O direito de não ser

[dropcap style≠’circle’]B[/dropcap]asta nascer. E o que deveria ser um acto natural surge imediatamente carregado de significados. Somos filhos, cidadãos, temos um nome e milhares de expectativas à nossa espera. Depois tornamo-nos alunos, eventualmente soldados e, finalmente, namorados, nubentes, casados, progenitores, empregados nisto ou patrões daquilo, entre outras possibilidades. Temos é de ser qualquer coisa. Sempre, em todos os momentos, vemo-nos constrangidos a ser algo como se isso fosse realmente parte integrante do que somos.

E quantas vezes não sentimos, inapelavelmente, que não somos aquilo que somos? Quantas vezes estranhamos os papéis que desempenhamos, bem ou mal, nas nossas relações com os outros? E quantas vezes não nos sentimos o maior dos hipócritas por representarmos um personagem que, bem o sabemos, pouco ou nada tem a ver connosco?

O problema é não termos direito de não ser. Obrigatoriamente, somos qualquer coisa, uma dessas categorias que não inventámos mas às quais temos de nos sujeitar. A penalidade é bem forte e passa logo por sermos ou não reconhecidos pelos outros. Quem não é nada de reconhecível exila-se numa terrível solidão.

É só experimentar e dizer a alguém desconhecido que não se é nada. O espanto, eventualmente, o medo, toma conta do interlocutor. Pois se não é possível catalogar e arrumar em gavetas, como posso ter confiança, ainda que mínima, nesta pessoa? Será que ela é, realmente, uma pessoa? Ou será apenas pessoa alguém a quem forem atribuíveis as características “normais” e as óbvias pertenças? É na distância a esta “normalidade” que se joga parte do fascínio que resta a esta época…

No entanto, tudo se tornaria fluído se não fossemos. Por vezes, a ânsia classificativa, analítica, a grelha sobre o real, apresenta-se como um constructo desesperado, um mecanismo fruste de atribuição de sentidos, incapaz de domar a realidade, senhor da falta e origem do remorso. Mas a sua ausência levaria à criação de um mundo no qual não nos reconheceríamos e obrigaria a uma aprendizagem radicalmente quântica, em que as oposições deixariam de ser a base do pensamento e o universo passaria a ser interpretado como um bailado, onde se estava mas não se era. Aparentemente impossível, portanto.

Logo, para dar sossego ao mundo, temos de ser qualquer coisa. Seja ela o que for, pois tudo parece fazer falta: os juízes e os criminosos, os médicos e os doentes, os políticos e os cidadãos, e por aí adiante… Tem é de se ser qualquer coisa, ainda que não nos apeteça ser nada ou entendermos que ser é contrário ao curso da física ou que, politicamente, a ideia de Ser descamba no fascismo. Não! Nada , rien, niente, nulla di nulla! Há que ser, existir não chega.

Como deixar de ser sem se ser outra coisa qualquer? E será essa uma meta desejável? Quererei eu perder as qualidades que me tornam no que sou e pelas quais os outros me reconhecem, para deixar de ser e simplesmente existir?

A condição é simples: exige um longo, prolongado, disciplinado, afastamento de seres que são e um mergulho nas águas do mundo; obriga a uma participação plena no aparente fluir e a travessia do rio Letes, um compulsivo esquecimento. Não a morte física mas um despojamento total do passado, na ânsia de uma vida no instante.

Claro: ninguém tem direito a não ser. Como diria Shakespeare, todo o mundo é um palco cada um de nós representa o seu papel, cada um de nós é qualquer coisa. E, sobretudo, cada um de nós tem uma dívida imensa por pagar, o que nos impede de deixar de ser, mesmo quando queremos simplesmente ser outra coisa.

És e pronto! Nada a fazer! Mas… se o pensei é como se já tivesse não sido. E este pensamento, tão português, fez emergir um sorriso que não atribuo ao que sou mas a esse universo de possibilidades outras que o não ser, discretamente, acumula.

 

4 Dez 2017

O resto não vale nada

[dropcap]S[/dropcap]ubitamente, um Verão pesado, do nosso descontentamento. Um Verão birrento, um Sol intensamente presente no momento que deveria ser de ausência. Falta de paciência.

Que Verão é este, que Sol nos descoroçoa? Porque ardemos neste umbral que vestimos de pessoa?

É um Verão teimoso, nu de nuvens, ungido de um insuportável azul. Num relance, quando do suor nocturno acordo, pergunto: onde é o Sul? E quero andar. Mas há neste clima algo seco, intratável, indizível, algo de trevas disfarçadas de luz, que não seduz.

Logo me fico. E certifico a imobilidade com duas ou três machadadas breves: numa vai o Sol, com as cortinas; noutra o dia, com as meninas; e ainda outra, arrepiada, assustada de não cortar nada.

Não sei se a culpa é do tempo. Que é estranho lá isso é! Como ler, nesta desamparada estrada, a das voltas e travoltas, a das voltas da manada? Não sei. Saberá o rei, esse vidente. A mim, dói-me um dente e assim humilíssimo me recolho.

Agora dói-me um olho. Irra! Que me há-de doer sempre qualquer coisa! Que seca esta vida de alforreca, esparramado na praia, esmagado pelo Sol. Clima inclemente… esquecia-me… dói-me um dente…

Quererá isso dizer que não posso mastigar? Que nem sombras posso ver? Não. Consigo correr, assim rente pela estrada e dar curvas e vociferar com o caminho. Olha p’rá qu’ele… coitadinho… ficou-se pelas covas neste Verão sem remissão.

Vai-te embora, vai-te embora, diziam em tom de nora as mulheres num alvoroço. Pobre moço que ao tremoço deve horas de oração. Nunca existiu perdão que não seja esquecimento, seja gato ou jumento, muralha ou paredão, nunca existiu perdão…

Estamos condenados ao Sol, à Lua, aos lamentos. Vêm do céu, caem como a chuva haverá de cair, torrencial, animal. E neles olímpicos nos banhamos. Não queremos amos, isso garanto. Preferimos o espanto de saber sem entender. Aliás, não quero saber nada.

Prefiro os burros e a sua perfeita andadura. E candidamente confesso: sim, quero o que morre, não o que dura; quero o que renasce a cada hausto, no desembaraço das metamorfoses; quero tudo outra vez mas desta vez sem vozes.

Aspiro ao silêncio, dizia ainda antes de ver. Eu sabia lá o que era isso. Mas não é fácil renegar. Aqui estou, aqui me tens. Não te voltes contra mim, minha mãe. Tudo menos isso. Basta de desdéns.

Chega de Sol, chega de sombras. Quero o cinzento, o seu lamento, a tristeza assoberbada. O resto não vale nada.

Pois. Passeio o esqueleto no trottoir. Solta-se uma gargalhada. O resto não vale nada.

27 Nov 2017

A segunda transferência

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] primeira transferência de soberania ocorreu em Macau quando Portugal passou para a China a administração deste território. Foi em 1999. Desde então, Macau foi governado pelas suas gentes. Contudo, não o foi para as suas gentes. Se o consulado de Emund Ho se pode escudar no facto de ter implementado a liberalização do Jogo, com todas as desarmonias daí decorrentes, bem como na inexperiência governativa, já Chui Sai On é com dificuldade que explica o desinteresse do seu Executivo pelo bem-estar da população. Mas o facto está aí, para quem o quiser ler: este Governo não realizou nenhuma grande obra que realmente beneficiasse a população, nomeadamente o Hospital das Ilhas e o metro ligeiro, tal como não resolveu nenhum dos problemas que o crescimento desordenado deu origem: habitação, trânsito, saúde, etc..

O que se assistiu na última década, com o beneplácito governamental, foi ao enriquecimento brutal de algumas famílias e dos seus satélites, num completo, por vezes arrogante, desprezo pelas necessidades populares. Este “feudalismo” foi sempre entendido como o “pagamento” de Pequim aos clãs nos quais depositava confiança pela sua acção patriótica durante o tempo dos portugueses. Ora esta era parece, com Chui Sai On, estar a chegar ao fim.

No fundo, trata-se de pessoas que já detinham o poder económico mais ou menos desde 1966 e dos acontecimentos motivados pela Revolução Cultural. Até 1999, conseguiram garantir a sua continuidade no poder para o futuro, como algo de “natural” porque eram eles já os líderes de facto desta cidade. E os que mais lucravam com isso, se exceptuarmos a família de Stanley Ho.

Ora este tempo parece estar a chegar ao fim. Com efeito, existem vários sinais deste facto e um deles, nada despiciente, é o último discurso de Chui Sai On, por ocasião do Dia Nacional, proferido no dia 1 de Outubro.

Senão vejamos. O actual Chefe do Executivo começou por falar dos problemas que afligem a população e na obrigação de resolvê-los! E foi por aí fora: segurança social saúde, habitação, trânsito, poluição, encheram a primeira parte do discurso de Chui pela primeira vez numa ocasião destas. Normalmente, o Chefe do Executivo fica-se pelo elogio do costume ao apoio do Governo Central e à garantia de que a RAEM prosseguirá as estratégias definidas, nomeadamente no que concerne os países lusófonos e o projecto “Uma Faixa , Uma Rota”, por meio de juras de patriotismo. Mas desta vez não. Chui centrou a sua atenção no que definiu como “a felicidade” popular. Ou seja, o discurso não parecia seu e, pelo conteúdo apresentado, talvez esteja a indicar o caminho que o futuro nos reserva.

Talvez o tufão Hato tenha sido o evento que mostrou claramente o quanto o rei vai nu e o quanto esse mesmo rei pouco se preocupa com a sua população. A falta de preparação das autoridades mais ricas do mundo em terra de tufões, a falta de meios e de liderança, bradou aos céus e o Céu (Pequim) não pôde fazer orelhas moucas. O Hato veio descobrir uma careca que todos os habitantes de Macau sabem estar lá mas que os cheques anuais e outras benesses sem conteúdo pretendem ocultar. E talvez o Governo Central tenha entendido que chegou o momento de dizer alto e pára o baile antes que uma terra pacífica e alinhada com a Mãe Pátria comece a desalinhar a dança e a dar passos parecidos com os dali de Hong Kong. Um bailarico que Pequim, como se sabe, pouco aprecia.

Os sinais estão aí. E não passam apenas por pessoas vindas do Norte, como Wong Siu Chak (o Secretário a quem o tufão Hato também deve ter roubado os sonhos de ser Chefe do Executivo) ou André Cheong. Agora há mais: trata-se da implementação de uma política voltada para os interesses populares, o que pressupõe talvez o fim de medidas implementadas a pensar apenas nos interesses de alguns.

Estaremos pois perante uma segunda transferência de soberania, o fim de um ciclo. Contudo, ao contrário do que se passou em 1999, o que aí vem permanece um mistério. Não se perfila ainda um candidato a Chefe do Executivo mas, seja ele Lionel Leong ou Ho Iat Seng, independentemente do seu nome e filiações, cremos que a política terá de ser necessariamente outra e o discurso de Chui Sai On é disso um claro e inequívoco sinal. Pequim terá entendido que as contas estão saldadas e chegado o momento de realmente pensar na população. Afinal, com tanto dinheiro disponível, não há-de ser assim tão difícil.

6 Out 2017

Eleições 2017 | Daqui ninguém sai vivo

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] campanha eleitoral já vai alta e sem grandes motivos de interesse. Afinal, a eleição de deputados directos pouco influencia a política real. Contudo, apesar de pouco estar em disputa, assistimos esta semana a canalhices políticas que não deixam de ser dignas de nota porque são ilustrativas do tipo de gente que se candidata à Assembleia Legislativa da RAEM. É o caso da deputada de Fujian Song Pek Kei.

Senhora de discursos vazios ou interpelações fúteis na AL, durante o período em que já foi deputada, a senhora Song resolveu num debate com Pereira Coutinho invocar situações familiares menos agradáveis do deputado da Nova Esperança, inaugurando na política de Macau um capítulo ignóbil. E fê-lo com toda a clareza como se as palavras proferidas não fossem, para quem possui um mínimo de ética, lama que caiu em si própria.

Julga a senhora Song que não tem telhados de vidro na sua casa e por isso atira verrinosas pedras a telhados alheios. Dela poder-se-ia dizer, por exemplo, que só existe porque serve o poderoso senhor Chan e porque o senhor Chan lhe deu a mão. Seria talvez injusto. Mas, pela sua actuação na AL, poder-se-ia, desta vez dizer-se com justiça e razão, que foi uma nulidade. Zero ideias originais, discursos vazios, interpelações frouxamente escritas, nenhum projecto de lei, atitude seguidista e em conformidade com os interesses instalados.

