A Grande América (IV)

“America great again with Trump? No. America under trump previously was a joke but this time America is fast becoming a train crash. For a president who’s proud boast was that he never started any wars is pulling out all his fingers to make up for lost time. He will be in power for just four years but the damage he has created already will take decades to repair.”

Stephen Leader

O pai fundador, Thomas Paine, a que Trump alude quando exalta o senso comum, decretou que “Temos o poder de começar o mundo de novo”. A quintessência do americano é (era?) olhar para cima e para além, para saber se o europeu estava inserido no grupo. A certeza de não ter alternativa. Manifestamente, o seu destino é o declínio, confundido com um eterno presente. O risco da América não é o declínio, é o colapso. Porque, fixada em si, está a alienar o mundo. Enquanto monitoriza compulsivamente a febre, esquece-se de que a sua saúde é sempre relativa à dos rivais que seguem as suas próprias trajectórias. Consideremos a supremacia tecnológica, um parâmetro com base no qual a América determina a classificação das potências. As elites americanas estão unanimemente obcecadas com o facto de os chineses ultrapassarem a América em matéria de Inteligência Artificial (IA).

Trump acaba de lançar, entre trombetas, o colosso público-privado Stargate, com um capital futuro declarado (inflacionado) de quinhentos mil milhões de dólares, quando chega a notícia de que uma empresa chinesa autárquica desenvolveu capacidades semelhantes às da OpenAi e associados, gastando uma fracção do que a confiança dos “trustees” espera, através de técnicas de inovação lateral. Pânico na bolsa, nem sequer um Pearl Harbor virtual. Patéticas são as acusações contra Pequim de roubo de tecnologia e de exploração do baixo custo dos seus engenheiros, invejavelmente económicos. A que outra indisciplina se dedicaram os concorrentes durante as revoluções tecnológicas por exemplo, há dois séculos, dos americanos aos britânicos?

E quando a IA tirar empregos até a engenheiros qualificados, o que dirá Trump aos seus adoradores? Quando a América aceitar que não negoceia apenas consigo própria, compreenderá que o “bullying” gera resistência porque há culturas e interesses diferentes dos seus. O grande Andrew Marshall aka Yoda, director do “United States Department of Defense’s Office of Net Assessment” de 1973 a 2015, tinha consciência disso quando insistiu no método comparativo na análise de conflitos. Aquele que se considera tão superior que não tem de integrar as culturas e os interesses dos outros na avaliação das relações de poder, enquanto se autoproclama senhor absoluto do seu próprio destino, prepara o terreno para a derrota. Marshall não deixou nenhum herdeiro. E Trump não tem qualquer semelhança com ele.

Mas o “Terrível Simplificador” arrisca-se a chegar às mesmas conclusões a que Yoda talvez tivesse chegado, independentemente do seu percurso analítico. A salvação da América não reside num regresso à super ordenação sobre o sistema normal de poder. Nesse esforço, ela desmoronar-se-ia, e todos nós com ela. É melhor, enquanto há tempo, satisfazer primeiro entre (não exactamente) iguais. Revolução que implicaria uma auto-análise pungente. Por sua vez, só concebível com uma distância do “eu” inconcebível em Trump, menos ainda em Musk. Felizmente, a heterogénese dos fins, o velho Arquimedes escorrega no banho e descobre o princípio epónimo, perturba o tédio dos determinismos. O génio estável do acordo aplica a sua arte à geopolítica prática sem a extrair dos modelos matemáticos que enervavam Marshall, apenas porque “é assim que me divirto”. Mas o acordo é troca por definição. Pode sentir-se e talvez ser cem vezes superior ao rival com quem negoceia, mas ao negociar aceita-o tal como é. Legitima-o. E, claro, vice-versa. Então, o melhor ou o mais inteligente vencerá.

Recordando a reacção (privada) de John Fitzgerald Kennedy à construção do muro de Berlim “mil vezes melhor um muro do que a guerra! atrever-nos-íamos a parafrasear “mil vezes melhor uma negociação do que o apocalipse!”.

O frenesim de mudar tudo para que tudo mude antes que seja demasiado tarde obscurece o início do segundo Trump e pode fazê-lo descarrilar. Não invalida o facto de que, de tanto caos, possa surgir um princípio de nova ordem. Mais do que imperfeito, estamos de acordo. Nada a ver com a paz perpétua kantiana. Algo sugere que um grande confronto não é impossível entre os Estados Unidos, a China e a Rússia. Ajustar o passado e limitar o risco de apocalipse. Quando Trump anuncia que quer tomar pela força toda a América do Norte, não está apenas a actualizar Monroe. Está a declarar um vale-tudo.

(continua)

21 Mai 2025

A Grande América (III)

(continuação da edição de 15 de Maio)

E depois, disseram, demasiadas vezes, que a Europa está nas leis da história, mas quem conhece essas leis da história? E quem é que alguma vez impediu os homens, especialmente os grandes homens, de irem contra as leis da história? Estávamos em 1966. Sumantra Maitra tem razão quando lhes pergunta “o que é que vos aconteceu? para os exortar, com alguma ênfase, ao papel de um “país ocidental chave”.

A sua tese atravessa a geopolítica da periferia marítima da memória quarentona, actualizada para as crises actuais, como as tensões entre turcos, gregos e franceses, aliados atlânticos de facto alinhados com eles próprios. O que acontece se rebentar um conflito? A Itália poderia concentrar-se na criação de dispositivos locais em algumas áreas-chave, assumindo a tarefa de fornecer apoio logístico e estrutural.

Os italianos têm uma marinha bem estruturada. Este é um domínio em que poderiam dar um contributo considerável, tratando da formação e da segurança nas costas sul e norte. Trump e o Pentágono estão correctos, pois nós os Europeus fornecemos a logística, juntamente com os serviços secretos, a cibernética e tudo o que for útil. Mas são os italianos que põem as botas no terreno.

Uma ideia que rejeitaram quando o Trump 1.0 os convidou a recuperar a Líbia. Não se tratava de imitar o malogrado desembarque concebido pelo então Presidente do Conselho de Ministros Giovanni Giolitti (1903-1914) em Trípoli, em 1911, a faísca da I Guerra Mundial, o golpe para as comunidades do Norte de África e levantinas italianas de que hoje tanto precisam.

A questão era saber se deveriam admitir um forte grau de controlo turco sobre a Tripolitânia, depois o controlo russo sobre a Cirenaica, ou cuidar do seu próprio quintal. Recusaram. Um erro que deve servir de lição para o futuro. O estigma da nossa época é a consciência de que o homem pode acabar com o mundo. Um privilégio até agora reservado a Deus para os cristãos, que tem a última palavra sobre como e quando. Um segredo que se opõe até Cristo, pelo menos segundo Mateus de que “O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não.

Quanto àquele dia e àquela hora, ninguém sabe, nem os anjos do céu, nem o Filho, mas só o Pai” (24,35-36). “Se o dono da casa soubesse a que horas da noite vem o ladrão, vigiaria e não deixaria que a sua casa fosse arrombada. Por isso, estai vós também preparados, porque o Filho do Homem virá à hora em que menos esperais” (24,43-44). Se este Evangelho se aplica, temos a certeza de que o ladrão está longe de casa, pois nunca antes o homem pensou no Fim.

Resta-nos esperar que a misteriosa “Katechon” da segunda carta de Paulo aos Tessalonicenses, a suposta força de contenção que prevalece sobre o caos, atrase o apocalipse e a vinda de Jesus. Se os filósofos e os teólogos discutem sobre o “Katechon” é porque vivemos o apocalipse como presente, não como futuro. Imersos no caos, desfigurados pelo anomos iníquo que o Senhor esmagará “com o sopro da sua boca” (2,8).

Será um sinal dos tempos que a Igreja Católica, durante séculos empenhada em infligir-nos “memento mori”, tenha suavizado essa ladainha depois de Hiroshima? Talvez receie perder o monopólio do mistério último, secularizado em conversa de café. Não entremos na diatribe apaixonada de quem, o quê, como é o “Katechon”. Hermenêutica inatingível. O que importa é observar como a percepção de viver dentro do apocalipse, a morte viva, exacerba o desespero do caos que nos paralisa. Ilude-nos a pensar que podemos escapar aos constrangimentos da política, ao modo da razão, à arte do simpósio. Uma tentação que gera terríveis simplificadores de todo o género.

Produtores de anomia que pretendem executar com o sopro da sua boca. Trump é o poder que abranda ou acelera a crise americana? Uma pergunta muito europeia. Para um americano, a questão não se coloca. Aqueles que estão convencidos de que pertencem, por graça de mandato divino, à entidade suprema benevolente, super ordenada ao resto dos humanos, tendem a imaginar a sua trajectória como uma sequência de ciclos em constante evolução ascendente. Desenhando círculos sem fim, apenas inícios. Nas fases mais baixas, o americano crente empurra para o topo porque o melhor ainda está para vir.

16 Mai 2025

A Grande América (III)

“We are going through a bad stage in the cold war-all wars have their bad stages. But in all wars when one is going through a bad stage one should concentrate first and foremost on the core of the problem; and the core for us is what is left of Western Europe.”

Weaknesses of Western Society

Pietro Quaroni

Nos últimos anos, temos assistido a um interesse sem precedentes dos americanos pela Europa. Inicialmente era “O que querem de nós?”. Uma mistura de condescendência e de desprezo simpático, que suscita respostas embaraçosas ou simplesmente o silêncio, uma vez que não estamos habituados a estabelecer o que podemos querer. Depois, a viragem brusca para “O que fariam no nosso lugar?”. Até ao contra-ataque de Trump. Com ele não há perguntas, apenas acordos pré-cozinhados ou improvisados. Tudo extremamente informal na base de que “Queremos isto, podem ajudar-nos assim, em troca recebem aquele outro. Boa sorte”. Claro que o poder de fogo é totalmente desproporcionado. Mortal é a retaliação em caso de insubordinação. O exemplo pode ser que se fizermos comércio de tecnologias de ponta com os chineses, no mínimo devemos esperar represálias em matéria de direitos aduaneiros e de regime de vistos, por cima da mesa, com passos acompanhados por baixo.

O que nos obriga a saber de antemão o que podemos querer do líder e a que preço. Nada de extraordinário. Variantes tácticas de uma estratégia. Esta deveria assentar nos nossos rendimentos geoestratégicos, que não só negligenciamos como até minamos. O sul do continente é mediterrânico em primeiro lugar, europeu em segundo. Mas vive-se este privilégio como uma vergonha. Não aproveitaram a vantagem da viragem médio-oceânica de que desfrutavam desde a abertura do Suez, que hoje corre o risco de fechar desastrosamente devido à crise do Mar Vermelho. O seu olhar marítimo vê as suas águas interiores como um limite e não como uma fonte que os empurra para o mundo e o mundo para eles.

Entre as heranças nefastas do seu europeísmo e do complexo de inferioridade que lhe está associado em relação às nações continentais, a hidrofobia é a mais prejudicial. A figura secreta da sua estratégia escapa-lhes pois são ocidentais porque são médio-oceânicos, não porque são europeus. Os seus vizinhos continentais, a começar pelos germânicos, são por vocação anti-médio-oceânicos. Desde tempos imemoriais. Como afirma a “Escola dos Annales”, o conceito de Europa nasceu contra Roma, quando a maré islâmica partiu o mare nostrum em dois, entre os séculos VII e VIII. Uma fractura que continua por resolver e a agravar-se. Continuam os italianos a ser o centro passivo, na melhor das hipóteses reactivo, do Médio Oceano, depois de terem sido o seu pivot decisivo.

Ridículo disfarçarem-se de pivots. É urgente voltar a dar sentido à sua geografia de posto avançado ocidental no meio do oceano. E que isso conte mais em relação à Alemanha e à França, que estão viradas directamente para o Oceano Mundial, enquanto eles têm de defender com unhas e dentes a saída pelo Suez e pelo Bab-el-Mandeb (O Estreito de Bab-el-Mandeb, em árabe, “porta da lamentação” é o epicentro da vasta região marítima que se estende desde o Mar Vermelho até às porções ocidentais do Oceano Índico, englobando também o Golfo de Aden e parte do Mar Arábico. Este estrangulamento, que tem apenas vinte e sete quilómetros de largura no seu ponto mais estreito, perto da ilha de Perim, separa o Corno de África do Médio Oriente e serve de antecâmara ao Canal do Suez, a passagem artificial que, desde a segunda metade do século XIX, liga o Indo-Pacífico sem limites ao sistema atlântico através do Mediterrâneo).

