António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasAlzheimer in memoriam patris, José Augusto Caeiro [dropcap]A[/dropcap]demência está na minha família. É herança do lado do pai. A minha avó morreu com demência senil em estado avançado. Vivi com o meu avô nos últimos oito anos da sua vida e também o vivi degenerar, mas não ao ponto a que a avó chegou. Portanto, é dos dois lados que vem o testamento. Lembro-me de que se falava de arterioesclerose, mas era demência, loucura. Cedo o meu pai teve medo de que lhe pudesse caber o mesmo destino. Com “cedo” quero dizer logo após a morte de sua mãe. Tinha à época a minha idade, pouco mais de cinquenta anos. Decorava páginas e páginas do dicionário, que depois invocava em passeios a pé de Alvalade, até onde ia de meio de transporte, até casa, na Junqueira em Alcântara. Punha-se sempre desafios à memória a que sempre respondia com sucesso. Eu nunca tive a memória do pai. Para ele, cada pessoa tinha um nome de que se lembrava. Conhecia as ruas de Lisboa por tu e os nomes próprios ou pelos quais são conhecidas. Ia diariamente à Cinemateca ver filmes, sem nunca descurar a ficha técnica, que lia e aprendia de cor. Lia os jornais diários, sempre dois. Mania que deve ter preservado do tempo em que havia jornal de manhã e à tarde. Por mais que ficasse comprovado que a memória dele era excelente, o medo de ficar como a mãe não atenuara. Houve sempre uma sombra que aumentou de volume e de negrura. Era com horror que sentia a loucura já dentro de si, a demência, o Alzheimer, seja lá como for designado o eclipse do espírito, o esquecimento, a perda de identidade que resulta da lembrança das pequenas coisas: como alguém se chama, qual o nome da rua, quem dá nome a uma rua. O esforço de preservar a memória não era cognitivo apenas, nem resultava de uma resistência a um quotidiano com buracos, furos, lacunas, para que fosse preenchido. Era outra coisa. Era o medo de perder identidade pessoal. O desconforto de não se lembrar de um nome depressa se espalhou como um fogo exposto ao vento. Passa a ser um déficit de diversas ordens: cognitivo, sim, mas também com deficit de acuidade de atenção, desorientação no espaço e também no tempo. Numa das saídas do Corte-Inglês de Lisboa para o Metro, revelou um desnorteamento total. É difícil perceber qual a entrada do Metro, mas não para alguém que estava habituado a ir lá ao cinema durante tantos anos e também a apanhar o Metro. A partir de determinada altura, era difícil dar com locais habituais, como restaurantes. Dava-se o caso de se lembrar das zonas de Lisboa percorridas por Eléctricos, já desactivados. Queria saber onde era a paragem de Eléctrico, quando já não existiam sequer carris. Chegou sempre, mas não conseguia reconstituir o caminho, nem sabia há quanto tempo tinha saído de casa. A hora da saída estava envolvida numa nebulosa que invadia também o local por onde passava. Tudo era como um sonho. Não sabia mesmo como chegava. Houve um dia que fui envolvido pela atmosfera pessoal do meu pai. Era um nevoeiro espesso. A presença desse clima era amplamente justificada ou assim me parecia. Às sextas-feiras o pai juntava-se a um grupo de amigos para jantar. Daquela vez, eu também ia. Era em Alvalade num restaurante conhecido. Fomos de autocarro até à praça de Londres e depois fomos a pé, porque não conseguíamos apanhar nenhum táxi ou outro meio de transporte. Chovia e já estava escuro. Lá fomos até Alvalade. Quando me dirigia para o interior do bairro, o meu pai disse que não era aquele, mas outro, também de dois irmãos. Subi a norte de Alvalade. Fui dar a bairros onde nunca tinha estado na vida. Acreditei piamente no pai. Segui-o. Depois de uma boa hora, achei que devia ligar para os amigos, coisa