Capitalismo sonso

Na crónica anterior escrevi sobre improváveis parcerias no mundo do trabalho contemporâneo: depois das relações entre exploradores e explorados e até entre colaboradores e colaborados, o termo “parceiro” vem hoje designar formas de organização e estruturação do trabalho que em vez de promover a igualdade de direitos, ou pelo menos uma certa equidade, promovem a precarização e exploração máximas, o isolamento absoluto, enfim, a perda de quase todos as conquistas que justificaram longas e duras batalhas durante os últimos séculos, um pouco por todo o mundo. Mas não são só estes os termos que branqueiam as cada vez mais desequilibradas e tóxicas relações de poder no capitalismo contemporâneo: desde os anos 1980 tem havido uma sucessão de novas palavras que parecem prometer justiças necessárias mas que afinal aprofundam desequilíbrios e injustiças antigas.

Desde logo, o famigerado “desenvolvimento sustentável”, que retirou às questões da inclusão e da igualdade social a centralidade que a emergência e a consolidação dos Estados Providência lhes tinham atribuído desde o início do século vinte. Essa centralidade passou a ser repartida com a das questões ambientais – o que até seria pouco problemático se fosse verdade: mas desde os anos 80, não só o crescimento económico tem sido sistematicamente baixo, como os problemas ambientais do planeta se agravaram, enquanto as desigualdades sociais aumentaram implacavelmente ano após ano.

Mais do que promover qualquer tipo de pensamento e acção estratégica de longo prazo, que a tal ideia de “sustentabilidade” sugere, afinal o que se foi justificando foram supostas urgências de curto prazo que respondessem a limitações cada vez maiores de finanças públicas cada vez mais condicionadas por políticas de sucessiva austeridade: em nome da necessidade de proteger ao mesmo tempo o ambiente e as contas dos Estados, foram-se promovendo “parcerias público-privadas” nas mais variadas áreas, incluindo serviços e infra-estruturas públicas elementares e estratégicas – recolha e tratamento de resíduos, tratamento e distribuição de água, construção e exploração de infra-estruturas para diversos modos de transporte, individual e colectivo, hospitais e outros centros de saúde, ou vastos projectos de renovação urbana que em nome da valorização do ambiente foram promovendo formas mais ou menos massificadas de gentrificação nas cidades mais atractivas.

Os resultados para o planeta destes 35 anos de “desenvolvimento sustentado” – desde que se publicou o famigerado relatório “O nosso futuro comum” – são elucidativos: com excepção de economias como a chinesa, pouco seguidoras dos manuais do neoliberalismo contemporâneo, o crescimento económico – ou mesmo a inovação e o dinamismo empresarial, tão apregoados – foram sempre muito limitados; os problemas ambientais continuam a agravar-se e à poluição e esgotamento de recursos naturais não-renováveis junta-se agora uma emergência climática para a qual não há respostas convincentes nem sistemáticas; a tendência para uma generalizada redução de desigualdades sociais que se foi consolidando ao longo do século vinte inverteu-se, dando lugar a desigualdades crescentes e cada mais violentas, expressas na segregação urbana, nas disparidades salariais entre patrões e trabalhadores (os tais “parceiros”), nas largas franjas da população permanentemente expostas à fome, à pobreza e, agora, aos impactos das alterações climáticas, ou no crescente número de bilionários que pouco ou nada contribui para as colectas de impostos mas que utiliza o espaço como um pátio de recreio e a economia global como uma sala de casino.

Na mesma linha branqueadora da exploração máxima que a extração sistemática de recursos vai oferecendo a uma economia onde escasseiam outras ideias, mais produtivas e orientadas para necessidades sociais e colectivas, emergiu também o conceito de “economia partilhada” (“shared economy”), mais uma vez a apelar a uma certa ideia de equilíbrio, de generosidade colectiva, de aproximação, colaboração ou cooperação entre pessoas e instituições. É até verdade que há bons exemplos dessa partilha de recursos, como o tempo ou o esforço, que as tecnologias digitais podem exemplificar: plataformas de conhecimento como a “wikipedia” ou sofisticadas aplicações para cálculo técnico e científico, como a “R”, só são viáveis porque é possível coordenar e acumular conhecimentos individuais, de um largo número de pessoas que nem se conhece entre si, para a produção de ferramentas úteis, de utilização generalizada, massiva e gratuita, por vastas comunidades globais de utilizadores.