Filha de emigrantes, se não emigrante ela mesma, não se coíbe nos ataques ao trabalhadores não residentes, os mesmos que fazem realmente funcionar esta cidade. Mas até aqui tudo bem. O disparate e mesmo a estupidez têm direito à expressão no segundo sistema.

O pior é quando a senhora Song ultrapassa esses limites como fez esta semana, inaugurando um capítulo que, suponho, envergonhará a RAEM agora e no futuro. Trata-se de trazer a vida privada dos candidatos para a a discussão política. Será que a senhora Song quer que seja feita uma devassa à sua vida privada e, sobretudo, à dos seus companheiros de lista e de associação? Acharia bem que se referissem os parceiros de cada um, as suas tendências sexuais, ou mesmo o que membros da sua família andam a fazer? Será que a senhora Song tem a certeza de só ter na sua cozinha pratos completamente limpos?

A verdade é que este tipo de comportamento é muito triste e anti-democrático. Joga com as emoções mais brutas dos cidadãos, apela à sua estupidez e intolerância. Se até aqui a política local tinha escapado a este tipo de ataques soezes, a partir de agora, graças à senhora Song, parece que vale tudo, incluindo usar a família, valor sagrado para a cultura chinesa.

Mas o problema deste tipo de comportamento é que, na realidade, afasta as questões políticas de cima da mesa. Ao invocar o factor privado da vida de cada um, deixamos de dar relevância às acções concretas dos candidatos e às suas propostas, para cairmos no género de conversa que se tem no café ou no mercado. Baixa e incapaz de trazer algo de bom.

A senhora Song devia pedir desculpa a Pereira Coutinho e ao eleitorado em geral por ter inaugurado a estratégia do golpe baixo na política da RAEM. E se não percebeu o que estava a fazer, a perigosidade deste caminho, então ainda é pior porque com isso demonstra que não tem inteligência ou bom senso para o lugar que pretende ocupar.

Ao continuarmos por este caminho, que parece agora ser irresistível, em breve teremos devassas pessoais sobre todos os candidatos, incluindo os que pertencem ao grupo da senhora Song.

E olhem, no limite, a continuarmos na senda inaugurada pela senhora Song, daqui ninguém sai vivo.

7 Set 2017

Assim como quem quer a coisa

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] advogada de Ho Chio Meng resolveu apresentar um recurso e fê-lo por fax. Trata-se de um acto estranho, quase a roçar a rebeldia anti-sistema. E tem graça ver isto ter origem na defesa de um homem que foi Procurador da RAEM e, por isso, incarnava e representava esse mesmo sistema.

Como todos sabem, a lei de Macau não prevê qualquer tipo de recurso, além do Tribunal de Última Instância. Portanto, porque Ho Chio Meng foi julgado por juízes desse mesmo tribunal, não existe possibilidade de recorrer. Tal facto não impediu a ousada advogada de apresentar recurso à mesma entidade que o julgou. Ainda que, nos termos da lei, isso não sirva para nada.

Mas não servirá mesmo para nada? Provavelmente, tem uma excessiva utilidade: demonstrar que existem contradições óbvias entre o espírito da legislação vigente e alguns artigos desse mesmo conjunto de leis, que funcionam como anti-corpos e provocam sintomas que só podem ser atribuídos a uma prática legislativa doente: a saber, a impossibilidade de recorrer de uma sentença. Tal facto não deve ser considerado como estranho ou sequer decorrente de uma qualquer má intenção. Pelo contrário, deve ser, em última análise, atribuído à fragilidade de um sistema ao qual foi exigido uma profunda remodelação e no qual será normal encontrar defeitos ou excessos.

Nada que não possa ser corrigido. Como explicar então que o exemplo de Ao Man Long não tenha impulsionado uma mudança legislativa que permitisse a vigência da normalidade nesta região? Certamente que a questão não é política porque não conseguimos vislumbrar como é que um assunto deste tipo poderia pôr em questão qualquer doutrina ou estratégia de fôlego geral. Também não conhecemos quaisquer declarações, por parte da dirigentes do Governo Central, acerca desta questão.

Então por que razão o Governo da RAEM não se preocupou em mudar um aspecto da sua legislação que, no mínimo, atrapalha a sua imagem internacional e, no máximo, transforma Macau num espaço onde um direito fundamental é legalmente violado?

Difícil de responder. Terá sido preguiça ou teimosia? Terá sido temor ou cobardia? Não sabemos. Contudo, não podemos deixar de estranhar esta lacuna legislativa que, uma e outra vez, assombra os desígnios da RAEM. Será que alguém pensou que um caso como o de Ao Man Long não se repetiria, que outro alto responsável não seria, nunca mais, acusado de corrupção ou de outro qualquer delito? Talvez… mas isso não é pensamento digno de quem é responsável pela coisa pública.

A verdade é que a legislação local tem uma lacuna, entre outras, assombrosa. O direito de recorrer de uma primeira sentença é um direito universal que não deve ser sonegado a nenhum ser humano. Nem vale a pena explicar porquê. O que valeria a pena seria remediar, de algum modo, esta mancha, este sintoma de doença no sistema legal.

Neste sentido, a advogada de Ho Chio Meng está a fazer mais pelas leis com o seu recurso do que os deputados fizeram em anos de legislatura. E isto porque, correndo o risco de parecer ridícula, na medida em que apresenta um papel inútil, está a mostrar o ridículo do sistema. E ainda mais interessante o facto de certamente o fazer de acordo com o seu cliente, cuja preocupação foi essencialmente, durante os anos em que foi Procurador, aumentar as penas para os toxicodependentes. Enquanto condenou Ao Man Long, Ho Chio Meng não se preocupou com esta legislação. Mas agora que lhe morde os calcanhares e o vai encerrar, sem direito a recurso, num buraco por 21 anos, já lhe faz alguma espécie.

É um bom exemplo para os que julgam circular por este mundo gozando de uma certa impunidade e permitindo que outros sofram por causa de leis iníquas. Um dia, mais tarde ou mais cedo, chega a sua vez.

Era, com certeza, o momento de alguém apresentar uma legislação que, nesta área, transforme Macau num espaço normal do século XXI. Assim como quem quer a coisa.

9 Ago 2017

Identidade

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] farol não é um farol como cada uma destas palavras não é palavra. Sabemo-lo desde Magritte. Mas o farol que ilumina a minha cidade deveria iluminar a minha cidade e proteger os barcos dos escolhos e dos tapetes de lodo, nas margens amarronadas do Delta das Pérolas. Infelizmente, isso não acontece porque deixou de acontecer. O farol gira, volta após volta, mas não ilumina: o seu estreito fio não chega ao mar, ainda menos ao coração dos homens. Esbarra em prédios, entra janelas adentro, grandes bolas de luz percorrem apartamentos.

Onde pára a luz do meu farol? Por que esquinas te perdestes, em que espelhos te miraste, estreito fio de luz? Vi-te nos olhos de alguém, mas foi um relance, um clarão repentino, daqueles que é suposto iluminarem a vida e depois se extinguem entre duas aspirações. Pois é. Basta uma distracção, um outro brilho que passa, o fumo de um automóvel nas narinas e logo o estreito fio de luz se esvai e vai por certo a essa terra onde repousarão os faróis obsoletos, perto de outros elefantes. Será ilha ou mera península?

Por onde andas, meu estreito fio de luz? Perdi-te tantas vezes por estas ruas, nas travessas, em falsos becos. Talvez por isso perdeste importância e a tua luz esmoreceu e outras luzes ávidas tomaram o teu lugar. São às cores, embasbacam mais. Haverá mais gente que as prefira ou até adore a complexidade das grinaldas, dos buquês casamenteiros, o alarido dos led, dos néons, de todas essas luzes de sabão. Qual era o encanto, afinal, daquele estreito fio de luz, a rodopiar sem descanso, enquanto a noite cobria o mundo? Era sinal de protecção, uma varinha de condão sobre a cidade? Talvez… quem sabe… Por vezes duvidávamos… seria verdade aquela luz? Doutras acreditávamos sem pudor, invocávamos o perdão no selo de uma garrafa e, sob a luz, cidade aos pés, havia quem fizesse o sinal da cruz.

A história, essa, é ateia. Ateia e teocida. Quantos altares não derrubámos? Quantas estátuas não decapitámos? Quantos guerreiros não emasculámos? Ninguém quer saber.

O que dizer dos faróis, gesto técnico sobre o mar? Pela vida e contra a sorte, tentativa de luz a tactear na escuridão, sinal de gente, talvez calor, talvez a morte.

Qualquer coisa, meu bom farol, tu me indicavas. Assim, no fim de todas as noites, antes do dia te apagar, e isso tinha mais a ver comigo do que com a cidade à minha volta. Era a mim que remetia o teu estreito fio. Era pela minha janela que os teus círculos de luz entravam, sem respeito nem licença. Volteavam-me a sala, o quarto e saíam, talvez furiosos de não encontrarem o mar.

Era este o meu farol, além da história, do sangue e do engenho. Dizem-me lá continuar às voltas a luz… Dizem-me tudo estar na mesma… que os espelhos funcionam como sempre, que se acende ao crepúsculo e se extingue na aurora.

Mas o farol não é um farol como como cada uma destas palavras não é palavra. Nenhuma delas me interpreta ou representa ou interpreta ou representa qualquer coisa. São inúteis, por vezes graciosas, doutras pesadas, mas inúteis. Nenhuma delas me devolverá o farol.

Procuro na fogueira a cinza certa. Está longe, num canto empoeirado da memória e, cinza nas mãos cerradas, digo as palavras. Abro cuidadosamente a mão. Nem rosa nem farol assomam. Há uns riscos, admito, sublinhados pela cinza, de leitura amarga e fruste. Mas nada mais. Nada mais.

Onde paras, meu estreito fio de luz? Quanto podes tu, quanto pode essa estrada iniciante, se na tua ausência o coração desatina?

Não podes nada. E eu cesso de existir. Amanhã acordarei morto. Levantar-me-ei, sacudirei as estrelas da roupa e tudo será radicalmente diferente.

26 Jul 2017

O desatino

J. Louis David – “Morte de Marat”

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] inútil. Bem podemos ter a ilusão de marchar a direito, de ninguém afrontar, de nos desviarmos de caminhos obscuros, de respeitar escrupulosamente a lei, de tratar os outros como gostaríamos de ser tratados, de deixar cada um na sua vida e apenas intervir para ajudar se for o caso: é inútil. Na nossa via, no nosso humilde carreiro, imiscui-se sempre, ergue-se por hábito, apresenta-se triunfante, o desatino.

Ninguém desatina por acaso, à excepção do mundo inteiro à nossa volta, cuja propensão para o desatino parece ser uma espécie de vício. Quando tudo se emproa ares de correr bem, é quando qualquer coisa desagradável lá tem de acontecer. Para nos estragar o humor, arruinar o dia e fazer descrer dos projectos. Ele está em todo o lado, o desatino. O desatino é rei.

Precisamente. É quando mais nos julgamos em controlo das nossas vidas – ganhando distância dos humores do chefe no emprego, fazendo das queixas sucessivas do cônjuge uma espécie de missa e das derrotas do nosso clube favorito algo de superficial –, ou seja, quando tudo finalmente corre bem, que novamente irrompe todo-poderoso, invasivo, inesperado, o desatino.

Ele há desatinos de todos os tipos, mas uns desatinos são mais desatinados que os outros. Pouparei o amável leitor a uma lista, uma hierarquia, uma descrição de desatinos. Cada um terás os seus e o que é um desatino para um, não o é forçosamente para outro. Mas, idiossincrasias desatinadas à parte, a verdade é que a vida de todos se encontra extremamente bem recheada de desatinos. Ninguém se pode queixar de uma distribuição injusta. Há desatinos para todos e para todos os gostos. Parecem nascer debaixo das pedras, viajar nos cabos e concentrarem-se à nossa porta, à medida de cada um.

Dizem que o desatino começou no Paraíso. Isso só prova que até nesse espaço de beatitude, onde Deus e os animais falavam com o Homem, já havia desatinos. Crenças e livros sacros de lado, ensina-nos hoje a ciência que o princípio foi um big desatino. O desatino acompanha-nos desde o alvorecer até à morte, até porque ela é, na maior parte dos casos, um grande desatino.

