Paz para a Ucrânia

“The test of policy is how it ends, not how it begins. Peace must reflect reality, not illusion.”

Henry Kissinger

A Ucrânia, como país candidato à União Europeia (UE), representa um dos maiores desafios e oportunidades da história recente do projecto europeu. A guerra entre a Rússia e a Ucrânia, iniciada em 2022, representa um dos mais graves conflitos armados em solo europeu desde a II Guerra Mundial. As suas consequências são devastadoras com milhares de mortos, milhões de deslocados, cidades destruídas, economias colapsadas e uma profunda fractura geopolítica entre o Leste e o Ocidente. A paz, embora desejada por muitos, continua a parecer um horizonte distante. No entanto, a história ensina que mesmo os conflitos mais prolongados e violentos podem encontrar resolução, desde que haja vontade política, mediação eficaz e uma arquitectura diplomática sólida. Para compreender as possibilidades de paz, é necessário revisitar as causas profundas do conflito.

A guerra não começou em 2022, mas tem raízes históricas, identitárias e geopolíticas que remontam à dissolução da União Soviética. A Ucrânia, ao afirmar a sua soberania e ao aproximar-se das estruturas euro-atlânticas, tornou-se, aos olhos de Moscovo, um território estratégico em disputa. A anexação da Crimeia em 2014 e o apoio russo às repúblicas separatistas de Donetsk e Lugansk foram os primeiros sinais de uma escalada que culminaria na invasão total. A Rússia justifica a sua acção com argumentos de segurança, protecção das populações russófonas e resistência à expansão da OTAN. A Ucrânia, por sua vez, defende o seu direito à autodeterminação, à integridade territorial e à escolha dos seus aliados.

Este antagonismo é alimentado por narrativas históricas divergentes, por interesses estratégicos e por uma profunda desconfiança mútua. Qualquer processo de paz terá de enfrentar estas raízes, reconhecê-las e encontrar formas de as ultrapassar sem negar a soberania de cada Estado. A paz entre a Rússia e a Ucrânia enfrenta obstáculos de várias ordens em primeiro, a ocupação territorial pois a presença militar russa em território ucraniano, incluindo a Crimeia e partes do Donbass, é um dos principais entraves. A Ucrânia exige a retirada total das forças ocupantes como condição para qualquer acordo. A Rússia, por sua vez, considera a Crimeia parte integrante do seu território e vê o Donbass como uma zona de influência legítima.

Em segundo, o reconhecimento internacional, pois a comunidade internacional, em particular os países ocidentais, apoiam a Ucrânia e impõe sanções à Rússia. Esta polarização dificulta a mediação e reforça a lógica de bloco. A paz exige um espaço diplomático neutro, onde ambas as partes possam negociar sem pressões externas excessivas. Em terceiro, as perdas humanas e traumas colectivos pois a guerra gerou feridas profundas na sociedade ucraniana. A destruição de cidades, os massacres, os bombardeamentos e os deslocamentos forçados criaram um sentimento de dor e revolta que não pode ser ignorado. A reconciliação exige justiça, memória e reparação. Em quarto, as lideranças políticas e narrativas internas, pois tanto na Rússia como na Ucrânia, os líderes políticos construíram narrativas que dificultam o compromisso.

A paz pode ser vista como fraqueza, como traição ou como capitulação. É necessário criar condições para que os líderes possam negociar sem perder legitimidade interna. Apesar dos obstáculos, existem factores que podem favorecer a construção de um processo de paz sendo primeiro, a fadiga da guerra pois o prolongar do conflito gera desgaste económico, social e político. A Rússia enfrenta sanções, isolamento e dificuldades internas. A Ucrânia vive em estado de emergência permanente. A fadiga pode abrir espaço para soluções negociadas. Segundo, a pressão internacional, pois Organizações como as Nações Unidas, a OSCE e países neutros podem desempenhar um papel de mediação.

A diplomacia multilateral, quando bem estruturada, pode criar pontes e facilitar compromissos. Terceiro, as experiências históricas pois a Europa tem exemplos de reconciliação após conflitos intensos como a Alemanha e a França após a II Guerra Mundial, os acordos de paz na Irlanda do Norte e a reunificação alemã. Estes modelos mostram que a paz é possível, mesmo entre inimigos históricos. Quarto, a sociedade civil e cultura pois estas conjuntamente com a educação podem ser motores de aproximação. Projectos de diálogo, intercâmbio e reconstrução simbólica podem preparar o terreno para a paz política. A paz entre a Rússia e a Ucrânia pode assumir diferentes formas, dependendo da evolução do conflito e das negociações.

Assim há a considerar primeiro, a paz condicional com um cessar-fogo acompanhado de negociações sobre territórios, segurança e garantias internacionais. Este modelo exige compromissos mútuos e pode incluir zonas desmilitarizadas, missões de observação e acordos de não agressão. Segundo, a paz com reconhecimento parcial com um acordo em que a Ucrânia reconhece a perda de certos territórios em troca de garantias de segurança e apoio à reconstrução. Este modelo é controverso e pode gerar divisões internas, mas foi aplicado noutros contextos. Terceiro, a paz como mediação internacional, em que a criação de uma conferência internacional de paz, com participação de países neutros, organizações multilaterais e representantes da sociedade civil. Este modelo permite uma abordagem mais abrangente e menos polarizada.

Quarto, a paz por etapas com um processo gradual, com fases de desescalada, reconstrução, justiça transicional e integração regional. Este modelo exige tempo, paciência e compromisso de longo prazo. Para que a paz seja duradoura, é necessário cumprir certas condições como primeiro, o respeito pela soberania, pois a Ucrânia deve manter o direito de decidir o seu futuro, os seus aliados e o seu modelo político. A Rússia deve reconhecer esse direito e comprometer-se com a não interferência. Segundo, justiça e reparação dado que os crimes cometidos durante a guerra devem ser investigados e punidos. As vítimas devem ser reconhecidas e compensadas. A justiça é essencial para a reconciliação. Terceiro, a paz deve incluir garantias de segurança para ambos os países, com mecanismos de verificação, diálogo militar e cooperação em áreas como o controlo de armas. Quarto, a Ucrânia precisa de apoio financeiro, técnico e institucional para reconstruir o país.

A Rússia, por sua vez, deve encontrar formas de reintegrar-se na economia global, desde que respeite os princípios do direito internacional. Quinto, a educação para a paz dado que esta não se constrói apenas com tratados. É necessário investir na educação, na cultura e na memória, para que as novas gerações compreendam o valor do diálogo e da coexistência. A UE, os Estados Unidos, a China e outras potências têm responsabilidades na promoção da paz. A Europa, em particular, deve assumir um papel activo, não apenas como aliada da Ucrânia, mas como mediadora e promotora de soluções duradouras. A paz não pode ser imposta mas deve ser construída com base no respeito mútuo, na justiça e na cooperação. A comunidade internacional deve evitar a tentação de transformar a Ucrânia num campo de batalha prolongado entre blocos.

O objectivo deve ser a reconstrução, a estabilidade e a dignidade dos povos. Assim, a paz entre a Rússia e a Ucrânia é possível, mas exige coragem, visão e compromisso. Não será um processo rápido nem simples. As feridas são profundas, os interesses são complexos e as emoções são intensas. A alternativa é aceitável à perpetuação da guerra. A história mostra que mesmo os conflitos mais violentos podem encontrar resolução. A Europa, que foi palco de tantas guerras, pode ser também o espaço da reconciliação. A paz não é apenas um acordo mas uma construção colectiva, feita de gestos, palavras, políticas e memórias. A Ucrânia e a Rússia têm o direito de existir, de prosperar e de viver em segurança. A paz entre elas será um sinal de maturidade política, de respeito pela vida e de esperança para o futuro. Cabe aos líderes, às sociedades e à comunidade internacional transformar esse horizonte em realidade.

9 Out 2025

Entre Hyperion e Paz Extinta – 2ª parte

(Continuação da edição de 26 de Setembro)

“Peace cannot be kept by force; it can only be achieved by understanding.”

Albert Einstein

O Norte está inteiramente repartido por meridianos entre Rússia, China e Estados Unidos. Três impérios sem solução de continuidade. Nunca as potências máximas estiveram todas contíguas. Nunca como agora as faíscas geradas pelas fricções recíprocas podem incendiar o planeta. Ordolândia sobreaquece enquanto Caoslândia se expande para nordeste. Os estudiosos do longo prazo notarão que a zona de paz quente, verdadeiro nome da guerra fria corresponde à ecúmena plurimilenar dos impérios, aquela dos conflitos armados nas (ex?) colónias. Segundo a estenografia geoestratégica, constatamos que o Norte Global continua a dedicar-se ao seu desporto favorito o de descarregar sobre o Sul as rivalidades entre impérios, através de clientes reais ou presumidos, ágeis em mudar de sigla e bandeira conforme a necessidade. Os massacres austrais são endémicos porque só podem ser resolvidos pelos boreais. Os quais têm outras prioridades. Quando não se dedicam a mantê-los ou expandi-los enquanto guerras por procuração. A economia geopolítica da reprodução de focos periféricos autoalimentados e/ou dirigidos externamente revelaria altares que nenhum actor tem interesse em expor. Um exemplo entre muitos é os ciclos de pirataria no Corno de África, incentivados pelos americanos para barrar à China o acesso aos hidrocarbonetos espalhados entre o Iémen e a Somália.

Subimos às latitudes imperiais para verificar o estado do Triângulo supremo. A competição entre Estados Unidos, China e Rússia, por ordem de valor, envolve paradoxalmente três sujeitos de saúde contingente. Próximos do limiar da dor suportável sem se dispararem mutuamente. Em que ponto está hoje o jogo? Ainda estamos a tempo de evitar a ameaça da paz justa autoproclamada pelo vencedor único, se é que virá a existir? A coruja de Minerva ainda não levantou voo. Demasiadas viragens em demasiado pouco tempo e em espaços dilatados anunciam outras, igualmente imprevistas. Os limites para compromissos impuros reduzem-se. Enquanto as obsessões belicistas das propagandas activam no Ocidente inéditos tiques totalitários. As verdades admitem-se em voz baixa, com a mão diante da boca. Nos templos do pensamento livre universidades americanas à cabeça com o politicamente correcto, a censura e a autocensura mimetizam neuroses soviéticas. O morto devora o vivo. O desafio é assimétrico. Quanto ao potencial global, os Estados Unidos mantêm uma vantagem decrescente sobre a China. Ambos distanciam-se da Rússia. Mas são quantificações estáticas simplificadas, enquanto a história acelera geometricamente. Não há mecânica nem teologia que nos emancipe do cálculo das probabilidades.

