferas perduram bem mais do que os factos, diz-se. Mas não serão elas que conservam a medula do tempo. Quem o faz é, provavelmente, o tal dom de que nos possuímos através do deus que se desoculta, quando menos esperamos. Mas há uma pessoa, por trás dos cenários mais ínvios, que, há anos e anos, mantém um jeito de ligação directa com esta ventura. O seu nome é Manuela Ribeiro.

28 Fev 2019

Aparelhado para gostar de passarinhos

Metro, Lisboa, 21 Fevereiro

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]ue imagens nos podem ainda chocar se a cada segundo o horror sobe e desce nos ecrãs que se fizeram pele do mundo? Da Síria chega-nos a conta-gotas cada um dos sinais da catástrofe, mas a nossa indiferença responde como tão bem sabe: quieta. Habituámo-nos à guerra, na lonjura ou no íntimo. Há 60 anos, lembro-me como ontem, em manifestada marcha contra o armamento nuclear, nascia um símbolo que me está algures tatuado.

O designer e objector de consciência à II Guerra Mundial, insisto, na segunda das grandes, Gerald Holtom (1914-1985) achou que a Campaign for Nuclear Disarmament (CND) precisava de um sinal gráfico que dissesse não. Começou por pensar na omnipresente cruz, mas afastou a ideia por cheirar a cruzadas. O desânimo que experimentava trouxe-lhe Goya e o desespero do camponês enfrentando o pelotão de fuzilamento, braços no ar e, com eles, o grito suspenso, juntou-lhe a sinalética das bandeiras dos navios para dizer o N e D, para Nuclear Disarmament, logo a antena ganhou raízes no globo, e assim concebeu forma universal de dizer paz. Os hippies tomaram-no de empréstimo para assinalar o coração e não mais deixou de vociferar esperança. Pode um símbolo vencer a realidade?

Correntes d’Escritas, Vermar, Póvoa, 21 Fevereiro

Entrada a pés juntos no festival deste ano, com tripla função logo à chegada: entalada entre a gravação do Obra Aberta, com a Manuela Ribeiro trazendo infâncias e o Afonso Cruz nomadismos, e a esforçada tentativa de conversa, sob o mote «as palavras são música de ninguém», com o Valério [Romão] e Valter Lobo, intérprete à guitarra de virtual Mediterrâneo, deu-se o lançamento do muito esperado fecho da trilogia Paternidades Falhadas, do Valério, de par com Rua Antes do Céu, do José Luiz [Tavares]. Arménio Vieira concentrou o seu olhar no percurso do conterrâneo, pouco entrando em obra, que resulta, afinal e ironicamente, da leitura autor sobre o seu próprio amadurecimento. Eric Nepomuceno, do seu lado, compôs calorosa canção em torno do romance. No meio da confusão habitual de bar subindo a noite, rasgaram-se relâmpagos que revelaram carne e ossatura de duas vozes únicas, irmanadas na invencionática.

Correntes, Garrett, Póvoa, 22 Fevereiro

Nunca havia atravessado a fronteira de vidro, subido as escadinhas do palco, escuro nas costas, a luz de frente, também ela quase fronteira, a tombar negro sobre os rostos em face. Desta vez, o reóstato modulou a visão da sala e a temperatura do orador, tornando aquela mais visível, e outra mais quente. A organização conhecia-me e reescreveu o nome no verso da minha legenda, assim diminuindo o risco de me esquecer de quem era, no momento de falar precisamente do que nada sei: «Escrevo para dizer aquilo que não sei». Ao meu lado, as ondas dos parceiros fizeram-se e desfizeram-se em curiosos murmúrios de m, de mar, de moçambique, de memória, de música. Geometricamente, agora que a minha escrita vai sendo sobretudo texto de outrem, falei das linhas onde me lêem, do campónio labor semanal desta hesitante escritura, caminho de mãos na terra, fiel companhia nas eróticas solidões, modos de reescrever sentidos em terreno onde talvez não se dêem. (Veja-se a foto assinada pelo arquivo da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, embora me tivesse parecido ver fotógrafo.) Ainda me despi, para a câmara do mano Luís [Gouveia Monteiro], em pequeno filme no qual vou retirando de um saco a colheita de minutos breves incarnando à minha volta o respigador cansado de simbólicos desperdícios.

