Carlos Gaspar: “Tínhamos garantias de que Pequim estava preparado para cumprir ‘Um País, Dois Sistemas’”

[dropcap]O[/dropcap] actual presidente do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, e ex-assessor de Jorge Sampaio para a questão de Macau, Carlos Gaspar, recordou ao HM que, apesar de Portugal ter “aceite livremente” o acordo que deu origem à transferência de poderes de administração do território de Macau para a China, “foi difícil” para o país “ter perdido” o território.

“Há uma história que contam para explicar porque é que a Rainha de Inglaterra não foi a Hong Kong. É uma frase prosaica, de um oficial da armada britânica, que diz que o seu soberano não gosta de dar coisas a ninguém. E nós também não”, acrescentou Carlos Gaspar.

Carlos Gaspar assegurou ainda que, não fosse a abertura económica da China, não haveria a transferência de administração de Macau e Hong Kong. “A transferência de poderes em Macau e Hong Kong foi possível porque houve um período de liberalização do regime comunista na República Popular da China com Deng Xiaoping, e é nesse contexto que essa transferência de poderes é admissível.”

“Quando assinámos os acordos que definem o princípio ‘Um País, Dois Sistemas’, tínhamos garantias suficientes de que o regime político em Pequim estava preparado para cumprir esse princípio, e continuamos a acreditar que seja assim”, frisou Carlos Gaspar.

Macau no conflito sino-soviético

No seu mais recente livro, “O Regresso da Anarquia – Os Estados Unidos, a China, a Rússia e a ordem internacional”, Carlos Gaspar recorda como Macau era uma questão “relevante” no conflito sino-soviético.

“Os soviéticos acusavam os chineses de permitirem, ao contrário dos indianos, que tinham expulsado os portugueses de Goa pela força, que a China tolerava os colonialistas portugueses em Macau e era uma questão sensível.”

No entanto, aquando do 25 de Abril de 1974, a que se seguiu um período de descolonização em África, “nunca houve forças políticas portuguesas que defendessem a devolução de Macau à China”.

“O Partido Comunista Português (PCP) poderia ter levantado essa questão para embaraçar a China, pois estávamos em pleno conflito sino-soviético, mas o PCP não o fez de forma aberta. Não temos nenhuma indicação de que pessoas concertas defenderam essa posição em Macau ou que tivessem instruções políticas para o fazer. Mas talvez um dia venhamos a ter”, frisou Carlos Gaspar.

20 Dez 2019

Carlos Gaspar: "Tínhamos garantias de que Pequim estava preparado para cumprir ‘Um País, Dois Sistemas’”

[dropcap]O[/dropcap] actual presidente do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, e ex-assessor de Jorge Sampaio para a questão de Macau, Carlos Gaspar, recordou ao HM que, apesar de Portugal ter “aceite livremente” o acordo que deu origem à transferência de poderes de administração do território de Macau para a China, “foi difícil” para o país “ter perdido” o território.
“Há uma história que contam para explicar porque é que a Rainha de Inglaterra não foi a Hong Kong. É uma frase prosaica, de um oficial da armada britânica, que diz que o seu soberano não gosta de dar coisas a ninguém. E nós também não”, acrescentou Carlos Gaspar.
Carlos Gaspar assegurou ainda que, não fosse a abertura económica da China, não haveria a transferência de administração de Macau e Hong Kong. “A transferência de poderes em Macau e Hong Kong foi possível porque houve um período de liberalização do regime comunista na República Popular da China com Deng Xiaoping, e é nesse contexto que essa transferência de poderes é admissível.”
“Quando assinámos os acordos que definem o princípio ‘Um País, Dois Sistemas’, tínhamos garantias suficientes de que o regime político em Pequim estava preparado para cumprir esse princípio, e continuamos a acreditar que seja assim”, frisou Carlos Gaspar.