que não tinha feito ainda, porque estava absolutamente convencido de que o pai sabia o que estava a fazer e para onde ir. Percebi logo, à conversa com um dos amigos, que estávamos muito longe e que o sítio era onde eu inicialmente achava que era. O surto tinha durado muito tempo, tempo demasiado para não dar conta de que havia uma clara deterioração das condições mentais. As perdas e o desnorteamento em Lisboa eram por demais evidentes para não serem percebidas com alarme. Nunca mais as coisas foram diferentes e tudo se precipitou em pouco tempo, muito pouco tempo, em direcção à ruína. Um dia mais tarde, saiu às 17h00 para fazer tempo até ao jantar, ia à Mexicana. Pelas 21h00, recebo um telefonema de um amigo do pai à procura dele. Sai em pânico, para o ir buscar, calcorreando o que achava que podia ter sido o seu caminho. Em direcção à Mexicana, como se ele ainda lá estivesse. De casa, recebo um telefonema a dizer que o pai tinha aparecido. Procurar um pai em Lisboa, andar à pergunta de uma pessoa cujo paradeiro é desconhecido é qualquer coisa. Tudo é resistente, nenhum sítio é o que nos permite encontrar alguém e todos os sítios são sem esse alguém, sem ninguém, sem aquela pessoa que queremos encontrar. Se uma casa ficar revirada à procura de chaves e de óculos, a cidade fica inerte, nada diz na sua mudez, onde alguém se encontra. Ninguém nos ajuda. Tudo é vazio. É um vazio cheio de um nada insuportável. Não sei como conseguiu chegar a casa por sua alta recriação. Não consegue explicar como se perdeu ou não se lembrava de que tinha um jantar ou onde era o restaurante do jantar. Um segundo episódio, ainda mais complexo, ocorreu. Os meus pais viviam a pouco menos de mil metros da CUF de Belém. A mãe manda-o para casa, enquanto ia aviar uma receita à farmácia. O pai foi numa direcção completamente diferente. Apareceu nas Docas de Alcântara sem saber como ou o que lá terá ido fazer. Ainda conseguiu dizer a um polícia que estava perdido. O polícia chama um táxi que o leva à morada que entretanto estava à vista na carteira. Foi o pânico enquanto não aparecia. A mãe não se apercebia do estado em que estava, mas eu sabia perfeitamente que o pai não podia ser deixado só em nenhuma circunstância, nem mesmo a pouco menos de um Km de casa. Tomei a minha decisão de não o deixar andar só e de lhe cercear a sua liberdade individual. Ainda me dói. Não o fiz só por ele. Fi-lo para o ter debaixo de olho, sob a minha alçada. Um dia a minha mãe pergunta-me onde estava o pai, porque não estava em casa. Tinha ido à CGD actualizar a caderneta. Nem tempo tive para me angustiar. Era sempre assim: medo de que se perca, medo que seja roubado ou espancado ou atropelado, medo indefinido, um medo indeterminado: o medo. Vivia em casa dos pais, para o que desse e viesse. Senti-a o pai atrás de mim, à espera para irmos passear. Parecia um menino de colégio com um bibe e uma pasta à tiracolo. Não dizia nada para não perturbar o que quer que eu estivesse a fazer ao computador. Depois, olhava para ele e dizia-lhe: “vamos embora?”. Comprava-lhe dois jornais a meio caminho entre casa e o café onde íamos. Íamos e vínhamos a pé, para ele andar. Era assim que gastávamos a manhã. Depois de almoço, ia dar aulas. Encontrava o pai sempre sereno, excepto no último ano umas duas vezes, em que esteva “com a neura”. Íamos ver o rio Tejo, o sol a pôr-se, adivinhar o Atlântico. Depois era jantar e recolher para a cama. Esperava sempre que fosse tranquila. Vezes sem conta acordava, tomava duche e fazia a barba, tudo na mesma noite. Dizia-me: “sabes que gosto sempre de tomar banho e de fazer a barba”. Pressentia-o sempre atrás de mim. Ficava sem dizer nada, para não me desconcentrar. Depois pedia-me para pesquisar qualquer coisa na internet: o nome de uma canção ou de um actor. Ouvíamos Andy Williams ou Sinatra de quem ele tanto gostava. Lembro-me de ver o meu pai a caminhar na avenida da Índia. Estava sozinho. A figura de um velhinho pouco agasalhado a andar por ali sozinho num sábado de manhã, assola-me. Eu passava de carro também para ir para casa, porque não fui eu ter com ele, naquele dia? Eram só mais umas horas de convívio. Ah! que falta me fazes, ainda que nunca te apagues, enquanto eu for vivo.