Já a vida é diferente. Ou será que não é? Para viver, em geral, a vida tem que consumir vida e isso é, no mínimo, estranho e pouco solidário. Quando o leão come o carneiro, não estará a comer também um pouco de si mesmo? Ou seja, os seres vivos deviam sobreviver à conta de coisas inanimadas para não serem predadores no seu próprio reino. Mas não, a coisa não foi assim construída. Pelo contrário, foi feita para as hienas fossarem nos desvalidos, as aranhas paparem as moscas e os gatos comerem os ratos que, por sua vez, não raro chamam um doce a outros elementos da sua própria espécie. Enfim, um desatino… um acumular sucessivo de desatinos.

Onde pára a harmonia, meus amigos? Onde se esconderam a temperança, o equilíbrio, o bom senso? Por onde andam a benevolência, a piedade, a contrição? Olhamos à volta e damos por nós rodeados de desatinos, próprios e alheios; alguns provocados por nós, a maior parte pelo mundo, como se eles fossem os pontos e as vírgulas do texto plasmado no Livro do Destino.

Viver tornou-se numa descida de um rio cheio de escolhos, de remoinhos, de troncos flutuantes, quando não de dissimulados hipopótamos e pétreos crocodilos. Bem nos tentamos desviar mas bem sabemos ser uma missão impossível. Quantas vezes não chocamos – e de frente – e se desfaz a frágil canoa onde vagueia a nossa existência? Quantas vezes não suamos no desespero de torcer o leme do destino, enquanto a corrente trocista nos empurra para o desatino seguinte? Os leitores sabem do que estou a falar. E, por isso mesmo, ficará por aqui mais este ténue, simplório, beduíno, desatino.

19 Jul 2017

A liberdade prometida

[dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]inte anos parecem muito tempo mas estes que passaram desde a transferência de soberania de Hong Kong até ao presente fugiram num ápice. Para isso terá contribuído certamente o desenrolar compulsivo, quase maníaco, dos factos. Estes, de tal modo se sucederam, que por vezes se atropelaram e mutuamente atiraram para o caixote do lixo da História. O século XXI tem sido fértil em acontecimentos, em momentos que, noutras eras, teriam sido incontornáveis, disruptivos. Agora não: existe esta sensação de que a vida continua igual, orientada pelos mesmos tiques pois a humanidade não consegue viver no sobressalto diário que os media hoje proporcionam.

Insinuou-se a gripe das aves, eclodiu a crise asiática, a mãe pátria salvou as finanças da praça financeira. Nos EUA ruíram as torres-gémeas, semeou-se a guerra de novo pelo mundo. Cresceu desmesuradamente Macau, o fosso entre ricos e pobres alargou-se consideravelmente na ex-colónia britânica. Veio outra crise, de um tamanho tal que a Grande Depressão parecia agora ínfima. Em Hong Kong, os guarda-chuvas amarelos ocupavam durante meses as ruas e impediam o sufrágio universal condicionado.

Muitas vezes me pergunto se, caso fosse realmente o interesse de Pequim controlar os assuntos de Hong Kong, Joshua Wong e outros activistas radicais não seriam seus agentes. Isto porque, de modo quase perfeito, impediram que a RAEHK desse um passo fundamental para uma realização democrática mais completa: o sufrágio universal condicionado. Como se sabe, a proposta de Pequim passava primeiro por admitir uma sufrágio universal. E, em segundo lugar, que os nomes merecessem a sua aprovação, isto porque, segundo o léxico oficial, teriam de ser patriotas.

O primeiro aspecto não é de desprezar. Um sufrágio universal é algo de onde dificilmente se recua. E, correndo tudo bem, ou seja, se Hong Kong não afrontasse a China, é de admitir que a cidade poderia gozar de um sufrágio sem condicionantes dentro de uma década. Assim não o quiseram os activistas dos guarda-chuvas amarelos. Que interesses realmente defendem é difícil de saber, mas os resultados que conseguem vão pouco além de um acentuado gosto pela vitimização mediática. E, claro, de um retrocesso no processo democrático.

Os activistas dos guarda-chuvas amarelos queriam, num golpe, passar de um regime colonial, onde a representação democrática eleitoral directa era mais fraca do que, por exemplo, em Macau, para uma democracia eleitoral de modelo ocidental. Não aceitaram um passo intermédio e no mesmo gesto queimaram uma série de pontes que permitiam um diálogo contínuo entre as partes. O comportamento dos deputados eleitos, quando do juramento, foi lamentável. Traíram o país ou enxovalharam-no, pois mesmo não se sentindo chineses, nem por isso deixavam de estar na China e certas atitudes não são admissíveis; mas sobretudo traíram os seus eleitores que assim se quedaram sem representantes no parlamento. Finalmente, com tanta fanfarra e pouca votação, proporcionaram a Pequim o congelamento sine die das reformas democráticas.

A democracia é complicada em Hong Kong não por causa da liberdade de expressão, dos direitos humanos ou dos animais. A questão é, claramente, outra. O receio de mudança, de perda de controlo, existe mais do lado dos homens fortes da cidade, do que por parte de Pequim. Os tubarões do imobiliário e da navegação, os mestres das finanças, os donos dos grandes negócios, conluiados com interesses no continente, esses serão os que sobretudo receiam uma sociedade mais justa, mais igualitária, menos dividida, resultado eventual do voto popular.

Em Hong Kong, a estrutura económico-política é ainda herdeira dos impérios, chinês e inglês. O maoísmo vizinho pouco ou nada a perturbou. É certo que, apressadamente e à última da hora, os ingleses lembraram-se de inocular o vírus dos gritos pela “democracia” e “liberdade”, depois de 140 anos de feroz garra colonial sobre a população chinesa da cidade. Ainda nos 70 Bruce Lee destruía, num dos seus filmes, uma placa onde se lia “Proibida a entrada a chineses e a cães”. É também por isso revoltante ver bandeiras britânicas nos protestos do 1 de Julho…

O despertar tardio dos britânicos para a democracia em Hong Kong retirar-lhes-ia a legitimidade que a China lhes concedeu com a assinatura da Declaração Conjunta. No entanto, também graças a este documento (para além, creio, da própria vontade de Pequim), a Lei Básica não deverá sofrer alterações que tornem inoperacional o segundo sistema. E o Reino Unido tem o dever de olhar para o que acontece e verificar o cumprimento dos acordos, pelo menos do que constitui o seu espírito mais íntimo. A China, como mãe-pátria, tem o dever de não assustar os seus filhos, sobretudo quando isso não parece de todo necessário, como no caso dos livreiros.

Por Macau ainda nos banhamos na liberdade prometida.

5 Jul 2017

A ausência como centro

Pablo Picasso – “Auto-retrato”

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]miúde o exilado se debate com as questões do abandono e da ausência. Situado na posição ambivalente de quem abandonou e se sentiu abandonado, é na experiência da ausência que, finalmente, a sua desterritorialização se constrói e edifica. É à volta desse vazio, tomado quantas vezes por absoluto, que o exilado alicerça novas identidades e se redescobre, enquanto humano e errante.

Não se tratará de uma ausência particular mas de um conjunto intrincado, parte inconsciente ou com dificuldade denotado, que constitui uma espécie de vórtice — Maelstrom — em cada singularidade, impregnando-a de um movimento centrípeto, alucinado, mas cujo centro se afasta, ao invés de se aproximar.

É por isso que encaramos essa ausência com uma estranha tranquilidade, como se estivéssemos a assistir à nossa morte, no momento em que ela consiste claramente numa metamorfose. Concretamente, não conseguimos deixar de girar em torno dessa ausência, mas ela não exerce uma atracção fatal: pelo contrário, erige-se como um horizonte que contemplamos com uma doçura cada vez mais açucarada, à medida que paulatinamente nos afastamos.

Contudo, bem o sabemos, nenhuma distância realmente apagará esse sentimento de ausência que nos assombra. Seja ele fantasmático ou não, faça ele parte de uma qualquer realidade ou meramente se ancore numa imaginação perturbada, a verdade é que esse sentimento resiste ao tempo como se de um mal genético se tratasse. Nunca definitivamente se esvai, nunca de todo se apagará. É mal incurável e bem supremo que singularmente nos distingue. Espécie de maldição irrevogável e bendita, caminho sem retorno para o celeste inferno de uma percepção distanciada do mundo.

Procurei sempre esse olhar. Encontrei-o num título de Claude Lévi-Strauss e nas tropelias poéticas de Rimbaud. Fiz um curso para o compreender. Mas nunca, de facto, em mim o experimentara até me deslocar aos confins da minha civilização e nas suas margens ele em mim se entranhar. Percebi que esse olhar distanciado não se aprende de outra maneira que não seja pelo exercício da ausência, pela intimidade solitária do pensamento, nas volutas espantadas de raciocínios bárbaros, nas delícias de concretos paradoxos, excrescências de logos, numa palavra, no exercício diário do exilado.

Porque nunca algo se torna tão presente, tão importante, como quando é marcado pela ausência. Como se esta admitisse a presentificação de forma suave, quase ternurenta, do que mantemos encerrado nas caves desse seu castelo, cedendo-lhe espaço para contemplar, analisar, criticar, julgar; finalmente, capazes de entender e amar.

Ele há exilados na distância, na geografia, mas também os há que nunca saíram do mesmo lugar. Eles sabem do que estou a falar. De uma saudade de infinitamente abraçar, de amorosamente compreender. Dessa percepção distanciada do mundo, da certeza de não lhe pertencermos por há muito o termos abandonado. Primeiro, a medo… depois, por força das circunstâncias… doutras vezes, a maior parte delas, por sermos mesmo assim e tal carregarmos como destino ou maldição.

O exilado não se contorce, nem desespera: há muito que o desespero é seu fiel companheiro e a angústia noiva eterna, à sua espera num altar. É-lhe ridícula a esperança pois, intimamente, sabe que os outros dias não hão-de voltar. Esses dias que nunca realmente aconteceram, o vinho que nunca foi doce e as raparigas que nunca foram disponíveis e amáveis.

O exílio é um estranho banho de realidade, na qual todos os dias mergulhamos sem a reconhecermos e dotados de míseras pistas de leitura. É então que se abre o universo e fazem sentido as facetas múltiplas que o compõem. É então que advém um amaciado entendimento, não discursivo, das coisas. Das que tenuemente existem e das que não existem de todo. E é então que o exílio se transforma numa espécie de cidadania de um mundo belo, cruel e indiferente.

26 Jun 2017

As eleições do nosso contentamento

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stamos em ano de eleições e a coisa promete alguma confusão. Trata-se de um momento especial na RAEM, não tanto por causa do acto eleitoral em si mas por desvelar algumas das características nem sempre à superfície deste território à beira do Rio das Pérolas pespegado.

Começaremos então, porque assim nos arrasta a mão, por desvalorizar as eleições enquanto tal, ou seja, como eleições cujo objectivo é, normalmente, a escolha dos representantes que nos governam. Aqui é precisamente o contrário. O povo escolhe os representantes que o desgoverna. Na realidade – pura, crua e fedorenta – quem governa serão outros ou, pelo menos, assim parece. Os nossos ilustres deputados, quando muito, na maior parte dos casos, governam-se a si mesmo. E isto que poderia parecer estranho ou até despropositado, aqui faz todo o sentido.

É que em Macau é difícil implantar o conceito de bem comum. Cada um puxa a brasa à sua sardinha e a ver se fica com o fogareiro. Cada família, cada clã, cada etnia, está fundamentalmente preocupada consigo e os outros pouco existem. A teoria (selvagem e não dita) é que cada um tome conta de si e ninguém de todos que isso – grunhem – é o comunismo e isso é lá para o continente e não serve para estes exemplares capitalistas que por aqui pululam e fazem fortuna entre o imobiliário e os derivados do jogo.

No acto eleitoral, a populaça vai votar para uma dúzia de lugares eleitos de forma directa (mais ou menos um terço da coisa), a ver se se entretém. Mas, nesta realidade de antanho, as pessoas só vão realmente votar porque são arrebanhadas, conduzidas, alimentadas e, finalmente, despejadas junto às urnas com indicações precisas e irrevogáveis. Por elas ficavam em casa ou no trabalhinho que é muito bonito. Mas o melhor é ir botar o voto, não vá o chefe zangar-se. Depois os resultados são o que se sabe. Enfim, adiante.

O que realmente interessa neste acto –  nos preliminares que tanta discussão acendem – é o que vem à tona, assim como que empurrado por anos ou décadas de omissão. É ver, por exemplo, a reacção impulsiva de Pereira Coutinho perante o discurso de Jorge Valente no jantar anual do Gabinete de Ligação. O homem forte da ATFPM não resistiu ao protesto, tal como o jovem empresário não resistiu ao apelo do palco e do microfone, ainda que certamente sabendo estar a cometer um acto passível de crítica. Ambos fizeram bem: a política é mesmo assim.