Juntamente com aqueles que estarão dispostos a trata-los como parceiros do meio do oceano. Em primeiro lugar, e certamente não só, os Estados Unidos. Eles sentem-se aqui em dívida para com o grande diplomata italiano Pietro Quaroni (os seus pensamentos e acções vêm descritas em “Pietro Quaroni, Italian Diplomacy and the Libyan Issue (1945-1949)” de Luciano Monzali) que pertencia a essa raça de servidores do Estado que entendiam esse privilégio como uma contribuição para a política externa. Mesmo contrariando as modas intelectuais, resistindo à tentação da burocracia e da politicagem. O seu opúsculo de ouro sobre o “Pacto Atlântico e Segurança na Liberdade”, publicado há sessenta anos, é de uma actualidade fulminante. Pietro Quaroni sugeria que se “enquadrassem numa política americana periférica” no seio da OTAN, evoluindo de uma “potência do mar” para uma “potência marítima”. O teatro talassocrático distingue-os dos seus parceiros continentais e dá-lhes maior liberdade de movimentos do que a França e a Alemanha.

Expresso na “defesa periférica baseada na cintura externa da Europa, Inglaterra, Península Ibérica, Itália e Grécia”. Não sendo uma potência naval, é capital para lhes reavivar o entendimento bilateral com a América como primeira potência mediterrânica, tal como aconteceu com a Inglaterra quando ainda dominava as ondas. Enquanto a sua política externa se manteve firme no princípio de que podiam tomar todas as liberdades excepto a de se voltarem contra a Inglaterra, qualquer tolice que tivessem feito tinha consequências graves; no dia em que esquecessem este princípio, as consequências seriam tais que ainda agora as recordariam. Hoje, em vez da Inglaterra, estão os Estados Unidos, e é a primeira necessidade de a política italiana entender-se com os Estados Unidos como pretende Giorgia Meloni. Não devem deixar-se arrastar, em nome de uma pretensa Europa, para uma política europeia que é de facto-anti-americana.

(Continua)

15 Mai 2025

A Grande América (II)

(Continuação)

“What is great about America? Slavery, Hiroshima, Nagasaki, Indian Removal, segregation, Vietnam War, Watergate.” – Anthony Galli

O que conta para o império americano é a Europa Ocidental, “a mãe da América”, ou seja, França, Alemanha, Itália, Reino Unido, Espanha, Portugal e a Escandinávia como abertura para o Árctico e barreira anti-russa (anti-chinesa). Sem esquecer que os menos interessados em proteger a Europa de Leste são os euro-ocidentais. Questão de perguntar aos dinamarqueses, alemães e holandeses se concordam em dar aos polacos e lituanos um peso decisório igual ao seu. Por que razão um Espanhol lutaria contra Moscovo se um estónio decidisse organizar uma revolução colorida na Rússia? Segundo Maitra, o Mediterrâneo continua a ser central para os americanos, mas não o Mar Negro. O nosso Oceano Médio é o ponto fraco da Europa. O perigo não vem do leste, mas do sul. Não se vêm tanques russos na Bélgica. Mas vê-se um número crescente de crises no Mediterrâneo, provocadas pela decomposição de Estados, como a Líbia, por causa dos franceses e dos britânicos. É por isso que a França é um dos países ocidentais fundamentais para a segurança comum. No entanto, nunca percebi porque é que em certas questões, como a defesa total da Ucrânia, a França e a Polónia podem ter posições de falcão. É querer ser mais católico do que o Papa? Ao longo dos séculos, a França foi o bastião do realismo. O que é que aconteceu? A essa pergunta surge a resposta número três que se poderia intitular de revelação, responsabilidade e oportunidade que é o triângulo da nossa segurança.

Revelação no sentido apocalíptico acima referido. Trump deixa cair o véu da hipocrisia acordada entre americanos e europeus. Os primeiros fingiam garantir-nos uma protecção ilimitada e nós fingíamos acreditar neles. De tal forma que muitos de nós acreditámos. De facto, funcionou muito bem. Agradecidos, regozijamo-nos. Mas é agora claro que a superpotência não defende todos os aliados até ao limite, alguns a troco de nada, e certamente nenhum de graça. Onde o preço, mais do que monetário, é humano e militar. É uma questão de inverter o postulado de Norstad. Ou seja, ter homens e armas em número e qualidade decentes para que, em caso de guerra, não cairmos num campo de batalha dispensável, bombardeado por amigos e inimigos nucleares. Como teria acontecido se a Guerra Fria tivesse aquecido, o que foi por pouco. Responsabilidade. Se pensarmos que podemos enclausurar-nos num canto do planeta, gozando dos nossos privilégios, a história de onde emergimos vai bater-nos à porta. Vai saquear os nossos apartamentos. Caoslândia avança. Aproxima-se da Europa Mediterrânica pelo Sul e pelo Leste, com as suas torrentes de cólera e de frustração, com a disponibilidade para a violência de povos jovens e sofredores, educados para ver nos europeus de hoje os netos dos seus antigos senhores.

O parâmetro decisivo da nossa condição geopolítica é a soma dos factores demográficos e biológicos. A Europa do Sul é a região com o maior número médio de pessoas idosas no mundo, compreendendo actualmente 21por cento da população, com mais de 65 anos. Prevê-se que atinja 30 por cento em 2050 e a Europa diminui a sua população entre 2022 e 2050 em -7 por cento ou seja em declínio galopante até 2080 em comparação com os pelo menos dois mil milhões de pessoas espalhados entre a África boreal e o Levante. A nossa idade média deverá ser superior a 50 anos, contra os cerca de 25 anos dos que nos vão bater à porta. Não é com tanques que se evita esta crise. Militarmente, precisaremos de instrumentos de controlo e interdição navais, aéreos, cibernéticos e espaciais, a par de uma componente terrestre (jovem) credível. Acima de tudo, teremos de desenvolver uma política corajosa de coexistência e cooperação com os povos e regimes do Médio Oriente, do Norte de África à Península Arábica. Regiões onde ainda gozamos de uma boa reputação. No entanto, estamos a dissipá-la como uma pensão vitalícia, quando ela deve ser reconquistada e alargada todos os dias.

O plano Mattei de investimentos em África de 5,5 mil milhões de euros é uma gota no oceano. É urgente resolver os antigos diferendos com a margem norte do Mediterrâneo, a começar pela França. O hábito de tropeçarem uns nos outros no pré carré do qual a França é obrigada a evacuar prepara o terreno para o fracasso mútuo. Quanto aos americanos, não pedem mais do que os apoiar, desde que se ponham as botas no chão, se necessário. Oportunidade. A OTAN não é ATAN, com um “a” de aliança. Um lema em si mesmo indigesto para Washington, porque aludiria a uma igualdade impossível entre líder e seguidores. Estamos em dívida para com o apocalítico Donald Rumsfeld por ter revelado, na véspera da agressão ao Iraque, a figura da OTAN e de qualquer outra organização militar liderada pelos Estados Unidos ou por qualquer outro líder.

A missão faz a coligação e não o contrário. E é o líder que define a missão. O dogma viveu ameaçado pelos nossos decisores na síndrome do abandono. Estamos tão habituados a considerarmo-nos passivos, a confiar no “Número Um” como em “Nossa Senhora”, que ignoramos o estímulo que o aviso contém. No esquema transaccional dos alinhamentos tácticos que desenham o caos actual, poderíamos transformar a necessidade de confiar em nós próprios em primeiro lugar. Não nos reduzirmos a patéticos cavaleiros solitários. Ainda assim, alguns actos de pirataria suave ajudariam, considerando o quão querido é para os anglo-saxões o desporto de manter alguém honesto e o quão pouco eles nos consideram capazes de proteger os nossos interesses. No mínimo, surpreendê-los-íamos. Nenhuma relação se mantém se cada um considerar a fidelidade dogmática do seu parceiro como um dado adquirido. Um certo grau de infidelidade, ou seja, de iniciativa, ajudaria a cimentar a relação bilateral com os Estados Unidos. O pior acordo possível, sem dúvida alguma.

8 Mai 2025

A Grande América (I)

“There is a Providence that protects idiots, drunkards, children and the United States of America.”
Otto von Bismarck

 

A América em “Primeiro Lugar” tem a ver com o despertar do orgulho de um povo conhecido por ser um farol de humanidade, hoje inclinado à auto-piedade ou à vingança. Fragmentado em dezenas de afiliações mentais e sociais entrincheiradas em perímetros repelentes. Cada um com o seu “poder”.

Estranhos uns aos outros. O excepcionalismo de Trump é territorial. A América como lar. Espaço preservado por Deus para o benefício do patriota cristão branco. A ideia não é suficiente para o que resta dela. Alvo da “Grande América” proprietária do semicontinente americano. Protegida por direitos e tarifas. Fortaleza impenetrável.

Daí a guarnição da imensidão árctica, ameaçada pela penetração chinesa que avança coberta pela Rússia ao longo da rota setentrional, o curto trajecto entre o Extremo Oriente e a América, em breve emancipado dos gelos impeditivos.
Washington quer alargar a sua soberania ao Canadá, a ser comprado, e à Gronelândia, a ser tomada pela força se a Dinamarca resistir. Finalmente, uma fronteira de defesa para os Estados Unidos imperial, entre o Árctico e o Rio Grande/Bravo.

Além disso, o exclave do Panamá a curta distância entre os dois oceanos, para protecção contra intrusos. Núcleo com recursos suficientes para dominar os rivais, desde que não sucumba à tentação de os eliminar ou, pior, de os converter. Pax Americana que Trump, monomaníaco de acordos, pretende estabelecer um após outro. Arma em cima da mesa.

Nada de novo sob o sol. Grande parte do território federal foi adquirido através de acordos com o Estado cedente, por vezes recompensado com gratificações em dinheiro, muitas vezes persuadido pela força ou pela ameaça.
Transacções imobiliárias. A cessão da Louisiana de Napoleão aos Estados Unidos destaca-se de todas as outras. Mais de dois milhões de quilómetros quadrados, incluindo a estratégica bacia do Mississipi, que teria feito da França a superpotência mundial.

Comprada por quinze milhões de dólares em 1803, o equivalente a quatrocentos e vinte milhões actualmente. Nem sequer um décimo do valor médio de um clube da NBA (4,6 mil milhões). A falta de continuidade territorial na “Grande América” segundo Trump. Entre a selva desgrenhada de Darién, a barreira entre o Panamá e a Colômbia, onde o asfalto da estrada pan-americana que liga o Alasca à Argentina dá lugar, ao longo de cento e cinco quilómetros, a trilhos intransitáveis percorridos por migrantes a caminho do El Dorado e o Rio Grande/Bravo estão os Estados da América Central e o gigante mexicano.

Na lógica da fortaleza, pareceria natural secar este pântano infectado, para o descrever no jargão trumpiano. Pelo menos, tomar o México. Mas não. A razão é que os cento e trinta milhões de mexicanos violam o cânone racial americano.

Os hispânicos de credo e tom católico, misturados com os remanescentes ameríndios, se adicionados aos quarenta milhões de companheiros anteriormente entrincheirados nos Estados Unidos, formariam um bloco inassimilável pelas “Vespas” em declínio. As fronteiras da “Grande América” são estabelecidas primeiro pela raça, depois pelos imperativos estratégicos. Sem uma demografia homogénea suficiente não há nação e sem uma nação dominante não há império. A raça desenhou o país, decreta Daniel Immerwahr, historiador da “Grande América”. O perfil megamericano é ocultado pelo mapa do logótipo que reduz os Estados Unidos ao continente. Dissimulação.

A América é geopoliticamente correcta, portanto falsa, útil para difundir a imagem de uma república continental, sem o Alasca, o Havai ou a infinidade de territórios oceânicos que pontilham o império em negação.