As plataformas colaborativas mais notórias e lucrativas são, no entanto, as que em vez de partilha promovem a extração de recursos (como o parque habitacional) ou a exploração de trabalho (como a dos condutores ou dos transportadores de produtos diversos, como a alimentação). Em ambos os casos, promove-se a desregulamentação, a diminuição (ou eliminação) de direitos laborais e exigências ambientais, a desorganização sistemática das estruturas de representação colectiva, e a precarização absoluta. Esta economia da partilha não olha a processos colaborativos: olha para a maximização de lucros em negócios em que o que é novo é apenas a forma de organizar a exploração.

Podemos juntar todas estas novas palavras mas na realidade das sociedades contemporâneas não vemos nem partilha, nem parcerias equilibradas, nem desenvolvimento, nem equidade, nem protecção do ambiente, nem um olhar o longo prazo: apenas a exploração máxima, o mais rapidamente possível.

10 Jun 2022

O elusivo capitalismo

“Capitalism is facing at least three major crises. A pandemic-induced health crisis has rapidly ignited an economic crisis with yet unknown consequences for financial stability, and all of this is playing out against the backdrop of a climate crisis that cannot be addressed by “business as usual.”
Mariana Mazzucato
Capitalism’s triple crisis

 

A defesa é muito mais importante do que a riqueza. Adam Smith marca assim os limites da economia política, no momento do seu nascimento. Ainda hoje, o mercado tem o seu único limite na segurança nacional, o domínio arcano dos grandes concorrentes na arena global, os Estados Unidos e a China. As duas potências fundem as esferas económica e política, através das decisões do Partido Comunista Chinês (PCC) e dos aparelhos de defesa e segurança nacional dos Estados Unidos. Pequim e Washington vivem um conflito acalorado de geo-dirreito, ou seja, uma guerra jurídica e tecnológica travada através de sanções, utilização política de instituições internacionais e bloqueios aos investimentos estrangeiros. O “capitalismo” é um termo elusivo. É um conceito que utilizamos por conveniência, devido à falta de alternativas, mas também devido à estratificação histórica e filosófica que o caracteriza.

É impossível evitar o capitalismo, mesmo para aqueles que ainda o rejeitam em retórica, tais como a China. É de recordar as palavras de Alan Greenspan, o ex-chefe de longa data da Reserva Federal, numa entrevista a um jornal suíço no Outono de 2007 quando afirmou “Temos sorte, pois graças à globalização, as decisões políticas nos Estados Unidos foram em grande parte substituídas pelas forças do mercado global. Para além da segurança nacional, faz pouca diferença quem é o próximo presidente. O mundo é governado pelas forças do mercado”. São palavras poderosas, ditas num momento significativo (e infeliz, dada a sequência) por alguém que foi “o” banqueiro central de outra época. Uma paisagem de há alguns anos atrás que agora parece estar a algumas eras geológicas de distância.

A liderança do banco central é um trabalho que historicamente tem exigido silêncio ou a obscuridade. As palavras de Greenspan, tão peremptórias, confiam às forças de mercado o “governo” político-administrativo do mundo, daí a produção de decisões e políticas públicas. Acrescentam a advertência de “segurança nacional”, e assim, talvez involuntariamente, voltam a uma ambiguidade histórica, fundamental para nós, que é o peso da segurança na construção da economia, o espaço político de quem decide o que é segurança e o que não é, moldando a decisão através de medidas legais. É uma decisão essencial da sociedade comercial, pelo menos desde que Adam Smith em “A Riqueza das Nações” recordou a primazia da defesa sobre a riqueza.

É uma decisão que também acompanha os capitalismos contemporâneos como uma sombra, no pêndulo entre Estados e mercados, particularmente se olharmos para a impotência geopolítica do cenário europeu e as potências presentes na cena internacional (em primeiro lugar, os Estados Unidos e a China). Este é então o destino da frase de Greenspan, o discípulo de Ayn Rand, o “mágico” dos bancos centrais, aprisiona-se no odiado Manifesto de Marx e Engels. Ele assemelha-se ao inevitável “mágico que não consegue dominar os poderes do submundo que conjura”. A investigação sobre o capitalismo político deve entrelaçar três vertentes como a história do Estado, e as formas como o poder estatal é declinado nos aparelhos burocráticos, nos confins do político e do económico; as ordens jurídicas com que os mercados interagem; a história do espaço em que o capitalismo é codificado, a Europa, e a história presente e futura em que o espaço europeu tendo perdido o seu papel de sujeito da história, se torna a periferia ou o objecto de divisão dos outros. Em particular, os poderes do capitalismo político, os Estados Unidos e a China, empenharam-se num combate de leão com armas legais.