Contudo, se pensarmos estrategicamente no assunto, o que Pereira Coutinho fez foi algo contrário aos seus interesses, na medida em que Jorge Valente é praticamente um desconhecido nestas andanças e o protesto do deputado emprestou-lhe pública notoriedade. Aquele que era um jovem macaense, parceiro de Melinda Chan, transformou-se num político de futuro interessante, de quem se fala, que Coutinho teme (?!), eventualmente bem visto no Gabinete de Ligação, e até ficámos a saber que fala mandarim!

Mas o que é interessante neste caso é a emergência de um potencial debate, a esperança que luza uma ideia, que se destaque uma opinião, que se revele uma estratégia, quiçá uma visão.

Sim, queremos sangue e queremos pombas. Queremos a comunidade dividida nas opiniões mas unida num óbvio rumo. Queremos que se esgadanhem por nós. Que se empenhem na demonstração da extrema utilidade do nosso voto. E, acima de tudo, que nos falem ao coração. É disso que a malta gosta… quando não desgosta que esta gente é muito difícil…

Outro canto deste micro-universo eleitoral é aquele onde se desenrola o combate de boxe entre velhos e novos “democratas”. Ng Kuok Cheong e Au Kam San partiram definitivamente a bilha onde se acumulavam pessoas com agendas muito diferentes. Pelos vistos, pretender “directas já!” não chega para juntar os cacos. Poder-se-ia argumentar que o choque é geracional, mas o argumento cai por terra quando damos por homens como Paul Chan Wai Chi, um sexagenário, do lado dos jovens e os “tradicionais” do lado dos outros.

A questão é certamente outra. Os problemas de Hong Kong, as ligações específicas de cada membro e mesmo uma ideia diferente de sociedade estarão por detrás desta implosão da Novo Macau. É com alguma curiosidade que se aguarda por eventuais debates entre Scott Chiang, o homem a quem maltrataram o coração, e a dupla Ng-Au, de modo a compreendermos a dimensão da ruptura e o sentido de novas filiações.

Enfim, isto promete. Não o que devia prometer, mas promete. Dá para escolher o lugar, preparar o lanche e esperar para ver. O espectáculo promete ser divertido.

19 Jun 2017

O nascimento do Ou Mun ian

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]om o esboroamento do mundo antigo, alterou-se substancialmente o conceito de identidade, seja nas relações estabelecidas no corpus social, seja no interior daquilo a que ainda chamamos indivíduo. Se no passado as identidades estavam fortemente referenciadas e de algum modo amarradas a um núcleo duro, constituído por geografias limitadas, famílias, fratrias, religião e países, não padecendo por isso de grande possibilidade de oscilação, o mundo contemporâneo criou para a identidade um outro recorte do real. Ela é hoje uma função instável, com pouca substância, na medida em que constantemente se refaz na conjugação espaço-tempo, em cada lugar e a cada momento de tensão e de confronto. Não deixa por isso de ser um dos mais importantes conceitos, uma das mais eficazes ferramentas, na compreensão das motivações profundas de um grupo humano. Convém, no entanto, assimilar que não podemos hoje falar de identidade no mesmo quadro mental do passado. Estamos agora perante um conceito que de modo nenhum se refere a algo de fechado, ilhéu, defensivamente encerrado em concha autista. Pelo contrário, as identidades deverão ser concebidas como abertas, existentes porque comunicantes, em constante estado de desagregação e de reagregação, em interminável confronto com outras identidades, variáveis, mutantes, guerreiras; afinal ao ritmo da cultura no século XXI.

É também a esta luz que teremos de ler a identidade de Macau, até porque a sua sobrevivência enquanto tal prende-se fundamentalmente com a existência ou não de uma identidade – como temem os negativistas que apregoam a zhuhaificação. Advirto que não pretendo utilizar uma perspectiva académica, não situando por isso este texto no domínio da sociologia, da antropologia ou de qualquer outra ciência dita social ou humana. Para isso, precisaria de outros dados, de outro espaço, francamente de uma investigação que não se baseasse unicamente na observação quotidiana do que me rodeia – como aqui acontece, mas também no rigor dos números, em citações elefantinas e nas evidências das estatísticas.

E contudo… Identidade. Questão chave para Macau na medida em que estamos num espaço cercado, espécie de ilha cujos habitantes terão razões histórico-culturais para assumir uma identidade diversa do que os rodeia, dispositivo produtor de sentidos únicos e entrançados genealógicos. Questão uma e outra vez sublimada talvez exactamente por mexer em terrenos nem sempre pacíficos, admissíveis, raras vezes salubres. Repare-se que Macau é designado em mapas franceses e outros como a presque-île, o que não deixa de ser curioso.

Identidade. O tema recalcado, cujo debate foi sempre atirado para essas calendas que, admitamos, a acontecerem é só porque estamos na China onde o tempo tem uma dimensão mais que bíblica. E é pena. Limito-me, portanto, a constatar empiricamente uma mudança que considero interesante.

Passo a descrever o contexto. Quando aqui cheguei, no princípio dos anos 90, toda a pessoa de etnia chinesa nascida em Macau, quando interrogada sobre a sua origem, respondia ser “Tchong-ko ian” (uma pessoa da China). Quanto aos macaenses, chamavam-se “Tou-seng” (filhos da terra), entre outros nomes, de uso interno, que especificavam o grau rácico ou social. Já os portugueses da República, vulgo reinóis, eram conhecidos em cantonense por epítetos de vários géneros, que por pudor me escuso reproduzir. Certo é que a palavra Macau não aparecia, na língua chinesa (Ou Mun), para formar uma palavra que designasse as gentes de Macau. Ou seja, pessoas de Macau, claramente “Ou Mun ian”, não existiam.

Desde logo considerei este dado algo de muito singular e até parte da estranha identidade deste espaço. Então a larga maioria dos habitantes de uma cidade, de um quase Estado, não se reconhecem enquanto tal? Não se designam a si próprias enquanto tal? Que razões profundas criam uma situação dete tipo? Trata-se de um fenómeno efémero, passageiro, ou algo de verdadeiramente enraizado na matriz cultural desta gente? Invoquei as migrações recentes, mas isso não me satisfazia porque chineses que estavam em Macau há várias gerações tinham o “Tchong-ko ian” na ponta da língua. Nunca consegui responder de forma organizada a este tipo de perguntas. Por outro lado, a diferença em relação a Hong Kong se não era abissal rondava o profundo.

Claro que, na minha opinião, a situação não era favorável à manutenção futura da memória da cidade e um dos trabalhos a fazer seria precisamente estudar o assunto e mesmo intervir no sentido de fortalecer uma identidade que parecia extremamente pulverizada e repartida. Lembro-me de, por exercício lúdico, tentar encontrar um evento histórico que conseguisse unir todas as comunidades de Macau e não ter conseguido. O governo de então nunca se preocupou com o tema. Estava estabelecido, numa espécie de consenso silencioso, que uma das partes mais consistentes da identidade de Macau era não se interrogar sobre si própria. Como se, como pinta Goya, a razão engendrasse monstros. Ou talvez o verdadeiro receio fosse que eles saíssem debaixo do tapete.

A vida continuou. A RAEM surgiu. Macau passou a ser governado pelas suas gentes. O jogo foi liberalizado e nunca mais pararam de aumentar os seus lucros. A China tornou-se na maior fonte de turistas, sobretudo depois do aparecimento dos vistos individuais. A cidade, o quotidiano, as relações, mudaram. E as pessoas? E o seu interior? A visão que têm de si mesmas? Será que mudaram também?

É verdade. Tenho de confessar a minha inicial surpresa quando comecei cada vez mais a ouvir chineses de Macau a definirem-se como “Ou Mun ian”. E o mesmo se passa com jovens macaenses, cuja tendência parece ser abandonarem o “Tou seng”. Ou seja, a usarem a cidade de Macau, a RAEM, como referência identitária. Agora já não dizem com a mesma inevitável regularidade que são “Tchong-Ko ian”, mas sim pessoas de Macau. Que razões estarão por detrás desta mudança, que tem sido gradual embora inesperadamente acelerada? O que estará a levar as gentes de Macau a reconhecerem-se enquanto tal, quando dantes remetiam a sua identidade para a Grande China? As respostas não podem ser simples. Deixo apenas algumas pistas.

Em primeiro lugar, poderemos considerar a influência da propaganda governamental, assente no princípio “um país, dois sistemas” e no seu derivado “Macau governado pelas suas gentes”. Ora a verdade é que, sobretudo o segundo slogan, pode ter tido algum efeito, na medida em que atribui às pessoas de Macau um papel na condução da suas vidas, permitindo portanto uma identificação entre ser de Macau e específicos direitos sobre a sua própria existência. Não é realmente importante que as pessoas de Macau efectivamente tenham uma participação cívica mas a existência dessa possibilidade, que dantes não era sentida pela esmagadora maioria das pessoas de etnia chinesa, pode causar efeitos identitários.

O aumento da consciência cívica que o advento da transferência de soberania inevitavelmente trouxe a grande parte da população poderá desempenhar um papel (reconheço que menor) na mudança do dispositivo identitário.

Em segundo lugar, poderemos considerar o aumento exponencial de turistas do continente chinês e a constatação prática das, por vezes gigantescas, diferenças culturais que os separam da gente local, apesar de pertencerem ao mesmo país. Perante a quase imposição dos valores pan-chineses em Macau, do reforço paternalista e desnecessário do patriotismo e a própria invasão de sucessivas moles humanas, com quem os locais não se identificam nem tomam como modelo, é natural que se dê uma reacção local de reforço identitário.

De notar que as diferenças entre os chineses que nos visitam e os chineses de Macau são realmente profundas, nomeadamente ao nível dos hábitos alimentares, da língua, da religião, do modo de relacionamento em grupo, da maneira como entendem o mundo. É certo também que existe muito em comum. Nalguns casos, tanto como entre um português e um húngaro ou um esloveno, o que não é pouco. Tal facto só advoga a favor da diversidade natural de um país da dimensão da China, não deixando contudo de se manifestar no aparecimento de identidades locais e regionais, factores de enriquecimento cultural e de grande potencialidade futura.

Em terceiro lugar, teremos de contar com o factor geracional. Ou seja, não importa tanto estarmos agora perante uma terceira geração de pessoas já nascidas e criadas em Macau, mas sim o facto da RAEM enfrentar o mundo global e não ser já uma sociedade indefinida como a que existia no pré-handover. Pessoas cuja ligação ao continente chinês é valorizada e desvalorizada consoante o contexto. Pessoas que, independentemente do grau de educação, cresceram num espaço em plena mutação e indubitavelmente excitante, pleno de horizontes promissores, cada vez com mais nome internacional.

Nasceu, portanto, o Ou Mun ian. Bem vindo seja. Nas suas costas reside não apenas uma cidade, mas toda a História, toda a Cultura, todo o relato de um encontro que, também ele, não cessa de se desfazer e de se refazer, marcando o novo ritmo das múltiplas identidades que, num determinado espaço e momento, constituem a identidade de Macau.

8 Fev 2017

Liberdade. O resto não

[dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]egeto no princípio do erro e por isso amo a liberdade. Não me seria tragável morar onde a minha possibilidade de ler ou escrever fosse sujeita a censura. Foi assim que aprendi a ser humano e desumano. Foi assim que me tornei no monstro que hoje sou, excepção idílica de um homem, longe da definição corrente, quimera racionalizável e impotente.

Sim. A impotência de ser livre, de explanar os desejos, de fazer exactamente o que quero como se fizesse exactamente aquilo que desejo, algo de abstruso e desleal, no qual me reconheço pouco ou nada, quando penso no caos, na entropia, no mal. Habitante de refúgios, sentinela da ignomínia, eis-me exposto sem peias e de meias para parecer mais ridículo.

Ser livre, pensar hoje e amanhã. Pensar errado ou estimulado, o que vem a ser a mesma coisa. Mas pensar livre dentro das usuais algemas. Exigir o fim da verdade ou do caminho, da via sem dúvidas, das curvas sem outro mundo, esse que fica à espera, muito quieto… do outro lado. Eis o arquétipo, eis a liberdade.

Sim. Criticar os uns e aderir, por instantes, aos outros. Sim. Ser do mesmo e do inominável se assim me apetecer. E ser também desdizer tudo o que disse, porque assim me apetece e ser mais: ser bálsamo, cura e religião.

Desprezar-me-ia… tivesse eu outra certeza além da voz e nela não palpasse a minha insignificância, distância ao ser e ao devir, e por isso nela cavalgar com furor. Será amor?