Andreia Sofia Silva Manchete SociedadeDemência | Inaugurado novo centro de diagnóstico no São Januário O Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, Alexis Tam, inaugurou ontem o Centro de Diagnóstico e Tratamento de Demência, que vai funcionar junto às novas urgências do São Januário. Terá capacidade para atender até 30 doentes por dia, com uma lista de espera de um mês. Não estão previstas novas contratações [dropcap style=’circle’]É[/dropcap]a segunda inauguração dos Serviços de Saúde (SS) no espaço de meses, mas desta vez a pensar nos mais velhos que sofrem de perda de memória progressiva. No novo Centro de Diagnóstico e Tratamento de Demência há mesmo uma sala que parece saída do século passado, com sofás e bordados brancos e fotografias de uma Macau que já não existe espalhadas pelos corredores. Na sala da nostalgia, a pequena caixa de música com a bailarina, o ábaco e o velhinho bule ajudam a buscar pedaços de uma memória já frágil, mas que precisa de ser tratada. A pensar no Dia Mundial do Alzheimer, que se celebrou ontem, o Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, Alexis Tam, inaugurou o Centro que vai funcionar bem junto às novas urgências do São Januário e que terá capacidade para tratar entre 20 a 30 doentes por dia. Ali serão tratados os pacientes encaminhados a partir dos centros de saúde, sendo que no espaço haverá uma concentração dos serviços já existentes. “Os casos encaminhados para aqui poderão levar cerca de um mês [a serem analisados]. Esperamos reduzir o mais possível no futuro”, disse Alvis Lo, médico pneumologista que trabalha no hospital na área da Geriatria e que vai coordenar o novo Centro. O espaço terá salas de avaliação de funções cognitivas, salas de diagnóstico e tratamento médico e médicos especialistas em Geriatria, Psiquiatria e Neurologia. Contudo, segundo Alvis Lo, não está prevista a contratação de mais profissionais de saúde para este novo local. “Estamos bem preparados em termos de recursos humanos. Temos três consultas profissionais – Geriatria, Psiquiatria e Neurologia – e estes médicos vão continuar com os trabalhos. Não recrutamos novos médicos mas continuamos com os médicos que temos, vamos redistribuir os trabalhos.” O novo Centro chega mais de um ano depois da inauguração das novas urgências, sendo que não terá sido necessário um grande investimento, garantiu Alvis Lo. “O espaço estava destinado para as consultas da urgência, já tínhamos os equipamentos. Não tivemos um grande investimento.” Quatro mil doentes Não será fácil chegar até ali e admitir as doenças da perda de memória. Segundo Alvis Lo, nem todos aceitam ser avaliados. “Desde que a pessoa não recuse a avaliação no centro de saúde, da nossa parte o tempo pode ser bastante reduzido. Muitas vezes as pessoas recusam receber a avaliação dessa doença no centro de saúde.” Hoje existirão cerca de quatro mil doentes em Macau, mas continuam a faltar dados oficiais. “Há cinco anos já tínhamos uma consulta externa sobre a perda de memória. Mas em Macau não sabemos exactamente quantos são os doentes com demência, ainda que se estime que haja cerca de quatro mil doentes e mil casos confirmados”, acrescentou o coordenador do Centro. Alexis Tam garantiu no seu discurso que estes números