António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasQuarentena: uma narrativa [dropcap]N[/dropcap]ascidos a bordo de um navio em quarentena, ao fim de uns anos engolfa-nos a ausência, ansiamos um abraço de sangue. A raros se concedeu – presumo que a suborno – soltura. O navio ficou ao largo por um período a prumo, que não cessa de indeterminar-se e aí a língua é o algeroz de onde pingam a esperança e o alfabeto do inferno. Divisamos de longe as luzes da cidade, adivinhando até ao sabugo os seus perfumes, a desabrida floração dos cometas no peito das raparigas, o rasto de anfetaminas com que os rapazes metem a terceira e repelem os mortos. Enquanto na nossa cabine ou no desabrigado convés tudo se repete, unânime, caliginoso. Dás conta, já não batem os sinos na cidade! Emudece a via láctea nos salmos que tingem o WhatsApp? No dia da boda uma borboleta, das que migra, transatlântica, veio ressacar ao corrimão do tombadilho e depois alumiou as bordas da piscina com a sua valsa imatura. Tudo quanto vislumbrámos das flores da costa. Ocorre o amor entre os convalescentes? Tudo indica que o homem é capaz de amar no próprio inferno, embora a solidão na proa não deixe de lembrar-nos que nunca mergulharemos duas vezes no mesmo vento. Ancorados ao largo da alegria, de quarentena, o capcioso brinde final destinar-te-á um breve toque de clarim, antes de amortalhado numa bandeira o teu cadáver ir lancetar o mar. Mataste o tempo, lendo a Oresteia e conviveste com as deambulações de Ulisses, também ele tardio e como tu enleado nos novelos da idade que ensimesma, e já reconheces na enlanguescida inteligência do antigo amante de Circe o declinar da tua. Estaria tudo bem se não visses que os teus filhos também nasceram a bordo e como se lhes emaranha nas veias uma bilha de gás e uma cabeça de fósforo. Aí revoltas-te! Apontas o canhão da proa e inflamas o horizonte com a tua veia derramada. Alba. O barrete realça, não esconde a cabeça de cachalote do marinheiro que subiu à gávea. Padeceriam igualmente os anjos desse peso transbordante, acima do pescoço rútilo? Um veleiro airosamente descalço adeja ao largo. No rádio passam Zappa, conduzido por Boulez – tudo se desloca nos meridianos aquosos. A quem devemos a quarentena do planeta? É tão escasso o pensamento, nestas anfractuosas tonelagens de ferro, que nos serve de guarida contra o íngreme entenebrecimento, contra a cegarrega que nos atou, é fugaz, mas dactilografa estrelas à superfície das águas, lépida doma dos néones, e aí intuímos: cada palavra é uma ilha e procura arquipélago. Saberá o urso que hiberna? Não tem clímax a noite, só tem ápice na queda. A noite é o seixo que rola no leito da tua vida; rola para a foz ou para a nascente? Alarma-te o enigma do teu corpo e da tua sombra bifurcarem na língua da cobra. Como traduzir a inconciliável corrente que os aparta em amuos incandescentes, não obstante partilharem o que tolda no copo de gim? Solução para o dilema: talvez em terra, mas, entretanto, retido em quarentena, apesar de desconheceres a combustão antropofágica da doença, a dúvida que não cala encapela-te os páramos do sangue. A inocência é que te tramou, enredou-te nas ramagens da noite – embora na orla das escotilhas já a luz da alba se ice, vagarosa, e a algazarra das cores se adiante, esta outra luz é mais um alinhavo frágil na bainha da mesma e idêntica noite que te ofusca, espectral. Contudo, por décadas a fio de quarentena encrespada nos gargalos, pode lá a escassez encaixar-se nas tuas linhas de sombra: basta ouvirmos o latido de um cão na costa e restituímos a pedra que sonha à tepidez da mão que enxagua a sua matéria exausta. Transpira o navio contra a quarentena, ondula. Lês na fornalha de Dante os glóbulos brancos do teu nome. Quanto tempo demora o limbo a fazer-nos compreender que desenhar as letras não nos emenda a escuridão? Tanto que vejo, sem adivinhar o quanto ensejo no que vejo. De quarentena, a vida de nós não se aproxima nem para a despedida. Embora tudo indique que o homem seja capaz de amar no próprio inferno. 08/06/2018