Um império que não se pode revelar a si próprio, porque os seus cidadãos não têm o tique imperialista criado pelo antigo senhor britânico, herdado nessas antigas colónias apenas por uma combativa minoria político-militar inspirada por visionários febris. A “Grande América” é um império disfarçado de nação. Dá prioridade à coesão dos seus habitantes, decidida pela raça, no sentido cultural do termo. Confirmando que Trump tem um fraquinho por Platão, descobre-se na “República” (IV, 423b-c) o preceito socrático que modula a sua verve expansionista que é “Aumentar o Estado até que possa, à medida que cresce, permanecer uno”.

Daí o Canadá, como país de brancos suficientemente anglo-saxónicos, embora com manchas de francófonos e católicos. A Gronelândia também, porque está meio vazia (uns insignificantes cinquenta e sete mil seres humanos, na sua maioria nativos interessados no estatuto e no dólar) mas é rica em recursos naturais, bases e instalações militares incluindo túneis subterrâneos construídos desde que Roosevelt tratou a maior ilha do mundo como propriedade nacional durante a II Guerra Mundial para evitar que caísse nas mãos de Hitler.

O México não o faz. Excluído por ser um portador de indesejáveis. A ser mantido sob controlo através da ameaça de expedições punitivas à caça de imigrantes ilegais. Justificado pela intenção de atingir os cartéis de droga que traficam fentanil e outros opiáceos sintéticos cujos precursores químicos vêm da China segundo afirma Trump para todos os Estados, por isso, considerados “organizações terroristas” por Trump.

Como corolário, o México é um Estado que encobre os terroristas. Justificados pela doutrina Bush, proclamada após o 11 de Setembro, os militares americanos que patrulham a frente Rio Grande/Bravo estão habilitados a efectuar rusgas antiterroristas num México pouco soberano. Finalmente, o subtexto racial da expansão evoca a “Anglosfera”, uma apresentação geopolítica rap de fascínio antigo que os círculos trumpistas cantam império exterior da “Grande América”.

Uma confederação entre os Estados Unidos com o Canadá, a Groenlândia e o Panamá anexados, o Reino Unido, a Austrália e a Nova Zelândia. Um branco deslumbrante, quase totalitário. Uma família unida pela língua, pela história e pela familiaridade. Fundada na confiança mútua. Já estruturada como uma burocracia intergovernamental em termos de inteligência e muito mais. Uma conclusão pouco gratificante para nós, europeus.

Esta América de combate está interessada em nós como ferramentas, não como parceiros. Trump quer uma América americana, não uma América ocidental. Num sentido geopolítico e cultural. A Europa está fora do radar. Somos responsáveis por esta desvalorização. A Europa está fora de contacto com a história. Pior ainda, não quer conhecê-la. Tapa os olhos e os ouvidos para se iludir de que existe. De que vale a pena. Mas, à margem do mundo moderno, dominada e dividida durante cinco séculos pelos seus impérios, continua a sonhar consigo própria como a dona da humanidade. Paradigma supremo. Ilha sofisticada do “Bem” no arquipélago caótico e bélico do “Mal”.

O Homo europaeus nunca admitirá, como Carl Schmitt que “Sou um vencido. Duas guerras mundiais perdidas, duas”. A inércia da glória, um dia conquistada nos campos de batalha, transcende a pretensão de ser um modelo universal. Tendo renunciado à profissão das armas, a nossa pretensa grandeza reside em irradiar a ordem da paz, de que nos damos o exemplo. Com desprezo pelo ridículo.

Como o cavaleiro de Orlando Enamorado escrito por Matteo Boiardo e publicado em 1495, afirmando que “não se apercebeu do golpe, mas continuou a combater, e estava morto (…) e fez morrer de riso os que o viram”. Ou talvez nós, europeus, estejamos a viver uma dessas experiências de quase-morte sobre as quais os neurocientistas se debruçam. Auras de serenidade descritas por aqueles que saem do coma e recordam a vida depois da morte, luz no túnel da inconsciência. Milagres de um tempo suspenso que comprime as dificuldades de uma vida em momentos de êxtase. Praticamos, sem dúvida, a eliminação bem sucedida da realidade.

O psicanalista e psico-historiador, Franco Fornari em “ The Psychoanalysis of War” consciente de que são os códigos afectivos que movem a história, estudou o sono da Europa há quase meio século para determinar que sonhos continha.

Descobriu os pesadelos. Rimos se através da síndrome da insensibilidade emocional da mesma forma que um camponês que trabalha com as mãos desenvolve calos na pele, também a pessoa que recebe continuamente informações desagradáveis é induzida a desenvolver calos no cérebro. Trata-se de uma forma de defesa. A síndrome dos calos emocionais desenvolveu-se paralelamente à expansão dos meios de informação e comunicação de massas. Diagnóstico tópico. Para não ver o caos dentro de nós e à nossa volta, somos tentados a abandonar o excesso de “informação” que inunda o nosso psiquismo. Com o risco de uma alienação emocional que nos protege dos factos.

E, portanto, do dever de os interpretar. A história cai na prescrição. E com ela a nossa responsabilidade. Somos como Neo no Matrix, chamados a escolher entre a pílula azul e a pílula vermelha.

A pílula azul, sedativo, permite-lhe convencer-se de que as más experiências que viveu são alucinações, para se adaptar à pseudo-realidade da Matrix. A vermelha fá-lo regressar à terrível realidade. Ao contrário de Neo (Keanu Reeves), que escolhe lidar com o seu mundo do próximo século tal como ele é no filme e talvez venha a ser na realidade, humanos em guerra contra a inteligência artificial que se virou contra ele, o europeu das últimas três gerações prefere a pílula azul que o prende à ficção matricial.

Será que a azul é a cor da Europa virtual? A graciosa União Europeia (UE), que, não por abreviatura, baptizamos de “Europa”. Com todos os valores, o peso histórico, a pretensão pedagógica que o “Continente” se atribuiu. Se a Europa, em vez de ser um mito, fosse um actor geopolítico, o trauma de Trump deveria trazer-nos de volta à realidade. Fora da tagarelice do “projecto europeu” de que ninguém conhece o texto, a irrupção da terrível simplificação deveria recordar-nos o lema do ex-boxeador americano Mike Tyson de que “Todos têm um plano até levarem um murro na boca”. No nosso caso, o risco é não levarmos esse murro salutar porque para Trump nem mais nem menos nós existimos.

Tal como teme Zelensky, o mundo poderia “continuar sem a Europa”. Não porque será cancelada. Porque não há, nem nunca houve, um sujeito da Europa, como atesta a leitura de qualquer atlas histórico (será também por isso que já quase não se publica nenhum?). O arranhão de Richard von Metternich como “expressão geográfica” aplicar-se-ia melhor à Europa. Aqueles que, como Napoleão e Hitler, estiveram mais perto de ocupar todo o espaço, que um curioso cânone francês quer estender do Atlântico aos Urais, consideraram-no, de facto, o tema do seu tema. Expansão do seu próprio Estado.

Foi preciso um império inventado na América por europeus em fuga para englobar no seu arco hegemónico a quase totalidade da geografia do continente. Quanto ao império russo, estamos na “Frente Asiática”. Cauda peninsular da “Grande Mãe”. A UE vê Trump como o diabo. Porque, uma vez removida a máscara do internacionalismo liberal, a América revela a face pouco apresentável da ficção comunitarista. Subverte as suas premissas, expõe as suas traições e os seus limites macroscópicos.

A falta de legitimidade democrática, impossível sem um povo europeu; a tentativa (mal sucedida) de abrir as fronteiras internas sem assegurar as externas; a exigência de que os novos membros da Europa Central e Oriental, expressão de nacionalismos exasperados pela longa subjugação a impérios hostis, se adaptem às “normas da UE” que esses mesmos etnicismos gostariam de liquidar. Paradoxo extremo, reivindicar a “soberania” europeia sem um soberano. Os sujeitos da UE continuam a ser os seus fundadores; os Estados. Cada um com o seu próprio estilo, empenhado em utilizar os recursos comunitários para os seus próprios fins. Por isso, falar de “defesa europeia” sem um Estado europeu, pertencente ao império americano na sua versão militar (OTAN), não faz sentido. Ignoramos que na origem do “projecto europeu” está a América, interessada em estruturar a sua vanguarda na Eurásia. E que nós, europeus, não só aceitámos como quisemos o “Pacto Atlântico”, cada um em seu benefício. De tantas aporias, o nascimento do “bom monstro de Bruxelas”.

Arquitectura em permanente progresso ao estilo da “Sagrada Família” que, aliás, se anuncia concluída em 2026 uma espécie de ONU regional com características marcadamente tardo-soviéticas. Em suma, uma construção quase jurídica, sem alicerces nem alma política. Definitivamente inacabada. Portanto, estéril ou, pior ainda, explorável para os interesses de outros. Um motor do caos, tudo menos a ordem. Até ontem, o barco europeu estava a flutuar. Hoje, sob a pressão da dupla revolução geopolítica e tecnológica, a “potência suave”, acena sem bússola.

Margaret Verstager, antiga Comissária da UE, confessou: “A Europa diz-se uma superpotência reguladora. Mas podemos regular coisas que sabemos. É muito difícil regulamentar o que não se conhece”. Acrescentaríamos e que nem sequer vos pertencem. Para aqueles de nós que se sentem europeus como nacionais dos diversos 27 Estados, e não vice-versa, o advento de Trump é apocalítico no sentido original do termo, revelador.

Uma oportunidade para reflectir sobre o lugar que ocuparemos na reestruturação do império americano, se este sobreviver. E, sobretudo, sobre o papel que desempenharemos nesse esforço. Prefácio, fora da Europa, quase ninguém acredita que a conquista de territórios deva seguir regras, antes pelo contrário.

Nem que seja reservada aos Estados. Os grandes oligarcas americanos têm o poder de fogo financeiro para comprar África ou a América Latina. Desistir da retórica do ius publicum europaeum. Reentrar na constituição material da política internacional. Agora que nos descobrimos nus, para reagir temos de responder a três perguntas: porque é que estamos confusos na auto-ilusão de ser Europa; como é que os Estados Unidos nos vêem; o que é que isso significa para nós, europeus?

17 Abr 2025

Pensar em termos estratégicos

“Strategic thinkers don’t just make decisions; they assess and communicate their broader potential effects.”

Brenda Steinberg & Michael D. Watkins

A América perdeu o talento intelectual para pensar em termos estratégicos. Já não consegue gerir uma política externa coerente. Se continuar a descer esta encosta, será a guerra. Uma coligação para controlar a Eurásia. A incapacidade dos Estados Unidos de fornecer uma modesta assistência militar e financeira à Ucrânia é uma vergonha moral e estratégica. A América está envolvida numa luta amarga pelo controlo da Eurásia, que terminará com um vencedor. Os lados são claros e os Estados Unidos com os seus parceiros insulares ou peninsulares, os europeus, Israel, algumas potências árabes e Estados ao longo do litoral asiático contra uma coligação frouxa de potências revisionistas continentais, nomeadamente a China, o Irão e a Rússia. O resultado desta disputa definirá a história mundial para o resto do século. É por demais evidente que os Estados Unidos têm de competir em todas as regiões da Eurásia. Pensar em dar prioridade estratégica a uma ou a outra não só carece de substância como é perigoso.

Tais argumentos criam divisões nebulosas, fictícias e principalmente retóricas, quando a natureza da Eurásia está, pelo contrário, profundamente interligada económica e militarmente. O “centro de gravidade económica mundial” pode muito bem ter-se “deslocado para a Ásia” em termos puramente de PIB. Mas a produção asiática depende de recursos, capital e tecnologias de muito mais longe, como a China bem sabe e como a Rússia aprendeu à sua custa após a invasão da Ucrânia. Os laços euro-asiáticos implicam que o que acontece num extremo da massa bicontinental repercute-se no outro. Israel e o Irão estariam a enfrentar-se mesmo sem a guerra na Ucrânia, mas a agressão de 7 de Outubro de 2023 e as crises subsequentes não se teriam desenrolado como se desenvolveram sem a erosão da credibilidade estratégica americana e a insistência israelita numa relação com a Rússia. O mesmo acontecerá quando a guerra se estender à Ásia, o que muito provavelmente acontecerá.