têm tendência a subir. “Com o envelhecimento da população e com o aumento da esperança média de vida, prevê-se que este número vá aumentar.” Para isso já estão a ser pensadas medidas, como a criação de uma base de dados, como já tinha avançado o HM numa reportagem sobre o assunto. “Pretendemos estudar a viabilidade da constituição de um sistema de registo de dementes que possa ser útil na elaboração de políticas e na gestão de pacientes e dos serviços de acompanhamento necessários”, referiu o Secretário. Para além disso, “será criado um grupo de prevenção e tratamento da demência no âmbito da Comissão de Prevenção e Controlo das Doenças Crónicas, a quem é incumbida a função de estabelecer laços de colaboração com associações e organizações da sociedade, por forma a promoverem os trabalhos de sensibilização”, concluiu Alexis Tam. Secretário visita centro que apoia 230 utentes O Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura visitou ontem o Centro de Cuidados Especiais Longevidade, na Taipa. A funcionar desde 1998, o espaço está desde o ano passado a prestar cuidados a doentes que sofrem de várias patologias ligadas à demência. É, aliás, a única unidade na RAEM a fazê-lo. No dia em que a demência foi o tema, e em que se assinalou o Dia Mundial do Alzheimer, Alexis Tam chegou pontualmente às 15h00 para fazer a visita. Uma visita guiada, onde foi possível visitar várias salas para acompanhamento de idosos. Aqui, são estimulados a fazer várias actividades para ocupar os seus dias, mas sobretudo para continuar a exercitar o cérebro e prevenir doenças degenerativas do foro psiquiátrico. “Actualmente esta instituição tem capacidade para prestar cuidados a 230 utentes, todos em regime externo. Vinte e cinco vagas são destinadas a portadores de demências, sendo que neste momento existem 18 casos já identificados”, disse Paul Pun, Secretário Geral da Cáritas, que também esteve presente durante o encontro. A Instituição, que funciona com apoios do Governo, da Cáritas e também graças a trabalho voluntário, presta também apoio domiciliário, estando neste momento a acompanhar 80 casos. Alexis Tam, acompanhado do seu chefe de Gabinete, Ip Peng Kin, e da Presidente do Instituto de Acção Social (IAS), Vong Yim Mui, começou a visita pela sala de escrita. Munidos de pincéis e grandes folhas de papel, alguns idosos pintavam caracteres chineses. Tam esteve à conversa com alguns deles e questionou-os se estavam satisfeitos com as políticas de saúde levadas a cabo pelo Governo. A resposta foi positiva e veio pela boca de uma voluntária que ocupa os seus dias na instituição a ajudar quem mais precisa. A mulher estudou Medicina Chinesa durante seis anos e esteve mais quatro a aprender medicina ocidental. Entretanto, o filho teve uma doença e acabou por morrer, pelo que se dedica agora a ajudar quem mais precisa. Continuando a visita, o Secretário mostrou-se surpreendido com as instalações, nomeadamente o refeitório que, “apesar de ser um espaço pequeno é arejado, bem ventilado e com muita luz”, disse. Alexis Tam reforçou que as necessidades da população mais velha são uma preocupação para o actual Governo. “Com uma esperança de vida cada vez maior, Macau tem já uma população envelhecida e com ela vêm as dificuldades cognitivas”, daí a importância de serem criados mais espaços para diagnóstico precoce e tratamento das demências. Alexis Tam garantiu que uma nova unidade vai abrir na zona da Areia Preta, mas ainda não tem data marcada.