O sulco vem dos juristas que foram mais longe no seu confronto com a filosofia, identificando os elementos de crise do nosso tempo. A primeira lição que se retira do académico e político italiano Guido Rossi, que, além de ter raciocinado sobre a última crise do capitalismo nas suas obras, reconheceu por um lado a dificuldade das definições, por outro a importância do evento não só jurídico-económico, mas também histórico-filosófico, que nos conduz “da Companhia das Índias à Lei Sarbanes-Oxley”. Só com esta perspectiva histórico-filosófica, no método de Rossi, é possível ler o direito comercial e as suas transformações, tendo também em conta as questões políticas e sociais colocadas pelo antitrust.

O outro horizonte fundamental vem das obras do académico e advogado italiano Natalino Irti, que antecipou a mesma revelação candidata de Greenspan, identificando a ambiguidade entre a ausência de fronteiras da economia e a ancoragem a lugares próprios do direito. Sem ver em “geo-direito” a simples superação dos espaços, mas identificando o problema do confronto entre o horizonte político e os poderes económicos, bem como os acontecimentos da sua negociação. O capitalismo, se visto nestes termos, pode ser considerado um problema de geo-direcção, na esteira identificada por Irti, a fim de reler e expandir as consequências involuntárias da própria declaração de Greenspan.

É este o assunto essencial e não outros elementos específicos como a origem do pensamento económico em relação à ascensão do estado moderno (“a invenção da economia”), nem a génese do capitalismo, o estatuto filosófico da ciência económica, o peso das finanças na actual globalização, o papel do euro, a história do chamado “neoliberalismo”, o futuro do trabalho, pois sobre estas questões existe uma vasta e controversa literatura. A questão-chave é sobre a relação problemática entre capitalismo e segurança, que conduz a confrontos geo-jurídicos com amplas implicações no presente e no futuro próximo, e tem recebido menos atenção, mas é mais importante para a compreensão do conflito China-Estados Unidos.

Aqui está então a razão essencial para esse entendimento, e ao mesmo tempo a limitação das suas reivindicações. O “capitalismo político” na nossa época pode ser definido por características como a interpenetração da economia e da política num “todo” orgânico, que nos sistemas de autoridade musculada coincide com a presença de um partido-Estado articulado, enquanto nos sistemas democráticos passa pela intrusão na liberdade económica das burocracias de segurança e dos poderes de emergência; a utilização política do comércio e das finanças, num cenário em que os elementos competitivos coexistem sempre com a interdependência económica; a utilização da tecnologia, e das empresas tecnológicas, para fins e vantagens políticas e dentro de conflitos geopolíticos e a designação de indústrias e empresas estratégicas como “inimigos” devido à sua localização geográfica.

Estas indústrias e empresas são protegidas e opostas não só através de participações, mas também e sobretudo através de directivas políticas, burocracias estatais dedicadas, regulamentos especiais, o julgamento da economia com base na segurança nacional, e o seu alargamento conceptual e operacional, através de instrumentos de “geo-direito”. É com base nestes elementos, que o “capitalismo político” é praticado pela China e pelos Estados Unidos, os dois principais actores económicos e geopolíticos do planeta. A extensão e o poder do capitalismo político merecem, mais atenção do que outras expressões de capturar tudo o utilizado para designar a ordem económica mundial. O chamado “neoliberalismo” não ajuda totalmente a enquadrar os fenómenos com que estamos a lidar. À luz destas considerações, é necessário investigar a construção da economia política como um “ramo da ciência dos legisladores e estadistas”, de acordo com a opção de Adam Smith. De particular interesse é o renascimento das interpretações de Adam Smith no contexto da crise. Especialmente a leitura chinesa. Na apropriação por parte dos líderes chineses do grande pensador escocês, a ciência do legislador torna-se parte de um novo capitalismo político.