Macau no conflito sino-soviético

No seu mais recente livro, “O Regresso da Anarquia – Os Estados Unidos, a China, a Rússia e a ordem internacional”, Carlos Gaspar recorda como Macau era uma questão “relevante” no conflito sino-soviético.
“Os soviéticos acusavam os chineses de permitirem, ao contrário dos indianos, que tinham expulsado os portugueses de Goa pela força, que a China tolerava os colonialistas portugueses em Macau e era uma questão sensível.”
No entanto, aquando do 25 de Abril de 1974, a que se seguiu um período de descolonização em África, “nunca houve forças políticas portuguesas que defendessem a devolução de Macau à China”.
“O Partido Comunista Português (PCP) poderia ter levantado essa questão para embaraçar a China, pois estávamos em pleno conflito sino-soviético, mas o PCP não o fez de forma aberta. Não temos nenhuma indicação de que pessoas concertas defenderam essa posição em Macau ou que tivessem instruções políticas para o fazer. Mas talvez um dia venhamos a ter”, frisou Carlos Gaspar.

20 Dez 2019

Carlos Gaspar, autor do livro “O Regresso da Anarquia”: “China teve uma relativa contenção em Hong Kong”

Outrora única potência mundial indiscutível, os EUA deixaram de lado a manutenção de uma ordem internacional liberal e priorizam hoje a competição entre potências, olhando sobretudo para a relação entre a China e a Rússia. Deste triângulo estratégico há um risco de surgirem conflitos armados em zonas como Taiwan e a Ucrânia. É o que defende Carlos Gaspar, presidente do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, que lançou esta segunda-feira o livro “O Regresso da Anarquia – os Estados Unidos, a Rússia e a China e a ordem internacional”. Sobre Hong Kong, o autor diz que houve uma “relativa contenção” por parte da China e que a opinião do povo, revelada nas eleições distritais, é soberana

 

Apresenta neste livro a ideia de um triângulo estratégico composto pela China, EUA e Rússia. E este regresso à anarquia.

[dropcap]S[/dropcap]ão duas coisas diferentes. Quando fazemos a análise da história internacional desde o fim da II Guerra Mundial constatamos que o triângulo estratégico das relações entre a China, EUA e Rússia são centrais na política internacional, antes e depois da Guerra Fria. Não são sempre centrais com a mesma intensidade, mas há um padrão de continuidade na importância dessas relações das principais potências internacionais desde 1945. O regresso da anarquia é uma questão diferente, é conjuntural, tem a ver com o triângulo, na medida em que os EUA, a China e a Rússia continuam a ser os actores principais da política internacional. Mas no período a seguir ao fim da Guerra Fria, desde 1990 ou 1991, os EUA tinham uma posição muito mais forte do que a Rússia e a China. Eram até mais fortes do que esses países em conjunto, que não eram capazes sequer de contrabalançar o poder excessivo que os EUA tiveram naqueles anos. Isso permitiu aos EUA impor o seu modelo de ordem internacional, uma ordem liberal, de globalização, quer a China ou a Rússia quisessem ou não. E conseguiram mesmo, a partir de certa altura, integrar a China e a Rússia, as duas economias, na Organização Mundial de Comércio (OMC) e de certa maneira fazê-los estar dentro desta ordem liberal internacional. Quer a China quer a Rússia beneficiaram com o facto de terem entrado na OMC. Mas a partir de uma certa altura os EUA mudaram de política, por um lado, e por outro lado o equilíbrio entre os EUA, a China e a Rússia já não é o que era há 30 anos.

O que mudou?

Hoje a China e a Rússia voltaram a ser grandes potências em competição com os EUA e é por causa dessa competição que a questão principal para a política internacional dos EUA não é manter a ordem liberal, mas conter a ascensão da China e evitar uma aliança entre a China e a Rússia. É nesse sentido que os EUA voltaram a ter como prioridade a competição entre as grandes potências e não o ordenamento internacional. Pode-se falar com propriedade de um regresso à anarquia no sentido de competição entre as principais potências, algo que passou a ser o centro da política internacional e não a construção de uma ordem liberal.

No livro fala de erros que os EUA cometeram nesse processo. Estes erros agravaram-se com a presidência de Donald Trump, que defende cada vez mais políticas proteccionistas e nacionalistas? Como é que estes erros nos trouxeram ao que vivemos hoje?