Joana Freitas MancheteAlzheimer | Falta de conhecimento da doença dificulta vida dos pacientes Diz-se que as memórias são o nosso bem mais precioso. Mas, e quando elas nos falham, sem percebermos porquê? O Alzheimer continua a ser um assunto desconhecido, num território onde o envelhecimento populacional é uma das certezas do futuro [dropcap style=’circle’]C[/dropcap]hoi Chi Kin chegou a Macau nos anos 80, vindo de Fujian. Durante toda a vida foi professor de Química e a paixão pela matéria ainda não desapareceu. Explica-nos a tabela periódica, ainda que as nossas perguntas sejam outras. Fala-nos dos símbolos químicos que mais o fascinam e quase nos dá uma aula em Mandarim, enquanto nos sentamos com ele no Lar de Idosos Pou Tai. “Sou professor, sempre fui, e quis vir para Macau para dar aulas, mas a maioria aqui fala Cantonês”, diz-nos surpreendido. “Gosto de Macau. Quando estudava, fazia muitas perguntas aos professores. E os meus alunos também me perguntam coisas. Vocês sabem qual é o símbolo químico para…”. A conversa é interrompida pelo filho de Choi, que tenta regressar ao tema de que estamos a falar. É ele quem nos conta a história do pai. Agora com 82 anos, o idoso foi diagnosticado em Maio do ano passado com Alzheimer – está melhor, mas as memórias vão e raramente voltam. “O cérebro dele não é equilibrado. Quando foi diagnosticado ficou deprimido, raramente falava. Não se queria mexer e não entendia o que outros diziam.” Agora, o idoso reconhece o filho e assegura-nos que lhe ensina Química todos os dias. Rimos. O jovem abraça o pai e diz-nos com um sorriso rasgado que ele vai melhorar. Mas a verdade é que o Alzheimer continua a gerar muitas dúvidas. O primeiro caso documentado da doença foi também o que deu origem ao nome pelo qual hoje a conhecemos: Alois Alzheimer foi o médico que diagnosticou Auguste Deter, uma mulher que contava apenas 50 anos quando foi internada numa unidade psiquiátrica por não se recordar das mais básicas rotinas diárias – um elemento comum aos pacientes de hoje, que se esquecem de como lavar os dentes, ir à casa de banho ou até comer. Choi com o filho Corria o ano de 1901 quando o médico alemão recebeu Auguste, mas Alzheimer nada conseguiu fazer até que, em 1906, uma autópsia à paciente lhe permitiu descobrir placas no cérebro, que fica degenerado com “buracos”. O cérebro diminui e o resto é, ainda, um mistério. Mais de cem anos depois, sabemos que o Alzheimer é um tipo de demência que não está sequer associado à idade, como se interpretava há anos atrás. E pouco mais. “Pertence ao leque da demência. Mais de 50% dos casos de demência dependem desta doença. O mais provável é manifestar-se depois dos 65 anos, mas há casos de pessoas – que chamamos de precoces – que a têm mais cedo”, explica-nos Ip Ka Hong, médico do São Januário. “O estado de degradação do cérebro depende da pessoa. Diferentes pessoas podem apresentar diferentes manifestações. Às vezes conseguem ser estáveis, mas a maioria evolui muito rápido. Não conseguimos prever. Na verdade, o que causa o Alzheimer a comunidade médica não sabe. Conhecemos a patologia, a existência de proteínas anormais. Sabemos que não há cura.” Entender o desconhecido A dependência da família – ou de assistentes sociais – é algo inevitável. Da mesma forma, a paciência e o saber lidar com a situação é algo que tem de ser aprendido – tanto para o paciente, como para quem dele cuida. E algo que nem sempre é fácil. “É sem dúvida um grande fardo para a família. Não o podemos negar. Os centros de dia ajudam a que, pelo menos, a família possa descansar um pouco.” Em Macau, existem estes locais, bem como a Associação da Doença de Alzheimer, da qual é director Zeng Wen. O médico explica ao HM que a intenção é promover conhecimentos sobre a doença e técnicas de cuidado. É que esta, como em todo o mundo, ainda é bastante desconhecida e prova disso são os testemunhos das pessoas com quem falámos. Foi só quando caiu pela segunda vez que os médicos perceberam que algo de errado