É a realidade do capitalismo em que coexistem as forças do mercado e a omnipresença política do governo chinês, detentor da “mão visível” e do monopólio da força no Império do Centro. O equilíbrio específico entre “mão invisível” e “mão visível” mostra a sobrevivência da violência no que diz respeito ao império dos mercados. É ainda necessário comparar Adam Smith e Carl Schmitt, a fim de analisar os problemas da sociedade comercial e a sua relação com os conflitos. A “Riqueza das Nações” e “Os Nomos da Terra, O: No Direito das Gentes do Jus Publicum Eruropaeum” parecem responder a duas antropologias incompatíveis, enunciadas noutras obras como empatia, por um lado, conflito, por outro. Isto está interligado com o chamado “problema de Adam Smith”, ou seja, a suposta incompatibilidade entre o papel de simpatia na “Teoria dos Sentimentos Morais” e o da mão invisível em “A Riqueza das Nações”. O que está realmente em jogo, é a relação entre comércio e segurança.

A sociedade comercial de Smith é a dissolução do jus publicum europaeum de Schmitt. Ambos lidam com a era da descoberta e as contradições do comércio como um factor de poder e de exclusão. O conflito sobre o comércio não pode ser divorciado da história da ascensão e declínio das grandes potências, razão pela qual existe uma crítica às formas de “romantismo geopolítico” de Carl Schmitt que caracterizam a sua interessante leitura instrumental dos impérios britânico e americano (através dos escritos de Alfred Thayer Mahan). É importante também a centralização antes no problema europeu. Seja o que for, a União Europeia foi derrotada pela crise que começou em 2007. Tentativas de fazer história da crise, como o livro de Adam Tooze “Crashed: How a Decade of Financial Crises Changed the World” reflectem este facto flagrante, confirmado pelas reconstruções autobiográficas dos protagonistas que viveram a crise como decisores políticos económicos.

A crise parece ter confirmado que o Estado Providência, o grande caminho económico e social europeu do pós-II Guerra Mundial, foi uma excepção, não a norma na história do capitalismo. Thomas Piketty, no seu livro “Capital no Século XXI”, de grande sucesso, deve ser um dos focos. Apesar do seu título, o livro de Piketty está intimamente ligado ao século XX, entendido como o “século social-democrata” (Ralf Dahrendorf). É sempre difícil, mesmo no século XXI na Europa, levar a sério a citação profética shakespeariana do economista e académico italiano, Raffaele Mattioli, do início da década de 1960 de que “os milagres acabaram”. O que significa viver após milagres, para aqueles que acreditavam que a “excepção” do Estado-Providência do pós-II Guerra Mundial era a progressão normal e inevitável do mundo? A demografia europeia está em declínio, em comparação com os outros pólos de crescimento e com os Estados Unidos. Alguns países europeus, além disso, estão na vanguarda deste processo, porque há mais pessoas com mais de sessenta anos do que com menos de trinta anos.

Os Estados europeus não estão a convergir, mas estão a separar-se no seu interesse. Os seus horizontes estão a afastar-se e dada a fraqueza do aparelho militar e da relação crucial entre defesa e indústria (as longas “férias da história” vividas no intervalo após a II Guerra Mundial), a capacidade da Europa para gerar inovação em relação aos outros é reduzida. É importante repensar e aprofundar os diferentes pontos de vista da grande questão do capitalismo dos últimos quarenta anos, como o problema chinês, na relação com os Estados Unidos. Há ainda que relembrar das “características chinesas”, tais como missionários americanos e burocratas chineses, a fim de retraçar a controvérsia sobre o atraso e a natureza do capitalismo chinês, de Max Weber a Xi Jinping, passando por Deng Xiaoping e Zhu Rongji. Os técnicos ocidentais são abandonados para um confronto com o pensamento e as acções dos grandes burocratas do nosso tempo que abraçam o capitalismo e que são os quadros do PCC.