O senso comum, banalizado pelo mainstream nacional, embota ou omite factores profundos. Cinco exemplos. Primeiro; as relações de força estão sujeitas aos caprichos de culturas intransitivas. Americanos, chineses e russos acreditam que se compreendem, mas não podem. São herdeiros de civilizações orgulhosas, portadoras de códigos culturais profundamente enraizados, muitas vezes indecifráveis para quem os observa de fora. Quando um lê A onde o outro escreve Z, aproxima-se o risco de uma guerra involuntária precisamente a mais difícil de evitar, porque não prevista. O intervalo entre o raciocínio russo e americano é relativamente estreito, permitindo-lhes gerir tensões como as que se desenrolam na Ucrânia. Já no Indo-Pacífico, o grau de incompreensão entre os Estados Unidos e a China é mais acentuado, o que torna qualquer incidente potencialmente mais perigoso, exigindo prudência redobrada e canais de comunicação eficazes. Quanto à relação entre Rússia e China, a distância entre os seus universos simbólicos é reconhecida por ambos, o que os leva a privilegiar uma cooperação pragmática, sustentada por interesses convergentes e respeito mútuo. A expressão “amizade sem limites” deve ser entendida como uma fórmula diplomática que celebra essa aproximação, sem pretender apagar as diferenças que enriquecem cada civilização. Importa lembrar que slogans e aparências podem ser enganosos.

A geopolítica contemporânea é marcada por sobreposições complexas, onde o aliado de hoje pode ser o competidor de amanhã, e vice-versa. A narrativa simplificadora que opõe democracias a autocracias ignora as múltiplas formas de organização política e os contextos históricos que moldam cada sociedade. É mais produtivo abandonar tais dicotomias e reconhecer que os modelos ocidentais também enfrentam contradições internas que desafiam qualquer pretensão de universalidade. Constatamos que a Rússia e China têm dois modelos de regime distintos, mais populares nos seus países do que Trump e vários líderes de democracias europeias. Hoje, a Federação Russa e a República Popular da China, separadas e conectadas por 4.209 quilómetros de fronteira siberiana ao longo do rio Amur, mantêm uma relação complexa e historicamente densa. São vizinhas estratégicas que, conscientes das suas diferenças civilizacionais e interesses distintos, optam por uma colaboração prudente e mutuamente vantajosa. Essa aproximação é também uma forma de evitar que terceiros venham a explorar eventuais divergências, fomentando tensões artificiais entre dois pólos fundamentais da estabilidade euro-asiática.

Terceiro; Washington e Pequim são, sem dúvida, potências de primeira ordem, capazes de agir em qualquer lugar e em todas as dimensões estratégicas desde os fundos marinhos ao Espaço, da terra ao ar e do ciberespaço à inteligência artificial. Moscovo é apenas uma grande potência eurasiática cultural, militar-nuclear, energética e agrícola, mas limitada por constrangimentos demográficos e geopolíticos que alimentam a sua ansiedade de ser esmagada entre a OTAN e o Império do Centro. Há, porém, um indicador poderoso que joga a seu favor nesta corrida triangular de fundo que é a coesão social. Expressa no patriotismo que ainda sustenta a aventura ucraniana promovida por Putin, mesmo contra influentes mecanismos, muitos dos quais ignoravam até ao último momento o seu risco. Criticavam-no discretamente nos primeiros meses da guerra, por subestimarem o espírito nacional do povo russo frequentemente superior ao seu próprio, mais profissional do que espontâneo. Quarto; se nos libertássemos do ilusionismo economicista que idolatra o PIB como medida de todas as coisas, e avaliássemos as relações de poder entre sujeitos geopolíticos a partir do grau de coesão social, descobriríamos os Estados Unidos em terceiro lugar bem atrás da Rússia e da China.

O antropólogo francês Emmanuel Todd diagnostica os Estados Unidos como uma oligarquia derrotada e niilista afirmando que «A sua dependência do resto do mundo tornou-se imensa e a sua sociedade está a desintegrar-se. Os dois fenómenos interagem». Existem nações sem império. Mas não impérios sem nação. E nunca nações sem sociedade. Hoje, a América é uma oligarquia intoxicada pela riqueza de poucos, que se reflectem na pobreza absoluta e na privação relativa dos “deploráveis”. E confirmam-se na fé segundo a qual «não existe tal coisa como sociedade» (Margaret Thatcher). Talvez seja pelo grau zero atingido pelo “American Creed”, religião anglo-saxónica protestante fragmentada em estilhaços neo-evangélicos centrados na relação especial Eu-Deus (por esta ordem), excitada por teleprofetas improváveis. Fonte de solipsismo, fragmentação de famílias e comunidades, violência sem valores, depressão agravada pelos opiáceos, perda do senso comum e, portanto, da realidade. Talvez também pelas consequências sociais do neoliberalismo, que reduzem os cidadãos a clientes, as instituições a empresas, o governo a “governance” e as pessoas a recursos humanos.

Abismo da elite degenerada e zénite da super classe gestora, casta que envolve os decisores de outrora no seu tecnicismo automático e na viva ausência de espírito. Resta saber como poderá voltar a ser grande um império em afastamento das referências nacionais e em retirada sem estratégica dentro da fortaleza americana, enquanto dança e quer fazer-nos dançar ao ritmo dos caprichos divertidos do seu Calígula. Quinto; a competição no Triângulo, desencadeada pela crise americana, baralha a hierarquia das potências. Potências médias assumem-se como médias máximas, enquanto se concebem super máximas para o futuro. À frente de todas, a Turquia neo-imperial, em escala transcontinental. Outras, como o Japão e até a Alemanha em crise nervosa, concentram-se em áreas menos amplas. Aproveitam o recuo americano para se expandirem nas respectivas regiões como parceiros prioritários do “Número Um” de hoje pois amanhã será outro dia. Os japoneses e alemães oferecem-se aos Estados Unidos para conter a visível expansão chinesa na Ásia e a alegada invasão russa da OTAN europeia, prevista para 2029 segundo a comunicação atlântica.

O rearmamento japonês prossegue discretamente, o alemão em retórica ostentadora ainda longe de se concretizar na prática ao ponto de se propor como primeira potência militar continental na próxima década. Sem humor, os líderes europeus parecem imitar a véspera da dupla guerra mundial. Macron e Carlos III redescobrem a “entente cordiale” anti-germânica de 1904, promovida como “amigável”. Com mão estendida aos polacos, empenhados em restaurar os pensamentos do marechal Piłsudski. E com o polegar virado para os russos. Sintomas da histeria emergencial que circula entre os europeus não sabemos quanto encenada e acreditada. Seja como for, o blefe europeísta foi desmascarado. Substitui-o o alarmismo. Em sentido estrito vai-se às armas. Chegam os cossacos. Assim desalentados, voltamos à questão central de como neutralizar, através de pazes sujas, a ameaça de guerra total, com focos bélicos unificados? Enquanto utopistas não produzem o plano geral da paz justa universal, avancemos com os modestos meios ao nosso dispor. Recomeçamos pela Paz Negociada.

Uma bolha de indulgência informal entre duelistas tranquilizados pela sua refinada ambiguidade. Inspiração do raciocínio sobre a ordem do caos. Na sua esteira, uma hierarquia dos conflitos, e portanto da urgência em tratá-los. A classificação baseia-se na probabilidade de um confronto estratégico abaixo do limiar bélico dos Estados Unidos contra a China ou dois conflitos regionais em curso da Rússia contra Ucrânia e Israel contra Irão (em pausa aparente), palestinianos e outros vizinhos desencadearem a terceira guerra mundial. Prevista envolver os três vértices do Triângulo. Arrastando-nos, frágil charneira entre ordem e caos. Como base de discussão, inventamos um coeficiente de dilatação bélica, emprestado da termodinâmica. Medida subjectiva que convida à refutação. Numa escala de 1 a 10, colocamos em primeiro lugar, com um 7, o duelo sino-americano centrado no Indo-Pacífico. Logo atrás, a Ucrânia, com nota 6. Em terceiro, a guerra de Israel, não acima de 3.

3 Out 2025

Entre Hyperion e Paz Extinta

“Peace cannot be kept by force; it can only be achieved by understanding.”
Albert Einstein

É o que parece estar a acontecer hoje connosco, europeus anestesiados por oitenta anos sem guerra. Perguntamo-nos se não serão demasiados. Se o privilégio de que desfrutamos, como nenhuma geração anterior, está prestes a expirar. Se deve expirar. Na dúvida, recorremos às armas. Rearmamento por medo. Um ribombar sinistro nas chancelarias europeias cansadas de paz. Como estar em guerra sem ainda lá estar. Arrisca-se a explodir-nos nas mãos porque não sabemos o que é. Porque preferimos não saber.

A história ensina que paz e guerra sempre se perseguiram, de forma cíclica. Mas a duração dos ciclos só a descobrimos a posteriori, cada um a partir da sua própria perspectiva, inscrita no senso comum da colectividade a que pertence. A única certeza é de que paz e guerra não são eternas. Lemos o passar dos anos nos anéis que se gravam nas cascas das árvores. Círculos concêntricos espessos sucedem-se aos finos.

Os primeiros indicam clima favorável, os outros, severo. A árvore mais alta do mundo de 115 metros e 66 centímetros é uma sequoia sempervirens chamada Hyperion, escondida algures no Parque Nacional de Redwood, na Califórnia. Para evitar ajuntamentos de curiosos, aspirantes a idólatras ou dançarinos da chuva, as coordenadas geográficas desse totem são mantidas em segredo.

Só podemos imaginar os traços que a pele do gigante está a receber dos tempos californianos nunca tão secos. Em apenas duas gerações, o paraíso dos hippies, visionários alguns transformados em vassalos tecnológicos apocalípticos reunidos junto à porta giratória do Rei Trump, autoproclamado arcanjo da paz universal converte-se em inferno. O que resta da harmonia de “California Dreamin”, êxito “The Mamas & The Papas”, que em 1965 punha os actuais octogenários a dançar em ritmo sincopado?