Queria que servisse de pano de fundo a exercício de improvisação sobre o suposto tema, tornado prática habitual no miradouro de autores em que me encontro, embora nublado nos últimos meses. Falhou-me a coragem ou o contexto para o usar. Adiante veremos. Limitei-me a desferir o ar com golpes de verbo que só disseram de faces da letra e da vida desarrumada. Nada que não estivesse de maneira melhor nesta pedra que é O apanhador de desperdícios, de Manoel de Barros, lido com sotaque de quem se deixa afundar no céu pelo peso da voz. «Uso a palavra para compor meus silêncios./ Não gosto das palavras/ fatigadas de informar./ Dou mais respeito/ às que vivem de barriga no chão/ tipo água pedra sapo./ Entendo bem o sotaque das águas/ Dou respeito às coisas desimportantes/ e aos seres desimportantes./ Prezo insetos mais que aviões./ Prezo a velocidade/ das tartarugas mais que a dos mísseis./ Tenho em mim um atraso de nascença./ Eu fui aparelhado/ para gostar de passarinhos./ Tenho abundância de ser feliz por isso./ Meu quintal é maior do que o mundo./ Sou um apanhador de desperdícios:/ Amo os restos/ como as boas moscas./ Queria que a minha voz tivesse um formato/ de canto./ Porque eu não sou da informática:/ eu sou da invencionática./ Só uso a palavra para compor meus silêncios.»

Correntes, Garrett, Póvoa, 23 Fevereiro

Podem os dias ser raio deste calibre, deslize que nos livra das amarras da realidade feita cais de sal. Ver a Isabela Figueiredo tornar revolução visceral, portanto ao pé de casa, o alegre resgate por cactos de floreira pública e abandonada. Tocar o encantamento na voz de Mû Mbana desfiando as canções da sua Guiné natal, acerca do peso da beleza ou da língua estrangeira da infância, sem conseguir evitar cantá-las. Ouvir o Valério contar de encontro «verdadeiro» com personagem sua, alguém que pressentia na esquizofrenia um acto de Deus e que capturou com a pele o insuportável escaravelho da existência. Saborear o Jorge de Sousa Braga a falar de versos e estranhezas das bocas do corpo. E por junto sentir perfumes. O cacto exala?

Coquelicot, Póvoa, 23 Fevereiro

Que enormes! são os braços da Carla [Craveiro], pois se neles cabem as múltiplas e abysmadas vozes da Inês [Fonseca Santos], do Carlos [Quiroga], do Renato [Filipe Cardoso], e do João [Rios], e do Luís [Carmelo], ou do José Luiz ou do Valério, estrumando poemas seus, ou mais que seus, em meio de delicatessen, como sendo-o, que são, autores e poemas. E que bem se aconchegam os livros naquela ameaçadora! floresta de sentidos e sabores! Não esquecerei, por escrevê-lo, nem os mimos nem o saboroso que resultou de assistir à surpresa do Arménio [Vieira] vendo a Filipa [Leal] atirar-lhe de cor um dos seus, que o próprio temeu ser dos piores: «Menos que a chama de um fósforo/ é quanto dura o teu orgasmo/ À tua colecção de vidas breves/ acrescenta o amor/e a borboleta». O contexto em perfume afirmava-o: impossível ser dos piores.

28 Fev 2018

Colombiano Juan Gabriel Vásquez vence prémio principal do Correntes D’Escritas

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] escritor colombiano Juan Gabriel Vásquez foi o vencedor do prémio literário Casino da Póvoa 2018, o principal galardão atribuído no Correntes d’Escritas, da Póvoa de Varzim, anunciou a organização.

O júri deste encontro de escritores de expressão ibérica, que se realiza na Póvoa de Varzim até sábado, distinguiu o autor sul-americano, de 44 anos, pelo seu livro “A forma das ruínas”, editado pela Alfaguara.

O romance de Juan Gabriel Vásquez mereceu três dos cinco votos do painel de jurados, composto por Fernando Pinto de Amaral, Javier Rioyo, José Mário Silva, Maria de Lurdes Sampaio e Teresa Martins Marques.

Na sua declaração de voto, o júri destacou a obra pelo “extraordinário fôlego narrativo e pelo notável retrato da história da Colômbia do século XX, fruto de uma vasta investigação pessoal e literária”.

“A partir de dois homicídios políticos que permaneceram como feridas na memória coletiva, Juan Gabriel Vásquez criou uma ambiciosa e muito bem organizada arquitectura romanesca”, pode ler-se na declaração de voto.

O escritor colombiano, que esteve na Póvoa de Varzim no ano passado, vai receber um prémio de 20 mil euros por esta distinção no Correntes D’Escritas.