O erro mais grave dos EUA foi, a seguir ao 11 de Setembro, ter uma estratégia de expansão e de democratização do Médio Oriente e também a sua decisão unilateral de invadir o Iraque que não tinha nada a ver com o 11 de Setembro, pois também não tinha as armas de destruição maciça que era urgente neutralizar. Esse erro principal marca o abuso do poder internacional dos EUA e também dividiu a Aliança Atlântica, e a relação entre os EUA e os seus aliados. Fez com que os EUA tenham perdido legitimidade internacional como o garante da estabilidade da ordem liberal e dividiu internamente a comunidade política norte-americana. Nem os EUA nem a Aliança Atlântica recuperaram ainda dessa divisão. Desde 2008 que há uma divisão profunda e uma polarização crescente na comunidade política norte-americana que tem como consequência um retraimento dos EUA e uma menor disponibilidade para intervir internacionalmente. Isso já era verdade no caso do Presidente Barack Obama, que perante a Primavera Árabe achou que os EUA não tinham de fazer nada de especial, deixou que a guerra civil da Síria degenerasse como degenerou, num conflito grave e perturbador para a estabilidade regional, e a seguir o Presidente Donald Trump agravou esse recuo estratégico dos EUA demarcando-se das suas responsabilidades como garante da ordem liberal. Essa é uma viragem nacionalista e proteccionista que acelera o regresso da anarquia. Mas tão importante como os erros dos EUA é a força da ascensão da China e a convergência estratégica entre a Rússia e a China.

Ainda relativamente aos EUA, o livro fala de uma “guerra inevitável” com a China.

Há uma tese sobre isso, o autor não sou eu. O que eu digo é que é mais provável que existam confrontos militares delimitados e localizados entre os EUA e a China, designadamente nos mares costeiros da China, face ao que aconteceu no passado. Durante toda a Guerra Fria as forças militares dos EUA e da URSS nunca tiveram nenhum choque directo. Essa é uma mudança perigosa, porque no cenário menos mau esses conflitos militares são localizados e delimitados, mas há sempre um risco de escalada.

Esses conflitos podem ocorrer em torno da questão de Taiwan, também?

Certamente, ou a questão da Ucrânia. Foram identificadas desde 1991 como os cenários de conflito mais perigosos da política internacional. No caso da Ucrânia, por causa da grande minoria russa, que poderia pôr em confronto a Rússia, a Ucrânia e eventualmente a aliança ocidental, como em parte aconteceu depois de 2014 com a anexação da Crimeia e a guerra híbrida na Ucrânia Oriental. Outro ponto, mais importante ainda, é a questão de Taiwan. É crucial para a China. O país mantém a sua estratégia de unificação e o Presidente Xi Jinping impôs uma data: até 2049 a questão tem de estar resolvida.

Xi Jinping falou inclusivamente da adopção do modelo “Um País, Dois Sistemas” para Taiwan.

Esse modelo foi desenhado, em primeiro lugar, para Taiwan, como está no livro. E faz parte das estratégias de reformas e de liberalização de Deng Xiaoping. Esse princípio surge depois de ter sido anunciada a nova política para Taiwan, em 1980. Precede a questão de Hong Kong e de Macau e é um princípio desenhado para abrir caminho à unificação pacífica de Taiwan com a China, mantendo a sua autonomia e as suas instituições, e mesmo uma parte das forças militares. Há ali um compromisso que mais tarde ou mais cedo entra em choque com os compromissos dos EUA em garantir a capacidade de Taiwan resistir a uma ameaça de invasão.

Mas Taiwan é um território cada vez mais isolado internacionalmente.

Sim e não. É uma questão que já se começou a discutir nos EUA: vale a pena? Mas se os EUA não cumprirem as suas obrigações como aliado em relação a Taiwan, o que acontece no dia seguinte com a sua aliança com o Japão? Há uma perda de credibilidade, não é apenas a questão em si de Taiwan que pode ser desvalorizada. Embora seja mais difícil desvalorizar a questão de Taiwan a partir do momento em que Taiwan é uma democracia pluralista e um Estado de Direito e, portanto, é verdade que cada vez menos micro Estados mantêm relações diplomáticas oficiais com Taiwan, mas também é verdade que a democratização de Taiwan compensa largamente esses sinais de isolamento, não só em relação aos EUA, mas também em relação ao Japão, que assumiu responsabilidades para a defesa de Taiwan no quadro dos acordos com os EUA assinados em 1996.

De que forma é que o dossier de Taiwan tem uma ligação ao que está a acontecer em Hong Kong?

Nas sondagens há uma força crescente das forças em Taiwan que se opõem à unificação com a China, mas esse é um efeito conjuntural. Provavelmente explica a relativa contenção das autoridades chinesas perante estes seis meses de protestos. Uma relativa contenção.

