Carlos Morais José h | Artes, Letras e IdeiasAno do Galo Já canta o galo. E fá-lo longo, no risco da aurora. Algo chora… febril ou flauta, ou será pauta de um juvenil destino? Já canta o galo. Ralo o canto por rala a voz. É atroz o universo: quando nasce… quando se reduz a um verso. O mundo escouceia, mal o galo, com o tal verso, o incendeia. Estremunha a aldeia, o fel desliza. É dia de santo, não muge brisa. Súbitos, após a missa, revibram os sinos. Numa panela, um padre guisa dois assassinos. Cristo, sempre alado, prevê a estação, talvez o herdeiro: lá p’ra Fevereiro emergirá. Será gentil, será dotado e de bom grado nos salvará. …………. Calou-se o galo. É um regalo flutuar neste intenso silêncio. A chuva e o suão, os néons e o pó esmoreceram. Faz no entanto dó testemunhar um mundo assim. Ofegante no jardim, madrugada por raiar e o galo por cantar. Para onde irás se não há mar? Calou-se o galo. Incertas, as coisas adquirem o seu valor seminal. Nenhum animal as demora nem ilusões as detêm. Lêem o jornal na luz da noite. Freme o açoite, algo crava a jugular. Não ligues, rapaz: foi ilusão… fora… um ar… dois coriscos que passeiem na veia da avenida. Faz o pino e lambe a ferida. Tudo se evaporou… O ano fina-se em amáveis cacarejos. O galo ainda não cantou.