Temos de ultrapassar a nossa perplexidade perante a ideia de um conflito euro-asiático e aceitar os desafios que temos pela frente. Caso contrário, a causa da civilização terá ainda mais dificuldades em sobreviver. As más escolhas estratégicas dos Estados Unidos contribuíram para esta situação. Não é intenção diminuir o papel dos outros actores. Os países europeus não conseguiram, mais ou menos, alimentar adequadamente as suas defesas desde a queda da União Soviética, facto que limitou grandemente a coerência da sua resposta ao expansionismo russo na Ucrânia ou a sua capacidade de agir independentemente da assistência estratégica americana. É claro que as potências revisionistas também contam muito e uma justifica a agressão aos seus vizinhos com base na crença bizarra de que a semelhança linguística exige unidade política; outra conduz subversões híbridas no Médio Oriente; outra ainda pressiona os parceiros asiáticos dos Estados Unidos.

No entanto, o factor-chave é o fracasso da política externa americana, uma vez que só os Estados Unidos têm a perspectiva estratégica para lidar com os problemas daquilo a que se poderia chamar a coligação da Orla Eurasiática. O Reino Unido e a França podem ter armas nucleares; o Japão, a Austrália, a Alemanha e a Itália podem ser economias prósperas e ter capacidades militares não negligenciáveis. Mas só os Estados Unidos têm os meios, os aliados e os interesses ao longo de todo o arco da Eurásia. Há já algum tempo que Washington saiu da tutela estratégica britânica, que durou grande parte da Guerra Fria, durante a qual o Reino Unido, ainda com a sensação de ser um império com alcance euro-asiático, podia dar conselhos coerentes aos decisores americanos. Actualmente, os Estados Unidos estão sozinhos. Nenhum dos seus aliados cultiva uma perspectiva propriamente euro-asiática necessária para liderar uma coligação num desafio pela supremacia.

O fracasso não está de modo algum escrito. A política externa europeia cometeu certamente erros mesmo durante a Guerra Fria. Entre eles, a bofetada de Eisenhower na cara de Paris e de Londres na crise do Suez, a retirada do Vietname e a cedência de Cuba a Moscovo. Mas, de um modo geral, a Europa foi liderada por estadistas lúcidos e eficazes. Mesmo a presidência de Carter, justificadamente criticada, deu uma viragem a partir de 1979, lançando as bases para a expansão militar da era Reagan que acabou por levar os soviéticos à exaustão. Kennedy permitiu a crise de Cuba, mas geriu-a bem para evitar uma catástrofe. A administração Nixon perdeu o Vietname do Sul, mas conseguiu uma política hábil para o Médio Oriente que transformou a região e fez de Israel o ponto central de uma estratégia coerente a longo prazo. Estes êxitos resultaram, em parte, do próprio Presidente dos Estados Unidos.

Mas o processo burocrático é imensamente complicado. Longe vão os tempos em que um pequeno grupo de conselheiros, os ministros dos Negócios Estrangeiros, da Defesa, as altas patentes das Forças Armadas e funcionários civis seleccionados podiam tomar decisões com a confiança de que seriam implementadas de forma coerente nos vários ramos administrativos. Actualmente, o Estado é uma máquina burocrática que se rege por práticas rigorosas e estruturadas de recolha, tratamento, análise e divulgação de informações que facilitam a tomada de decisões. Ao longo do último século, o tipo de personalidade necessária no topo mudou. Uma figura como Henry Kissinger, algures entre um burocrata e um académico, continuaria a ser desejável, mas teria de combinar sensibilidade histórica e bom senso com qualidades de gestão e políticas. Figuras como ele são excepcionalmente difíceis de encontrar e cultivar em qualquer sistema educativo. O melhor que se pode aspirar é a burocratas experientes, alguns bons em gestão, outros bons em análise, outros bons em estratégia. Esta é a principal diferença entre o establishment da política externa de ontem e o de hoje. Uma diferença que explica os muitos erros recentes.

Qualquer estudante sério de história estratégica compreende imediatamente que as teorias da “gestão de conflitos” aplicadas à Ucrânia são meros exercícios pseudo-intelectuais. No entanto, ideias como estas tornam-se populares precisamente porque a actual elite burocrática foi educada num pequeno círculo de universidades como Harvard ou Yale, por vezes com um diploma adicional de Oxford, onde os mesmos mandarins do acaso ensinam. Pessoas agarradas a concepções convencionais e obsoletas, que inculcam nos seus alunos uma profunda aversão ao confronto. Aqueles que podem discordar da interpretação ortodoxa de uma crise como a de Cuba ou estão mortos como Bill Rood e Donald Kagan ou estão fora do circuito como Doug Feith por razões de temperamento e de auto-selecção profissional.

Quando, por outro lado, frequentamos os arquivos diplomáticos do fim da Guerra Fria e do período imediatamente a seguir, ficamos impressionados com a presciência de certas pessoas, como Dick Cheney, na altura Secretário da Defesa, que pouco se importava com o mal-estar russo face à expansão da NATO. E que reconheceram que, mesmo depois da era soviética, Moscovo representaria uma ameaça tal que mesmo os cenários mais calmos exigiriam décadas de contenção. Mesmo os seus opositores, como o muito elogiado Brent Scowcroft, operavam a um nível de sofisticação sem paralelo nos decisores e formadores de opinião actuais. Resumindo, os Estados Unidos e os seus aliados estão numa má situação porque a América e os seus parceiros, consequentemente perderam o talento intelectual para pensar em termos estratégicos. Isto levanta duas questões para os países europeus que têm interesse em manter a actual ordem euro-asiática.

Um interesse que diz respeito a todos os actores do continente, da Ucrânia a Portugal, incluindo o húngaro Orban, o eslovaco Fico e o sérvio Vucic, porque a realidade é que mesmo os chamados soberanistas só sobrevivem porque são mantidos pela União Europeia e pela segurança proporcionada pelo sistema UE-NATO. A primeira questão é se estamos a assistir a um declínio da América. A resposta é um sim categórico. Não há outra maneira de explicar quinze anos de uma política externa cada vez mais inconsistente. Em todas as áreas, a situação era sempre recuperável, como a administração de George W. Bush ironicamente demonstrou ao recapturar o desastre iraquiano com o surto, um facto sempre ignorado por um revisionismo intelectual motivado mais pela ignorância e antipatia ideológica do que por uma análise aprofundada dos factos.

Depois, porém, a administração Obama abandonou o Iraque, reduziu as despesas militares, procurou um desanuviamento quimérico com a Rússia e a China, apoiou tacitamente a expansão do Irão em detrimento de Israel e dos países do Golfo. A presidência de Trump fez algumas correcções substanciais, com uma postura mais agressiva em relação ao Irão e a prestação de ajuda militar à Ucrânia; mas nunca considerou um aumento concreto das despesas de guerra, dando antes prioridade às despesas sociais numa altura em que os Estados Unidos estavam a entrar numa fase de turbulência internacional. A administração Biden continuou na mesma linha, achatando efectivamente o orçamento do Pentágono em termos reais, enquanto abandonava o Afeganistão, procurava outro acordo com o Irão e se recusava a articular uma verdadeira estratégia para a Ucrânia, permitindo que a guerra se arrastasse, a um preço cada vez maior em termos de vidas. Este é um retrato de declínio manifesto. Significa que os aparelhos burocráticos foram totalmente incapazes de enfrentar os desafios actuais, por razões intelectuais, morais e políticas.

A continuar a trajectória actual, não só se acabaria numa grande guerra euro-asiática, como provavelmente se perderia. Ou talvez fosse possível ganhar, mas com imensos custos humanos e económicos. É claro que há uma ressalva. Nunca enfrentámos as condições de hoje, mas já defrontámos condições igualmente adversas e recuperámos. Antes da II Guerra Mundial, os Estados Unidos tinham decisores mais prudentes, apesar de um clima popular muito contrário ao envolvimento na Eurásia. No entanto, embora possuíssem um enorme poder industrial, não tinham qualquer acesso diplomático ou estratégico às potências euro-asiáticas; consequentemente, organizar o envio de forças de combate para o estrangeiro era uma tarefa formidável, muito mais do que a retrospectiva nos diria. Além disso, no passado, um grande choque estratégico despertou normalmente no povo americano uma consciência nacional mais profunda que ajudou a colocar os Estados Unidos na direcção certa. Actualmente, outro choque deste tipo poderá ter o mesmo efeito, especialmente se incluir um custo em termos de vidas americanas.

A segunda questão é ainda mais importante, pois face ao declínio americano, o que é que os países europeus devem fazer? A resposta mais fundamentada, e difícil, é que devem passar por uma transformação intelectual para produzir uma verdadeira estratégia a longo prazo para a Eurásia. Só assim a Europa, poderá sobreviver sem os Estados Unidos. Uma Europa unida, uma evolução da actual União Europeia, pode ser parte da solução, mas não é a solução. O obstáculo é intelectual. Se os Estados Unidos têm falta de burocratas capazes de conduzir um verdadeiro sistema político, os europeus têm um défice ainda maior neste domínio. Existem indivíduos talentosos, não faltam instituições académicas, bem como alguns políticos, advogados e analistas competentes. Mas não há infra-estruturas para uma verdadeira abordagem de síntese que cultive sistematicamente a capacidade de pensar e desenvolver uma estratégia para a Eurásia. Este tipo de capacidade só pode vir de governos nacionais que se interessem seriamente por certas secções da massa bicontinental.

Neste domínio, a Europa pode desempenhar um papel central. Kissinger observou que a sua política externa consiste em encontros sorridentes com importantes estadistas; muito correctos, dada a necessidade de fazer malabarismos com uma política interna sempre frágil. Todos os países da Europa Ocidental, estão subdimensionados e não estão optimizados para o combate sustentado. No entanto, dispõem de unidades rapidamente destacáveis, forças especiais de elevada qualidade (especialmente anfíbias) e vários veículos sofisticados. O centro da abordagem da Europa deve ser o apoio público e coberto à Ucrânia e especialmente a Israel, dado o papel central de Jerusalém no Médio Oriente sistémico mas estratégico e dada a importância deste quadrante para a segurança europeia. Depois, a Europa seria prudente se continuasse a sua abordagem musculada à China e se integrasse com alguns países da cintura Intermarium, incluindo a Ucrânia.

O que precede não substitui a liderança americana. Os Estados Unidos continuam a ser indispensáveis até um certo ponto. A coligação Rimland não existiria sem a liderança americana e os seus meios para facilitar as operações de ponta a ponta na Eurásia. No entanto, a vantagem desta coligação é a possibilidade de os seus membros individuais darem impulsos decisivos, desde que estejam rodeados por um ambiente que lhes proporcione enquadramento, prudência, conhecimentos especializados e uma visão comum do mundo. A República Checa é um exemplo disso, pois Praga forçou recentemente o braço de Berlim, reforçou a nova proactividade da França, obrigou Macron a aceitar a aquisição de munições não europeias e forneceu um apoio indispensável às capacidades de defesa ucranianas. A ameaça na Eurásia não diminuiria se a América regressasse a casa. Só aumentaria. A Rússia, a China e o Irão continuariam a exercer pressão sobre um Ocidente distorcido. Serão necessários nervos, habilidade e, acima de tudo, inteligência para conduzir os europeus na direcção certa.

13 Nov 2024

A Rússia com vida (e convida)

[dropcap style≠‘circle’]C[/dropcap]omo as pessoas que me seguem mais de perto, pelas redes sociais, já devem saber, passei o período de férias da Páscoa na Rússia, mais exactamente em Moscovo e S. Petersburgo, as duas maiores cidades do maior país do mundo em área. Além da vertente recreativa, naturalmente, aproveitei a viagem para fazer uma visita de estudo. Os nove dias – sete completos – que lá passei não fazem de mim um “especialista em Rússia”, mas deu para ter uma ideia de como vivem aquelas gentes, e a impressão com que fiquei foi bastante positiva. Pode-se mesmo dizer que excedeu as expectativas. Serviu sobretudo para derrubar alguns preconceitos que ainda persistem; de que a Rússia não é um país seguro, ou que o povo russo é hostil. Não foi à toa que muita gente franziu as sobrancelhas quando anunciei os meus planos de visitar aquele país.