Os mesmos que quatro anos depois entoariam “Give Peace a Chance”, a lancinante cantilena de John Lennon? Agora que, do auge californiano, o Sonho Americano adoptado pela Europa Félix como paradigma de paz, progresso e prosperidade mergulha em depressão, temos de admitir que esse bem em si, introjectado como eterno graças à derrota que, enquanto europeus ocidentais “vencedores” e vencidos sofremos da América, é hoje uma marca inerte. Sobrevive, mal, a si próprio. Para Trump, não valemos os ossos de um marine.

A paz herdada do Novo Mundo expirou como contrato não renovável por vontade do senhorio. Temos de a reconquistar. E, entretanto, adaptar-nos a viver perigosamente. O patriarca britânico da ficção científica, H.G. Wells, lançou em 1914 a cruzada contra os germânicos com o grito de “guerra para acabar com todas as guerras”. Hoje, uma empreitada semelhante talvez levasse à extinção simultânea da paz e da guerra, por via de um holocausto atómico incentivado por algum algoritmo semiautomático. Mas há guerras que não se anunciam com clarins nem se travam em campos abertos. São guerras subterrâneas, de cartéis e criptomoedas, de generais sem uniforme e Estados sem soberania. É nesse limiar que se desenha, com traços cada vez menos difusos, o espectro de um confronto entre os Estados Unidos e a Venezuela. Não uma guerra convencional, mas uma colisão entre um império fatigado e um Estado narcofrágil, onde o poder se confunde com o tráfico e a soberania com o contrabando.

A Venezuela, outrora farol bolivariano, converteu-se num laboratório de sobrevivência autoritária, sustentado por redes ilícitas que atravessam continentes. O chamado “Cartel de los Soles”, suposta estrutura narcotraficante incrustada nas Forças Armadas venezuelanas não é apenas uma metáfora da corrupção institucional mas o esqueleto do Estado. Um Estado que, ao perder o monopólio da violência legítima, terceiriza a guerra às suas margens, transformando generais em barões da droga e fronteiras em corredores de cocaína.

Washington observa, inquieto. O Departamento de Justiça acusou figuras do alto escalão venezuelano por narcoterrorismo. Sanções multiplicam-se, em espiral, como se fossem balas diplomáticas. Mas o que se insinua agora é mais do que contenção mas a possibilidade de uma intervenção. Não pela democracia, mas pela segurança hemisférica. Não pela liberdade, mas pela estabilidade do mercado. A doutrina Monroe renasce, disfarçada de guerra às drogas, enquanto drones sobrevoam o Orinoco e porta-aviões se aproximam das Caraíbas.

A guerra, se vier, será híbrida. Feita de sabotagens, ciberataques, operações encobertas e campanhas de desinformação. Uma guerra que não se declara, mas executa-se. Que não se vence, mas perpetua-se. E que, como todas as guerras modernas, corre o risco de se tornar um fim em si e um teatro de sombras onde a paz é apenas o intervalo entre duas operações. Neste cenário, a Europa, ainda entorpecida pela sua longa trégua, assiste como espectadora privilegiada e impotente. A guerra volta a ser um horizonte possível, não por escolha, mas por contágio. E talvez, como nos anéis da Hyperion, este tempo seco e convulso esteja a gravar na nossa pele o início de um novo ciclo em que a paz, como o Sonho Americano, não é um dado adquirido, mas uma conquista a ser reinventada.

A paz suja de que não se fala é o oposto da paz justa, sobre a qual as retóricas oficiais e os seus megafones oficiosos dissertam sem nunca explicar em que consiste. Parece evocar a reafirmação do Ocidente triunfante, de geometria variável OTAN mais Japão, Coreia do Sul, Austrália e afins contra a China, Rússia, Irão e Coreia do Norte (a Arábia Saudita e outras petrodictaduras do Golfo, dizem-nos que estarão connosco). A paz justa, amor lésbico na iconografia barroca ideal-típica que ilustra o Salmo 85:10-11, pressuporia um “Terceiro”, árbitro do mundo.

Um Deus reconhecido pela Humanidade, solícito em calibrar na balança universal os pesos justos. Estamos, porém, no triunfo do princípio da irrealidade, ao qual se sacrificam paradoxais europeístas sem Europa. A manipulação do consenso domina a procura de sentido. Paz justa é um oxímoro. Se é paz, não pode ser justa salvo no sentido do vencedor, que o é porque o derrotado aceita o fim das hostilidades para mitigar as consequências. A história está sempre em movimento, entre conflitos e tréguas. Ninguém se impõe sem que outros reajam, nem recua sem que outros avancem. Guerras e pazes descrevem um continuum onde os actores transportam consigo toda a linha da sua vida, que se cruza e colide com a dos outros. Nem sempre com armas. Sanções e contra-sanções, ataques cibernéticos e lavagens cerebrais em massa produzem, ao longo do tempo, efeitos tão letais quanto as bocas-de-fogo.

A busca interminável pela paz justa significa guerra permanente. Sem outro propósito que não ela própria. Mal em si, há sempre demasiado. Sem paz ou seja, sem trégua não há justiça. Enquanto se combate, vigora a força. Para a atenuar, são necessários compromissos. Incertos, ambíguos, até repulsivos. Mas ainda assim vida. Aperfeiçoável, ao contrário da morte. Num mundo prenhe de apocalipse, a alternativa à guerra é a paz suja. Em duplo sentido, adjectival e verbal. O adjectivo indica o silenciar das armas à beira da destruição total, estruturado numa competição entre actores dispostos a sacrificar princípios “irrenunciáveis” para evitar uma guerra total. O verbo lembra-nos que a paz exige manutenção. É preciso sujar as mãos. Escolher entre males menores. Lubrificar as fricções entre interesses e impulsos opostos. Partamos da hipótese bastante concreta de que também a Quarta Roma, como as três anteriores, não terminará em paz. Isso aplica-se ao fero americano que vê como inevitável o declínio da nação imperial, mas prefere morrer de pé, se tiver de ser.

E aplica-se também a quem, como Trump, jura restaurar a grandeza da pátria e garantir ao mundo uma segunda Pax Augusta dividindo o planeta em entendimento com a China, rival demasiado grande e intrínseco à América para ser destruído sem arrastar o triunfador para o abismo. Com o hemisfério ocidental confiado aos Estados Unidos e o oriental à China, mais os respectivos clientes. A hipótese pode fascinar alguns. Importa traçar uma rota que evite a fusão dos fragmentos de guerra num só, total e final. Uma paz imperfeitíssima, provisória, “impura”, “não tranquila”, na elegante definição que lhe deu Emmanuel Macron há três anos. Sim, ele mesmo, hoje empenhado porta-estandarte do desafio militar à Rússia em apoio à Ucrânia invadida. Por vezes, os blefes tornam-se realidade. Traçando, em linhas gerais, o mapa onde procurar os caminhos para a paz suja e nele desenhar arquipélagos de tréguas sujas observamos que os focos de guerra se concentram no Sul do hemisfério oriental, especialmente entre África e Médio Oriente com a excepção decisiva da Ucrânia. Portanto, na futura esfera de influência chinesa segundo Trump.

(Continua)

26 Set 2025

Geoturismo e Parques Temáticos – 2ª parte

Connie Kong, enquanto Directora do Parque Temático no Lisboeta Macau, tem desempenhado um papel fundamental na definição da visão operacional do parque e na estratégia de envolvimento com a comunidade.

A sua liderança reflecte um forte compromisso com a integração da cultura local na experiência de entretenimento, garantindo que o parque não só divirta, mas também se identifique com a identidade colectiva dos residentes de Macau. Sob a sua direcção, o Lisboeta Macau tem apoiado activamente as PME locais através de iniciativas como a Sessão de Ligação Empresarial, promovendo a inclusão económica e reforçando o papel do parque como uma entidade socialmente responsável na região.

Christine Hong Barbosa e Sophia Mok desempenharam papéis igualmente fundamentais na ampliação da presença e propósito do Lisboeta Macau. Como Vice-Presidente de Marketing e Desenvolvimento de Retalho, Christine Hong Barbosa criou experiências de compra que combinam nostalgia com inovação, posicionando o parque como um destino que homenageia o passado de Macau enquanto abraça o seu futuro.

Por sua vez, Sophia Mok, Vice-Presidente de Vendas e Comunicação Corporativa, tem sido essencial na construção de parcerias estratégicas e na elaboração de narrativas que destacam a relevância cultural do parque e a sua filosofia centrada na comunidade. Em conjunto, as suas contribuições ajudaram a estabelecer o Lisboeta Macau não apenas como uma atracção temática, mas como um espaço significativo que celebra o património local e promove o orgulho entre os residentes de Macau.

O Lisboeta Macau transcende as ofertas convencionais de entretenimento. Propõe uma verdadeira cartografia sensorial, onde cada atracção é desenhada para dialogar com o território, a memória colectiva e a cultura local.

É um modelo experiencial que supera o paradigma dos parques temáticos asiáticos ao integrar corpo, espaço e narrativa numa proposta de turismo cultural com identidade. As atracções não são meros dispositivos de lazer mas são também instrumentos de leitura territorial, evocação histórica e diplomacia emblemática. Cada uma é concebida como capítulo de uma narrativa maior, onde o visitante não apenas consome, mas participa, interpreta e transforma.

O Lisboeta Macau oferece narrativas experienciais, como o ZIPCITY Macau que se destaca como geografia em movimento. Sendo a primeira tirolesa urbana de Macau, é mais do que uma atracção de adrenalina, pois trata-se de uma instalação aérea que atravessa o skyline do hotel, oferecendo aos visitantes uma leitura panorâmica da paisagem urbana. Ao sobrevoar fachadas inspiradas no Macau dos anos 1960, o corpo do visitante torna-se veículo de reconhecimento espacial. A experiência não é apenas física mas também cartográfica, estética e simbólica.

O ZIPCITY transforma o espaço em espectáculo e o movimento em interpretação. O GoAirborne Macau representa o corpo como instrumento de territorialidade. Este simulador de pára-quedismo indoor constitui uma inovação tecnológica e sensorial sem precedentes na região. Ao combinar tecnologia de túnel de vento com realidade aumentada, a experiência simula o voo sobre a cidade, reforçando a ligação entre corpo e território. O visitante não apenas sente mas também voa, observa e compreende. O GoAirborne é uma metáfora da perspectiva aérea, da cartografia viva e da geografia experiencial.