Não. São interesses, são abismos ávidos, sem recuo nem paixão. Sade rex, num mundo novo, apenas profetizado, do sexo para a mão. Punheta. Japão. Futuro breve, excisão. Nada afecta a minha mão. Somos livres. Biltres exigentes e sem provas anunciadas. Somos nada. Somos mão. E simplesmente desfrutamos da liberdade inclusiva, excessiva, imponderável, sem sentido definido. E onde está o indivíduo? Onde estaciona o homem novo? Curiosamente fechado, ligado, interligado, enquadrado… havia alguma aflição… No problema: há o Japão. À medida exacta da mão que gere, que fere, que range e exangue se distrai sobre o falo rijo de antanho.

Era a liberdade. Não interessa o tamanho ou o discurso. Era a explanação de tudo o que não existe, do que foi desdito pela História e pela glória anunciado. Disseram-nos: foi pecado. Mas nós continuámos indecentes. Queríamos lá saber. Havia dentes, dentadas, noites sufragadas de esperança. E a presença das doenças, sem nos amedrontar. Não há meia liberdade. Ou tudo ou nada. Ou tudo ou a estrada. Não há vida de outro modo, a não ser na China, longínquo país de outras danças.

E eis-nos feitos crianças, sem nada de novo entender, à excepção do sofrimento, desta coisa de não ser real quando o real nos aponta assim, de dedo em riste e berbequim. A furar, a furar, a meter buchas, parafusos, e nós pregados ao muro de todas as lamentações.

Não digam não. Digam sim. Não vale a pena dizer não. O mundo é curto e terno. O universo acaba ali. As novidades são de ontem, os antigos de amanhã pertencem, sempre pertenceram, ao Inverno. São velhos e morrem todos os dias para alívio de um mundo corrente. Junta algum óleo e mete a sertã ao lume que comida, dizem, haverá. E a liberdade? Por onde se distrai a dissoluta puta, que tanto assusta clientes como passantes imbecis?

Não sei. Houve uma noite em que a persegui, sem dizer nada. Ela saíra de um clube a meio da estrada. Era fino, repenicado, cheio de laços e de frufus. Abordei-a mas não acrescentei. Fiz de rei. Era o meu peito e nada tinha para dizer. Esgotara-se na desdita, na crítica, avalanche e nevoeiro, condição primeira do homem livre.

Haja coragem! Enfrentemos a confusão! O resto, queira-se ou não, é só prisão, é só algemas. De fora ficam poemas, folga doce a ilusão. E o que prefiro? As vossas festas que tudo rompem e tudo me deixam na mão? Bate o ritmo, severo e cru, bate o ritmo, certo e inoperante, como nunca o ritmo foi. Liberdade, por favor… bem sei, conheço o ritmo… ouvi-o nos barcos, fui remador… ouvi-o nas varandas… baixinho:  — Só há liberdade a sério quando não houver o rumor rasteiro da verdade, quando a transparência me liquidar sem piedade nem unção.

Que homem  é este? Que final da História hoje nos atordoa? Não importa quão funda se apresenta a fossa… a quem recusarei a mão? Antes a merda. Antes o povo que me descoroçoa, me abate e aflige. Antes, verdadeiramente antes, o que realmente me atordoa. Tão pouco, tão fraca, tão exangue, esvaída: a liberdade tem um nome: não é querida, nem amor, nem dor, nem manifesto. Protesto e tenho razão, por hoje. Amanhã não tenho outra certeza que a de ser relativamente livre, de alucinar face ao destino. Sou menino, dizeis. Sou livre, sou livro, sou discurso ou intenção. O resto não.

9 Jan 2017

O ano da máscara

[dropcap]P[/dropcap]revisões fazem os bruxos ou, na melhor e mais enigmática das hipóteses, o Yi Jing. Da minha parte, teríeis cassandricas opções, pois que a paisagem não inspira discursos belos e ainda menos idílios. Mas tal não será caso para grandes desesperos. Aliás, a malta de hoje não é de desesperar. A coisa sagra-se mais em deixar andar o comboio e aproveitar o deslizar da carruagem, sem mesmo reparar por quais carris se rola ou se enrola ao deslizar.

É assim o mundo e podia ser pior, rezaria o Dr. Pangloss* se rezar lhe ajuntasse vantagem, nesse exacto mundo que ele percepciona e não noutro, lamentavelmente, oculto a olhares burgessos. E assim continuaremos em 2017, não muito diferente de 1917, à excepção de uma revolução cujo desfecho resultou na morte das revoluções.

Andámos muito desde então. Para a frente e também para trás. Muito se liquidou: algumas coisas bem, outras não. Há uma cegueira cíclica nesta humanidade indecisa: o extermínio de pessoas e de livros. Aos últimos, hoje, não é preciso queimá-los. Eles encarregam-se disso.

E é neste espírito, imerso e paradoxal, que vos proponho em 2017 o adensar da máscara, o aumentar da distância em relação ao outro, a construção de muros entre nós e esse México que por aí anda. E esses mexicanos que o paguem. Sejamos realmente a trampa que estamos mortinhos por ser. Provavelmente alguém nos dará razão.

Propaguemos um outro email, ainda nosso mas não totalmente, domínio do nosso ego virtual e não realmente implicado no que verdadeiramente pensamos ou sentimos. Máscara. Máscara por trás de máscara. Máscara. Máscara pintada, retocada, maquilhada; máscara exultada. Máscara gigante ou máscara anã. Máscara matrioska. Sem sobressaltos por detrás da máscara da máscara. Máscara adamascada ou em tule. Não importa: em caso algum a pele se vislumbra.

Não ousamos outro modelo, outra via, que não a via das máscaras. Impotentes ou guerreiros, vagabundos ou burgueses, sedentos ou esfomeados, 2017 exigirá a mascarada, nos melhores momentos a mascarilha. Fingiremos ser; actividade que praticamos sem remorso e quantas vezes sem presunção.

E o que fica, perguntais, quando já manso no lar ousais a máscara tirar e por debaixo outro careto vos pergunta sem cessar o que fazer do abismo que mesmo num sono sem fundo arrogante se interpõe? Nada. Talvez viver.

Viver assim… ausente, no meio do nevoeiro. Sem cão, sem estrela, sem ideias de permeio. Só tactear: ser alheio, afastado das formas, dos verdadeiros corpos, dos verdadeiros copos, das orações; nada agarrar, passar fantasma, roçagar. Viver de exílio, mestre da saudade e da cidade interdita a contemporâneas efabulações. Preferir o nevoeiro às luzes rançosas. Escolher o tenebroso, a jugular impenitente, sempre a saltar à nossa frente, a deixar-se abocanhar, plena de vida, pujante de amor, ou não fôra ela natureza e mãe e tudo.

E o sabor do nosso sangue, interdito e intermitente, que tanto se ergue em tempestades como repousa ignorante e parvo em colos de além-fronteiras, onde o sossego nos maquilha de rosa e cor-de-vinho de Bordéus, alucinada cor de mantos e desmedidas cortinas.

Estaremos menos sós. A solidão é tão impossível como o convívio. As máscaras encontrar-se-ão. Dar-se-ão bailes, cruzeiros, manifestações de massas. Espectáculos de rua, mariposas, ajuntamentos. Serão breves como os dentes. Retornaremos ao sonho porque não há mais nenhum lugar para ir. O mundo encontra-se, francamente, esgotado. Nessas horas frágeis encontraremos o ano. 2017. Como poderia ser qualquer outro: os sonhos não conhecem o tempo, apenas se alimentam de espirais. Nós, omnívoros, comemos tudo.

Um Bom Ano para os uns e para os outros.

*Personagem de Voltaire para quem vivemos sempre no melhor dos mundos e da bajulação aos poderosos havemos de usufruir alguma vantagem.

4 Jan 2017

Celebrações

[dropcap style=’circle’]Q[/dropcap]uando lágrimas ou sorrisos, de alguma maneira, me ofendem sei chegado o tempo de partir. Permanecer seria vão e as linhas traçadas na curta espera desta macedónia de gente mostram-se recta sem sentido. Lanço às palavras a alma, que não tenho, na ânsia súbita de agarrar. De aqui podar o excessivo, simplificar o caminho que sei não levar a lado nenhum. Detesto celebrações.

Bogart chamaria a estes eventos uma “amateur night” – leio no Facebook e concordo com avidez. No meio de todo o ruído, sabe bem não estar totalmente sozinho e encontrar, ainda que morto, um irmão cujas ideias flutuam ainda no ciberespaço.

Nunca me conformei à necessidade de divertimento compulsório. Admito que seja por espírito de contradição, mas quando se impõe a festa quase imediatamente me advêm pensamentos tristes, deprimentes, e não há álcool que os apaguem, nem música que os afugentem. Permanecem por ali, num lugar recuado da mente, enquanto sorrio para todos e desejo votos de qualquer coisa. Não têm qualquer substância particular, nem conteúdo específico. Passado pouco tempo, sinto sempre que é melhor bater em retirada. E mesmo se alguém verdadeiramente amigo me contacta, prefiro mergulhar no mar da solidão que nesses momentos me habita.

Fogem-me as palavras e são-me penosos os sorrisos. É talvez um mero relato de não estar em parte alguma, de vegetar dentro de mim, sem vontade de sair do invólucro a que me destino como caixão antecipado. Nesta proximidade à morte, não seria claramente uma boa companhia para ninguém, como não o sou sequer para mim. Daí que me outorgue este estranho direito de ficar sozinho, saborear a inutilidade do tempo, a vacuidade das datas e reforçar a ideia de que não passam de um esforço ridículo de quem realmente teme, em silêncio, a morte.

Sentiria também, se me vestisse para a festa, que estaria a fazer a minha “toilette de cadáver”, como dizia Pessanha. Afinal, preparar-me para os outros ao espelho é como preparar-me para enfrentar o vazio frio da eternidade. Desse tempo que existiu antes de mim e que existirá depois de eu partir. Assim, fico nesta consciência de uma efemeridade que só a dor engrandece, na sua inutilidade e paradoxo; e só o prazer do amor e da beleza eventualmente riscam uma justificação. Será pouco, muito poucochinho e talvez esta constatação me enfureça subtilmente e desta raiva calada emerge então uma disposição solitária.

Agrada-me, por outro lado, ficar à janela enquanto a cidade vibra e os foliões desesperam na grande e programada demanda do esquecimento. Sobe-me à garganta alguma ternura pelos humanos, pela sua corrida angustiada e de sentido circular. Estranho paradoxo este de procurar não ser para ter uma sensação mais absoluta de ser qualquer coisa. Afinal, será esta grande festa uma recriação de um caos original, apenas pressentido, em que se tornava claro não passarmos de matéria estelar.

Cumpro algumas das obrigações, presto algumas das deferências a que a minha condição social obriga. É preferível assim do que depois ter me desfazer em estúpidas, eventualmente mentirosas, justificações. Depois, rapidamente, me recolho, pondo o telefone em silêncio, respiro mais fundo e mais livre no conforto desta gruta a que chamo casa e prometo a mim mesmo nada determinar das minhas acções futuras.

Sei lá quanto me espera neste espaço de tempo a que chamamos um ano. Não o temo nem o desejo, não me inspira nem me desespera. Aceitarei sem remorso o que as coincidências me aportarem. Não estarei preparado para nada, pois sei que a todo o momento depararei com uma curva e pouco imagino sobre o que estará para além dela. Intimamente, muito intimamente, sorrio porque foi desta ignorância que aprendi há muito a fazer a minha liberdade. E – imaginem! – por uma centelha deste tempo, por um instante de eternidade, fui realmente feliz.

Ainda bem que, amanhã ao acordar, já terei esquecido tudo isto.