Juan Gabriel Vásquez já tinha sido, em 2016, distinguido com o Prémio Literário Casa América Latina, tendo em 2014 vencido o Prémio da Real Academia Espanhola, com o livro “Las reputaciones”.

O escritor colombiano era um dos 14 finalistas ao prémio, a par de Jaime Rocha (“Escola de Náufragos”), que amealhou dois votos do jurí, José Rentes de Carvalho (“O Meças”), Ana Teresa Pereira (“Karen”), Isabela de Figueiredo (“A Gorda”), Bruno Vieira Amaral (“Hoje Estarás Comigo no Paraíso”), Ana Margarida de Carvalho (“Não se Pode Morar nos Olhos de Um Gato”), João Ricardo Pedro (“Um Postal de Detroit”), Djaimilia Pereira de Almeida (“Esse Cabelo”), João Pedro Porto (“A Brecha”), João Paulo Borges Coelho (“Água”), o brasileiro Julián Fuks (“A Resistência”), Enrique Vila-Matas (“Marienbad Eléctrico”) e Juan Marsé (“Essa Puta tão Distinta”).

Juan Gabriel Vásquez é esperado este sábado na Póvoa de Varzim para receber o prémio, durante a sessão de encerramento do Correntes D’Escritas, o encontro de escritores de expressão ibérica, que este ano reúne 80 autores de 14 países na Póvoa de Varzim.

O colombiano sucede a Armando Silva Carvalho, que, em 2017, venceu o prémio literário Casino da Póvoa com a obra “A Sombra do Mar”.

Nesta 19.ª edição do Correntes D’Escritas, que hoje arrancou na Póvoa de Varzim, e irá prolongar-se até sábado, com várias atividades, foram ainda atribuídos outros prémios: Balaton, de Ana Beatriz Correia de Sousa, venceu o Prémio Literário Correntes D’Escritas Papelaria Locus, enquanto o primeiro lugar do Prémio Conto Infantil Ilustrado Porto Editora, vocacionada para as escolas, foi para “O Advento na Achada”, do 4.º ano da Escola EBII Clemente Tavares, de Gaula, em Santa Cruz, na Madeira.

22 Fev 2018

Subidas

Horta Seca, 22 Fevereiro

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]inda Helder, claro, que há muito para digerir no seu mais recente, Camões e outros contemporâneos (Presença). Ninguém como ele, justamente, fez de Camões meu contemporâneo. Puxou dos altares mais ou menos laicos, sacudiu-lhe o pó por desfastio, e, na vez de lhe puxar lustro, leu-o sem o retirar do seu tempo. Percebeu, então, que o poeta havia sido pioneiro do entendimento do corpo como instrumento de conhecimento da natureza das coisas, e com isso se arrogava o direito à felicidade na terra, para já, sem se desfazer da possibilidade de a repetir nos céus. Além dessa humanidade toda feita de malandragem, muito mais descobriu embarcando com ele, por exemplo que «O seu poema havia sido afinal uma viagem através de dúvidas em relação ao passado, de desespero em relação ao presente e de incerteza em relação ao futuro. Nós somos esse futuro.» Vai ao osso, este «Luso, filho de Baco», na interpretação sempre deleitosa, mas também na conclusão desgostosa. «Fazendo jus aos avisos de Sá de Miranda e de Camões, as riquezas das colónias foram servindo, ao longo dos séculos, para sustentar a oligarquia portuguesa, e por isso pouco serviram para o desenvolvimento económico e social da nação portuguesa.»

Horta Seca, 22 Fevereiro

Auto-retratos, de Paulo José Miranda, foi incluído na pequena lista dos candidatos ao grande prémio das Correntes d’Escritas, que distingue o melhor livro de poesia dos últimos dois anos. Os prémios literários tornaram-se, por isso, tema da minha agenda. E temo que assim continue, em chegando ao festival. Não acredito na fórmula, que pouco diz da real qualidade, que depende de tantas variáveis quanto combinações no euromilhões, que gera mais intrigas que telenovela mexicana, que excita bastidores e desperta os podres poderes. Está por fazer estudo aprofundado que, excluído o não despiciendo cifrão, me diga em que serviu ao labor literário do autor laureado. Reforço de auto-estima? Meia hora de visibilidade? Por dever de função, pode ganhar-se mais quatro ou cinco leitores. Talvez. Na arquitectura das convenções percebe-se que pode vir a ser ora porta, ora varanda, aqui parede falsa e ali escada. Fica por saber que construir: albergue espanhol ou casa de repouso? Coube em sorte Armando Silva Carvalho, parecendo confirmar por aqui a tendência de premiar mais a obra completa, que o volume solto. Antes assim. Podia ser pior, muito pior.