se passava com Choi Chin Kin. “Deixou de conseguir andar. Deixou de se lembrar de algumas coisas”, diz-nos o filho, o mais velho de três irmãos e o único em Macau. A mãe morreu há 20 anos, algo que não sabemos se Choi se recorda. Choi está no lar apenas durante o dia, já que o filho pode tratar dele em casa. “Pagamos mil patacas por mês para ele ficar aqui de manhã até ao fim da tarde. E os serviços são muito bons”, conta-nos. Mas este não é o caso de todos. Estamos num consultório do São Januário, onde os Serviços de Saúde nos apresentaram alguns pacientes. Chan Chok I não responde a quase nada e é a nora que nos ajuda a perceber a sua história. Tem 80 anos e foi diagnosticada há um ano e meio. Ainda consegue fazer as coisas do dia-a-dia, mas raramente sai de casa. “Dorme, come, vê televisão.” Vivia na China e veio para Macau há 20 anos, onde trabalhou numa fábrica de roupa. “Quando era mais nova fazia tudo. Agora, ainda cozinha e o que mais gosta é de chamar os netos para comer. Eles dizem que ela é uma chata, o foco dela é só esse. Sugerimos que vá passear para os jardins ou que fique em centros de idosos, mas não quer. Só quer cozinhar e chamar os netos para comer”, relata a nora. É ela quem principalmente toma conta da idosa e é ela que nos diz que, ainda que consiga fazer coisas sozinha, Cheang “confunde as horas do dia e da noite”. As únicas palavras que conseguimos arrancar da idosa é que gosta muito de arroz. E gosta de ver canal o português da TDM. Foi por ter que repetir várias vezes as mesmas coisas que a família se apercebeu que algo não estava bem com Cheang. O que é preciso, garantem os especialistas, é ter atenção aos sintomas. Porque estes existem, só que são muitas vezes associado à idade: é a senilidade, o velhote que já não tem juízo. “Podemos ter como alarmantes a perda de memórias que afectam a rotina profissional e pessoal. Não conseguem planear as coisas. Ficam confusos com o espaço e o tempo. Não se conseguem expressar e esquecem-se de como ler ou escrever. Estão sempre à procura de coisas que não sabem onde puseram”, indica Ip Ka Hong. Choram, riem. Têm medo da própria família, para eles, por vezes, meros desconhecidos. Quem fui, quem sou? Imagine-se a fazer o caminho que faz todos os dias, do trabalho para casa. Agora, imagine que tudo à sua volta é estranho e que está num sítio que nunca viu. É assim a vida de Chan, desde que lhe foi diagnosticada a doença em 2010, depois da família achar estranhas as suas mudanças de humor. Passeamos com ele ao longo de corredores que poderiam despertar memórias não fosse a doença não o permitir: fotografias de Macau remetem-nos para profissões que já não existem, para locais a preto e branco que deixaram de ser novos. Chan tem 75 anos e está já num estado muito avançado da doença, que progrediu rapidamente. Não se lembra da filha, com quem falamos, e está a dificultar-lhe muito o passeio que ela o obriga a fazer para que as pernas não se esqueçam de como se anda. “Até conseguia tratar dele próprio até ao ano passado. Agora nada. É frustrante.” [quote_box_left]“O cérebro dele não é equilibrado. Quando foi diagnosticado ficou deprimido, raramente falava. Não se queria mexer e não entendia o que outros diziam” – Filho de Choi Chi Kin, doente de Alzheimer[/quote_box_left] Nasceu na Tailândia e foi um empresário que sempre valorizou os negócios e os amigos. “Adorava falar com as pessoas e viajar, sobretudo na China continental.” Formou-se em Inglês e não esqueceu esta língua, nem o Tailandês com que fala às vezes com a filha, que não a percebe. “Fica acordado à noite e dorme de dia. Adorava correr, nadar e montanhismo. Agora, a sua conversa não faz sentido.” No seio familiar, o desespero existe, como o HM comprovou com