O capitalismo chinês, apesar das suas dificuldades estruturais, resiste às perspectivas repetidas do seu colapso iminente, refuta as profecias sobre a ascensão de uma classe média contrária ao controlo do PCC, reescreve a relação entre a autoridade e a difusão da inovação. Acima de tudo está o elemento central e fulcral do casamento entre capitalismo e burocracia como a continuidade multi-milenar da “burocracia celestial” estudada pelo académico húngaro Balázs Kovács e ampliada pelo PCC. É o mandarinato que também pode ser encarnado num centro de transferência de tecnologia ou num laboratório de computação quântica, refutando a ilusão da impossibilidade de inovação num sistema como o chinês sem deixar de concluir aplicando o inverso de uma das categorias do filósofo político francês Alexandre Kojève aos investimentos chineses em infra-estruturas e à sua influência à escala global. É ainda de interesse o papel dos Estados Unidos no capitalismo político que a começar por Joseph Schumpeter como o “profeta da inovação”, e que foi um pensador que com uma originalidade insuperável colocou a inovação no centro da sua análise.

É por isso que os seus escritos são essenciais para abordar o capitalismo digital e as suas encarnações nos Estados Unidos e nos gigantes chineses, bem como a guerra tecnológica entre as duas potências. A dupla cidadania de Schumpeter nos seus dois mundos, de política pública e académica. A Europa Central e os Estados Unidos continua a ser interessante ver que as suas intuições dizem respeito ao papel do empresário, mas também às contradições entre capitalismo e democracia. Temos de considerar Schumpeter como um leitor de Marx e um admirador-adversário do socialismo, por um lado, e por outro lado como um guia do capitalismo digital e das suas contradições monopolistas. Nas fases do capitalismo americano ainda devolve o caminho da Companhia das Índias à Lei Sarbanes-Oxley ou, para actualizar o destino, do bilionário Elon Musk, enviando “tweets”, fumando um charuto e sendo sancionado pela Comissão de Títulos e Câmbios.

O singular pensador/investidor que se apanha em Schumpeter à sua maneira é Peter Thiel, o bilionário jurista, uma figura central no elogio do monopólio e do planeamento que se destaca na paisagem americana, sempre com a relação interminável com o aparelho de defesa que marca a forma americana do capitalismo político. Uma peça do capitalismo político que vive na “terra de Canaã do capitalismo”, enquanto a capacidade de análise e vigilância de dados dos gigantes digitais aprofunda as “possibilidades técnicas”, particularmente na Inteligência Artificial (IA) e na simbiose entre o homem e a máquina. Até à última tonelada em que restará algo que reconhecemos como humano. É importante ainda considerar o problema da relação entre segurança e mercados, utilizando a categoria de geo-direito para descrever em pormenor o conflito entre os Estados Unidos e a China que caracteriza a nossa era.

A casuística do geo-direito, que pode ser colocada a par das operações da lei (o prosseguimento da guerra, incluindo a guerra económica, através de meios legais), mostra o poder da tensão entre os dois litigantes. Algumas pedras de fronteira caracterizam a crise entre Washington e Pequim, quase reescrevendo a sentença de Greenspan numa constante, bem como violenta, ampliação do primado smithiano da defesa sobre a riqueza.

Os conflitos estão a ocorrer em instituições internacionais, particularmente na OMC. Dizem respeito ao crescimento exponencial da proeminência do CFIUS (Committee on Foreign Investment in the United States), o aparelho burocrático que decide sobre o investimento estrangeiro, um obstáculo à invasão do sentido global do mercado, já cimentado na altura da ascensão japonesa. No caso dos Estados Unidos, não é uma “burocracia celestial”, mas a mais poderosa burocracia de segurança nacional da história que toma o centro das atenções, como no caso Huawei.

Não se pode abordar o trabalho de Adam Smith sem considerar a ascensão do Império Britânico. Não se pode considerar a leitura de Schumpeter sem ler a transição entre o capitalismo burguês europeu e as contradições do sistema americano, e portanto o exercício do poder dos Estados Unidos, na continuidade geopolítica do pensamento de Mahan, nas reflexões sobre as “fases” do capitalismo americano, que têm repercussões no direito das sociedades e na governação empresarial.

No outro pólo está a ascensão da China, a ser considerada na relação entre o Estado-Partido e o mercado, na definição daquilo que, na retórica do PCC, ainda é “socialismo com características chinesas”, no qual uma nova burocracia celestial assimilou o capitalismo. Ao fundo, dançar as bruxas e as suas vítimas, antigos e novos Macbeths. Pois a “dança das bruxas” adapta-se e continua, como na troca relatada em “Modern Capitalism, entre Werner Sombart e Max Weber: “até ao fim da dança das bruxas que a humanidade tem vindo a encenar nos países capitalistas desde o início do século XIX? “até que a última tonelada de ferro seja fundida com a última tonelada de carvão”.