O preconceito, ou as ideias feitas, existem sobretudo à custa de muita propaganda ocidental, nomeadamente a norte-americana. Através de filmes até relativamente recentes, do final do período da Guerra Fria, casos de “White Nights”, “Rambo II” ou “Rocky IV”, era transmitida a ideia de que os russos eram uns tipos frios, de mandíbula rígida, e que no caso do último filme que referi, apenas à custa de uns valentes sopapos seria possível derreter os seus gélidos corações. Não é em apenas vinte ou trinta anos que uma civilização se transforma, e o que encontrei na Rússia foi um povo afável, super educado, e bastante acessível. Em suma, andámos a ser este tempo todo enganados pelos enlatados do Tio Sam. Contudo, é mais que natural que este não seja um país “caliente”, onde os seus habitantes andam seminus e dançam a rumba. Afinal vive-se ali durante a maior parte do ano debaixo de temperaturas negativas, ou muito próximas dos zero graus.

Há um outro aspecto a ter em conta, que é a própria História do país, pintado na sua maior parte em tons de negro. Está ali um povo com uma cultura riquíssima, e que durante séculos esteve oprimido, ora pelo miserabilismo feudal dos czares, ora durante quase todo o século passado pelas excentricidades do socialismo, que terminou com a falência dessa ideologia. A nova Rússia, o país que Vladimir Putin fez renascer das cinzas, e que inexplicavelmente muitos temem ou olham com desconfiança, é um exemplo de modernidade, de classe e de organização, e que convida a visitar. Se é uma democracia? Existe um sistema, sim, que funciona e bem, e depois chamem-lhe o que quiserem.

Quem estiver interessado em ir à Rússia (e sei que as imagens e os relatos que fui partilhando durante a minha viagem aguçaram alguns apetites), posso garantir que vai ter uma experiência inesquecível. Para quem reside aqui em Macau e tem por hábito viajar nos períodos de férias, mesmo as mais curtas, pode ter a certeza que é uma viagem que fica em conta. Sai menos caro que duas idas à Tailândia. E fica a conhecer um novo velho país, com uma nova vida, e que convida a visitar. E do que está à espera?

12 Abr 2018

China e EUA discutem cooperação na área da justiça

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]hina e Estados Unidos da América discutem desde ontem como fortalecer a cooperação em assuntos da justiça, tal como a repatriação de fugitivos, uma questão determinante para a campanha anti-corrupção lançada por Pequim.

“As relações entre a China e os EUA são, sem dúvida nenhuma, umas das mais importantes no mundo”, afirmou ontem o vice-ministro dos Negócios Estrangeiros chinês Liu Zhenmin, na abertura do 14.º encontro entre os dois países para a cooperação em matéria de justiça.

“O cumprimento da lei e a colaboração policial são uma parte muito importante dessas relações”, acrescentou.

Durante o encontro, que ocorre até hoje em Pequim, e durante as quais participam o responsável norte-americano pela segurança e luta anti-droga, William Brownfield, Liu disse esperar que “os assuntos polémicos sejam tratados de forma adequada”.

O vice-ministro chinês destacou, como resultado da cooperação, o regresso à China na semana passada da fugitiva mais procurada por Pequim, Yang Xiuzhu, “com a ajuda” dos EUA.

“Este tipo de apoio insere-se nos compromissos alcançados entre o Presidente chinês, Xi Jinping, e o seu homólogo norte-americano, Barack Obama, em Setembro passado, durante a reunião entre os líderes dos países do G20”, disse.

Liu referiu ainda que Xi “falou na semana passada com o [Presidente eleito] Donald Trump e ambos pensam que falta alargar a cooperação a todos os aspectos”.

Ligações intrincadas

David Rank, embaixador adjunto dos EUA, sublinhou que o encontro entre Xi e Obama, à margem da APEC, “demonstra o quão complexas são as relações, que abarcam desde a segurança à economia, alterações climáticas e reforço da lei”.

“Isto inclui aumentar a cooperação na coordenação de investigações criminais, repatriações e luta contra os narcóticos”, afirmou.

“Hoje estamos aqui para assegurar que os compromissos realizados entre os nossos Presidentes se levam a cabo”, acrescentou, numa altura em que o desenvolvimento futuro das relações é uma incógnita, após a vitória de Trump nas eleições.

O fórum ocorre num período em que Pequim reforça a campanha “Skynet”, que visa repatriar suspeitos de corrupção que escaparam para o estrangeiro – a maioria por crimes económicos e muitos evadidos nos EUA.

O mais mediático alvo da campanha é o empresário Ling Wancheng, irmão do ex-director do Comité Central do Partido Comunista Chinês e adjunto do antigo Presidente Hu Jintao, Ling Jihua, que foi condenado este ano à prisão perpétua.

22 Nov 2016

EUA | Senadores republicanos querem lei que puna a China

Primeiro foi uma comissão do Congresso, depois dois senadores. Os dias conturbados que se vivem na antiga colónia britânica são motivo de preocupação em Washington. Pequim só já pensa em Trump

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s senadores norte-americanos Marco Rubio e Tom Cotton apresentaram esta semana uma proposta de legislação que visa punir quem tente restringir a democracia em Hong Kong.

A Lei da Democracia e dos Direitos Humanos de Hong Kong irá “renovar o compromisso histórico dos Estados Unidos com a liberdade e a democracia em Hong Kong, numa altura em que a sua autonomia tem vindo a ser colocada cada vez mais em causa”, defendeu Cotton, num comunicado reproduzido pelas agências internacionais de notícias.

Com esta proposta, pretende-se definir “medidas punitivas contra as autoridades de Hong Kong ou da China Continental responsáveis por atentarem contra a liberdade” na antiga colónia britânica, “especialmente no caso dos sequestros de certos editores e livreiros”.

A legislação – que tem ainda de ser aprovada – irá, entre outros aspectos, servir para pedir ao Presidente norte-americano que identifique aqueles que foram responsáveis pela “vigilância, sequestro, detenção e confissões forçadas” de editores e jornalistas de Hong Kong. O objectivo é congelar bens que possam ter nos Estados Unidos e impedir que entrem no país.

Tom Cotton considera que os Estados Unidos devem liderar o mundo no que diz respeito às exigências em relação à China: Pequim tem de cumprir o acordo supranacional sobre a autonomia de Hong Kong que firmou com o Reino Unido.

“A lei irá dar poderes ao Presidente para que Pequim seja responsabilizado, e enviar uma mensagem forte às autoridades chinesas que tentam acabar com a liberdade em Hong Kong e violam os compromissos sem que haja quaisquer consequências”, sublinhou o republicano.

Para o senador, as grandes vantagens da antiga colónia britânica estão a ser desperdiçadas pelo Governo Central: “A identidade única, a tradição de liberdade, o Estado de Direito e a economia de mercado podem ser um modelo para a China, para que seja um actor mais importante no mercado internacional”.

Marco Rubio encontrou-se esta semana com o activista pró-democrata Joshua Wong (ver texto nestas páginas), nos Estados Unidos, e teceu elogios ao papel que o jovem de 20 anos tem desempenhado “na luta pela democracia”.

“Joshua Wong é um jovem impressionante que, juntamente com os seus colegas activistas, representa o futuro de Hong Kong – um futuro que não pode seguir o caminho do autoritarismo falhado e do partido único de Pequim”, atirou o senador republicano.

Rubio acrescentou que, nos últimos tempos, o Governo Central chinês tem colocado em causa o princípio “um país, dois sistemas” e violado a liberdade dos residentes da região administrativa especial, um direito que devia estar garantido.

“Isto foi revelado no último ano através do sequestro dos editores de Hong Kong e com o que aconteceu com o juramento na sequência das eleições legislativas de Setembro”, apontou. “E culminou na semana passada, com a intervenção sem precedentes de Pequim no sistema legal de Hong Kong, que impede dois deputados democraticamente eleitos de ocuparem os seus assentos.”

Mau para a economia

A iniciativa legislativa dos dois senadores republicanos acontece na semana em que um painel do Congresso norte-americano apresentou um relatório sobre um “alarmante aumento” da ingerência da China em Hong Kong – o documento levanta mesmo questões sobre a continuidade do território enquanto plataforma financeira em termos mundiais.

A comissão do Congresso responsável pela elaboração do relatório reflecte, sobretudo, o sequestro e detenção dos cinco livreiros que trabalhavam na antiga colónia britânica, dando ainda destaque ao que entende serem as pressões nos media e na liberdade académica.

No documento de 33 páginas defende-se uma investigação do Departamento de Estado sobre a autonomia e a liberdade em Hong Kong, sugerindo-se ainda um acompanhamento da situação por parte do Congresso.

“O posicionamento tradicional de Hong Kong enquanto centro financeiro tem implicações económicas importantes para os Estados Unidos, uma vez que as relações comerciais e os investimentos entre ambas as partes são substanciais”, salientam os autores do relatório.

No que diz respeito aos livreiros, a comissão escreve que “o incidente ameaçou a manutenção do princípio ‘um país, dois sistemas’”, acrescentando que as eleições de Setembro passado para o Conselho Legislativo aconteceram num clima de receio em relação a uma “alarmante interferência do continente em Hong Kong”.

O documento foi apresentado numa altura sensível das relações entre Pequim e a antiga colónia britânica. Esta semana, o Supremo Tribunal da região deu razão à reivindicação do Governo de C.Y. Leung sobre os dois deputados eleitos pró-independentistas que não cumpriram os requisitos do juramento – não vão poder tomar posse. A decisão do tribunal de Hong Kong vai ao encontro da interpretação da Lei Básica que já tinha sido feita pelo Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional.

Hong Kong já reagiu ao relatório – as autoridades da região pedem que os países estrangeiros se abstenham de interferências nos assuntos internos do território.

Mais amigos

Entretanto, nos Estados Unidos, o embaixador chinês no país defendeu que Pequim e Washington devem evitar suspeitar das intenções estratégicas um do outro, numa mensagem que é já dirigida à presidência de Donald Trump.

O republicano vencedor das eleições do passado dia 8 não foi meigo em relação à China durante a campanha eleitoral – os analistas entendem que será bem provável que mude de atitude quando chegar à Casa Branca.

Para já, fica a declaração do diplomata Cui Tiankai: é importante construir o consenso e identificar prioridades comuns. “Temos de fazer esforços maiores para promover o entendimento mútuo e temos de ser cuidadosos para evitar suspeitas acerca das intenções de cada país”, vincou.

“É inevitável que surjam problemas e desafios nos próximos quatro anos, mas acredito que, em termos gerais, no geral, a relação vai avançar de forma estável pelo caminho certo”, acrescentou o embaixador.

Donald Trump e o Presidente Xi Jinping falaram no início desta semana ao telefone. O líder chinês defendeu que a cooperação é a única hipótese para as duas maiores economias do mundo, com Trump a comentar que ficou criado um “mútuo respeito claro”.

Como terá acontecido um pouco por todo o mundo, a eleição do republicano gerou incertezas em Pequim, onde também se preparam mudanças ao nível da liderança política.

Para já, e enquanto Trump não assume o cargo para se ver qual será a estratégia em relação ao país, os Estados Unidos vão mostrando a Pequim que há um lado da China que estão dispostos a contestar.

O recado de Joshua a Trump

O jovem activista pró-democracia de Hong Kong Joshua Wong instou o Presidente eleito norte-americano a apoiar os direitos humanos na antiga colónia britânica, com o argumento de que estão sob ameaça de Pequim.

“Sendo um empresário, espero que Donald Trump possa conhecer a dinâmica em Hong Kong e saiba que, para manter os benefícios do sector empresarial em Hong Kong, é necessário apoiar plenamente os direitos humanos para manter a independência judicial e o Estado de direito”, afirmou.