algumas famílias. Até porque há coisas que não se entendem: como é que um doente consegue lembrar-se da sua infância ou adolescência e se esquece que há 40 anos teve um filho? O doutor Ip explica: “é sabido que o hipocampo é responsável por recolher as memórias mais ‘recentes’. A proteína que degenera o cérebro com a doença deposita-se maioritariamente aí e no lobo temporal frontal (adjacente ao hipocampo).” Como Choi, Chan está num lar durante o dia. Mas, além das poucas ajudas que as famílias se queixam de ter, há ainda os custos daquela que é “a mais cara doença” de sempre, como consideram cientistas, e as consequências que dela advêm – com a ideia de que vão perder memórias vem a depressão. “Medicamentos e dietas específicas podem ajudar”, mas o Alzheimer rouba anos de vida e é sempre fatal. Cura possível? Se Auguste ainda hoje fosse viva, continuava a não ser possível curá-la como não o foi há centenas de anos. Mas há quem considere que se poderia fazer mais. É que, como assegura Samuel Cohen – cientista que lidera há décadas estudos sobre a doença na Universidade de Cambrige – o que falta é investir mais recursos numa doença à qual ainda não foi dada a devida atenção, ainda que faça parte do top 10 das causas de morte a nível mundial. “O Alzheimer representa o maior desafio médico e social da nossa geração. Não se pode prevenir, curar ou abrandar. Mata tanto como o cancro, mas não se investe nem o dinheiro, nem o tempo que se investe na investigação ao cancro. Há uma falta de consciência muito grande”, disse, numa TEDTalk sobre o tema. Fong Iok Ha Para pessoas como Fong Iok Ha isso poderia significar esperança. O pessoal médico do São Januário, que nos proporcionou o encontro com Fong, diz-nos que não se lembra de algumas coisas, mas ela garante-nos que só foi ao médico porque começou a ouvir mal, tendo sido depois transferida para o departamento que cuida da doença em 2014. [quote_box_right]“O que causa o Alzheimer a comunidade médica não sabe. Conhecemos a patologia, a existência de proteínas anormais. Sabemos que não há cura” – Ip Ka Hong, médico do São Januário[/quote_box_right] Nasceu em 1947 e trabalhava numa fábrica têxtil, depois de regressar do Myanmar. Consegue levar-nos ao passado – a sua doença ainda está no início e ela “não se preocupa” sequer com o que o futuro lhe possa trazer. É ela quem nos diz isto tudo, muitas vezes em Inglês. “Tenho a mesma vida, vou às compras no supermercado, cozinho e cuido dos netos. Consigo cuidar de toda a família.” Confessa que gosta de viajar – algo que fez muito depois de se casar. “A vida no Myanmar era pobre, havia muita guerra. Vim para cá com 25 anos e conheci cá o meu marido. Gosto de passear de manhã na Colina da Guia e adoro Iam Cha”, diz-nos sorridente, enquanto penteia o cabelo, antecipando a fotografia que lhe vamos tirar. Cohen estima que, em 2050, 150 milhões de pessoas em todo o mundo possam ter a doença, contra os cerca de 40 milhões que se acredita existirem agora. Em Macau, estima-se que a população envelheça a um ritmo considerável: até 2036, mais de 24% da sociedade terá mais de 65 anos. E a esperança média de vida vai manter-se alta. Para Cohen uma em cada duas pessoas no mundo poderá vir a “sofrer de Alzheimer ou ter de tratar de alguém que sofra com a doença”. E, assegura, pode ser qualquer um de nós. Macau sem números Não há dados concretos sobre a quantidade de pessoas que podem sofrer com a doença em Macau, como nos explica Ip Ka Hong, médico do São Januário. “Podemos calcular com dados do ano passado: 53 mil pessoas eram idosas e destes cerca de 20% podem ter Alzheimer ou demência. Temos estatísticas de Taiwan e Hong Kong e podemos assumir que a partir dos 85 anos ou mais, mais de 20% tem doença.” Recentemente