Houve sinais de presença militar chinesa em Shenzen.

Pior do que isso, há a mobilização das tríades e, portanto, uma estratégia subterrânea de violência além das prisões e da identificação de numerosos manifestantes. Mas isso é tudo uma relativa contenção.

Depois das eleições distritais e da larga vitória do campo pró-democrata, qual será o caminho?

Depende em grande parte da resposta das autoridades de Pequim, que têm uma certa margem de manobra para responder aos protestos e já mostraram que possuem uma certa flexibilidade perante a conjuntura, desde logo para corrigir o erro que foi a introdução da proposta de lei da extradição. Houve um recuo importante aí, e se calhar amanhã vai haver um recuo também em relação ao Chefe do Executivo. No essencial, os Chefes do Executivo existem para serem substituídos, isso não é nada de extraordinário. Mas os resultados das eleições municipais mostram de que lado é que está a grande maioria dos cidadãos de Hong Kong.

Voltando à China. O livro diz que a sua grande prioridade é a hegemonia do país na Ásia Oriental, mantendo uma parceria estratégica com a Rússia. De que forma Macau e Hong Kong podem ajudar a esta hegemonia?

Não sei se são instrumentos decisivos. De qualquer maneira, a própria integração pacífica e diplomática de Hong Kong e Macau na China é uma demonstração de força, um reconhecimento internacional da China como uma grande potência. Qualquer que seja a evolução em Hong Kong e em Macau as duas regiões são parte integrante do Estado chinês como regiões administrativas especiais.

Neste triângulo fala dos laços que unem a Rússia e a China em várias matérias, incluindo o não cumprimento em matéria de direitos humanos. Como é que a comunidade internacional deve responder, incluindo a própria União Europeia?

As questões de direitos humanos voltaram a ser relevantes nos dois casos por erros ou excessos cometidos pelos regimes autoritários na Rússia e na China. No caso da Rússia, por exemplo, o mau hábito de mandar assassinar os seus dissidentes em países europeus, é um pouco excessivo. Isso teve um impacto forte nas relações entre a Rússia e a Grã-Bretanha, mas também na opinião pública, e mostra o lado brutal do regime de Vladimir Putin. No caso da China, as coisas são bastante mais sérias, porque a repressão das minorias muçulmanas em Xinjiang tem uma escala absolutamente impressionante, é a maior perseguição religiosa do século XXI. Pouco a pouco esse tema começou a ter relevância na opinião pública americana e europeia e isso força os Estados e a UE a tomar uma posição, mesmo que esse não seja o primeiro reflexo.

Afirma no livro que a China quer rever o traçado das suas fronteiras terrestres, aéreas e marítimas.

A China, de uma maneira muito unilateral, quer fazer o país maior, e está a rever as fronteiras da sua soberania chinesa no caso das ilhas do mar do sul da China e também na zona de demarcação com a Índia. Há uma vontade da China em projectar a sua soberania em territórios onde ela não é reconhecida e não o será facilmente. A Rússia também, com a Crimeia e a Nova Rússia. Há sinais de que há um revisionismo do espaço soberano destas duas grandes potências continentais. Essa é uma relativa novidade na política internacional. No caso da Crimeia foi a primeira anexação pela força desde 1945 e no caso do mar do sul da China há uma expansão efectiva com a construção dos aterros.

Antecipa uma relativa estabilidade internacional, mas podemos falar de uma paz podre, com a existência deste triângulo de países?

Não sabemos o que vai acontecer, mas pode haver uma tendência para estas grandes potências definirem as suas próprias esferas de influência e delimitarem os seus conflitos às periferias dessas esferas. Todas elas são potências nucleares, e duas delas são grandes potências nucleares, os EUA e a Rússia, e isso obriga as elites políticas e militares a um regime de responsabilidade correspondente à capacidade destrutiva das suas armas. Nesse sentido podemos imaginar que os conflitos, além da sua dimensão económica ou política, se possam reduzir aos espaços que fazem a separação dos espaços dominados pela China, EUA e Rússia. Mas isso tem um pressuposto que é a fragmentação da ordem internacional em três ordens competitivas entre si. Mas olhando para a história e ascensão da China, é muito claro que a China tem uma concepção política e ética da ordem mundial que é radicalmente diferente da concepção política ou ética que tem os EUA. A Rússia é um caso à parte no sentido em que é mais clássica, tem uma concepção do que é o ordenamento internacional mais próxima do registo da balança do poder, no sentido em que a Rússia deixou de ser uma potência revolucionária, não quer reconstruir a ordem internacional. Mas na minha opinião isso não é verdade em relação à China, que quer reconstruir a ordem internacional na Ásia, uma nova ordem congruente com os seus valores, história e princípios e os EUA também.