Correntes d’Escritas, Póvoa do Varzim, 23 Fevereiro

Sísifo fecha a trilogia e empresta-lhe o nome. Depois da paixão, em Gnaisse, e da perda, em Por Mão Própria, somos chamados à iniciação com Petrarca a marcar as respirações e tendo Camus por companheiro. Nada mais, nada menos. Luís Carmelo atinge aqui um cume. Logo no horizonte se apresentará montanha maior, mas este desafio foi domado. Para além do caleidoscópio da narrativa – um achado, este modo de organizar o que se vai contando desfazendo as coincidências, iluminando perspectivas ao infinito – as personagens possuem cativante densidade e as rochas em que sustentamos os passos da subida são de prosa poética brilhando com grande intensidade.

Esta semana, que acompanhei as suas ansiedades em variados momentos, percebi o que sabia. A vista que conta alcança mais escalando o monte Carmelo, e basta relembrar o seu Genealogias da Cultura, para tornar cristalino o que digo. O Pedro Teixeira Neves, ao passar-lhe a palavra, aqui na mesa, disse que ainda não tinha a atenção que merecia. Alguma ganhou ao responder ao mote «se as torturarmos as palavras acabarão por confessar» com uma metáfora que sobrevoou o Cine-Garrett cheio: um dos mais belos objectos inventados pelo homem é o boomerang, que constrói espaço com velocidade e movimentos sobre si a partir de uma dinâmica entre dois pontos. Para o mano Luís, que explicou com a sua característica dança de braços (ver foto), os textos que foram desenhando nos ares a tradição de que somos feitos, resultam da dinâmica entre a revelação e a confissão. Tocar o alto e experimentar o íntimo, que mais interessa?

Atlântico, 24 Fevereiro

Para a Isabel, poema breve por acabar. «Palma sobre palma/estendi-te a mão/para que não estivéssemos sós/ao descobrir na sabedoria/do crepúsculo uma quinta/estação pós-primavera//a das reparações»

Correntes d’Escritas, Póvoa do Varzim, 24 Fevereiro

Com tanta palavra atirada ao ar, o chão dos festivais literários muda com os dias consoante o lento desfiar dos oradores. Pode ser tapete, conforto baço que abafa o som dos passos, onde só o pó contém memória de vida. Pode ser feito de berlindes, obrigando-nos a esforços compassados para não cair em tentação. Algumas palavras, de tão leves, desfazem-se no ar com o som das palmas. Outras são vistas sobrevoando cabeças em busca de memórias que as conservem. Também as há pesadas, das que, ao cair e se não nos desviarmos, nos pisam com estrondo os calos, nos marcam com nódoas e arranhões. Vai sendo raro, que a cultura do presente pede ar condicionado, maneiras de salão, o refresco mentolado do chiste. Brita ou areia, acontece por vezes. De entre todos, abomino o chão movediço, pegajoso da babugem do diz que disse, da quotidiana telenovela que mastiga cada vocábulo em asco morno.

De súbito, o relâmpago. Alguém diz que a literatura se faz, não para reproduzir o mundo, mas para o acrescentar. Em luta. «Literatura – a poesia – é uma arte que se move por uma rebelião contra as palavras, num perpétuo braço de ferro contra elas. As palavras, amiúde, não seduzem o poeta: atacam-no, ludibriam-no. E ao escritor cabe esta incomodidade, esta raiva, por ter de escrever com as palavras, gastas, dos outros, não para dizer o mundo – para isso basta-nos uma mão cheia de enredos de dicionário –, mas para o construir pedra a pedra». Rita Taborda Duarte deu-me chão. E se ando precisado dele…

1 Mar 2017

Literatura | Carlos Morais José convidado para o Correntes d’Escritas

É inédito: em 2017, o mais importante festival literário de Portugal vai contar com um autor do território. “O Arquivo das Confissões – Bernardo Vasques e a Inveja” é o bilhete que leva Carlos Morais José até à Póvoa do Varzim. O escritor quer que, com ele, sigam todos os outros que não são devidamente reconhecidos

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]oi com surpresa que Carlos Morais José recebeu o convite: o autor vai participar na edição de 2017 do festival literário Correntes d’Escritas, um evento que se realiza na Póvoa do Varzim e que conta, ano após ano, com os principais nomes da literatura em português.