a Associação de Alzheimer de HK sugeriu a Macau a criação de uma base de dados sobre o problema. Por cá, a Associação da doença considera que o Governo dá atenção suficiente ao problema, que foi “uma das políticas mais faladas na campanha de Chui Sai On para Chefe do Executivo, em 2014”, como relembra Zeng Wen, director da Associação, ao HM. O responsável fala de palestras e avaliações que partiram da organização que lidera para idosos e famílias, mas também admite que é necessária mais formação. “Os cuidadores devem ter técnicas suficientes para cuidar destes idosos.” Quem concorda é a filha de Chan, um dos idosos cuja história ficámos a conhecer, e que diz que nem sempre é fácil conseguir ajuda em Macau. “É muito importante e formação, porque o primeiro contacto com o paciente e família é o médico. Acho que Macau ajuda, mas ainda tem dificuldades, especialmente pela falta de conhecimento. Aconteceu-nos rejeitarem-nos de lares por considerarem que o caso não era sério. Temos a responsabilidade de cuidar deles, mas não a capacidade e, por isso, precisamos de pessoas treinadas. Gostava que se percebesse isso: o Governo tem de apostar mais na formação. É importante, porque em lares privados, por exemplo, os idosos só comem e dormem e eles precisam de actividades para não piorarem”, diz-nos.
Joana Freitas SociedadeHK propõe a Macau criação de base de dados para idosos com demência [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]Associação de Alzheimer de Hong Kong propôs ao Governo a criação de uma base de dados para registo de idosos com demência e a formação de pessoal profissional. O HM sabe que não há ainda quaisquer dados sobre as pessoas que poderão sofrer com Alzheimer em Macau e, em 2014, o Instituto de Acção Social (IAS) pediu à Associação um estudo sobre eventuais medidas para apoiar estes doentes. Naquela que foi a primeira sessão plenária da Comissão para os Assuntos do Cidadão Sénior deste ano, que decorreu na sexta-feira, foi apresentado o estudo, tendo sido anunciado que a região vizinha propôs ao Governo a criação de uma base de dados para os portadores de demência e um mecanismo de detecção destes doentes quando se perdem. “[O estudo era sobre] o planeamento futuro dos serviços de apoio às pessoas com demência e as políticas a curto, médio e longo-prazo incluem o desenvolvimento do trabalho de discernimento da demência, a introdução do serviço de tele-assistência para as pessoas com demência que se podem perder no caminho, a criação de equipamentos próprios, formação do pessoal profissional, estabelecimento do mecanismo comunitário de prevenção da perda de orientação e de notificação de casos, criação de uma base de dados sobre a demência, entre outros”, pode ler-se num comunicado. “Houve membros da Comissão que sugeriram ao Governo um reforço das acções de sensibilização no sentido de chamar a atenção da população em geral e dos idosos em particular para a demência e para a prevenção desta patologia”, indica ainda. Na reunião, o Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, Alexis Tam, assegurou ainda que há um plano de acção para os serviços de apoio a idosos de 2016 a 2025. O Plano Decenal de Acção para os Serviços de Apoio a Idosos de 2016 a 2025 já tinha sido anunciado, bem como outras medidas, que passam por serviços médicos e assistência social, além de um sistema de registo electrónico de saúde entre os hospitais de Macau, para que os pacientes idosos possam ser mais facilmente acompanhados. A criação de uma Base de Dados para Idosos Isolados e, como já foi anunciado anteriormente pelo HM, o estabelecimento de um plano de hipoteca especial para os idosos estão também em estudo. Até 2036, quase 21% da população terá mais de 65 anos.