Onde fica a Coreia do Norte nessa tentativa de hegemonia?

Todos os casos são depois problemas interessantes. Os norte-coreanos começaram a desenvolver as suas capacidades nucleares no fim da Guerra Fria, quando sentiram que estavam cercados por três potencias nucleares. Os EUA retiram as suas armas no fim da Guerra Fria, mas resta a Rússia e a China. Os norte-coreanos não têm medo dos americanos, sabem que não vão atacar, mas têm medo dos chineses e dos russos.

11 Dez 2019

Carlos Gaspar, autor do livro “O Regresso da Anarquia”: "China teve uma relativa contenção em Hong Kong"

Outrora única potência mundial indiscutível, os EUA deixaram de lado a manutenção de uma ordem internacional liberal e priorizam hoje a competição entre potências, olhando sobretudo para a relação entre a China e a Rússia. Deste triângulo estratégico há um risco de surgirem conflitos armados em zonas como Taiwan e a Ucrânia. É o que defende Carlos Gaspar, presidente do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, que lançou esta segunda-feira o livro “O Regresso da Anarquia – os Estados Unidos, a Rússia e a China e a ordem internacional”. Sobre Hong Kong, o autor diz que houve uma “relativa contenção” por parte da China e que a opinião do povo, revelada nas eleições distritais, é soberana