“Estou surpreendido porque não é habitual Macau ser considerado como ponto literário da lusofonia. Por outro lado, sinto-me muito honrado com o convite, na medida em que este é o mais importante festival literário de Portugal, com extensões ao Brasil e aos países de língua castelhana”, explica. Pela importância do evento, Morais José espera poder “representar bem a RAEM, mostrando que por aqui existe um forte movimento cultural lusófono, cujas raízes mergulham numa relação secular entre duas grandes civilizações: a chinesa e a portuguesa”.

Porque vive em Macau há 26 anos, o autor fala numa “escrita de exílio”, que é agora reconhecida, o que o deixa “muito satisfeito”. “Mais por Macau do que por mim”, diz. “Esta cidade é, em si mesma e na sua mitologia literária, praticamente inesgotável e há ainda muito por descobrir e explorar.”

Quanto à importância que poderá ter a participação no festival da Póvoa do Varzim, Carlos Morais José confessa-se “algo eufórico” com o facto de, pela primeira vez, um autor de Macau ser convidado a participar.

“Espero levar comigo a literatura lusófona de Macau e farei um esforço no sentido do seu reconhecimento. Escritores como Alberto Estima de Oliveira, Henrique de Senna Fernandes, Luís Gonzaga Gomes, Deolinda da Conceição, Fernando Sales Lopes, Manuel Afonso Costa, Fernanda Dias, António Conceição Júnior, Yao Feng, entre outros, sem nunca esquecer Camilo Pessanha, precisam de ser referenciados e divulgados no espaço lusófono, impondo a RAEM como um lugar extremo da lusofonia onde vivificam de forma singular as letras em português”, explica.

O escritor não deixa de salientar que “é espantoso que em Macau subsista uma tradição muito própria de escrita que, fugindo ao mero exotismo, tenha um lugar na universalidade da nossa língua”. Por isso, pretende que a participação no Correntes d’Escritas consiga contribuir para a divulgação do território “como um espaço longínquo onde o português acaba e o nada começa”.

“Se Pequim pretende fazer desta terra uma ponte para a lusofonia, será sobretudo através da cultura que a nossa comunidade poderá desempenhar um papel útil a esta região”, defende. “A minha escrita, apesar de compulsiva e individual, gostaria de ser uma chave para abrir portas até hoje fechadas, e espero que o foco sobre o meu trabalho seja suficiente para iluminar as obras de outros autores locais que escrevem em português e mesmo a de alguns autores chineses locais, cuja obra se encontra imbuída de características únicas, no contexto da Grande China”. É que, entende, “Macau precisa de ser conhecido no mundo lusófono, além dos casinos e do exotismo bacoco”.

O encanto da ficção

O convite para a participação no Correntes d’Escritas surge depois de ter sido lançado em Lisboa o livro “O Arquivo das Confissões – Bernardo Vasques e a Inveja”, uma obra que foi apresentada esta semana em Macau. É um texto que foge ao que têm sido as incursões literárias de Carlos Morais José.

“Estou surpreendido pela aceitação que o livro está a ter, mas o facto de ser uma novela ajuda muito, pelos vistos, à sua divulgação e aceitação – muito mais do que a poesia ou outras formas literárias, geralmente consideradas mais elitistas e destinadas a um público muito específico”, observa.

“A minha obra é diversificada mas, até agora, não incluía este tipo de ficção. Por isso, de certo modo, não me espanta que a prosa ficcionada tenha mais aceitação do que o resto. As pessoas adoram ouvir histórias porque as fazem sair do seu próprio mundo e entrar num outro reino.” Mas não é só isto: “Parece-me que a minha novela também interroga o leitor de uma forma extrema, na medida em que apresenta um personagem cheio de defeitos e malícias, ou seja, como todos nós. Só uma estrutura moral muito forte nos afasta do Mal e, mesmo assim, crescem dúvidas. Assumem a forma de ervas daninhas na nossa mente mas, ao mesmo tempo e pelo contrário, são essas mesmas dúvidas que instituem a riqueza dos indivíduos e a sua capacidade questionadora e criativa”.

Carlos Morais José é licenciado em Antropologia e vive em Macau desde 1990. É director do Hoje Macau e proprietário da editora Livros do Meio. A 18.a edição do Correntes d’Escritas acontece entre 21 e 25 de Fevereiro de 2017.

15 Dez 2016