27 Set 2016

A doença e a virtude

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]s cem milhões de patacas que a Fundação Macau doou à Universidade de Jinan saíram do bolso da população mas estão a custar cada vez mais caro ao Governo. Em causa está, uma vez mais, a sua imagem, a sua transparência e, sobretudo, os critérios de transferência de dinheiros públicos. Numa palavra, a sua credibilidade e virtude (德 de), conceito tão caro ao actual presidente chinês.
Poderão não ter violado a lei. Mas que lei é essa e quem a fez? E de que modo essa mesma lei facilita este tipo de “transferência”, com a mera aprovação daqueles a quem, de algum modo, se destinava?
A população, claramente, não gostou. A manifestação, organizada pela Associação Novo Macau, contou com cerca 3000 pessoas. É significativo para a RAEM. Sobretudo se tivermos em conta o grau de educação dos participantes, bastante mais elevado, em média, dos que participam na marcha do Ou Mun. Ou seja, pessoas com que Pequim tem de contar no futuro. É bom dar-lhes razões para virem para a rua gritar? Parece que não.
Não satisfeitos com a gritaria, as forças de segurança resolveram intimidar os organizadores da manifestação, fazendo-os comparecer na esquadra para prestar declarações e, eventualmente, encontrarem um modo de os acusarem de desobediência. Do lado da ANM, devem ter batido palmas. Ninguém poderia pedir melhor publicidade. Lá voltaram a Universidade de Jinan, os cem milhões, os curadores da escola, o pessoal da Fundação Macau e as acusações de perseguição política para as páginas dos jornais, para as rádios, para a televisão e, sobretudo, para as redes sociais, onde este Governo e a oligarquia que o rodeia é tratado com notável pouca consideração.
Ao invés de enterrarem o assunto, as autoridades de Macau, num arguto movimento, fazem questão de o trazer de novo à superfície. Se o haviam de fazer esquecer, empenham-se em relembrá-lo a toda a gente. Houve desobediência? Dos manifestantes? A sério? Soubesse a ANM organizar-se e tinham tido 500 pessoas a acusarem-se ontem, na mesma esquadra, do mesmo crime dos organizadores. Desta vez, estes esqueceram-se de carregar no botão…
Um dos problemas é que a ANM mudou. Ng Kuok Cheong e Au Kam San são hoje o que pode chamar de “democratas gordos”. Mexem-se pouco, é-lhes difícil actuar. Na sua história têm muito de protesto contra a falta de democracia mas, raramente, colocaram em questão os interesses da oligarquia ou fizeram-no de forma suave e pouco eficaz. Ou não percebiam o que estava realmente em jogo ou fingiam não perceber.[quote_box_right]“Gostará Pequim de arriscar tanta insatisfação, tanta desarmonia, tanta tinta a escorrer, tanta língua a dar a dar, tanta contestação, aparentemente desnecessária, na terra dos milhões?”[/quote_box_right]
Os novos líderes parecem ser de outra loiça. Daquela que se parte no choque com os que querem legislar e governar de acordo com o boletim meteorológico do seu mercado e, nesse sentido, pressionam sem maneiras o Governo. Passando as ditas “causas fracturantes” (cuja resolução, aliás, seria um sinal de progresso para a RAEM) para Jason Chao, outros poderão tratar do que realmente interessa à população, criando algum mal-estar em certos meios. Que força realmente terão é difícil de dizer. Tal dependerá da conjuntura, talvez de mais um extraordinário evento. Mas gostará Pequim de arriscar tanta insatisfação, tanta desarmonia, tanta tinta a escorrer, tanta língua a dar a dar, tanta contestação, aparentemente desnecessária, na terra dos milhões?
Também graças aos esforços das autoridades, o caso dos cem milhões doados à Universidade de Jinan teima em não desaparecer. É um caso perigoso. Está colado ao modo como por aqui se governa como uma doença má. Veremos até que ponto este corpo governativo a consegue rejeitar e com que cara lhe sobreviverá.

17 Jun 2016

Uma questão cultural

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]emonstrando uma argúcia e um estilo muito próprios, para além de vasta experiência e engenho, o Secretário para as Obras Públicas e Transportes cunhou a grande tirada filosófica deste Governo até ao momento. Ora diz Raimundo do Rosário, quando não sabe como explicar determinados meandros da política local, que se trata de “uma questão cultural”. De facto. Deve ser.
Repare-se, no entanto, no alcance holístico da expressão: nela cabem os atrasos do metro e do hospital; nela cabem os 100 milhões para a Universidade de Jinan e os seis milhões do pato; nela cabem o que se faz, o modo como se faz e o que se deixa por fazer. Bem vistas as coisas, a “questão cultural” explica muito, para não dizer quase tudo.
Ou seja, Raimundo do Rosário descobriu a pedra filosofal da política da RAEM. Existe, contudo, um detalhe e nos detalhes é que está o diabo que, como se sabe, é legião. É que em Macau não existe apenas uma cultura, pois como se propagandeia vivemos num caldo de culturas; logo, não existirá apenas “uma questão cultural” mas “várias questões culturais”. Percebe-se o poder imenso que daqui deriva. Se já é misterioso referir uma acção política a “uma questão cultural”, imagine-se o que não será poder referir a mesmíssima acção a “numerosas questões culturais”. Justificará tudo, incluindo cravar uma bandeira da RAEM em Marte.
Sugerimos pois um rápido curso de Etnologia na Universidade de Macau para ver se compreendemos a tal cultura local, cujas questões tanto influenciam a política e a vida quotidiana dos cidadãos. Não nos atrevemos, neste exíguo espaço, a abordar um assunto tão complexo, pois a sua vastidão exigiria um estudo que examinasse a possibilidade de um estudo científico, seguido de uma consulta sobre a necessidade de fazer uma consulta para avaliar a sua pertinência. Deixemos isso, portanto, aos nossos competentes académicos, se bem que não sejam tão competentes, segundo o Governo, como os do continente.
Por aqui, ficaremos satisfeitos com uma breve análise dos sintomas que fazem emergir a noção, isto é, discernir em que situações, concretas ou mais ou menos oníricas, se socorre o Secretário da “questão cultural”. Bem sabemos que este desiderato limita sobremaneira a extensão da ideia mas, de momento, são os dados de que dispomos.
Por exemplo, o já “famoso mistério das Obras Públicas” (i.e., porque razão demoram sempre mais dez anos que as privadas, quando são construídas) estará incluído neste menu. Outra é a monomania de contratar determinadas empresas por ajuste directo. Outra ainda é não se conseguir definir um traçado para o metro. Ora todos estes problemas remetem para “uma questão cultural”. E não há volta a dar-lhe que não seja um etnocídio, ou seja, a destruição da cultura instalada. E, claro, ninguém quer ser responsável por uma coisa dessas, seja eu, o Chefe, o Secretário, o Comissário Contra a Corrupção ou o da Auditoria.
A cultura, dizem, tem de ser preservada, protegida, alimentada. É ela o barro da nossa identidade. Ora quem é que quereria estragar esta bela cultura que predomina em Macau? Destruir esta maravilhosa mansão barroca? São décadas de privilégios, lustros de mordomias, anos de enriquecimento desordenado. São noites de luxúria roxa e dias de veludo dourado. De leis feitas à medida de cada carteira, de distribuição sincopada e ordenada pelos mesmos.
Quem quereria acabar com isto, com esta cultura tão entranhada, tão cinzelada e depurada? Acham bem?, perguntaria um deputado famoso pelas suas tiradas desabridas, se não estivesse ocupado em actividades culturais, como a bofetada súbita. E com razão… O que seria de nós sem a cultura?

9 Mai 2016

O pato não é mau

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão sou contra o pato. Ao que parece, a amarela criatura faz pessoas felizes e a felicidade não tem preço certo. Certos jantares de certas associações custarão mais caro à RAEM e servirão menos gente. Temos pois que o pato “serve” e serve para alguma coisa, o que não se pode dizer de tudo o que custa 6 milhões de patacas.
Para além disso, o pato desenvolve as “indústrias criativas” como as confecções de bolos, cartazes, bolachas, carnes frias e porta-chaves, conseguindo assim o Governo de Macau atingir um dos seus mais sonantes e misteriosos objectivos. Cada pato seu paladar. Portanto, que cem patos desabrochem por essa cidade adentro. No campo culinário, a tentação é muita. Imaginamos o casamento do Pato à Pequim com o Arroz de Pato, por exemplo…
E ainda há mais: o pato servirá de pretexto para introduzir as crianças, através de desenhos, fotografias, instalações e talvez jogos de vídeo, ao mundo da pataria, que é como quem diz da arte contemporânea, de onde brotou o pato em questão.
Antes de ser contemporânea, a arte implicava o aprendizado da técnica, o domínio dos materiais para além, obviamente, de ter em si implícito um discurso, uma ou múltiplas intenções. Existia então na arte essa capacidade de nos fazer experimentar um infinito que se transmuta em Uno, somente como instante ou experiência do instante.
A obra era então inesgotável, qual conjunto de vectores de sentidos e de possíveis e impossíveis leituras. Havia o “texto”, a textura e o contexto e tudo isto formava um “caso”, caso esse que nos sufraga enquanto sujeitos e nos eleva enquanto humanos. A arte mostrava-nos o que não poderíamos ser, mas poderíamos procriar.
A arte do pato é outra. O pato é outra coisa. É uma ideia. Nada mais. Uma ideia que se instala efemeramente na praça pública para gáudio da população. E com ela a população será, eventualmente, feliz. Ou distraída. Ou entretida. Não interessa. E em tudo o que fizerem com o pato, cada um procurará a sua individualidade, a sua pequena diferença, ainda que esta seja imitar o próximo. O pato não é mau.

3 Mai 2016

Fascismo nunca mais!

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]oje comemora-se o 25 de Abril, Dia da Liberdade. Pela quadragésima segunda vez. Ou seja, já haveria tempo para ter sido encetada uma séria reflexão sobre esse conceito belo e complicado: Liberdade. Claro que quem não viveu as ditaduras, possui uma experiência limitada da questão. É compreensível. E, no caso radical da malta a quem a Natureza não dotou de mais de três neurónios, é até esperável, ainda que não desejável. Isto faz-me tudo muita impressão. Sobretudo a facilidade e impudência com que, por vezes, se fala.
Repare-se no que aconteceu aqui em Macau, a propósito do processo de destituição de Dilma Roussef: Jane Martins, presidente da Casa do Brasil de Macau, disse a este jornal que preferia ver os militares no governo do seu país do que o Partido dos Trabalhadores (PT).

Questionada no Facebook por compatriotas naturalmente indignados, a senhora em questão empina-se dizendo que é a sua opinião e que o que mais preza é a “liberdade de expressão”. Portanto, arroga-se do direito de preferir um governo militar (como os que governaram anteriormente o Brasil) a um governo do PT.

Na verdade, engana-se redondamente, porque não se pode usar a liberdade de expressão para pugnar pela sua extinção. Os governos militares no Brasil instalaram a censura, perseguiram pessoas pelos seus ideais, prenderam-nas e torturaram-nas. Foram, na realidade, os grandes responsáveis pelo estabelecimento da corrupção que infesta todos os quadrantes da vida política brasileira, pois criaram um regime nela baseado que, apesar do advento da democracia nos anos 80 do século XX, ainda predomina como a lista da Odebrecht demonstra. Com os militares no governo, a liberdade de expressão, que Jane Martins tanto diz prezar, seria limitada ao encómio e à mentira.

Mas o que é interessante no discurso da presidente da associação local acaba por ser a crença em que a “sua liberdade de expressão” pode ser exercida de qualquer maneira e, por exemplo, pode defender o fim da liberdade para os outros, como ela fez ao preferir um regime fascista a um governo eleito democraticamente. Ora é claro que não é assim porque (lugar comum, mas difícil de entender por certas pessoas) a minha liberdade acaba onde começa a dos outros…

Senão, repare-se, qualquer um poderia dizer de Jane Martins o que Maomé não disse do toucinho: insultá-la, acusá-la de corrupção, de gestão danosa da sua associação, de estupidez congénita, de comportamento moralmente duvidoso, até de ser fisicamente repugnante, sem apresentar qualquer prova ou justificação que não fossem as suas intervenções públicas, no Facebook e o direito à liberdade de expressão.

Certamente que a “Querida Líder” da comunidade brasileira de Macau não iria gostar. Provavelmente avançaria com um processo no tribunal que, talvez daqui a cinco anos, eventualmente, depois de muito advogado e muita discussão sobre liberdade de expressão, resultaria em muito pouco. Contudo, os danos causados na sua reputação seriam irreparáveis. Será que “liberdade de expressão” significa que vale tudo?

Penso que não. Existe uma coisa chamada ética pessoal que nos impede de tomar esse tipo de atitude. A liberdade não pode ser utilizada para tirar liberdade aos outros porque tal não é um conceito, mas uma posição de força real, de violência exercida sobre corpos, de fascismo, de repressão.

Depois de assistirmos ao espectáculo degradante dos deputados no Brasil, não surpreendem tanto as declarações da presidente local, que considero do mesmo calibre. Ou seja, assistimos a uma breve reprodução no Oriente dos dislates ouvidos em Brasília. Faltou Deus e a família… E não se trata de ter emitido uma opinião pessoal, porque nenhum jornal lhe perguntaria o que pessoalmente acha sobre isto ou aquilo mas sim, como é óbvio, como presidente da associação a que preside.