10 Fev 2021

Carlos Taibo, professor de ciência política da Universidade Autónoma de Madrid: “O colapso vai ser global”

As alterações climáticas e o esgotamento das matérias-primas são as causas mais prováveis para o colapso do sistema socio-económico das sociedades contemporâneas. A Ásia e, sobretudo, a China não estão imunes. Esta é a tese defendida por Carlos Taibo, professor de ciência política da Universidade Autónoma de Madrid, cuja versão portuguesa do livro “Colapso. Capitalismo terminal, Transição ecossocial, Ecofascismo” foi recentemente lançada

Defende que vai acontecer um colapso a nível global entre 2020 e 2050 e não daqui a cem anos, como muitos julgam. Como é que este colapso se vai sentir na China?
Naturalmente que vai acontecer na China, não tenho nenhuma dúvida. O facto de a China estar a reproduzir muitos dos elementos do crescimento próprio do mundo ocidental justifica que é candidata fundamental. Além disso, as alterações climáticas e o esgotamento das matérias-primas energéticas afectam a China de maneira muito evidente. Há uma discussão muito interessante relativamente ao facto de na China existir um Governo de carácter autoritário, algo que pode contribuir ou oferecer respostas mais firmes face às que derivam das democracias liberais. Há uma diversificação das opiniões que, em relação a estes processos, pode ser muito delicada. Mas, como sou bastante céptico no que diz respeito às estruturas de poder autoritário, penso que seria fácil que a direcção da política chinesa se fizesse no sentido de apoiar um projecto de ecofascismo ao invés de procurar respeitar as regras do jogo dos restantes países e dar espaço a movimentos de transição de carácter alternativo ou igualitário.

Portanto, depois da queda do capitalismo pode-se seguir uma situação de ecofascismo.
Primeiro teríamos de clarificar qual é a situação do sistema económico chinês. Trata-se de uma combinação muito estranha de capitalismo com muitos elementos de políticas autoritárias, eventualmente socializantes em alguma dimensão. Mas tenho a impressão de que a pegada capitalista na economia chinesa é tão forte que tudo o que digamos sobre a deriva do capitalismo nas economias de mercado livre pode afirmar-se também da presumível deriva no modelo económico chinês.

Considera que a China pode ser um dos países protagonistas deste colapso social de que fala, a par dos Estados Unidos. Acha que a guerra comercial que travam é um sinal do colapso de que fala?
É um país protagonista das relações comerciais internacionais e, temos de admitir, se essas relações estiverem na origem do colapso, então será o protagonista central do colapso. Em qualquer caso, devo reconhecer que o meu livro aborda o período depois do colapso e não sobre o que acontece antes. Alguém poderia perguntar-me: se o colapso se produz no ano 2050, o que acontece antes? Do meu ponto de vista, a ideia de uma III Guerra Mundial serve para descrever o cenário de uma sociedade pós-colapso, mas pode servir um cenário prévio ao colapso. Neste âmbito de conceitos, com certeza a China desenvolve um papel central e importante, ainda que não seja a principal potência agressiva, mas sim os EUA.


Tem sido acusado de ser alarmista quanto à possibilidade da ocorrência de um colapso social no mundo entre 2020 e 2050. Como reage perante estas críticas?
Bom, prefiro ser qualificado e descrito como alarmista a ser qualificado de frívolo. É muito mais grave para mim o pecado da frivolidade do que o do alarmismo. Além disso, afirmei no início da minha palestra que não estou em condições de afirmar, sem margem para dúvidas, que se vai produzir um colapso social do sistema. No meu argumento mais prudente afirmo que esse colapso é provável, ou muito provável. Parece-me que os dados me levam a concluir cientificamente que esta conclusão é legítima. Não digo mais nada.

Se tivesse de apontar causas ou acontecimentos fundamentais para o colapso, quais apontaria? A guerra comercial que hoje vivemos, a crise da zona Euro, por exemplo?
Estou a pensar em processos globais, como as mudanças climáticas, o esgotamento das matérias-primas energéticas, o surgimento de uma crise social, financeira e demográfica derivada do desenvolvimento de violências várias. Um planeta com muitos conflitos onde cai o esgotamento das matérias-primas e as alterações climáticas. Prefiro rebaixar o peso do argumento no que diz respeito à crise da zona Euro, que considero que tem um relevo menor em relação à discussão sobre o colapso.