Wong falava num evento em Washington, no Capitol Hill, organizado pelo painel do Congresso norte-americano que monitoriza os Direitos Humanos na China.

Em 2014, Joshua Wong, na altura com 17 anos, foi o rosto dos protestos em prol do sufrágio universal em Hong Kong, que culminaram na ocupação durante 79 dias de algumas zonas da cidade. Já este ano, foi co-fundador do partido Demosisto, que defende um referendo sobre a “autodeterminação” e o futuro estatuto da região.

O jovem activista disse ainda que a comunidade internacional tem a responsabilidade moral de “manter os olhos em Hong Kong”, alegando que o Governo Central está a atacar as liberdades consagradas no acordo que sustentou a transferência de administração.

Joshua Wong afirmou também que os sete milhões de habitantes de Hong Kong merecem a democracia.

18 Nov 2016

Estados Unidos | Donald Trump é o novo Presidente eleito

As sondagens davam a vitória a Hillary Clinton, os jornais estiveram ao lado dela, o resto do mundo também – ou quase. Mas os norte-americanos foram às urnas e votaram diferente: escolheram um homem que, até há bem pouco tempo, nem sequer se imaginava que pudesse chegar a candidato. Agora, é o Presidente eleito. Donald Trump é sinónimo de que em política tudo pode acontecer

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]ito anos depois de terem escolhido o primeiro Presidente negro da história do país, os Estados Unidos elegeram ontem um candidato que fez uma campanha dirigida, sobretudo, aos homens brancos – deixando de fora os de outras cores e as mulheres, brancas ou não. A vitória de Donald Trump surpreendeu meio mundo, e o outro meio mundo talvez, que a confiança depositada nas sondagens era muita. Apesar de uma recuperação de terreno na última semana e meia, o republicano estava atrás da candidata democrata. Ontem, quando chegou a hora de contar os votos, foi Hillary Clinton que perdeu.

“Eu sei que nós, cidadãos americanos, estamos descontentes com o actual sistema, mas jamais poderia imaginar uma maioria desta dimensão incapaz de se sentir incomodada com a óbvia falta de qualificação e com a ausência de princípios morais de Donald Trump”, reage Linda Switzer, a viver há nove anos em Macau. “Estou profundamente triste e zangada com a ignorância”, acrescenta a vice-presidente de uma das operadoras de jogo do território.

Ardyth Comper, residente de Macau há oito anos, mostra-se menos surpreendida, apesar de partilhar o estado de choque. “Não posso dizer que estivesse à espera, mas também não fui propriamente apanhada de surpresa. Podia ser para qualquer um dos lados”, diz, justificando com o facto de Hillary Clinton não ser uma “candidata arrebatadora”. Compter, que veio para Macau trabalhar para uma empresa especialista em software de casinos, confessa estar “envergonhada” com o sentido de voto do seu país.

“Não sou fã de Clinton, mas sinceramente acho que o Donald Trump é um ser humano aterrorizador. Não é o exemplo que eu quero para os rapazes americanos. Ele enfatiza o medo e o ódio, não a oportunidade e o desenvolvimento”, considera. Para a americana, os dois candidatos eram maus, mas venceu claramente o pior: “É uma pessoa terrível”.

Ashley Sutherland-Winch, especialista em marketing, também não estava à espera do desfecho de ontem. “A minha única esperança é que o Presidente eleito seja capaz de respeitar os direitos da comunidade LGTB, [a decisão do Supremo Tribunal sobre o aborto] Roe v Wade, e mantenha as relações entre a China e os Estados Unidos”, desabafa. “Estou muito preocupada com o que isto significa para o nosso futuro.”

Mentir para as sondagens

Para Rui Flores, especialista em relações internacionais, os resultados da eleição “são uma surpresa, naturalmente”. Uma surpresa maior quando se tem em conta o que as sondagens nos foram dizendo e uma lição para a ciência política. “As sondagens não se dão bem com o populismo. Foi agora sim, nos Estados Unidos, foi assim em Junho, foi em Maio na Áustria. Sempre que o populismo se mexe, sempre que candidatos populistas estão quase a ganhar eleições, as sondagens não o demonstram”, diz. E porquê? “As pessoas têm alguma vergonha em dizer que vão votar no deputado populista, porque o media mainstream faz, de facto, campanha pelo outro candidato.”

Na lógica de comunicação que hoje temos, “o candidato populista fica fora, não recebe o apoio do media mainstream, e como a narrativa construída é a de que há um candidato que é muito pior do que os outros – é um candidato que não tem formação, que não tem capacidade, que não tem experiência –, as pessoas não têm coragem, têm vergonha de dizer que vão votar nesse candidato”. Na hora de votar, sem ninguém a ver, votam em quem querem, sem pruridos. “Não me parece que o problema seja a capacidade técnica dos institutos de sondagens, mas sim a incapacidade que têm de avaliar a dimensão da popularidade dos candidatos populistas”, vinca Flores.

O analista dá um exemplo: ontem de manhã, o New York Times tinha como previsão inicial a vitória de Hillary Clinton com 322 votos eleitorais. O jornal enganou-se redondamente. “Isto é também uma derrota para o media mainstream. No caso dos Estados Unidos, em que há a tradição de os jornais apoiarem um dos candidatos, há um dado significativo nestas eleições: a eleição de Trump foi apoiada por um jornal nos Estados Unidos, um jornal do Texas. Todos os outros apoiavam Hillary Clinton, apoiavam terceiros candidatos e houve até alguns jornais que disseram ‘não votem em Trump’.” Feitas as contas aos votos, “há aqui um desfasamento total entre os media mainstream e o que a população quer”.

Rui Flores alerta para uma outra questão que esta análise suscita: saber-se quem é que controla os jornais. “Vimos curiosamente Julian Assange, praticamente na véspera das eleições, a dar uma entrevista à Russia Today em que afirma que a política norte-americana, nomeadamente Hillary Clinton, é de certa forma controlada pela grande banca internacional, pela finança internacional. Essas entidades provavelmente conseguem ter algum poder para irem construindo uma narrativa em que o apoio a um candidato é melhor para o sistema do que o apoio a outro candidato.”

Os dois países

Ardyth Comper olha para os resultados eleitorais e diz, sem hesitar, que demonstram que “as pessoas votaram com as emoções”. “Não havia nada em Hillary Clinton que fizesse os eleitores dizerem ‘Sim! Queremos votar nela!’, como aconteceu com Obama há oito anos”, aponta a norte-americana.

“Parece-me que este voto demonstra que as pessoas estão fartas”, analisa Rui Flores. Estão fartas do sistema, “estão fartas desta questão de haver duas ou três famílias nos Estados Unidos que vão sucedendo no poder – estou a pensar nos Kennedy, nos Bush, nos Clinton. Este voto parece-me um grito contra isso”.

Para o especialista em relações internacionais, a vitória de Trump permite ainda outra leitura: “Parece-me que há claramente uma divisão nos Estados Unidos entre o mundo rural e o mundo urbano”. A eleição deste Presidente demonstra que “é um país dividido ao meio, entre uma América mais tradicional, mais agrária, mais rural, e uma América mais progressista, mais moderna, mais cosmopolita – são dois mundos completamente à parte”.

Ana Borges, antiga residente de Macau a viver no Kansas, é mais incisiva: a vitória do republicano, um facto que a deixou profundamente desagradada, demonstra que os Estados Unidos não são aquilo que parecem. “Os norte-americanos consideram-se a maior nação do mundo mas, em termos sociais, estão ao nível do terceiro mundo”, atira.

E agora? Agora há medos, vários. Linda Switzer entende que “a vitória de Donald Trump tem ramificações a longo prazo para o país por muitas razões, mas sobretudo no que diz respeito aos assentos que vão ficar vagos no Supremo Tribunal”. A norte-americana acredita que “os fundamentos religiosos vão fazer regredir o direito de escolha das mulheres e os direitos da comunidade LGTB”. Em suma: “É um dia muito triste para os nossos filhos e os nossos netos”.

Noutro plano, Switzer destaca o impacto imediato nos mercados financeiros de todo o mundo – as bolsas europeias abriram ontem em queda, as asiáticas fecharam a perder. “As relações internacionais com a China e com a Rússia vão ser ainda mais ténues. São tempos assustadores.”

Ardyth Comper mostra-se ligeiramente mais optimista, até porque “Donald Trump é o tipo de rico viciado em Wall Street”. “É do interesse dele que tudo continue como está para poder continuar a fazer dinheiro.” Mas há aspectos em que os Estados Unidos deverão mudar: “Vai ofender muita gente, provavelmente, ao estilo de Duterte, mas não acredito que vá fazer grandes ondas”. A americana destaca que a máquina governamental é enorme. “Sim, o Presidente é a pessoa mais poderosa, mas é apenas uma pessoa.”

Os republicanos conquistaram também ontem o controlo do Senado norte-americano, depois de já terem assegurado a Câmara dos Representantes. “São todos do mesmo partido de Trump, mas vão alinhar no mesmo discurso? É difícil dizer”, continua Comper. “Quando se olha para áreas como o Pentágono e a Defesa, há muitas coisas que estão de tal modo enraizadas que é difícil alterá-las de um dia para o outro”, acrescenta. Ardyth Comper partilha, no entanto, do receio de Linda Switzer em relação à justiça e ao modo como vai ser constituído o Supremo Tribunal.

Como emigrante, Ana Borges não teme alterações sociais no modo como vive, mas acredita que em breve começará a caça aos ilegais, sendo que “será mais difícil para quem quiser emigrar para os Estados Unidos”.

Caixa de surpresas

“A única certeza que fica destas eleições é que vivemos num mundo cada vez mais imprevisível”, nota Rui Flores. A imprevisibilidade é a nova tendência: “As surpresas eleitorais vão continuar a acontecer, o fenómeno do populismo está a aumentar no mundo. A imprevisibilidade política vai ser a grande questão para o futuro e as bolsas de valores a caírem um pouco por todo o mundo demonstram isso”.

A eleição de ontem foi, de algum modo, a abertura de uma caixa de surpresas. E “as surpresas vão suceder-se, sobretudo com a implementação de possíveis políticas trumpianas”. Resta agora saber se o vencedor vai avançar com as promessas que tantos eleitores moveram. “Vai o muro ser construído, a separar a América do México? Quem vai pagar? Como é que vai pagar? Os muçulmanos vão poder deixar de entrar nos Estados Unidos? Como? O que é que vai acontecer aos que lá estão? O Estado Islâmico vai ser derrotado, como prometeu Donald Trump? Como? Com tropas no terreno? Os Estados Unidos vão sair da Europa?”, lança o analista.

Num futuro difícil de imaginar, os Estados Unidos deverão regressar “ao isolacionismo, que é uma escola que tem história nos país”. Numa perspectiva mais abrangente, há que observar como vai ser o relacionamento com Moscovo, alerta Rui Flores. “É a questão essencial de tudo isto. Donald Trump diz que é preciso dialogar com a Rússia – vamos ver como é que ele vai tentar levar a bom porto essa lógica do relacionamento mais próximo com a Rússia”, afirma, recordando que muitos julgam que se trata de uma ameaça para os Estados Unidos.

E a China? A China dizia ontem, através de um editorial do Global Times, que Trump serve melhor a Pequim do que a adversária derrotada. Já depois de eleito o 45o Presidente norte-americano, a diplomacia chinesa declarou que acredita que poderá trabalhar com os Estados Unidos no sentido de manter um “desenvolvimento estável e equilibrado” das relações bilaterais e uma gestão “responsável” dos desacordos.

Na campanha eleitoral, recorda Rui Flores, Donald Trump “foi dizendo que era preciso aumentar a presença militar norte-americana no mar do Sul da China, que é preciso investigar e punir a China por práticas comerciais desleais, que quer designar a China como um manipulador da divisa e que quer garantir que os Estados Unidos conseguem travar os ataques cibernéticos oriundos do gigante asiático”. São estas as grandes políticas de Donald Trump para o relacionamento sino-americano. Se vai mudar de ideias e perceber que são um erro, um grande erro, só o futuro o dirá.