O LINE FRIENDS PRESENTS CASA DA AMIGO encarna a cultura pop como diplomacia transnacional. Este espaço temático dedicado à cultura pop asiática é mais do que um centro de merchandising pois funciona como plataforma de diplomacia cultural, atraindo públicos jovens e conectando Macau a redes transnacionais de consumo simbólico. O seu ambiente lúdico, personagens icónicas e estética contemporânea criam uma experiência que transcende fronteiras, reforçando a dimensão cosmopolita do parque.

A Maison L’OCCITANE representa a natureza como experiência sensorial. A primeira unidade temática da marca em contexto hoteleiro é uma obra de design sensorial. Os quartos são inspirados em ingredientes naturais como lavanda, verbena e flor de cerejeira, oferecendo uma estadia que conecta os visitantes às paisagens aromáticas da Provença. Esta proposta não é apenas estética mas também terapêutica, ecológica e simbólica. A Maison L’OCCITANE transforma o quarto de descanso em ritual, e a hospitalidade em experiência botânica.

O Emperor Cinemas MX4D é imagem como imersão territorial. Equipado com tecnologia de movimento, aromas e efeitos tácteis, proporciona uma experiência cinematográfica multissensorial. Os filmes são cuidadosamente seleccionados para reforçar narrativas territoriais e culturais, posicionando o espaço como protagonista. O visitante não apenas assiste mas também participa, sente, cheira e vibra.

O cinema torna-se uma extensão do parque, e a imagem, um instrumento de imersão. O H853 Fun Factory funde marcas internacionais com design inspirado na estética futurista da cidade, e não é apenas um espaço comercial mas também um museu vivo, galeria comercial, e evocação da modernidade urbana. Cada loja, cada montra, cada corredor é concebido para contar uma história, reconstruir uma época e transformar o acto de comprar num gesto de memória.

A geogastronomia no Lisboeta Macau não é um serviço complementar mas uma linguagem que traduz o território em sabor, a memória em receita e a paisagem em experiência sensorial. A cozinha praticada no Lisboeta é uma extensão viva do parque temático, onde cada prato é uma cartografia, cada ingrediente uma evocação, e cada técnica uma ponte entre tradição e inovação. A proposta gastronómica está profundamente enraizada na fusão sino-portuguesa que define Macau, mas não se limita a reproduzir receitas históricas. Aqui, cozinhar é entendido como acto criativo e gesto de interpretação territorial. Os restaurantes do complexo não apenas alimentam mas também narram, educam e celebram.

No Stanley’s Café, por exemplo, a elegância da memória é palpável. A decoração inspira-se nos cafés coloniais do século XX, com madeiras escuras, iluminação suave e detalhes que evocam os salões de chá de Cantão e Lisboa. Mas é na cozinha que se revela a verdadeira alquimia cultural, onde sabores e histórias se entrelaçam para oferecer ao visitante uma experiência simultaneamente íntima e universal.

O Chef de Cuisine Raymond, figura de referência na gastronomia temática de Macau, apresenta criações que são verdadeiras sínteses identitárias como o arroz chau-chau com bacalhau, os pastéis de nata infundidos com chá de jasmim, e sobremesas que reinterpretam clássicos portugueses com ingredientes locais. A sua abordagem combina rigor técnico com sensibilidade histórica. Cada prato é concebido como narrativa, homenagem e gesto de diplomacia gastronómica. O Stanley’s não é apenas um café mas um espaço de memória comestível, onde se saboreia o território. A decoração evoca salões coloniais, mas é na cozinha que a alquimia cultural transforma o gosto em ferramenta de leitura histórica.

O Royal Palace representa a alta gastronomia como cartografia sensorial. Aqui, a gastronomia atinge o estatuto de arte. Os menus de degustação são concebidos como itinerários gustativos que atravessam águas costeiras, mercados locais e saberes ancestrais. Ingredientes como o camarão de profundidade, o porco preto regional e as ervas aromáticas cuidadosamente cultivadas são tratados com precisão e respeito. A cozinha do Royal Palace não é apenas sofisticada mas é territorial. Cada prato afirma Macau como espaço criativo, território gastronómico, cidade que pensa através do sabor.

O restaurante contribui directamente para o reconhecimento de Macau como “Cidade Criativa da Gastronomia pela UNESCO” não apenas pela excelência técnica, mas pela capacidade de transformar o lugar em linguagem universal.

O Angela Café & Lounge encarna a delicadeza da cozinha de assinatura. A experiência define-se por elegância, serenidade e precisão. Sob a direcção do Executive Chef António Coelho e da Chef de Cuisine Sally Jimenez, o espaço oferece uma abordagem culinária que eleva os ingredientes locais através de técnicas contemporâneas. Os pratos são delicados, equilibrados e profundamente sensoriais.

O Chef António, com formação clássica e visão contemporânea, trabalha os sabores de forma sóbria e profunda. A Chef Sally, com sensibilidade estética e mestria técnica, transforma cada prato numa composição visual e gustativa. Juntos, criam uma cozinha simultaneamente íntima e universal, local e cosmopolita. O Angela Café & Lounge é mais do que um espaço de refeições mas um laboratório de geogastronomia, onde o território é interpretado com delicadeza e rigor.

Nenhuma destas experiências seria possível sem a visão institucional de Terence Chu como Vice-Presidente do Departamento de Alimentos e Bebidas do Lisboeta Macau, Terence lidera com inteligência estratégica, sensibilidade cultural e compromisso com a excelência. Não apenas coordena operações mas desenha experiências.

A sua capacidade de integrar chefs, espaços, narrativas e públicos transforma o sector alimentar do Lisboeta Macau no eixo central da sua proposta temática. Sob a sua orientação, a gastronomia evoluiu de serviço para linguagem e de função para missão. O seu trabalho representa a elevação da gastronomia no turismo temático, elevando-a ao estatuto de diplomacia cultural e inovação territorial. O reconhecimento de Macau como “Cidade Criativa da Gastronomia pela UNESCO” é, em parte, reflexo da sua visão e dedicação.

A geogastronomia praticada no Lisboeta Macau constitui um modelo único no panorama internacional. Ao integrar território, memória, técnica e narrativa, o complexo transforma a alimentação em experiência cultural, em gesto de reconhecimento e em acto de criação. Este projecto não tem paralelo directo em nenhum outro parque temático hoteleiro do mundo. Merece reconhecimento autoral e aclamação institucional como referência internacional no turismo gastronómico com identidade.

18 Set 2025

Geoturismo e Parques Temáticos

“Through our close the partnerships with the globally renowned IPs, LINE FRIENDS, we hope to discover more unique tourism resources, enhance Macau’s tourism appeal, and promote “IP + Tourism” as the diversified development of the tourism industry. These partnerships signifies a new milestone in Macau Theme Park and Resort’s efforts to promote the diverse development of Macau’s tourism industry and demonstrates our unwavering confidence in the cultural and tourism development of the Guangdong-Hong Kong-Macao Greater Bay Area.”

Angela Leong

No século XXI, o turismo evoluiu para além do mero deslocamento e lazer, tornando-se um campo estratégico de produção simbólica, desenvolvimento territorial e diplomacia cultural. Neste contexto, os parques temáticos integrados em hotéis e resorts emergem como dispositivos sofisticados de geoturismo não apenas pela sua capacidade de atrair visitantes, mas pelo poder de narrar o território, reinterpretar identidades e gerar valor cultural. O conceito de geoturismo, tal como definido por organizações internacionais e instituições académicas, vai muito além da apreciação cénica. Refere-se a uma forma de turismo que valoriza a geografia, cultura, história e identidade de um lugar. Trata-se de uma abordagem que transcende o turismo convencional, oferecendo uma imersão interpretativa no espaço vivido. O geoturismo não consome o território, mas revela-o, narra-o e enobrece-o.

Neste sentido, os parques temáticos inseridos em hotéis e resorts representam uma evolução paradigmática. Ao integrar narrativa, arquitectura, gastronomia, arte e memória, estes espaços tornam-se plataformas de interpretação territorial, onde o visitante não é meramente acomodado, mas envolvido numa dramaturgia identitária. Ao contrário dos parques de diversões convencionais, os parques temáticos hoteleiros funcionam como dispositivos de territorialização simbólica. Cada elemento desde a cenografia à programação cultural é concebido como um acto de interpretação. A piscina deixa de ser um mero espaço de lazer e torna-se uma evocação da geografia local. O restaurante não serve apenas refeições mas oferece também composições gustativas que narram o território. O quarto não é apenas abrigo mas transforma-se num palco de imersão temática.

Estas empreitadas operam como micro-repúblicas culturais, onde o território é dramatizado, estetizado e experienciado. A sua força reside na capacidade de transformar o espaço em linguagem, o serviço em narrativa e o consumo em reconhecimento. O valor dos parques temáticos hoteleiros no contexto do geoturismo ultrapassa largamente a experiência do visitante. É estratégico, institucional e simbólico. Estes empreendimentos geram capital simbólico ao posicionar o território como espaço criativo e narrativo; contribuem para o reconhecimento internacional como no caso de Macau, designada “Cidade Criativa pela UNESCO”; promovem a diplomacia cultural ao integrar saberes locais com técnicas globais; estimulam economias territoriais ao valorizar produtos, ingredientes e talentos locais; e fortalecem a identidade colectiva ao oferecer experiências que educam, comovem e conectam.

Apesar da sua originalidade e poder narrativo, o modelo dos parques temáticos como dispositivos de geoturismo permanece subdesenvolvido na literatura internacional. A maioria dos estudos foca-se em parques de diversões ou resorts convencionais, ignorando as dimensões territoriais e simbólicas destas empreitadas híbridas. É essencial reconhecer e aprofundar esta categoria analítica emergente de arquitecturas de experiência territorial que dramatizam o lugar através da hospitalidade temática. Os parques temáticos integrados em hotéis e resorts representam uma inovação estratégica no campo do geoturismo. Ao transformar o território em narrativa, a hospitalidade em dramaturgia e o visitante em intérprete, estes espaços inauguram uma nova forma de turismo mais sensível, inteligente e comprometida com a valorização cultural.