Porque defende que o colapso irá acontecer mais rapidamente nos países do sul do que no norte, e como é que essa diferença se verifica na Ásia?
Se as duas principais causas para a ocorrência do colapso são as mudanças climáticas e o esgotamento das matérias-primas energéticas, parece-me evidente que vai golpear de maneira mais forte os países do sul. A subida das temperaturas vai provocar a migração de populações inteiras, com refugiados procurando zonas menos severas em termos climáticos. O esgotamento das matérias-primas energéticas não vai ter tantos efeitos nos países do sul, pois dependem menos disso. Por serem países menos desenvolvidos, necessitam menos dessas matérias-primas energéticas, à diferença do que acontece no norte. Suspeito que a China e a Ásia emergente estará no meio destas duas situações, de tal maneira que não é trágico o cenário das mudanças climáticas nem tão benigno o esgotamento das matérias-primas energéticas.

Há uma clara desigualdade entre a China e o Japão e depois o Sudeste Asiático. Portanto, haverá efeitos diferentes.
Sim. O que acontece é que é difícil identificar esses efeitos. Porque a minha tese é que as sociedades que mais vão padecer dos efeitos do colapso são aquelas que mais dependem de tecnologias ou energias que chegam de longe. A sociedade japonesa, por exemplo, vai padecer bastante destes efeitos, mas a China não tanto. Não digo que não irá sofrer, mas tem as suas defesas, que se caracterizam pelo facto de a sociedade chinesa viver ainda uma grande parte em subdesenvolvimento. Isso faz com que as suas necessidades energéticas sejam mais reduzidas. Introduzi o conceito de que, paradoxalmente, as sociedades que, na Europa, consideramos mais deprimidas, são as que vão ter maiores possibilidades num cenário de colapso, porque são aquelas que dependem menos das tecnologias e de energias. Suponho que isto vai acontecer em boa parte da China, mas não nas regiões mais orientais, que se abrem ao Oceano Pacífico, que são sociedades muito urbanas e muito dependentes de tecnologias e energias.

Uma vez que a China ainda tem uma boa parte da população ligada ao sector primário, irá sobreviver melhor que o Japão a um eventual colapso.
Considero que é assim.

Como encara o discurso político da China em prol da defesa do ambiente?
Não conheço bem, mas tenho a impressão de que a China foi um país que pensou durante muito tempo nas medidas internacionais que pretendiam reduzir as suas emissões de gases e fomentar o seu desenvolvimento económico. Mas, provavelmente, há uma leitura diferente, que considera que o problema existe e que a China está cega em relação à realidade e simplesmente nega o aumento das emissões.

Fala-se muito do colapso enquanto questão mais ocidental ou europeísta…
O colapso vai ser global, ainda que vá ter efeitos diferentes nas regiões. É certo que a discussão sobre o colapso tem uma presença mais forte nas sociedades ocidentais, mas intuo que é inevitável que essa discussão chegue a outros lugares porque, repito, o colapso é global. Este é um elemento que distingue este colapso de outros registados no passado. Por exemplo, quando o Império Romano colapsou, os efeitos sobre os outros impérios foram nulos. Hoje sabemos que as mudanças climáticas e o esgotamento das matérias-primas são processos inevitavelmente globais.

O que podemos fazer para evitar este colapso?
Temos de modificar a nossa vida quotidiana de maneira a instaurarmos uma relação muito mais civilizada com o meio natural e organizar movimentos colectivos que modifiquem as regras do jogo, em prol do fim do mercantilismo e da procura de projectos colectivos solidários mais austeros. Contudo, devemos atribuir outro significado à palavra austeridade do que o significado que os nossos governantes dão hoje em dia, quando preferem associar a austeridade a uma redução dos orçamentos sociais. A austeridade é um valor saudável e positivo.

12 Abr 2019

Do topo da torre ao prédio devoluto, 40 anos de China capitalista em perspectiva

Por João Pimenta, da agência Lusa

 

[dropcap]N[/dropcap]o distrito financeiro de Shenzhen ou nos antigos bairros operários de Pequim, as opiniões divergem sobre as profundas transformações ocorridas na China desde que, há quarenta anos, aderiu à iniciativa privada, rompendo com o maoismo.