 
Apresenta neste livro a ideia de um triângulo estratégico composto pela China, EUA e Rússia. E este regresso à anarquia.
[dropcap]S[/dropcap]ão duas coisas diferentes. Quando fazemos a análise da história internacional desde o fim da II Guerra Mundial constatamos que o triângulo estratégico das relações entre a China, EUA e Rússia são centrais na política internacional, antes e depois da Guerra Fria. Não são sempre centrais com a mesma intensidade, mas há um padrão de continuidade na importância dessas relações das principais potências internacionais desde 1945. O regresso da anarquia é uma questão diferente, é conjuntural, tem a ver com o triângulo, na medida em que os EUA, a China e a Rússia continuam a ser os actores principais da política internacional. Mas no período a seguir ao fim da Guerra Fria, desde 1990 ou 1991, os EUA tinham uma posição muito mais forte do que a Rússia e a China. Eram até mais fortes do que esses países em conjunto, que não eram capazes sequer de contrabalançar o poder excessivo que os EUA tiveram naqueles anos. Isso permitiu aos EUA impor o seu modelo de ordem internacional, uma ordem liberal, de globalização, quer a China ou a Rússia quisessem ou não. E conseguiram mesmo, a partir de certa altura, integrar a China e a Rússia, as duas economias, na Organização Mundial de Comércio (OMC) e de certa maneira fazê-los estar dentro desta ordem liberal internacional. Quer a China quer a Rússia beneficiaram com o facto de terem entrado na OMC. Mas a partir de uma certa altura os EUA mudaram de política, por um lado, e por outro lado o equilíbrio entre os EUA, a China e a Rússia já não é o que era há 30 anos.
O que mudou?
Hoje a China e a Rússia voltaram a ser grandes potências em competição com os EUA e é por causa dessa competição que a questão principal para a política internacional dos EUA não é manter a ordem liberal, mas conter a ascensão da China e evitar uma aliança entre a China e a Rússia. É nesse sentido que os EUA voltaram a ter como prioridade a competição entre as grandes potências e não o ordenamento internacional. Pode-se falar com propriedade de um regresso à anarquia no sentido de competição entre as principais potências, algo que passou a ser o centro da política internacional e não a construção de uma ordem liberal.
No livro fala de erros que os EUA cometeram nesse processo. Estes erros agravaram-se com a presidência de Donald Trump, que defende cada vez mais políticas proteccionistas e nacionalistas? Como é que estes erros nos trouxeram ao que vivemos hoje?
O erro mais grave dos EUA foi, a seguir ao 11 de Setembro, ter uma estratégia de expansão e de democratização do Médio Oriente e também a sua decisão unilateral de invadir o Iraque que não tinha nada a ver com o 11 de Setembro, pois também não tinha as armas de destruição maciça que era urgente neutralizar. Esse erro principal marca o abuso do poder internacional dos EUA e também dividiu a Aliança Atlântica, e a relação entre os EUA e os seus aliados. Fez com que os EUA tenham perdido legitimidade internacional como o garante da estabilidade da ordem liberal e dividiu internamente a comunidade política norte-americana. Nem os EUA nem a Aliança Atlântica recuperaram ainda dessa divisão. Desde 2008 que há uma divisão profunda e uma polarização crescente na comunidade política norte-americana que tem como consequência um retraimento dos EUA e uma menor disponibilidade para intervir internacionalmente. Isso já era verdade no caso do Presidente Barack Obama, que perante a Primavera Árabe achou que os EUA não tinham de fazer nada de especial, deixou que a guerra civil da Síria degenerasse como degenerou, num conflito grave e perturbador para a estabilidade regional, e a seguir o Presidente Donald Trump agravou esse recuo estratégico dos EUA demarcando-se das suas responsabilidades como garante da ordem liberal. Essa é uma viragem nacionalista e proteccionista que acelera o regresso da anarquia. Mas tão importante como os erros dos EUA é a força da ascensão da China e a convergência estratégica entre a Rússia e a China.
Ainda relativamente aos EUA, o livro fala de uma “guerra inevitável” com a China.
Há uma tese sobre isso, o autor não sou eu. O que eu digo é que é mais provável que existam confrontos militares delimitados e localizados entre os EUA e a China, designadamente nos mares costeiros da China, face ao que aconteceu no passado. Durante toda a Guerra Fria as forças militares dos EUA e da URSS nunca tiveram nenhum choque directo. Essa é uma mudança perigosa, porque no cenário menos mau esses conflitos militares são localizados e delimitados, mas há sempre um risco de escalada.
Esses conflitos podem ocorrer em torno da questão de Taiwan, também?
Certamente, ou a questão da Ucrânia. Foram identificadas desde 1991 como os cenários de conflito mais perigosos da política internacional. No caso da Ucrânia, por causa da grande minoria russa, que poderia pôr em confronto a Rússia, a Ucrânia e eventualmente a aliança ocidental, como em parte aconteceu depois de 2014 com a anexação da Crimeia e a guerra híbrida na Ucrânia Oriental. Outro ponto, mais importante ainda, é a questão de Taiwan. É crucial para a China. O país mantém a sua estratégia de unificação e o Presidente Xi Jinping impôs uma data: até 2049 a questão tem de estar resolvida.
Xi Jinping falou inclusivamente da adopção do modelo “Um País, Dois Sistemas” para Taiwan.
Esse modelo foi desenhado, em primeiro lugar, para Taiwan, como está no livro. E faz parte das estratégias de reformas e de liberalização de Deng Xiaoping. Esse princípio surge depois de ter sido anunciada a nova política para Taiwan, em 1980. Precede a questão de Hong Kong e de Macau e é um princípio desenhado para abrir caminho à unificação pacífica de Taiwan com a China, mantendo a sua autonomia e as suas instituições, e mesmo uma parte das forças militares. Há ali um compromisso que mais tarde ou mais cedo entra em choque com os compromissos dos EUA em garantir a capacidade de Taiwan resistir a uma ameaça de invasão.
Mas Taiwan é um território cada vez mais isolado internacionalmente.