Minha querida Amélia António, presidente da Casa de Portugal… olha se fosse brasileiro… nestes momentos (e não só) é que percebemos como somos bem representados… Fascismo nunca mais!

25 Abr 2016

Maravilhoso, não é? Exótico, no mínimo

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]stive fora de Macau a maior parte deste Inverno. Depois voltei para uma terra onde o ex-Procurador fora preso, surgira o projecto de um arranha-céus no pulmão da cidade e os taxistas continuam a impor a sua lei no espaço público. Maravilhoso, não é? Exótico, no mínimo.

Lá fora, na distante e fria Europa, sofrem-se atentados terroristas; nos fanáticos Estados Unidos debate-se a possibilidade de um homem estranho ser presidente; na aldeia global, emergem os Panama Papers: o capitalismo mostra a sua garra. O mundo discute o racismo, o islamismo, o terrorismo, as fugas de capitais, guerra, refugiados, a poluição. Aqui o homem que nos protegia dos bandidos vai dentro e o Governo hesita em pôr na ordem os carroceiros porque “eles têm um lóbi antigo, do tempo da Revolução Cultural, com ligações ao Governo Central” (???!!!), porque tudo está bem enquanto se puder construir em toda e qualquer parte. Maravilhoso, não é? Exótico, no mínimo.
A desadequação desta cidade à realidade chega a dar ternura. “Só em Macau”, expressão incensada, está a ganhar dimensões novas, feéricas, audazes. Infelizmente, que nem sempre por bons motivos. Mas, suspendamos os julgamentos e apreciemos o grau de Espanto a que continuamente somos sujeitos.

Como muito bem definiu Descartes e outros sábios, o Espanto provém de um aparecimento súbito de algo inesperado. Na verdade, para o filósofo francês, o Espanto é filho da Admiração: ficar espantado também é admirar se lhe acrescentar o seu carácter de inesperado. Só que, dependendo da causa do Espanto assim ele se pode transformar em outras e diversas emoções. Pode, eventualmente, despertar o riso ou uma contemplação estética. No piores casos, quando a causa do Espanto é algo de ameaçador, pode transformar-se em Medo.

Cada um de nós lidará à sua maneira com os factos espantosos que Macau em catadupa nos proporciona. Tal depende do grau de consciência cívica, do sentido de humor, da paciência e de muitos outros factores que seria fastidioso enumerar. Basta termos esta certeza: será muito difícil encontrar outro abençoado lugar onde tantas vezes nos sintamos assaltados pelo espanto. Cuidei ser a Índia, talvez, e para lá viajei; mas depois de duas semanas nada por ali se comparava com a capacidade feérica de Macau que há 26 anos me espanta. Maravilhoso, não é? Exótico, no mínimo.

Não percebemos bem de que se queixam os residentes. Esta cidade está cheia de surpresas, de milagres de unicórnios. Poste-se o cidadão numa paragem de autocarro e constatará que existem três (!) companhias de transportes públicos para servir 35 km2. Contudo, o mais sofisticado neste serviço é o facto dos autocarros com o mesmo número ou que fazem a mesma linha teimarem em andar sempre juntos, uns atrás dos outros, como os elefantes da cauda da mãe. Não gostam de andar sozinhos, é o que é. Tem que se compreender. Depois passa um tempo interminável até que voltem a passar. É um estilo, pronto. Maravilhoso, não é? Exótico, no mínimo.

Outro fenómeno interessante, que talvez alguns considerem bizarro, é o aglomerado de empresários nas ou junto das principais cadeiras do poder. Feitas as contas, Macau deve bater recordes. São, literalmente, mais que as mães, porque muitos deles têm irmãos. Já para não falar nos primos, nos filhos e nos cadilhos. Trata-se de uma clientela educada que, com honrosas excepções, prefere comer pela calada. Ainda por cima, esta exagerada concentração serve de alimento aos “opositores do regime” que nela encontram tribuna alta para lançarem os seus protestos e imprecações. É, de facto, espantosa e fascinante esta dialéctica política que, à parte de ser sensaborona (o que lhe acrescenta chique), remete a população para um estado de inércia bovina, o garante imprescindível da harmonia. Maravilhoso, não é? Exótico, no mínimo.

E, como se não bastassem as acções e as não-acções dos nossos queridos governantes têm também surgido nos últimos tempos várias reflexões sobre a comunidade portuguesa aqui residente. Mas atenção: não se trata de coisa fácil visto esta comunidade estar intrinsecamente dividida, à partida, na sábia opinião dos analistas, entre os reinóis (os que nasceram no reino) e os macaenses. Ficámos então a saber que os primeiros se dividem entre os dinossauros e os neo-tugas; e os segundos entre tantas categorias e castas, às quais não é indiferente o bairro de nascimento, que não seriam suficientes as páginas deste jornal. E cada um de nós cultiva a sua ilha, ouve a sua música e esconde ciosamente o que tem. Fantástico! Longe do paraíso original, reinóis ou macaenses ou lá o que nós somos, temos esta capacidade única, espantosa, de nos preocuparmos sobretudo em levantar a pele das nossas próprias costas, sem acinte nem maldade. Maravilhoso, não é? Exótico, no mínimo.

12 Abr 2016

Palmyra libertada

[dropcap]O[/dropcap] exército sírio libertou Palmyra das mãos dos bárbaros e, para surpresa geral, a destruição não foi tão maciça como se temia. É certo que alguns dos principais monumentos foram dinamitados, o grau de vandalismo e os seus efeitos estão ainda por calcular. Contudo, dizem as notícias, poderia ser bem pior.

A pergunta que me assalta é: Porquê? Qual a razão (ou acaso) que terá poupado o grosso das ruínas de Palmyra? Que fenómeno terá detido a barbárie, que os homens do Daesh trazem acantonada no coração? Estando ali, entre ruínas pagãs, deveriam ter arrasado tudo, destruído radicalmente os vestígios de outras crenças, incendiado os restos e espalhado as cinzas aos ventos do deserto. Isso não aconteceu. A destruição foi significativa mas não foi total. A mão bárbara suspendeu o acto, não o levou até ao fim. Porquê?

Numa visita a um templo de Angkor Wat, junto a uma enorme estátua de um buda, um guia contava que, durante o regime despótico, um destacamento de Khmers Vermelhos se preparava para a destruir mas que uma voz, vinda do artefacto, fôra por todos ouvida, pondo em fuga os soldados de Pol Pot.

Não sei se em Palmyra sucedeu a mesma coisa. Se uma voz ressoou do interior das pedras, das colunas, dos arcos, evitando a sua destruição. No entanto, a ter existido, prefiro acreditar que essa voz veio do fundo da consciência daqueles homens: é o rumor da História à qual todos pertencemos e sem a qual faríamos muito menos sentido. Eles saberiam, no fundo, que se estavam a destruir a si mesmos, a uma parte da sua identidade e isso soa tão indiscutivelmente ao Mal como um crime cometido contra o próprio sangue.

Não terá sido nada disto. Talvez falta de explosivos. Talvez demasiadas mulheres para violar, talvez demasiados sábios para cortar a cabeça. Talvez outra razão qualquer. Seja ela qual for, a História resiste, não somente como memória de factos, de reinos ou de actos heróicos. Resiste, sobretudo, a Beleza e é ela que nos permite aceder às partes mais interessante dos humanos que nos antecederam. Era esta beleza intemporal, inesgotável enquanto fonte de informação e incomparável enquanto fonte de deleite, que dormia prisioneira em Palmyra, depois de ter sido violada pelo Daesh. Agora terá de ser gentilmente acordada.

30 Mar 2016

O Secretário e a realidade

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]iz Lionel Leong: as pessoas que, eventualmente, venham a Macau participar de uma convenção poderão “gostar e considerar Macau como um sítio de bom ambiente”. A esperança do Secretário é que tal os faça voltar para outras actividades, vulgo turísticas.
O que eu me pergunto é há quanto tempo Lionel Leong não tenta fazer vida de turista em Macau. Deve ser há muito. Na cinzenta realidade, esta cidade não proporciona um bom ambiente, muito menos a turistas: os transportes são… o que se sabe; os táxis – para além da sua já lendária desonestidade – não conhecem o nome de nada, a não ser em cantonense; nas lojas, ser recebido por um empregado eficiente e simpático é uma agradável excepção; as carantonhas enfadadas dos croupiers só levam a aproximar das mesas quem tem muita vontade de jogar. E isto só para começar… e não falar, por exemplo, da qualidade do serviço em restaurantes, bares e cafés (brada aos céus).
O Secretário para a Economia e Finanças, para além de ter ficado “chocado” quando soube o elevado montante que a administração paga em rendas, como se fosse um estrangeiro à economia de Macau, parece também ser distante das reais condições que a cidade oferece aos turistas. Na verdade, não são famosas e ouvimos muito que poucos terão realmente vontade de voltar, quando aqui ao lado e também na China continental se encontra um ambiente mais agradável e acolhedor.
Um dos atractivos de Macau era a complacência, mesmo o seu lado um pouco sleazy, o estar-se à vontade, uma sensação hospitaleira de liberdade. Agora é ao contrário: liofilizaram a cidade, empurraram para debaixo do tapete e para as salas VIP o que era visível, chegando ao ponto risível de qualificar de “pornográficos” uns meros folhetos de massagens. Vivemos numa cidade vigiada. Um burgo fiscalizado, seja pelo tabaco ou pelo trato. Os sinais de “proibido”, isto e aquilo, proliferaram como cogumelos venenosos da alegria de estar e de viver.
Pensem nisto devagar, compreendam a identidade da cidade. Dá-se hoje por um vazio. Muitos não sabem quem são e de onde vêm. Para além de uma História, Macau tem uma tradição, uma maneira de fazer, um pressuposto de ser. A alternativa será algo muito diferente, sem alma nem emoções, a saber a gesso: ao mesmo gesso com que os casinos tentam fazer-nos acreditar que são reais.

30 Nov 2015

No século XXI, o mundo será solidário ou não será

[dropcap style=’circle’]Q[/dropcap]uando António Costa surgiu no fim da noite das eleições, o seu discurso sugeria que o PS iria admitir ou até apoiar um governo de direita. Na verdade, até ele pareceu ter-se deixado embalar pelos principais meios de comunicação social, que se apressaram a dar a vitória ao PAF, sem se preocuparem em fazerem as reais contas. E estas diziam que a direita não atingiu a maioria, portanto não pode, à partida, governar, a não ser que os socialistas assim o quisessem e permitissem. E, a julgar pelo discurso de Costa, tudo indicava que assim seria.
Baseado neste facto, a quente, escrevi que se trataria da última traição do PS e que uma colagem à direita significaria a sua pasokisação. De facto, se no momento em que o povo português, por confortável maioria, rejeita as políticas neo-liberais de austeridade, os socialistas virassem as costas à vontade popular e apoiassem um governo Passos & Portas tal seria uma traição e um suicídio político.
Repare-se que foi exactamente isso que se passou na Grécia e em França. Pelo contrário, existe neste momento uma tendência para voltar à esquerda (ou se quisermos, manter o centro) na política do hemisfério ocidental, com Corbyn na liderança dos trabalhistas em Inglaterra e a ascensão de Bernie Sanders nos Estados Unidos.
Estará realmente iminente o perigo de governos radicais, dispostos a alterar o sistema democrático-liberal e extirpar o capitalismo? Claramente não. O que se passa é uma reacção aos excessos que o neo-liberalismo implementou na última década, nomeadamente o excesso de impunidade dos mercados, a falta de respeito pela mão-de-obra, a destruição do Estado Social, as privatizações sem sentido, as falcatruas/crises sucessivas do sistema financeiro e bancário, as verdadeiras causas da crise, entre outros desmandos.
Esta reacção, este voltar à esquerda, não imporá nenhum regime outro, simplesmente tentará inverter este ciclo autofágico que conduz a uma infame plutocracia, com desrespeito pelos mais elementares direitos humanos. O que se pretende, na verdade, é voltar ao centro, a uma democracia liberal preocupada com as pessoas e não com o lucro. Isto não significa uma mudança de regime, mas a sua moralização e, sobretudo, uma definição clara do seu sentido último.
Por tudo isto, é lógico que o PS tenha entendido que chegou a altura de compreender que o Muro de Berlim caiu em 1989 e que à sua esquerda ninguém pretende, de um lustro para o outro, rasgar o cartão de membro da União Europeia, sair do euro ou da NATO, se não existirem motivos dramáticos que o exijam. E compreendido também que não se corre o perigo de alguém passar segredos militares à União Soviética. As questões são realmente outras e o barulho que se faz à volta daquelas não passa de uma cortina de fumo retórica para distrair do que realmente poderá unir a esquerda portuguesa, a saber, a luta contra o neo-liberalismo e as suas metamorfoses lusitanas.
No entanto, não é ainda líquido que o PS forme um governo à esquerda. Existem internamente várias vozes discordantes, cujas ligações são conhecidas e cuja posição é perfeitamente normal. É a estas vozes que os media dão mais projecção. De forma, aliás, vergonhosa.
Pode também dar-se o caso de António Costa surgir no fim de todas estas reuniões e encontros para nos dizer que não foi possível chegar a um acordo que garantisse um governo de esquerda por quatro anos e que, por culpa do BE e da CDU, terá de viabilizar um governo Passos & Portas, aceitando os enfeites que a PAF lhe quer dar. Seria um triste fim para ele e, provavelmente, para o PS. Uma hábil cambalhota política, pensaria, pois passará a imagem de que “fiz os possíveis…”.
Quem for lúcido, sabe perfeitamente que um governo do PS, com o apoio, do BE e da CDU, poderá mudar muito pouco, atado que estará aos compromissos europeus e à dívida. Por outro lado, enfrentará a má disposição dos principais representantes dos interesses transnacionais, a quem não fechará a porta. Mas poderá, aos poucos, ir mudando o rumo do navio, no sentido de um farol que aponte para uma democracia mais justa, mais próspera, mais solidária, mais ética e transparente. Pensando bem, a TINA (there is no alternative) está deste lado, do nosso… Do outro, existe uma estranha autofagia, capaz de devorar povos, de arrasar o ambiente, de não respeitar os idosos e as crianças, de fomentar guerras, lucrar com elas, que nos arrasta de desastre em desastre. No século XXI, o mundo será solidário ou não será.