O seu valor reside não apenas na estética ou entretenimento, mas na sua capacidade de produzir reconhecimento, pertença e legado. São, portanto, instrumentos de diplomacia simbólica, desenvolvimento territorial e inovação cultural. E como tal, merecem ser estudados, protegidos e replicados como modelos de excelência no turismo contemporâneo. Angela Leong e o seu filho Arnaldo Ho desempenharam papéis fundamentais na criação do Lisboeta Macau e na sua actual gestão, não apenas como um empreendimento comercial, mas como uma homenagem à identidade cultural e à memória colectiva dos residentes de Macau. Com uma arquitectura nostálgica inspirada em marcos históricos como o Hotel Estoril e o Macau Palace, o projecto reflecte um profundo respeito pelo património da cidade e uma vontade clara de preservar o seu carácter único face à modernização acelerada. A longa trajectória de Angela Leong na Assembleia Legislativa de Macau e o compromisso público de Arnaldo Ho em “nunca esquecer as suas raízes em Macau” evidenciam a dedicação de ambos à comunidade local. A liderança que exercem neste projecto revela uma visão mais ampla que valoriza o reconhecimento dos residentes, a continuidade cultural e a protecção do tecido social de Macau, garantindo que a população permaneça no centro da evolução da cidade.

O Lisboeta Macau constitui um exemplo emblemático desta abordagem. Ao integrar parque temático, hospitalidade, gastronomia e programação cultural, o complexo oferece uma leitura inovadora da identidade sino-portuguesa. A sua arquitectura evoca a Lisboa histórica, enquanto os espaços interiores celebram a fusão cultural que define Macau. Posicionado entre a memória urbana e a inovação turística, o Lisboeta Macau não é apenas um hotel é, em essência, uma obra de arquitectura narrativa que transforma o território em experiência. Localizado na zona do Cotai, entre grandes resorts de jogo e centros de convenções internacionais, o Lisboeta Macau emerge como uma alternativa disruptiva, com um parque temático que não apenas entretém, mas também reflecte, preserva e comunica. A sua proposta é radicalmente distinta dos modelos convencionais de turismo asiático. Articula memória urbana, estética retrofuturista e identidade sino-portuguesa numa linguagem espacial que transcende o espectáculo e inscreve-se na pedagogia do lugar.

Em vez de importar narrativas globais, o Lisboeta Macau constrói a sua própria mitologia urbana, sensorial e profundamente enraizada na história de Macau. O parque temático é concebido como uma extensão simbólica da cidade, uma cartografia afectiva que reinterpreta o Macau das décadas de 1960 e 1970 através de uma lente contemporânea. A arquitectura do complexo incorpora fachadas inspiradas em edifícios históricos, calçadas portuguesas estilizadas, iluminação evocativa de antigos bairros comerciais e cenários que remetem à vida urbana pré-moderna. Cada elemento é desenhado para funcionar como signo, vestígio e evocação.

Entre as suas características distintivas destaca-se o mencionado design retrofuturista, que combina nostalgia e inovação para criar uma atmosfera visual que simultaneamente honra o passado e projecta o futuro. Esta fusão é rara no turismo temático, onde a maioria dos empreendimentos opta por estéticas futuristas genéricas ou descontextualizadas. O cenário urbano recria ruas, praças e fachadas que recordam o Macau histórico, promovendo a memória colectiva como experiência sensorial. Os visitantes não se limitam a observar mas também habitam, percorrem e interagem com uma cidade reimaginada. A narrativa integrada é outro traço definidor pois cada espaço dentro do parque conta uma história. Gastronomia, decoração, atracções e até os percursos pedonais são concebidos como capítulos de uma narrativa territorial. O Lisboeta Macau não é um parque temático sobre Macau, mas é Macau contado através da linguagem do espaço.

A experiência oferecida é totalizante. Não se trata de um conjunto de atracções isoladas, mas de uma cartografia cultural onde cada elemento serve a identidade territorial. Quando comparado com outros parques temáticos integrados em hotéis na Ásia, a singularidade do Lisboeta Macau torna-se evidente. Em Singapura, o “Resorts World Sentosa” oferece experiências centradas em marcas globais como “Transformers” ou “Jurassic Park”. Em Tóquio e Hong Kong, os hotéis da Disney replicam universos ficcionais que poderiam existir em qualquer parte do mundo. Na China continental, empreendimentos como o “Chimelong Hotel” ou o “Hangzhou Songcheng Park” misturam elementos culturais locais com entretenimento de massas, mas sem coerência narrativa territorial. Na Tailândia, hotéis como o “The Okura Prestige Bangkok” apresentam cenários temáticos discretos, sem parques integrados. Nenhum destes projectos articula, como o Lisboeta Macau, uma proposta de parque temático simultaneamente urbana, histórica, sensorial e educativa. Nenhum transforma o território em narrativa experiencial. Nenhuma propõe o turismo como forma de leitura espacial.

O Lisboeta Macau encarna plenamente os princípios do geoturismo e da diplomacia cultural, entendidos como práticas turísticas que sustentam e valorizam o carácter geográfico de um lugar, incluindo o seu ambiente, cultura, estética, património e bem-estar dos residentes. Além disso, desempenha um papel estratégico para Macau ao oferecer uma alternativa ao turismo de jogo, contribuindo para a diversificação da economia local; ao celebrar a fusão sino-portuguesa, reforça a imagem da cidade como ponte entre culturas; e ao integrar memória urbana com inovação temática, posiciona-se como referência internacional no turismo cultural com identidade.

O Lisboeta Macau não é apenas inovador; é singular. Num mundo onde o turismo se tornou espectáculo, propõe uma experiência com alma, história e território. Uma jornada que não apenas entretém, mas reflecte; que não apenas atrai, mas educa; que não apenas diverte, mas transforma. Este projecto constitui um novo paradigma no turismo temático hoteleiro, sem equivalentes directos na Ásia ou noutras regiões. É arquitectura narrativa, pedagogia espacial, diplomacia simbólica. Em suma, é uma obra que merece ser reconhecida, protegida e disseminada como referência internacional em inovação cultural e territorial.

(Continua)

10 Set 2025

O fio ético da ciência

“The sciences are unaware that they lack a conscience.”

Edgar Morin

O ano de 2025 não chegou com fanfarra, mas com fadiga. O mundo, após uma década marcada por pandemias, governação algorítmica, colapsos ecológicos e fragmentação epistémica, encontra-se suspenso entre a aceleração e o esgotamento. Neste clima, o aviso profético de Edgar Morin no seu livro “A Ciência com Consciência” considerada como ruína da alma ressoa não como um aforismo ultrapassado, mas como um diagnóstico estrutural. A sua lamentação dos anos 1990 sobre a cisão entre conhecimento e sabedoria exige agora uma releitura radical. Pois, em 2025, a crise deixou de ser meramente moral; tornou-se ontológica. As próprias categorias pelas quais compreendemos a realidade, verdade, vida e identidade foram desestabilizadas pela expansão desenfreada da tecnociência, pela mercantilização da cognição e pela erosão do sentido partilhado.

A tese original de Morin, enraizada no pós-II Guerra Mundial e na ascensão da ciência nuclear, advertia contra o triunfo da racionalidade instrumental dissociada da reflexão ética. Via na figura de Fausto não apenas um arquétipo literário, mas uma trajectória civilizacional na busca de poder através do conhecimento, desancorada da responsabilidade. Hoje, esse impulso faustiano metastizou. Inteligência artificial (IA), biologia sintética, neurocapitalismo e engenharia planetária deixaram de ser domínios especulativos e são realidades operacionais. Contudo, a consciência que deveria acompanhar tal poder permanece conspicuamente ausente, ou pior, terceirizada à lógica de mercado e aos algoritmos preditivos.

Adaptar a obra de Morin à realidade de 2025 exige, antes de tudo, confrontar a ruptura epistemológica que define a nossa era. A ciência, outrora uma busca pela verdade, tornou-se um campo de batalha de narrativas concorrentes. Modelos climáticos são politizados, dados epidemiológicos instrumentalizados, e até o conceito de evidência se vê submetido a fidelidades tribais. A promessa iluminista da razão universal fragmentou-se em câmaras de eco e silos epistémicos. O apelo de Morin ao “pensamento complexo” capaz de integrar incerteza, contradição e interdependência é mais urgente do que nunca. Mas a complexidade hoje não é apenas uma virtude intelectual. É uma estratégia de sobrevivência. Considere-se o domínio da IA. Em 2025, sistemas de IA governam não apenas logística e finanças, mas também sentenças judiciais, acesso à educação e até companheirismo emocional.

Estes sistemas, treinados em vastos conjuntos de dados, reflectem e amplificam os preconceitos dos seus criadores e das sociedades de onde aprendem. No entanto, a sua autoridade raramente é questionada. A opacidade dos modelos de aprendizagem automática, combinada com a fetichização da eficiência, criou um novo sacerdócio de tecnocratas cujas decisões estão blindadas contra o escrutínio democrático. A crítica de Morin ao reducionismo e à tendência de isolar variáveis e ignorar o contexto encontra aqui a sua expressão mais inquietante. O algoritmo não pergunta porquê; optimiza. E ao fazê-lo, corrói as próprias condições da deliberação ética. A biotecnologia oferece outra fronteira onde a ciência sem consciência ameaça romper a condição humana. A edição genética, outrora confinada aos laboratórios, é agora comercializada como melhoria.

A linha entre terapia e aumento esbate-se, e com ela, o conceito de normalidade. A insistência de Morin na inseparabilidade entre biologia e cultura torna-se um correctivo vital. Pois o que está em jogo não é apenas a manipulação de genomas, mas a redefinição do que significa ser humano. A tentação de engenhar inteligência, emoção e até moralidade arrisca reduzir a pessoa a uma função programável. Neste contexto, a consciência não pode ser um pós-escrito mas deve ser o arquitecto. A dimensão ecológica do pensamento de Morin exige igualmente renovação. Em 2025, o Antropoceno deixou de ser um construtor teórico para se tornar uma realidade vivida. Refugiados climáticos, colapso da biodiversidade e padrões meteorológicos erráticos testemunham as consequências planetárias da arrogância científica.