Sim e não. É uma questão que já se começou a discutir nos EUA: vale a pena? Mas se os EUA não cumprirem as suas obrigações como aliado em relação a Taiwan, o que acontece no dia seguinte com a sua aliança com o Japão? Há uma perda de credibilidade, não é apenas a questão em si de Taiwan que pode ser desvalorizada. Embora seja mais difícil desvalorizar a questão de Taiwan a partir do momento em que Taiwan é uma democracia pluralista e um Estado de Direito e, portanto, é verdade que cada vez menos micro Estados mantêm relações diplomáticas oficiais com Taiwan, mas também é verdade que a democratização de Taiwan compensa largamente esses sinais de isolamento, não só em relação aos EUA, mas também em relação ao Japão, que assumiu responsabilidades para a defesa de Taiwan no quadro dos acordos com os EUA assinados em 1996.
De que forma é que o dossier de Taiwan tem uma ligação ao que está a acontecer em Hong Kong?
Nas sondagens há uma força crescente das forças em Taiwan que se opõem à unificação com a China, mas esse é um efeito conjuntural. Provavelmente explica a relativa contenção das autoridades chinesas perante estes seis meses de protestos. Uma relativa contenção.
Houve sinais de presença militar chinesa em Shenzen.
Pior do que isso, há a mobilização das tríades e, portanto, uma estratégia subterrânea de violência além das prisões e da identificação de numerosos manifestantes. Mas isso é tudo uma relativa contenção.
Depois das eleições distritais e da larga vitória do campo pró-democrata, qual será o caminho?
Depende em grande parte da resposta das autoridades de Pequim, que têm uma certa margem de manobra para responder aos protestos e já mostraram que possuem uma certa flexibilidade perante a conjuntura, desde logo para corrigir o erro que foi a introdução da proposta de lei da extradição. Houve um recuo importante aí, e se calhar amanhã vai haver um recuo também em relação ao Chefe do Executivo. No essencial, os Chefes do Executivo existem para serem substituídos, isso não é nada de extraordinário. Mas os resultados das eleições municipais mostram de que lado é que está a grande maioria dos cidadãos de Hong Kong.
Voltando à China. O livro diz que a sua grande prioridade é a hegemonia do país na Ásia Oriental, mantendo uma parceria estratégica com a Rússia. De que forma Macau e Hong Kong podem ajudar a esta hegemonia?
Não sei se são instrumentos decisivos. De qualquer maneira, a própria integração pacífica e diplomática de Hong Kong e Macau na China é uma demonstração de força, um reconhecimento internacional da China como uma grande potência. Qualquer que seja a evolução em Hong Kong e em Macau as duas regiões são parte integrante do Estado chinês como regiões administrativas especiais.
Neste triângulo fala dos laços que unem a Rússia e a China em várias matérias, incluindo o não cumprimento em matéria de direitos humanos. Como é que a comunidade internacional deve responder, incluindo a própria União Europeia?
As questões de direitos humanos voltaram a ser relevantes nos dois casos por erros ou excessos cometidos pelos regimes autoritários na Rússia e na China. No caso da Rússia, por exemplo, o mau hábito de mandar assassinar os seus dissidentes em países europeus, é um pouco excessivo. Isso teve um impacto forte nas relações entre a Rússia e a Grã-Bretanha, mas também na opinião pública, e mostra o lado brutal do regime de Vladimir Putin. No caso da China, as coisas são bastante mais sérias, porque a repressão das minorias muçulmanas em Xinjiang tem uma escala absolutamente impressionante, é a maior perseguição religiosa do século XXI. Pouco a pouco esse tema começou a ter relevância na opinião pública americana e europeia e isso força os Estados e a UE a tomar uma posição, mesmo que esse não seja o primeiro reflexo.
Afirma no livro que a China quer rever o traçado das suas fronteiras terrestres, aéreas e marítimas.
A China, de uma maneira muito unilateral, quer fazer o país maior, e está a rever as fronteiras da sua soberania chinesa no caso das ilhas do mar do sul da China e também na zona de demarcação com a Índia. Há uma vontade da China em projectar a sua soberania em territórios onde ela não é reconhecida e não o será facilmente. A Rússia também, com a Crimeia e a Nova Rússia. Há sinais de que há um revisionismo do espaço soberano destas duas grandes potências continentais. Essa é uma relativa novidade na política internacional. No caso da Crimeia foi a primeira anexação pela força desde 1945 e no caso do mar do sul da China há uma expansão efectiva com a construção dos aterros.
Antecipa uma relativa estabilidade internacional, mas podemos falar de uma paz podre, com a existência deste triângulo de países?
Não sabemos o que vai acontecer, mas pode haver uma tendência para estas grandes potências definirem as suas próprias esferas de influência e delimitarem os seus conflitos às periferias dessas esferas. Todas elas são potências nucleares, e duas delas são grandes potências nucleares, os EUA e a Rússia, e isso obriga as elites políticas e militares a um regime de responsabilidade correspondente à capacidade destrutiva das suas armas. Nesse sentido podemos imaginar que os conflitos, além da sua dimensão económica ou política, se possam reduzir aos espaços que fazem a separação dos espaços dominados pela China, EUA e Rússia. Mas isso tem um pressuposto que é a fragmentação da ordem internacional em três ordens competitivas entre si. Mas olhando para a história e ascensão da China, é muito claro que a China tem uma concepção política e ética da ordem mundial que é radicalmente diferente da concepção política ou ética que tem os EUA. A Rússia é um caso à parte no sentido em que é mais clássica, tem uma concepção do que é o ordenamento internacional mais próxima do registo da balança do poder, no sentido em que a Rússia deixou de ser uma potência revolucionária, não quer reconstruir a ordem internacional. Mas na minha opinião isso não é verdade em relação à China, que quer reconstruir a ordem internacional na Ásia, uma nova ordem congruente com os seus valores, história e princípios e os EUA também.
Onde fica a Coreia do Norte nessa tentativa de hegemonia?
Todos os casos são depois problemas interessantes. Os norte-coreanos começaram a desenvolver as suas capacidades nucleares no fim da Guerra Fria, quando sentiram que estavam cercados por três potencias nucleares. Os EUA retiram as suas armas no fim da Guerra Fria, mas resta a Rússia e a China. Os norte-coreanos não têm medo dos americanos, sabem que não vão atacar, mas têm medo dos chineses e dos russos.