10 Nov 2016

América

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão posso deixar de constatar o óbvio. O juízo final está para muitíssimo breve, as presidenciais americanas estão finalmente aí. Não fossem os EUA das maiores potências mundiais e as presidenciais não nos interessariam um chavo, mas interessam… e muito. O resultado interessará além fronteiras porque as consequências irão além fronteiras, ainda que um deles queira fazer um muro. Nos últimos meses temos assistido à desgraça de campanhas políticas que têm surpreendido (negativamente) o mundo inteiro. No fundo, os americanos terão que escolher um de dois males. As agendas democratas e republicanas estão definitivamente lá, levada a esteróides por duas personagens com comportamentos e ideias muito distintas.

Surpreendentemente ou não, o sexo veio muitas vezes à baila e foi ferozmente discutido, seja ele levado por políticas públicas ou pela misoginia de certos candidatos. Talvez em qualquer outra eleição presidencial o sexo não estivesse tão presente, mas desta vez foi diferente. Falamos de dois candidatos: um homem e uma mulher. Claro que ter uma presidenta eleita para representar a grande potência económica é um passo gigante  para a forma como as mulheres são representadas e o movimento feminista, mas acho que todos nós concordamos que isso não pode ser a única razão. Não se vota com a vagina. Ponto. Mas muito menos se aceitam comentários machistas onde uma candidata é reduzida ao cliché feminino de fragilidade, ou pelas palavras do opositor falta de stamina.

O outro candidato é de uma imbecilidade já familiar já estamos cansados de o ouvir. Mas não sou capaz de deixar de relembrar a pura misoginia que o indivíduo tem tão levianamente espalhado, sem grandes consequências à sua popularidade. Como é que as contínuas denúncias de assédio sexual, como é que palavras, comentários e actos de desrespeito contra mulheres (e a que o mundo foi testemunha) não fazem fraquejar a sua posição? O mistério pode ser desvendado se nos depararmos com uma América pequena que pratica exactamente o que este sujeito de cabelo amarelo pratica: ignorância. Eis um exemplo: Os bebés são arrancados do útero das mães dias antes do parto. Esta é a fala quasi-verbatim proferida no último debate em reposta ao facto da mulher da parada ter votado a favor de mais e melhores apoios para quem decidisse pelo aborto. O tópico é bem polémico, é certo, mas não significa que a discussão possa ser feita à toa sem qualquer conhecimento sobre o procedimento. No fundo pretende-se chocar os que são contra a prática com pormenores gráficos de fetos mortos antes de tempo, sem de facto saberem que isso é mentira. Mas o que importa? Há que castigar as mulheres que o façam anyway.

Ainda deste mesmo candidato, ainda há pouco tempo saiu um vídeo de 2005 onde ele explica como gosta de tratar as mulheres eu beijo-as, agarro-lhes a c***, eu posso fazer tudo que quiser. Para além de que as mulheres são gordas, porcas e animais nojentos. Não interessa o que as mulheres escrevem, desde que tenham um pedaço de rabo apetitoso. As mulheres devem ser tratadas como galdérias. A fulana é feiosa ou beltrana é gorda. E este é o dia-a-dia do candidato republicano. Não será de estranhar que ele era (já não é) o dono da maioria dos concursos de beleza, não fossem estes concursos o enaltecer da objectificação do sexo feminino. As alterações propostas por ele foram basicamente diminuir o tamanho dos fatos de banho e aumentar o tamanho dos saltos altos para serem usados pelas candidatas, e humilhar grandemente quem ele não achasse bonita e que não tivesse as proporções correctas.

Por isso, sim, há motivos para ficarmos preocupados. Por um lado temos uma mulher a carregar Wall Street ao colinho e  por outro temos um homem que merecia experienciar a ira das senhoras que passam por tamanha misoginia e machismo. Porque parece-me deveras preocupante que ele nem tenha vergonha ou filtro social para perceber que esta forma de tratamento é atípica no séc.XXI, e absolutamente ofensiva para as mulheres (e todas as outras pessoas que ele tem ofendido nos últimos meses).

Mas seja o que o povo americano quiser. Resultados, tarda quase nada.

8 Nov 2016

EUA | Incertezas sobre candidato vitorioso nas vésperas da eleição presidencial

Nem uma, nem o outro são figuras mobilizadoras. Ela porque é a continuidade de um certo sistema; ele porque rompe com tudo, sobretudo com valores que, aos olhos de muitos, devem ser preservados. Na contagem decrescente para a eleição mais importante do ano, há dúvidas sobre os resultados. Ainda assim, tudo aponta para que a democrata Hillary Clinton seja a sucessora de Barack Obama

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] um homem com tanto carisma que mereceu, quase a título de incentivo, o Prémio Nobel da Paz. Nas últimas eleições em que os Estados Unidos mudaram de Presidente, era só certezas: Barack Obama conquistou multidões, dentro e fora do país, e a escolha para ocupar a Casa Branca representava uma certa América, mais livre, mais contemporânea, mais despida de preconceitos.

Desta vez, a história é outra. Há desilusão nos Estados Unidos com o processo que termina – ou começa – amanhã, dia 8 de Novembro. É o que sente Ricardo Alexandre, jornalista da Antena 1, que por estes dias está nos Estados Unidos a acompanhar a recta final da campanha e a tentar perceber o que é que, afinal, vêem os eleitores norte-americanos em Hillary Clinton e Donald Trump.

“Há desânimo, sim”, conta o jornalista ao HM. “Por um lado, todo o processo é muito longo e, por outro, os dois principais candidatos são uma espécie de mal-amados.” Ricardo Alexandre desdobra a ideia: o candidato republicano “não sabe ser político”; já a candidata democrata “está na política há muito tempo”. “Foi uma imagem que me transmitiram e que, creio, ilustra bem o ambiente geral”, diz o repórter que, entre outras paragens, foi a El Paso, no Texas, e à vizinha Ciudad Juárez para saber o que pensam as pessoas que ali vivem de uma das ideias mais polémicas de Donald Trump – a construção de um muro na fronteira com o México para impedir a entrada de ilegais.

Deste lado do mundo, atento a todas as informações que vão sendo publicadas sobre a eleição presidencial norte-americana, o especialista em relações internacionais Rui Flores concorda com o problema da falta de empatia dos dois principais candidatos: Donald Trump é “um caso de amor ou ódio” e Hillary Clinton é vista como “mais do mesmo”.

“As sondagens também demonstram isso. É a campanha que mais ódios levanta. Os eleitores vão votar sem grande convicção. Vão provavelmente mais convictos os eleitores de Donald Trump – ele fez a sua campanha claramente para o homem branco, que tem sofrido com a crise económica, com o fecho de fábricas no centro dos Estados Unidos”, observa Flores. Ricardo Alexandre acredita que será Hillary Clinton a vencedora mas, se o desfecho for outro, então será “a vitória do homem branco”. Do homem como palavra para ser do sexo masculino. “É que nem sequer é o homem e a mulher brancos. É apenas o homem branco porque ele, de facto, alienou muito do voto feminino”, vinca Rui Flores.

Do contra ao igual

Donald Trump ganhou tempo de antena com um discurso do contra: contra o livre comércio, contra a emigração, contra muitos dos valores que são dados como certos – ou que, até à data, eram dados como certos – pela maioria dos norte-americanos em particular e pelo mundo em geral. “É um discurso de isolamento da América e esse discurso tem chão por onde crescer porque, de facto, destina-se a um eleitorado que tem sofrido muito com a globalização nos últimos anos”, nota Rui Flores.

O discurso sobre a emigração foi, provavelmente, o que mais chocou, continua, para recordar que não se está perante um fenómeno novo, exclusivo dos Estados Unidos. “As pessoas revêem-se nesse discurso, que é feito também na Hungria, com Viktor Orbán, que é feito em França, com Marine Le Pen. O populismo associado ao nacionalismo veio para ficar, muito como consequência da crise financeira, económica e social que começou em 2008. Isso tem-se visto um pouco por todo o lado – quer a extrema-direita, quer a extrema-esquerda a subirem nos parlamentos, em várias eleições que têm decorrido um pouco por toda a Europa.”

Nem o populismo de Trump, nem a promessa de profissionalismo político de Hillary Clinton foram, no entanto, capazes de se traduzirem em discursos dinamizadores de massas, concorda o analista. “Não me parece também, ao mesmo tempo, que haja uma mensagem de esperança num mundo melhor nestes dois candidatos. Hillary Clinton será mais do mesmo, Donald Trump tem um discurso de ruptura mas que não mobiliza mais do um segmento – importante, naturalmente – que é o homem branco”, diz.

Oh Ohio

A possibilidade de o discurso destinado ao homem branco vencer num país que, há duas eleições, se congratulava por ter escolhido um Presidente – o primeiro – negro não está, nas vésperas do sufrágio, totalmente eliminada. O jornalista Ricardo Alexandre acredita que Hillary Clinton sairá vencedora e Rui Flores também, mas a vida da candidata democrata complicou-se na passada semana.

Num processo com contornos muito específicos – o sistema é indirecto e colegial –, são necessários 270 votos eleitorais para se ganhar a eleição. “Até este momento, as coisas estão a correr bem para Hillary Clinton”, aponta Rui Flores, numa análise feita durante este fim-de-semana. “Após uma semana de algum desgaste, por causa da reabertura do inquérito do FBI [no caso dos e-mails] à candidata, há basicamente dez estados onde não é claro quem poderá ser o vencedor. Desses dez estados, há cinco verdadeiramente importantes”, prossegue.

Rui Flores olha para os dados e destaca a importância das sondagens ao nível estadual, para explicar que a democrata venceria sem os dez estados indecisos, aqueles que “podem cair para um lado ou para o outro, para o campo democrata ou para o campo republicano”.

O especialista não deixa de ressalvar que, “nos últimos anos, internacionalmente, tem havido algumas surpresas com as sondagens” e dá o exemplo recente do Reino Unido com o Brexit. Mas, para que Donald Trump seja eleito, acrescenta, serão necessárias muitas surpresas eleitorais em alguns estados essenciais.

“O estado mais fraco para Hillary Clinton – daqueles em que as sondagens mostram que ela está à frente – é o Colorado, que dá apenas nove votos eleitorais para o colégio eleitoral. É um estado interessante, porque Donald Trump fez campanha na semana passada e focou a sua atenção”, anota. “Para Donald Trump ganhar, era preciso que o Colorado caísse para o seu lado e todos os tais dez estados onde não é claro quem vai ganhar caíssem todos para o lado dele.” À hora a que Rui Flores falava ao HM, Hillary Clinton tinha assegurados 272 votos eleitorais, “o suficiente para ganhar”.

Neste exercício de contabilidade e previsões cabe ainda um fenómeno interessante das eleições presidenciais norte-americanas: o Ohio. “É um estado que tem sido, desde 1964, o barómetro da América. O estado não é muito grande – tem apenas 18 votos eleitorais – mas, desde 1964, o candidato que ganha no Ohio é o candidato que ganha as eleições.” Ora, no caso em análise, as sondagens mais recentes demonstram que, nesse estado, provavelmente Donald Trump irá ganhar. “É por isso que muitos candidatos fazem campanha no Ohio, porque quem ganha lá, ganha as eleições. A acontecer a vitória de Trump no Ohio e a de Hillary Clinton a nível nacional, as eleições terão essa piada: acabar com o mito de que quem ganha no Ohio, ganha as eleições”, alerta Rui Flores.

Apoios e jornais

Ainda na análise às sondagens, o especialista em relações internacionais vinca que demonstram uma enorme diferença entre os dois campos no que toca ao eleitorado. “Hillary Clinton é mais popular nas grandes cidades, tem sondagens muito favoráveis em Nova Iorque, na Califórnia, em Massachusetts, na Pensilvânia, no Illinois, no Michigan. São estados democratas em que as sondagens demonstram que vão votar massivamente em Hillary Clinton e são estados que quase lhe garantem a eleição”, indica. Já Donald Trump “é um candidato mais rural, tem os estados mais pequenos da América rural, são quase todos sólidos republicanos, e tem o Texas – que é o maior –, é um estado sólido para ele.”

