Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasX- A Chiru Não cessam de nos espantar os mistérios e maravilhas da montanha Qingqiu. Encrustada no seu seio rochoso, existe uma tímida nascente de onde brota o rio Yingshui. Ao deslizar encosta sul abaixo e por a ele se unirem, em coloridos amplexos, numerosos riachos e ribeiras, o que era um mero fio transmuta-se aos poucos num nobre curso de água, chegando a atingir proporções consideráveis, antes de desaguar no lago Jiyi. Pelo caminho, ocasionalmente, o Yingshui roça as suas águas em rochas do mais puro jade, abundante naquele lado da montanha. Facto curioso: ainda antes do rio desaguar no lago Jiyi, alguém construiu uma barreira de toros aguçados, em madeira preciosa, à volta de uma dessas formações de jade, eriçada no meio das águas, isolando-a do mundo. A proximidade à preciosa pedra parece só poder ser alcançada por via subaquática, se na paliçada existir uma porta ou outra qualquer passagem. A origem e a identidade dos construtores desta paliçada também se desfizeram no bolor do tempo. Alguns referem tribos nómadas, adoradores de pedras e do fogo, senhores da caça e dos metais. Outros preferem a crença em civilizações extraterrestres, capazes de deixar a sua marca como sinal da intenção de regressar. Mas a teoria talvez mais fantasiosa atribui a um animal, vulgar habitante do rio Yingshui, a edificação daquele inusitado círculo amadeirado, que impossibilita o acesso ao mais belo penedo de jade que por ali desponta. De facto, quer ao longo do rio, quer em números bem mais abundantes no próprio lago, habita uma espécie de salamandra vermelha, a que dão o nome de chiru. Este animal respira debaixo de água, embora, surpreendentemente, seja capaz de se deslocar com desenvoltura, por curtos períodos de tempo, em terra firme, e mesmo adoptar uma postura vertical. Outro dos aspectos mais impressionantes deste bicho, que dificilmente ousaríamos classificar como um peixe, é a sua face, pois nela se compõe uma real expressão humana. Por isso, há quem diga que não devemos sustentar o olhar de uma salamandra vermelha, porque o facto de um animal nos enfrentar com uma expressão que reconhecemos como humana induz-nos uma emoção disruptiva e provoca-nos uma singular disposição interna. Por mais que a teoria seja atraente na sua inverosimilhança, ninguém pode garantir terem sido as salamandras vermelhas as construtoras da paliçada. E que são elas, ainda hoje, a dispor do seu usufruto exclusivo. Ou sequer se no seu instinto se inscreve esta capacidade de construção. Contudo, a teoria viu-se reforçada pela contribuição de um estudante da Boémia que, visitando a China, não apenas a defendeu ardentemente, como elaborou gráficos e projecções matemáticas diversas para provar a capacidade criativa dos membros posteriores das chiru para a execução daquela obra. Contudo, nada de realmente científico chegou a ser concluído porque há sempre um elo que nos escapa quando pretendemos considerar racionalmente as salamandras, como se elas se constituíssem num objecto indizível, situado além da linguagem, impossível de traduzir em logos. Elas são tímidas, discretas e têm, definitivamente, um olhar inteligente. Diria mesmo: mais inteligente que alguns seres humanos. Mas não se pode garantir que por detrás desse olhar se esconde um coração capaz de ordenar logicamente os pensamentos ou distinguir o possível do impossível, sem deixar de sonhar com o segundo. Entretanto, apesar de certos curandeiros entenderem que a sua carne cura a sarna, as chiru lá vão sobrevivendo e chapinhando nas águas mornas do lago Jiyi. Não é raro, nas margens do Yingshui pelo crepúsculo, ouvirmos um som parecido com o que produz o pato-mandarim. São as salamandras vermelhas que, em surdina, conversam entre si, antes de desaparecerem nas águas escuras, talvez para abrirem a porta submersa da paliçada e passarem a noite protegidas, enroladas umas nas outras, em torno da beleza interdita do penedo de jade.