11 Dez 2019

Países europeus são hoje mais prudentes em relação à China, diz Carlos Gaspar

O investigador do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI), Carlos Gaspar, considera que os países europeus estão a reavaliar a estratégia e investimentos chineses, adotando uma “posição mais prudente” do que no passado.

“Há uma reavaliação da estratégia chinesa”, por parte de Portugal e dos seus parceiros europeus, destacou o analista, em entrevista à agência Lusa por ocasião dos 40 anos do restabelecimento das relações diplomáticas entre Pequim e Lisboa, que se celebrou a 8 de Fevereiro de 1979. Segundo o investigador, a União Europeia identificou “padrões” nos investimentos chineses que “mereceram resposta por parte das autoridades”.

Carlos Gaspar, antigo assessor de dois Presidentes portugueses para o Extremo Oriente, dá como exemplo o caso da Alemanha, que, no ano passado, impediu as empresas chinesas de tomarem conta da rede eléctrica nacional, para demonstrar que “está em curso uma posição mais prudente em relação à estratégia de investimentos chinesa do que existia no passado”.

O investigador sublinhou que “esta mudança radical” ainda não é claramente visível, mas existe e está a condicionar as relações entre a Europa e a China. “Portugal e os seus parceiros [europeus] vão ter de garantir um certo número de condições de segurança estratégicas, designadamente, autonomia nos domínios de tecnologia, que vão marcar uma separação em relação à República Popular da China”, como está a acontecer com o 5G, reforçou.

Outro sinal deste “reenquadramento das relações” é a Comissão Europeia ter decidido que devem ser criados mecanismos de avaliação dos investimentos externos em função da segurança nacional europeia e de cada país.

África é palco de competição

Salientando que Portugal, “como os outros países, tem de defender os seus interesses”, o especialista do IPRI notou que a China “é um competidor” em África e que Portugal deve procurar aliados. “Na África austral, Portugal tem relações especiais com Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe, tem uma grande comunidade na África do Sul, tem de procurar aliados para sustentar as suas posições e tem de ter uma posição realista”, aconselhou.

Por outro lado, considerou que os países africanos “têm uma visão muito aguda do que é a sua soberania e a sua independência” e que estas são mais importantes do que o dinheiro.

Para o investigador, “a China está a projectar um modelo alternativo de organização da política internacional que é a negação da ordem liberal que Portugal e os seus aliados europeus defendem”, o que leva a uma nova perspetiva.

Se inicialmente havia um grande empenho em garantir a integração da China como um parceiro responsável na política internacional, agora o objetivo é garantir que o país respeita e se submete às regras internacionais, nomeadamente, em termos comerciais e económicos.

A partir da instalação do Presidente Xi Jinping no poder (2013), “há uma nova estratégia da China, é uma estratégia de uma grande potência reconhecida como tal e a única que pode pôr em causa a preponderância dos EUA”, referiu Carlos Gaspar, notando que a elite chinesa tem uma “enorme confiança” e instrumentos políticos, económicos e militares para projetar o seu poder e o seu modelo económico e social internacionalmente.

10 Fev 2019