16 Out 2015

As raparigas salgadas

[dropcap style=’circle’]J[/dropcap]á se sabia que o grande problema do século XXI, para além dos fundamentalismos e do tédio causado pelo Jogos Olímpicos de Inverno, ia ser a água. Pois é. Precioso líquido, fonte de vida e de muitas outras coisas (como o útil gelo, por exemplo), bem diferente do asqueroso petróleo por quem tantos matam e outros tantos morrem, a água não vai ser a mesma ao longo deste titubeante século. Seja por causa do aquecimento global, devido ao envenenamento dos rios ou ao excesso de xixi sobrepopulacional, a verdade é que todos prevêem graves problemas com a água nos próximos tempos.
Também neste aspecto Macau exige estar na vanguarda e os problemas que vão afectar o mundo de forma global já se sentem aqui neste território à beira do Rio das Pérolas plantado. Ora toma! Somos os primeiros, à frente da Etiópia, de Myanmar, dos países árabes, do próprio Turquemenistão. Enquanto estes sóbrios países continuam a desfrutar de água potável, a RAEM não está com meias medidas e avança decidida na senda do futuro: aqui a água não se pode mesmo beber. Não se pode beber, não se pode cozinhar, não se pode escovar os dentes, tomar banho, lavar a roupa. E tudo porque a água tem excesso de sal!
Porque razão uma terra com excesso de dinheiro nos cofres, decididamente voltada para o turismo, proporciona aos seus habitantes este profético mergulho no futuro? Fará parte de uma estratégia publicitária dos Serviços de Turismo? “Venha a Macau e experimente o que vai ser o mundo daqui a 50 anos”. Será isto? Talvez. Será uma táctica política à la Maria Antonieta? “Não têm água? Mas porque não bebem vinho?” Será? Talvez. Bom… a verdade é que enquanto o dinheiro não chega para os brioches a malta vai andando por aí… mas mais salgadinha que é um mimo dos antigos.
É claro que para resolver a situação era preciso tomar uma decisão e disso anda o governo farto. Um senhor propôs na rádio que se usasse água do mar nas descargas. Ora aí está uma ideia de génio. Nas descargas e nas piscinas públicas. O único problema é que o mar está tão distante que se torna fisicamente impossível. Distante, pergunta o surpreendido leitor. Sim, distante, porque esta gentil costa é sobretudo banhada pelos dejectos químicos e orgânicos da malta ali de Guangdong que, como se sabe, não prima pela escassez nem pela contenção. Logo, solução impossível.

[quote_box_left]Ora a partir de agora toda a população vai andar com excesso de sal, o que certamente contribuirá para fazer subir Macau nas estatísticas regionais, quiçá mundiais, de frequência sexual[/quote_box_left]

O melhor mesmo é aguentar. Já que a nossa querida Macao Water e o nosso devotado governo se limitam a tomar banho num mar de despreocupação e indiferença, o que pode a populaça fazer? Aguentar, pois claro, pacientemente aguentar. Aguentar que a máquina de lavar se decomponha, aguentar o preço da água mineral. Aguentar que a paciência é como o respeitinho: muito bonita.
E não haja dúvida que o povo de Macau tem uma infinda paciência. No Iraque já tinham explodido duas mesquitas, na Rússia haveria manifestações nas estepes, nos Estados Unidos turbas enfurecidas a partir tudo e a roubar. Na China discutia-se o assunto no ciberespaço, em Portugal nas tabernas. E seria imprevisível o resultado. Mas aqui não. Gosto a sal em tudo quanto toca em água e está a andar. A malta tem calma, a malta tem pachorra, a malta continua alegremente a pagar o mesmo preço por um produto que não atinge sequer os mínimos admissíveis em contexto civilizado.
Esta bovina paciência tem talvez uma razão linguístico-cultural. Passo a explicar. Ora como sabe quem sabe cantonense, rapariga salgada (ham-mui) quer dizer que estamos perante uma moçoila muito dada às coisas da sensualidade, pois deveriam considerar os chineses antigos que existia uma relação entre o excesso de sal e a vontade de praticar sexo, isto é aqueles actos que para alguns estão relacionados com a reprodução da espécie e para outros com outras coisas mais relacionadas com o Kamasutra. Ainda hoje, por Macau, quem é o varonil rapazola, digno das suas viris patentes, que não foi rotulado de ham-sap lou por uma simpática mas negacionista chinesa de cantónia fala? Se é o caso do amável leitor é melhor não o confessar a ninguém, por vergonha de não exibir suficientemente os seus másculos desejos (curiosamente, os portugueses que chegam agora a Macau em nada desmerecem aos seus antecessores pré-transição: mal descem do jet-foil, logo abrem a braguilha e a carteira). Ora a partir de agora toda a população vai andar com excesso de sal, o que certamente contribuirá para fazer subir Macau nas estatísticas regionais, quiçá mundiais de frequência sexual. Ele é um vê-se-te-avias e ainda por cima… salgado. Portanto, ainda se queixam? Não se queixem. O pastel de bacalhau também é salgadote e não é por isso que deixa de ser levado a numerosas bocas, um pouco por todo o mundo.
Verdade, verdadinha, é que isto até quem nem é mau para todos. Que o digam os importadores e revendedores de água mineral: nunca o negócio andou assim tão de vento em popa. Isto sim, isto é que é fartar vilanagem.
Por mim, acho bem, que eu cá acho tudo bem. Só o gelo, só o gelo me preocupa. Mas como o uísque também é falsificado, que importância tem mais pedra ou menos pedra de sal? Também em sal se transformou a mulher de Lot por ter ousado olhar para trás, quando da fuga de Sodoma. E Macau tem agora as raparigas mais salgadinhas do mundo! Sal, sexo, gajame, Sodoma… Caramba! Isto está mesmo tudo relacionado!

12 Ago 2015

Da boa e da má língua

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]mais importante património que Portugal deixou em Macau, para além das pessoas, é a língua, o linguajar português, de Camões, de Pessanha e de Wenceslau de Moraes, só para citar alguns dos que por aqui o abrilhantaram e transmutaram nalguma da mesma bela poesia e da mais pungente prosa que a nossa literatura teve oportunidade de produzir.

Sem a língua portuguesa perder-se-ia uma parte importante, para não dizer fundamental, da identidade de Macau. É que, ainda que ela não exista predominante, dominadora ou exaltada, não deixa por isso, na sua aparente insignificância, de se revestir de um estatuto cujas raízes mergulham fundo nesta cidade.

O governo chinês, sabiamente, manteve o Português como língua oficial, garantindo a sua permanência. De algum modo, por esta atitude, a língua foi vivificada após a transferência de soberania, a sua importância sublinhada, muitas vezes contra alguns “inimigos” cujo objectivo nunca foi perfeitamente claro, parecendo as suas acções brotarem mais da emoção do que da razão.

Mas Pequim foi mais longe. Entendendo a funcionalidade do Português na América do Sul e em África, encarregou Macau, através do Fórum, de utilizar esta sua língua oficial como veículo de negócios e de diplomacia, tornando a RAEM no principal centro chinês de difusão da língua portuguesa. E tudo isto faz um imenso sentido e demonstra uma enorme capacidade de preparar o futuro.

No entanto, apesar do crescimento exponencial que o Português tem tido nos últimos anos, é frequente darmos pela língua assassinada, em alguma da comunicação oficial e das empresas de maior impacto público. A verdade é que boa vontade não chega e os falantes de Português não podem deixar de se sentir tristes e mesmo um pouco ofendidos perante o espectáculo da sua língua maltratada, em certos casos como se fosse uma tradução feita por um Google apressado. Afinal, este é um dos bens mais preciosos que a cultura lusitana possui e qual de nós não assinaria por baixo que “a minha pátria é a língua portuguesa” (Fernando Pessoa)?

Há muito tempo que se fala de um Observatório da Língua, que corrigisse os erros sistemáticos e as grosserias gramaticais. Mas até hoje nada foi feito. Não foi feito pelo Governo da RAEM, nem pelo IPOR, nem pela Casa de Portugal, nem pelos conselheiros portugueses Fernando Gomes e Pereira Coutinho, nem por qualquer outra associação com responsabilidades e fundos como, por exemplo, a que fala no seu nome da instrução dos macaenses, a APIM.

[quote_box_left]Manter viva a nossa língua é um dever de todos e, ao mesmo tempo, um garante da nossa permanência e do facto de não nos tornarmos, dentro em pouco, obsoletos[/quote_box_left]

Ninguém fez nada. E a língua portuguesa continua a ser, “oficialmente” e diariamente, tratada com alguma descortesia, para ser suave. Seria difícil montar um grupo de 10 ou 15 pessoas, com formação séria na área para tomar conta desta ocorrência e corrigir os erros? Parece-nos que não. Implicaria alguma despesa, mas nada que fosse mossa importante nos cofres.

Se estamos a falar de uma língua oficial, convinha que fosse tratada com a dignidade que as coisas oficiais merecem. O modo como Macau escreve Português é também reflexo da importância que as pessoas dão às coisas, a forma como as administram e o carinho que lhes dedicam. O Português, enquanto língua, faz parte do património de Macau e como tal deve crescer, ser protegido e bem tratado. Imagine-se que era permitido desenhar grafitis nos edifícios classificados. Ora é exactamente isso que se passa quando olhamos para o respeito dado à nossa língua. Oficial, não se esqueçam.

Se o que foi escrito, tem uma relação séria com o Governo da RAEM, já a nossa comunidade, as nossas associações e as nossas empresas terão uma dobrada obrigação de utilizar o português constantemente como uma das línguas de comunicação. De facto, parece estranho que sejam portugueses os primeiros a esquecer de onde vêm e do que aqui representam.

Quero dizer com isto que cada um de nós deveria sentir a responsabilidade de utilizar a língua portuguesa o mais possível, dentro dos limites do bom senso e da boa educação. Manter viva a nossa língua é um dever de todos e, ao mesmo tempo, um garante da nossa permanência e do facto de não nos tornarmos, dentro em pouco, obsoletos. É uma perspectiva antolhada pelo imediato, pelo presente, a crença de que se deve usar exclusivamente o inglês, para atalhar nas traduções. No limite, tal significa um menor respeito não apenas ao Português mas também ao Cantonense/Mandarim.

Na passada quarta-feira, o BNU inaugurou uma exposição na residência consular de Portugal. O seu presidente discursou em Inglês para os presentes, evitando a tradução. Dói-nos, obviamente, esta atitude da parte de uma das instituições portuguesas mais poderosas nesta cidade e temos dificuldade em compreendê-la. Parece-nos que deveria existir da parte do banco uma atenção maior ao uso da língua do seu país em Macau. Já que desistiram de o usar na sua publicidade, pelo menos poderia ter surgido no discurso. Não aconteceu. Foi em Inglês. Salvou-se o facto de o ter feito com um sotaque inconfundivelmente lusitano.

26 Jun 2015