“Se tivéssemos de apostar, diríamos que Hillary Clinton vai ganhar”, diz Rui Flores, que enumera também outros factores a ter em conta nisto de se tentar ser Presidente da primeira economia do mundo, como o facto de a candidata democrata “ter gasto muito mais do que Donald Trump”. “Conseguiu movimentar mais dinheiro e receber mais fundos para a sua campanha, o que é um sinal da capacidade que tem de atrair apoiantes que lhe dão dinheiro para a campanha.” Não deixa de ser curioso o facto de vários artistas plásticos terem contribuído para o movimento pró-Hillary, com dinheiro e com a organização de leilões de obras em que Clinton aparece retratada.

Rui Flores fala ainda de “outro sinal importante de que Hillary Clinton continua à frente”: o número de jornais que estão com a candidata. São 53 a favor da democrata, contra um que apoia expressamente Trump. “Desde 1998, a tendência dos jornais é estarem do lado do vencedor. A excepção foi a reeleição de George W. Bush, em 2004, em que mais jornais apoiaram John Kerry do que o então Presidente.”

E depois?

A eleição acontece depois de uma campanha rica em acusações mútuas, umas mais graves do que outras. Mentiras e verdades, sexo, o (des)respeito pelas mulheres, o caso dos e-mails – houve de tudo nos confrontos entre os dois candidatos principais. Nos 90 minutos de um dos debates televisivos entre Hillary Clinton e Donald Trump, o candidato republicano acusou 26 vezes a adversária de estar a mentir. Já a democrata recorreu ao argumento dez vezes.

“O grande desafio do vencedor destas eleições é congregar a nação americana, que vai sair daqui muito dividida. Vamos ver se, no caso de vitória de Hillary Clinton, Donald Trump vai cumprir a promessa de não reconhecer os resultados eleitorais”, diz Rui Flores, acerca da possibilidade levantada, no mês passado, pelo candidato. “Isso trará muitos problemas ao sistema político, à credibilidade internacional dos Estados Unidos e poderá fazer prolongar a instabilidade no país.”

Depois, há ainda a investigação do FBI aos e-mails de Hillary Clinton. “Há quem considere que director do FBI violou as regras que dizem que deve ter um comportamento equidistante e deve tentar não influenciar politicamente o resultado das eleições. Ao reabrir a investigação pôs em causa, de certa forma, a independência desta instituição. E isto vai ter consequências para o futuro: a investigação não vai estar concluída até terça-feira. O que vai acontecer a essa investigação quando Hillary Clinton for eleita, se for eleita?”, lança o analista. “Toda esta campanha afecta as instituições americanas.”

Os chineses gostam dele

É um fenómeno que tem sido acompanhado de perto nas últimas semanas pelo South China Morning Post: há muitos chineses a viverem nos Estados Unidos que são fervorosos apoiantes de Donald Trump. O facto poderá colocar em causa o retrato deixado por estudos e pesquisas, que indicam que cerca de 50 por cento dos asiáticos a viverem em solo norte-americano são democratas ou simpatizantes, sendo que apenas 28 por cento dizem ser republicanos. A euforia em torno de Trump, lê-se nas declarações que o jornal de Hong Kong foi recolhendo, tem que ver sobretudo com o tipo de valores que o empresário candidato a Presidente tem estado a defender durante a campanha: “a família” e “medidas fortes contra a emigração ilegal” são ideias que agradam aos sino-americanos que fazem parte, por exemplo, do movimento “Chinese Americans for Trump”. Também têm caído bem na comunidade as promessas de cortes fiscais e “pôr os cidadãos americanos em primeiro lugar”. Há quem entenda ainda que o republicano representa “valores asiáticos” como “o pragmatismo, o trabalho árduo e a honestidade”. O receio de que os Estados Unidos possam vir a ser palco de um ataque terrorista, a inércia atribuída à Administração actual na luta contra os inimigos e a oposição a Obama também funcionam a favor de Trump no seio dos sino-americanos – muitos deles pensam que o Partido Democrata, com as suas políticas em relação à homossexualidade, minou os valores tradicionais. A “política aberta de emigração” arruinou a economia e a ordem do país, dizem estes chineses com nacionalidade americana, que têm saído à rua para demonstrar o entusiasmo pelo candidato republicano.

Tanto faz para Pequim?

A China é um tema clássico nos debates entre candidatos e Pequim tem consciência disso. Nesta corrida, a questão chinesa colocou-se logo no primeiro confronto televisivo entre Hillary Clinton e Donald Trump. Nenhum deles poupou a China – terá sido, de resto, o único assunto em que estiveram de acordo. De repente, eis a pergunta: qual será o mal menor para a segunda economia do mundo? Li Keqiang, o primeiro-ministro chinês, não tardou a dar a resposta: a relação entre Pequim e Washington é para ser cada vez melhor, independentemente de quem saia vencedor das eleições de amanhã. É nisso que, pelo menos publicamente, o Governo Central está interessado. No exercício de crítica à China, os analistas entendem que Donald Trump é o melhor: acusa o país de ter roubado postos de trabalho aos Estados Unidos, de ter contribuído para a desvalorização da moeda no âmbito do comércio global e de ter falhado no controlo exercido sobre a Coreia do Norte. Já Hillary Clinton não surpreendeu – ao contrário do oponente, há muito que se sabe que censura o modo como Pequim lida com os direitos humanos e até mesmo a forma como a China está organizada em termos políticos. Na Administração de Obama, foi vista como sendo uma figura essencial nas tentativas de controlar a influência crescente de Pequim na Ásia.

7 Nov 2016

Rien ne vas plus

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] fazer fé nas sondagens eleitorais – e desde Junho que a credibilidade das sondagens foi posta em causa, devido à surpresa que constituiu o anúncio do resultado do referendo no Reino Unido sobre a continuidade do país na União Europeia –, Hillary Clinton estará à beira de se tornar a primeira mulher presidente dos Estados Unidos da América. Para que a coisa se torne realidade “basta” que a antiga Secretária de Estado vença na Florida, estado flutuante, que tem sido o centro das atenções em vários momentos importantes das eleições norte-americanas, como em 2004, quando George W. Bush conseguiu ser reeleito.

É claro que a questão de as sondagens não conseguirem ver a fundo o que pensam as populações é premente. Não porque os métodos se tenham tornado cada vez mais falíveis, mas sim porque as sondagens não conseguem entrar na mente das pessoas. Por mais que o mundo se pareça com o ambiente controlado do livro “1984” de George Orwell, as pessoas continuam a ter total soberania no seu pensamento. Por mais científico que seja o método, por mais representativa que seja a amostra, as sondagens não ultrapassam o drama interior dos eleitores que se preparam para ir votar no candidato A ou B, mas que não têm coragem de o admitir. São eleitores que não exteriorizam o sentido do seu voto, porque optaram por uma atitude de resistência passiva à narrativa que foi sendo construída à sua volta. O que lêem nos jornais, o que vêem nos canais de televisão, como que coincide num só ponto: um dos candidatos é absolutamente incompetente, misógino, intolerante, anti-imigrantes, anti-China, anti tanta coisa. Envolvidos numa narrativa absolutamente negativa contra um dos candidatos, sobretudo quando se toma em consideração os jornais americanos que tomaram posição e anunciaram o apoio a um dos candidatos, os eleitores têm vergonha de admitir que afinal se preparam para votar naquele que a imprensa do mainstream qualifica como o “patinho feio”.

A narrativa está construída. Na mesma linha do anúncio de alguns militantes do Partido Republicano que iriam votar Hillary Clinton em 2016, também os jornais mais conservadores, que durante anos apoiaram candidatos republicanos, optaram nestas eleições por sugerir o voto na candidata democrata ou simplesmente declararam que não apoiavam Donald Trump. Segundo uma compilação dada à estampa pela revista britânica The Economist na semana passada, de todos os jornais norte-americanos com maior circulação, apenas um declarou apoio a Donald Trump, o Las Vegas Review-Journal. Outros, tradicionalmente conservadores, que nas últimas nove eleições presidenciais (nos últimos 32 anos!) estiveram sempre do lado dos candidatos republicanos, optaram este ano por apoiar Hillary Clinton. São os casos do Columbus Dispatch, do Arizona Republic e do Richmond Times-Dispatch. A candidata democrata tem uma considerável almofada de apoio, com 53 jornais do seu lado, 13 sem opinião e outros três aconselhando o voto num dos dois outros candidatos.

Com este “enquadramento” jornalístico, com claras consequências na opinião pública, é pois difícil dizer-se que se está contra a maioria. E a maioria, segundo as várias sondagens conhecidas, parece estar mais do lado de Hillary Clinton do que Donald Trump. Isto apesar de o candidato republicano ter conseguido reduzir distâncias nesta última semana de campanha eleitoral, à boleia da ajuda que lhe deu o director do FBI, que reordenou a abertura do inquérito a Clinton, por causa dos e-mails apagados. O mesmo FBI que, em Julho, decidiu-se pelo arquivamento do processo, por não ter conseguido provar intenção criminal.

A média das sondagens nacionais vai dando uma pequena vantagem a Clinton, de 45.5 por cento contra 43.1 por cento. A diferença ainda que mínima pode ser importante em termos de voto popular. Apenas em quatro eleições o candidato que mais votos expressos pelos eleitores obteve nas urnas não foi eleito presidente. Assim aconteceu em 1824, 1876, 1888 e em 2000, quando George W. Bush foi eleito para o seu primeiro mandato com menos votos do que Al Gore. Nos Estados Unidos funciona um sistema indirecto na eleição do presidente, em que a cada um dos estados da União, tendo em conta o número de habitantes, é atribuído um número definido de votos eleitorais de um colégio que elege então o presidente. Para ser eleito, o candidato precisa de recolher um mínimo de 270 votos eleitorais. O estado que mais representantes elege para o colégio eleitoral é a Califórnia, com 55 votos. Outros, como o Alasca ou o Delaware, contribuem com apenas três votos.

A diferença eleitoral é pois feita ao nível dos estados. À entrada para os dois últimos dias de campanha, havia, de acordo com a média das sondagens publicadas nos Estados Unidos, 23 estados que iriam tombar para Clinton e 22 para Trump. Mesmo à beira da eleição, após uma semana de desgaste político-judicial, a candidata democrata, com os votos eleitorais dos estados que iriam com alguma segurança – de acordo com as sondagens – cair para o lado democrata, estaria à beira da eleição, pois teria garantidos 268 votos eleitorais dos 270 necessários para ser eleita. Vários dos estados mais populosos, como a Califórnia, Illinois, Nova Iorque ou Pensilvânia estão do lado democrata (só nestes quatro estados Clinton deverá obter 119 votos do colégio eleitoral). Já Trump tem como principal base de apoio as mais que prováveis vitórias no Texas, no Tennessee, Indiana e Missouri, quatro estados que lhe garantem apenas 70 votos eleitorais, de um total de 157 votos eleitorais que estarão certos do lado republicano.

As eleições vão pois – como sempre – decidir-se nos estados “swing”, os estados que tanto votam num ou noutro candidato. São estados “too close to call”, em que a diferença entre os dois candidatos nas sondagens é inferior à margem de erro, e relativamente aos quaise o melhor é atirar a moeda ao ar para dizer quem vai vencer. A dois dias do fim da campanha, havia nessas circunstâncias 11 estados, que representam 113 votos do colégio eleitoral. O prémio mais apetecido é pois a Florida, com os seus 29 votos eleitorais. E o Ohio, o estado em que todos os candidatos querem vencer, pois tem desde 1964 sempre votado no candidato que se muda para a Casa Branca.

Para Trump poder ganhar, teria de conseguir sair vencedor neles todos, o que parece ser uma tarefa assaz complicada. Por tudo isto, por ter de vencer o mainstream, por ter de vencer a opinião pública, a vitória de Trump seria a todos os níveis mais espectacular. Ainda assim, se nos aproximássemos de uma mesa de jogo imaginária, em que teríamos de apostar no azul ou no encarnado, democrata ou republicano, a probabilidade de recebermos alguma coisa pelo nosso investimento parece, a esta distância tão curta da meta eleitoral, ser muito maior se colocarmos as nossas fichas no azul.

7 Nov 2016