Contudo, a resposta dominante permanece tecnocrática pois esquemas de geoengenharia, mercados de carbono e painéis de resiliência. O humanismo ecológico de Morin e a sua visão da Terra como sistema vivo em que os humanos são simultaneamente participantes e guardiões oferece uma contra-narrativa. Apela a uma ciência que escuta, coexistee e cura. Não uma ciência de dominação, mas de comunhão. Talvez mais urgentemente, a obra de Morin deve ser reinterpretada à luz da fragmentação cultural. Em 2025, a identidade tornou-se simultaneamente refúgio e arma. A aldeia global prometida pela conectividade digital degenerou em enclaves tribais, cada um com a sua epistemologia, moralidade e estética. A ciência, outrora ponte entre culturas, arrisca a tornar-se ferramenta de exclusão.

A linguagem da especialização aliena, os rituais da revisão por pares que intimidam, e os indicadores de impacto distorcem. O apelo de Morin à transdisciplinaridade e ao diálogo entre ciência, arte, filosofia e experiência vivida não é um luxo, mas uma necessidade. Só entrelaçando múltiplas formas de saber poderemos restaurar o tecido do sentido partilhado. Esta “Ciência Sem Consciência” reimaginada deve, portanto, ser mais do que uma crítica, deve ser um manifesto. Deve apelar a uma pedagogia da complexidade, a uma política da humildade e a uma ética do cuidado. Deve desafiar as instituições científicas a democratizar os seus processos, a confrontar os seus pontos cegos e a abraçar a incerteza não como ameaça, mas como condição da verdade.

Deve convidar os cientistas a tornarem-se cidadãos, e os cidadãos a reclamarem a ciência como bem público. Neste espírito, a universidade deve ser reconstituída. Deixando de ser um silo de especialização, deve tornar-se um santuário de integração. Os currículos devem ser redesenhados para cultivar não apenas competência técnica, mas imaginação moral. Os estudantes devem ser treinados para perguntar não apenas “como”, mas “porquê” e “para quem”. A investigação deve ser avaliada não apenas pela sua novidade, mas pela sua relevância, inclusividade e capacidade de iluminar a condição humana. A visão de Morin da educação como processo de despertar e de aprender a viver, a compreender e a coexistir deve orientar esta transformação. Do mesmo modo, a publicação científica deve evoluir.

A fetichização dos factores de impacto e das contagens de citações criou uma cultura de produtividade performativa. O conhecimento fragmenta-se em artigos hiper especializados, inacessíveis ao público e frequentemente irrelevantes para preocupações prementes. Um ecossistema editorial reimaginado deve priorizar acessibilidade, interdisciplinaridade e envolvimento público. Deve recompensar síntese, reflexão e a coragem de colocar questões fundacionais. Os mídia, também, devem recuperar o seu papel como mediadores da consciência. Em 2025, a comunicação científica é frequentemente reduzida a títulos sensacionalistas e debates polarizados. A nuance, o contexto e a humildade que Morin defendia são vítimas da economia da atenção.

Os jornalistas devem ser formados não apenas em literacia científica, mas em discernimento ético. Devem resistir à tentação de simplificar e, em vez disso, cultivar a arte da complexidade. Devem contar histórias que iluminem os dilemas, os riscos e a humanidade por trás dos dados. Ao nível geopolítico, os insights de Morin oferecem um quadro para repensar a governação global. A pandemia revelou a fragilidade da cooperação internacional e os perigos do nacionalismo científico. Em 2025, a diplomacia vacinal, as negociações climáticas e a soberania digital continuam a ser arenas de contestação. Uma ciência infundida de consciência deve advogar pela solidariedade planetária. Deve reconhecer que vírus, moléculas de carbono e algoritmos não respeitam fronteiras. Deve apelar a instituições ágeis, inclusivas e responsáveis não apenas perante Estados, mas perante povos, ecossistemas e gerações futuras.

Esta visão exige coragem. Pois as forças que se opõem à consciência são formidáveis pois objectivam motivos lucrativos, inércia institucional e rigidez ideológica. Mas a alternativa é insustentável. Uma ciência sem consciência conduz não apenas à decadência moral, mas ao colapso civilizacional. Gera alienação, injustiça e ruína ecológica. Reduz o espírito humano a uma variável num modelo, a um nó numa rede, a um consumidor de inovação. Para resistir a esta trajectória, devemos cultivar o que Morin chamou de “reliance” que é a capacidade de conectar, cuidar e co-criar. Devemos redescobrir a alegria da indagação, a humildade de não saber e a responsabilidade de saber. Devemos construir instituições que honrem a complexidade.

4 Set 2025

O Papa Americano (IV)

“Let us disarm words and we will help to disarm the world.”

Leo XIV

A bordo de uma nave que traça trajectórias por vezes dissonantes em relação aos impulsos de Trump. Sem contar Musk, electrão livre após a separação não consensual do presidente. Pouco se compreende desta vaga ascendente ignorando que ela deve a sua ascensão ao colapso do liberalismo globalista, no seu auge na última década do século XX. O chefe estratega da campanha presidencial em 1992 de Bill Clinton afirmou “It’s the economy, stupid!”, e seguido pelos seus apoiantes de que para o americano médio-baixo se tornou sinónimo de privação, depressão e crise de identidade. O populismo é filho do elitismo. Reforçado pelo arrogante fracasso liberal. Convém levar a sério a reacção trumpista, que procura irradiar para além da temporada do presidente em exercício. Vance e Trump parecem partilhar a cruzada antiliberal que pretende ligar à revolução americana Estados, partidos e lóbis ideologicamente próximos do movimento MAGA.

Eles próprios, juntamente com pesos médios e pesados do circuito trumpista, intervêm sem pudor nas eleições de países “amigos e aliados”. A lista é extensa. O caso mais recente é o da Polónia, onde a responsável pela Segurança Interna, Kristi Noem, empenhou-se com sucesso em apoiar a ascensão do nacional-conservador Karol Nawrocki à presidência da República, em confronto com o primeiro-ministro Donald Tusk, alegado vassalo de Bruxelas. Já em Fevereiro, Vance havia criticado duramente os líderes euro atlânticos na conferência de Munique e apoiado a Alternativa para a Alemanha (AfD) contra moderados, europeístas e tardios globalistas, acusados de reprimir o debate livre e ameaçar a democracia na República Federal. Campanhas semelhantes ocorreram no Reino Unido em apoio ao ressurgido Farage, em França por Marine Le Pen, desqualificada por uma sentença controversa, na Roménia pelo candidato presidencial derrotado George Simion, auto declarado aderente ao “bilhete MAGA”, na Irlanda por Conor McGregor.

Até na Coreia do Sul por Yoon Suk Yeol, que segundo Trump foi removido da presidência por um golpe orquestrado pela China. Sem falar do cordial abraço com Giorgia Meloni, encorajador e ao mesmo tempo embaraçoso para quem se oferece como ponte entre europeus e americanos. O MAGA internacionalizado e não globalizado pretende ser o protector da civilização ocidental, florescida na Europa a partir da semente judaico-cristã, helénica e romana, revisitada e transmitida ao Novo Mundo pelos ingleses, atingindo o seu esplendor máximo nos Estados Unidos. Hoje ameaçada pela finança global, pelo politicamente correcto e pela “substituição étnica” gerada pelo catastrófico cruzamento entre imigração não assimilável e declínio da natalidade. Em defesa dos “valores tradicionais”, a começar pela família.

A civilização ocidental é o conceito de que existe uma ordem natural das coisas e que temos direitos que derivam de Deus. E que existem regras, regista Terry Schilling, fundador do Projecto para os Princípios Americanos. A melhor definição da Internacional MAGA é-nos dada por um jovem conselheiro do Departamento de Estado, Samuel Samson. Para quem é urgente uma nova aliança de civilizações com a Europa, contra o projecto global liberal que impede o florescimento da democracia, que a espezinha juntamente com a herança do Ocidente, em nome de uma decadente classe governante que teme o seu próprio povo. Portanto, esta parceria deve assentar na herança comum americana, não no conformismo globalista. Assistimos ao esboço de uma para doutrina eclesiástica em forma laica. Política e geopolítica. Nova/velha religião com estrelas e faixas. A originalidade deste culto reside na apropriação do catolicismo, moldado às suas próprias necessidades.

Fé que atrai um em cada cinco americanos. Após anos de declínio, o cristianismo latino parece estar em recuperação. Sobretudo converte. Nessa nação antipapista, com ex-evangélicos ou ateus Vance percorreu ambas as etapas rumo à Luz que olham para Roma e se entusiasmam com o “seu” pontífice, significa que o vento está a mudar. O Vaticano está exposto ao duplo risco de ser usado por uma facção de fidelidade canónica duvidosa para fins de poder e/ou de se confrontar com o actor geopolítico e económico “Número Um”, a custos incalculáveis. Inclusive para as suas próprias finanças. A dissolução da USAID já afectou ordens e movimentos católicos em todo o mundo, beneficiários habituais da divisa que garante confiança em Deus. Pior, a recuperação católica em territórios infiéis, mesmo pescando entre cristãos de outras confissões, pode culminar em conflito entre crentes progressistas e tradicionalistas.

O pesadelo do papa americano é ter de resolver disputas internas na sua Igreja de origem. Enquanto Trump via Vance ou vice-versa, engrossa as suas divisões com os departamentos locais do papa. Com que fundamentos? Do catolicismo, Vance atrai-se pelas certezas dogmáticas, liturgias tradicionais, anseio pelo bem comum. Coroadas pela autoridade do papa. Tudo para dotar de moral mobilizadora o despertar da comunidade nacional, objectivo da revolução em curso. Contra o progressismo, liberalismo, socialismo e pecados associados. Se fosse pontífice, Vance regressaria ao Vaticano I, ampliando a esfera da infalibilidade papal. Os seus referentes são Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino, dos quais oferece excertos de leitura original. Do “Aquinate” extrai uma interpretação adaptada do ordo amoris. Desafio ao coração da sua religião declarada. O amor é o cristianismo. Em Cristo é gratuito. Vance oferece uma versão paga.

A favor da sua conta corrente política e geopolítica. Diz amor, mas entende norma ética. Com a qual declina a hierarquia sociogeopolítica do amor.A escala de Vance tem cinco graus que são a família, vizinhança, comunidade, pátria e resto do mundo. Classificação dos deveres do bom americano, contra a retórica dos direitos. Inconciliável com o bom samaritano. Irrefreável no impulso agápico de Jesus, abraço aberto a todos. Talvez mais próximo da tradição veterotestamentária que privilegia o amor judaico pelos judeus. O acaso, ou Deus, quis que Vance ocupasse os últimos dias de Francisco. Primeiro obrigando-o à refutação da sua ordem do amor, à qual aderiu publicamente também o cardeal Prevost. Depois, levando-o a receber a sua némesis, poucas horas antes de morrer, num não cruzar de olhares que dizia mais do que qualquer palavra. Agostinho, o africano, relata nas Confissões que, jovem e céptico professor de retórica, em 384 chega a Milão para encontrar o bispo Ambrósio, animador da comunidade cristã perseguida.