Voltada para sul, no pico do monte Lianhua, centro de Shenzhen, ergue-se uma estátua com seis metros de altura, em bronze, de Deng Xiaoping, o arquitecto-chefe das reformas económicas iniciadas na cidade, em 1979.

Em frente à estátua, um corredor cruza a densa malha urbana de Shenzhen, que entretanto se converteu numa das mais prósperas cidades da Ásia, símbolo do milagre económico que transformou a China.

“Nenhum dos edifícios na mira frontal da estátua de Deng Xiaoping se pode sobrepor a esta”, explica Lizhang, especialista em urbanização, à agência Lusa, 550 metros acima do solo, no topo do Ping An Finance Center, o quarto arranha-céus mais alto mundo.

“As pessoas referem-se a Mao [Zedong] como o líder histórico da China, mas Deng Xiaoping é altamente respeitado em Shenzhen”, nota.

Afastado duas vezes por Mao, Deng, outrora acusado de ser um “seguidor do capitalismo”, assumiu o poder poucos anos após a morte do fundador da República Popular.

O “papel dirigente” do Partido Comunista continuou a ser “um princípio cardeal”, mas ao contrário do que acontecia durante a liderança de Mao, o desenvolvimento económico – e não o “aprofundamento da luta de classes” – tornou-se “a tarefa central”.

Shenzhen, então uma vila pacata, deliberadamente por desenvolver – os comunistas, que receavam “contaminação” política e económica via Hong Kong, designaram-na de “fronteira de defesa política” – serviu então de laboratório à abertura da China à economia de mercado.

“As pessoas viviam da pesca”, lembra um taxista local, “mas Deng Xiaoping idealizou esta cidade e fê-la nascer”. Em 2017, o Produto Interno Bruto de Shenzhen ultrapassou os 338 mil milhões de dólares, à frente de Hong Kong ou Singapura, dois importantes centros financeiros da Ásia.

Entre os chineses rurais, o ‘boom’ de Shenzhen inspirou fábulas e lendas: o trabalhador migrante que se tornou milionário ou a jovem secretária que ascendeu ao topo de uma empresa.

“As pessoas chegam a Shenzhen com o sonho de enriquecer”, descreve uma arquitecta portuguesa radicada na cidade há seis anos.

Tang Zhongcheng, co-fundador do grupo Cowin Capital, uma das maiores empresas de gestão de capital privado da China, resume assim a “fórmula” de Shenzhen: “Os investimentos e os negócios são orientados por regras puramente mercantilistas”. “Quando procuramos investimentos, não recorremos ao Governo”, explica à Lusa.

Erguido no centro de Pequim, em 1958, o edifício ‘Fusuijing’ foi inspirado no “Grande Salto em Frente”, uma campanha lançada por Mao para “acelerar a transição para o comunismo”, através da colectivização dos meios de produção.

“Não importava qual a posição ou autoridade de quem vinha para aqui morar: as casas eram gradualmente ocupadas, sem olhar a classes”, conta à Lusa Zhang Qiwei, 60 anos, que viveu quase toda a vida no prédio.

Nenhum dos apartamentos no ‘Fusuijing’ tem cozinha: os habitantes comiam juntos numa cantina comum, segundo o espírito revolucionário da época. Espaços para ler, jogar xadrez ou para as crianças brincarem eram também partilhados.

“Alguns populares viviam até em casas melhores do que membros da marinha, exército ou força aérea”, diz Zhang, para logo a seguir denunciar: “Agora, os funcionários do partido moram em vivendas, enquanto o trabalhador não tem onde viver”.

Emaranhados de fios eléctricos, paredes descascadas e tralha amontoada nas escadas ilustram a degradação do edifício, situado a poucos quilómetros de Fuxingmen, sede de algumas das maiores empresas da China.

Para os chineses da geração de Zhang Qiwei, formados num ambiente de extrema politização, a realidade gerada pelas reformas económicas promovidas por Deng Xiaoping é difícil de aceitar.

“O povo está dividido; existe um materialismo excessivo. No tempo de Mao, trabalhava-se arduamente sem se pensar em dinheiro”, diz. “Lutava-se por um ideal comum”.

11 Nov 2018