Com espanto, descobre-o a percorrer em silêncio as Escrituras: «Quando lia, o olhar corria pela página e o intelecto perscrutava o significado; voz e língua permaneciam em repouso. Muitas vezes ficávamos encerrados num longo silêncio e quem ousaria perturbar tal recolhimento? E víamo-lo sempre ler daquela forma silenciosa, nunca de outro modo» (Confissões, 6,3). Na época, e ainda durante séculos, os poucos letrados, sobretudo em ambientes partilhados, liam em voz alta. Um acto de generosidade para com o próximo, muitas vezes iletrado. Hoje, distingue-se uma biblioteca pelo som do silêncio. Naquele tempo, cruzavam-se vozes. A leitura comunicada, ou seja, transmitida em comunidade, era regra e assim permaneceria até ao início do segundo milénio. A leitura silenciosa ou murmurada exclui o próximo. Daí o desconforto de Santo Agostinho. Esta figura patrística, cara a Bento XVI que no seu íntimo solidificava com o ambrosiano ruído do silêncio é trazida pelo psicanalista Luigi Zoja como exemplo da deriva que nos afasta do próximo para nos fecharmos em nós próprios. Fala-se pouco.

O verbo afastou-se dos (virtuais) falantes, substituído pela tecnologia. Com os seus engenhos dedicados ao ego, o “I” inglês: iPhone, iBook, iPod, iPad. Égoïste é o perfume que a Chanel promove como retrato olfactivo de um homem de carácter, fascinante e inatingível. Assistimos ao colapso do “nós”, à morte do próximo, consequência da morte de Deus? O cristão está autorizado a pensar assim por dedução do Evangelho de Marcos (12:28-31), que atribui a Jesus o breve resumo dos mandamentos, ou seja, do amor; primeiro, «O Senhor nosso Deus é o único Senhor. Ama o Senhor teu Deus com todo o teu coração»; segundo, «Ama o teu próximo como a ti mesmo». Dois amores encadeados por paradoxo e intenção. Mas onde está o próximo hoje? A distância entre os humanos, animais sociais por constituição, cresce. A tal ponto que compromete o próprio sentido das sociedades, sobretudo mas não só ocidentais. Uma condição antinatural. Um darwinismo anti-social que fragmenta as comunidades. Palavra-programa que une cum e munus, “juntos” e “tarefa”. De tarefas partilhadas há pouca memória.

Pode-se escrever direito por linhas tortas. Mas sem Deus (no sentido próprio de Nietzsche), sem próximo (na abertura ilimitada de Jesus) e sem projectos comuns, ordenar o caos é utopia. Eis a dupla crise de sentido da Igreja e da América, que desencadeia uma competição identitária e geopolítica dentro e entre colectividades em atomização. Está em jogo a razão de viver. Vence, ou pelo menos não se perde, o pastor que melhor reagrupa as suas ovelhas dispersas. É sobre isto que versa a disputa em torno da ordem do amor. Igreja e América enfrentam de forma oposta o desafio do declínio. Na sua ênfase sinodal, Leão XIV associa Santo Inácio de Antioquia, conduzido em cadeias ao martírio como “Então serei verdadeiramente discípulo de Jesus Cristo, quando o mundo não vir o meu corpo” (Carta aos Romanos, IV, 1). Referia-se a ser devorado pelas feras no circo e assim aconteceu mas as suas palavras evocam, num sentido mais geral, um compromisso irrenunciável para quem exerce um ministério de autoridade na Igreja como desaparecer para que permaneça Cristo, tornar-se pequeno para que Ele seja conhecido e glorificado (João, 3,30). Depois de Leão Magno, Leão o Pequeno?

À Igreja introvertida e em cisão não servem grandes papas, que no melhor dos casos encobrem a sua doença. É preciso redescobrir o sentido da comunhão, hoje em risco. Na sua elevada ideia de si, Trump torna-se omnipresente e omnifalante. Incensa-se como mega presidente para tornar a América grande novamente. Os católicos neotradicionalistas que o aplaudem não se preocupam em ser menos do que aparentam. Mas quem, feroz no seu estéril progressismo, ridiculariza a insipiência doutrinal de Vance e associados, glorifica-se a si próprio e aposta que a contra-revolução trumpista é um parêntese deplorável, acabando em fora de jogo. Na Igreja, na América, em todo o Ocidente até nas potências rivais, a privação do contacto com o próximo é insuportável à existência. Não importa se por direito ou por dever, o ser humano procurará sempre o vizinho, sofrerá se não o encontrar. Partilhamos a conclusão de Zoja, para juntos procurarmos uma resposta de que em qualquer lugar, em qualquer época, a distância sempre foi um obstáculo ao amor, porque deveria a nossa ser diferente? Pode-se realmente amar ou apenas conhecer aquilo que está longe? E só o conhecimento permite, ao menos, ser justo? Nada o demonstra.

28 Ago 2025

O Papa Americano (III)

(Continuação da edição de 14 de Agosto)

O europeísmo brota de forma tangível do catolicismo euro-ocidental e começa a declinar quando, graças também ao impulso do papa polaco, os «dois pulmões» do continente atravessado pela cortina de ferro, unindo-se com a mão esquerda num casamento morganático, descobrem ser demasiado diferentes. Nacionalismos absolutos e particularismos mesquinhos afligem tanto o continente geopolítico quanto a Igreja na Europa, em balcanização pela ênfase em si mesmas das conferências episcopais individuais. Em busca do cada vez menor e, portanto, mais puro. Antítese do lema agostiniano escolhido por Leão XIV «In Illo uno unum (Naquele que é Um, nós somos um)». Não é uma constatação. É um acto de fé. Os mártires pré-constantinianos diagnosticariam hoje a Lua/Igreja em fase avançada de declínio, mas confiantes no próximo ciclo gerador, finalmente iluminador. Muito diferente do clima sombrio de hoje. Actualmente, os católicos de pouca fé ou excessiva racionalidade descobrem a Igreja morta na Europa. Justamente enquanto em várias regiões do «Sul Global», especialmente na África graças ao impulso demográfico e nas Américas, os católicos crescem também em termos de influência político-cultural.

Mas é lei física a que observa na dilatação espacial a diluição da coerência em qualquer colectividade ou instituição, no caso católico (Santa Igreja Romana) e laico (União Europeia). A difusão de liturgias inerentes ao genius loci específico expressa a heterogeneidade cultural que às vezes torna difícil para um católico reconhecer-se noutro católico. Se a Igreja europeia esgota a sua força propulsora, para o Ocidente é o golpe de misericórdia. Esta é, pelo menos, a tese do cardeal Christoph Schönborn, colosso da aristocracia clerical da Europa Central e teólogo dominicano, aberto à tradição durante os seus trinta anos como arcebispo de Viena, que terminaram em Janeiro passado por (prorrogação) do limite de idade. Na conferência de 3 de Fevereiro de 2010 na Catholic University of America, este íntimo de Ratzinger e depois cauteloso apoiante de Bergoglio revela as suas cartas já no título «Cristianismo, presença alienígena ou fundamento do Ocidente?». Resposta: «Ambas as coisas». De facto, «o cristianismo é uma das raízes da Europa». Mas «para muitos, é um elemento estranho num mundo determinado pela razão, pelo iluminismo e pelos princípios democráticos». Conclusão: «Esta Europa, e todo o mundo ocidental, não sobreviverá sem essa estranheza trazida pelo cristianismo».

No sentido explorado por Diogneto, antecipado pelo mandamento paulino na Carta aos Romanos «Não vos conformeis com este mundo» (Rm 12,2). Este príncipe inclassificável da Igreja inscreve-se na corrente do catolicismo dos Habsburgos, já bastião da reacção às «novidades francesas» denunciadas por Novalis no clássico “A Cristandade ou a Europa” ou seja, a Europa (1802), mas único império europeu a não se manchar com o pecado colonial a menos que se considere colónias o conjunto balcânico e centro-europeu pertencente a Viena. Neste contexto, emergem no século XX personalidades de elevada cultura quase morbidamente apegadas à ideia da Europa, como podiam ser logo após a Guerra Fria os «salvos» do segundo pulmão, forçados durante meio século na gaiola soviética e, por isso, rebaixados a «Oriente». Rede informal geopolítico-espiritual verticalizada com Karol Wojtyła de Wadowice, perto de Cracóvia, papa imediatamente santificado. O nome foi-lhe imposto pelo pai, que serviu no exército imperial-real, em memória de Carlos I, último Kaiser Habsburgo, beatificado em 2004 por João Paulo II.

Outro expoente notável dessa linhagem é o cardeal Péter Erdö, arcebispo de Budapeste e primaz da Hungria, em quem a ala conservadora minoritária, liderada pelo cardeal americano Timothy Dolan, arcebispo católico, da Arquidiocese de Nova Iorque e outros cardeais não apenas americanos, apostou como candidato de bandeira no conclave que convergirá para Prevost. Vice-papa virtual, à frente do cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado da Santa Sé, na votação final dos cardeais. Para ele, «sem a Europa, a Igreja perde o seu coração». Não sabemos se J.D. Vance, o extrovertido vice de Trump, ansioso por sucedê-lo, já visitou a basílica de São Francisco de Assis em Arezzo. Se não o fez, é de ousar sugerir-lhe que o faça. Aqui poderá espelhar-se no Sonho de Constantino, o maravilhoso afresco de Piero della Francesca. Quase amanhecendo nocturno no campo romano, no final de Outubro de 312. O imperador jaz sonhador sob a tenda do seu acampamento perto de Ponte Mílvia, onde está prestes a derrotar o rival Maxêncio. Envolto na luz mística cara a Piero, limiar entre a sombra moribunda e os raios nascentes de Cristo, um anjo estende a cruz cujo sinal Constantino vencerá. Origem da virada iniciada pelo imperador-bispo no Concílio de Niceia, do qual se comemora o décimo sétimo centenário.

Selado em 28 de Fevereiro de 380 por édito do imperador Teodósio I, que decreta a fé em Cristo como religião do Estado. Romanização do cristianismo e cristianização do império. Um anjo deve ter aparecido também a Vance, que, em analogia com Constantino, sonha com a americanização do catolicismo e a conversão da América à religião do papa Americano. O evangelho segundo J.D. é instrumentum regni. Suplemento de alma para a América pós-liberal, nostálgica dos “Roaring Forties and Furious Fifties”, idade augusta do império das estrelas e listras. À espera da parusia de Elvis. Na hipotética exegese vansiana do “Mysterium Lunae”, a América seria assimilada à Igreja «lunar», iluminada pelo Sol divino. Sobre a função estratégica desta visão converge a tribo católica em expansão entre os líderes MAGA. Exuberante ramificação do trumpismo que postula a fecundação recíproca entre o Estado e a Igreja para maior glória do primeiro.

Entre esses apóstolos, muitos convertidos, quorum Vance. Inspirados na encíclica “Longinqua Oceani” (1895) de Leão XIII, segundo a qual a Igreja Católica americana «daria frutos ainda mais abundantes se, além da liberdade, gozasse também do favor das leis e da protecção do público». O sonho de Vance é que Leão, o americano, possa celebrar as núpcias entre os Estados Unidos e a Igreja. Talvez por acordo. Rede a ser estendida a países consentâneos. Para uma Internacional dos nacionalistas, aberta ao Ocidente estratégico, do qual os Estados Unidos são o fulcro. E sensível à cor da pele, preferencialmente branca. Super MAGA que unirá as nações que quiserem aderir, seguidores da Lua com estrelas e listras. O neoconstantinismo com esteróides visa o equilíbrio de poder entre Estados em competição mutuamente legitimados a proteger os seus próprios interesses. Partidas a regular no mercado em que cada actor joga e troca cartas próprias com as dos outros.

É claro que são viciadas. É tudo um acordo. Trump tentou em vão explicá-lo a Zelensky no confronto na Casa Branca, em 28 de Fevereiro passado: «Não tem as cartas!». Entre os sócios fundadores da coligação vansiana destacam-se personalidades de ascendência neoconservadora, como o secretário de Estado Marco Rubio, o mais influente depois de Vance entre os nove expoentes da patrulha católica que anima o governo federal.

20 Ago 2025

O Papa Americano (III)

“To all of you, brothers and sisters of Rome, of Italy, of the whole world, we want to be a synodal Church, a Church that walks, a Church that always seeks peace, that always seeks charity.”

Pope Leo XIV

Em vez disso, todos os Estados totalitários são incompatíveis com o Evangelho, porque negam a natureza do poder». Transferido para os dias de hoje, «o compromisso do cristão no Estado é o de dessacralizar o poder político para superar a era constantiniana que havia sacralizado o poder».

Aqui estamos, precipitados na actualidade. Porque se medirão a continuidade e a descontinuidade entre Francisco e Leão XIV, o jesuíta e o agostiniano, na abordagem da geopolítica eclesiástica e no compromisso da Santa Sé, parte do drama dialéctico entre as potências. E entre os sem poder.

Tudo gira em torno de Constantino. O imperador que legitima os crentes em Jesus preside em Niceia o primeiro concílio ecuménico (325), do qual brota o Credo Niceno-Constantinopolitano que provisoriamente apazigua as disputas em torno da natureza do Filho. Não que o vencedor da Ponte Mílvia, sob o signo de Cristo, cultive interesses teológicos.

As disputas sobre a divindade aborrecem-no. Bagatelas, mas que devem ser acalmadas em nome da unidade do império e da Igreja, seu instrumentum regni, reunidos sob o seu comando. Constantino morre cristão no seu último suspiro, quando um sacerdote ariano o baptiza segundo o rito repudiado pelo moribundo.

Para várias Igrejas ortodoxas e de rito oriental, esse imperador é santo. Não para a católica, onde ainda há uma divisão entre aqueles que o veneram quase como santo (como é o caso de Paulo VI e Bento XVI) e aqueles que o consideram um mau exemplo de culto ao poder, um pecado grave.

As duas escolas enfrentam-se no Concílio Vaticano II. Uma forte corrente teológica e episcopal abala, mas não quebra o tabu constantiniano. Ou seja, a união entre a sacralização da política e a politização da teologia representada no mosaico de Santa Pudência. O “Deus Pantocrator” que abençoa o Império Romano cristão inaugura a linhagem do cesaropapismo, com o soberano que controla a autoridade religiosa, e do seu gémeo inverso, o papocesarismo ou teocracia, onde o tempo clericalizado governa o espírito mundano.

Será necessário mais de um século para abalar, não dissolver, o primado do clero neoconstantiniano, assustado pela Revolução Francesa a ponto de reagir com encíclicas antiliberais e exquisitamente reaccionárias, como a Encíclicas “Mirari vos” (1832) de Gregório XVI e “Quanta cura com o anexo Syllabus Errorum” de Pio IX (1864), condenação da opinião de que «a Igreja deve ser separada do Estado e o Estado da Igreja» (§ 55). Quase como se fosse o Conde de Cavour a comunicar.

Desta vez ex cathedra por licença do Vaticano I, que em 18 de Julho de 1870, com os italianos às portas, dogmatiza e circunscreve a infalibilidade do pontífice romano. Será preciso Francisco para abalar a árvore do constantinismo, sem poder arrancá-la.

A distinção radical entre Estado e Igreja por ele proposta tem um alvo imediato, a América do primeiro Trump, rebaptizada de «novo Constantino». Segundo os seus exegetas mais íntimos, Bergoglio «rejeita radicalmente a ideia da implementação do Reino de Deus na terra, que tinha sido a base do Sacro Império Romano». Esta história tem a sua ironia. Constantino, moderador supremo das disputas teológicas e de poder entre os antigos patriarcados e os efervescentes doutores da Igreja, qualifica-se como episkopos ton ektos, ou seja, «bispo dos que estão de fora»; aqueles que não pertencem ao clero católico.

E por que mais Francisco será lembrado senão pela tentativa de abrir as portas da Igreja aos «de fora», aos leigos e aos marginalizados das periferias geográficas e espirituais? A disputa entre «missionários» e «institucionais» de origem constantiniana continua a ser travada em torno da delimitação do «dentro» e do «fora», tanto na organização eclesiástica como na sua projecção externa, a começar pela relação com as outras Igrejas cristãs, especialmente as orientais.

Enquanto se espera que um émulo de Alexandre VI Borgia que em 1494 pela Encíclica bula “Inter caetera” dividiu as esferas coloniais de Portugal e Espanha com um traço longitudinal de lápis sagrado no meio do Atlântico, cartografe estes dois supostos conjuntos, é de salientar um paradoxo.

Trata-se do título papal de patriarca do Ocidente. O primeiro pontífice baptizado com esse título foi Leão I. Por iniciativa do imperador oriental Teodósio II, para distinguir as principais sedes apostólicas sob sua jurisdição directa como Constantinopla, Antioquia, Alexandria, Jerusalém e de Roma caput do catolicismo latino. Título retomado pelo papa Teodoro I em 642, por sua própria iniciativa.

Antecipação do futuro Grande Cisma de 1054 entre a Igreja de Roma e as Igrejas ortodoxas, nunca mais sanado. Surge hoje a necessidade de redefinir o termo «Ocidente», questão fundamental da geopolítica católica. Objecto de uma sofisticada troca entre Bento XVI e Francisco, sob o signo do paradoxo. Ratzinger renunciou em 2006 ao seu título de patriarca do Ocidente por considerar que diminuía o mandato universal. No entanto, ele mascara essa intenção com o seu oposto.

Ele argumenta que a renúncia pode beneficiar o diálogo ecuménico. Tese que não convence de forma alguma os ortodoxos, desconfiados das reivindicações romanas em relação a eles. E eis que o menos ocidental dos papas modernos, Francisco, restaura esse título. Ele, que pela sua mentalidade latino-americana e especificamente peronista sente o cheiro de enxofre a norte do Rio Bravo (Grande), nem se apaixona pelo Velho Continente, proclama-se patriarca do Ocidente, no sentido comum de América e Europa.

E fá-lo pelas razões declaradas, mas não muito sentidas por Ratzinger que é dialogar como bispo de Roma com o Oriente cristão. Quem sabe se Leão XIV desejará fechar o círculo, ele que é americano de nascimento e, portanto, ocidental, reapropriando-se do título patriarcal. Encontramos aqui um exemplo da maldição semântica que às vezes corrompe a análise geopolítica. O achatamento da comunicação «global» descolora os significados das palavras.

O mesmo termo assume sentidos opostos ou diferentes, dependendo de quem o pronuncia e dos seus fins. Festival do «para onde vais? Levo peixe». Os seus fastos também infestam a «língua» do clero, entendida como Babel, especialmente quando cruza termos desgastados pelo uso múltiplo dos meios de comunicação em âmbitos seculares. Brincamos com palavras vazias ou demasiado cheias de significados.

Como, por exemplo, Ocidente. Ou seja, Europa, seu antecedente e causa no jargão estratégico actual. Drama intelectual cantado há quase um milénio por Bernardo de Cluny nos hexâmetros satíricos do “De Contemptu Mundi”, que inspiraram Umberto Eco em “O Nome da Rosa”. Bernardo proclama que «Stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemus» (I, 952) – “A rosa primitiva subsiste apenas no nome, nós possuímos apenas nomes simples». Alguns manuscritos trazem «Roma» em vez de «rosa».

A rosa não é uma coisa. Roma ainda é. Ou não? E se também a Europa de filiação romano-germânica, matriz do Ocidente, fosse reduzida apenas ao nome? O antigo jardim do cristianismo está a tornar-se um deserto. Isso é gritado pelos números nus que anunciam o colapso da prática religiosa, o declínio não apenas quantitativo das vocações de quantos seminaristas aspiram ao sacerdócio como a qualquer outra carreira, um emprego mal remunerado, mas seguro, o quase esgotamento dos missionários, para não falar da qualidade do clero.

Daí a reduzida influência do mundo católico no estilo de vida, na política e na alta cultura ou difundida do Velho Continente. A cristandade ocidental europeia é baptizada em 15 de Abril de 800, quando Leão III coroa imperador Carlos Magno, para irritação dos bizantinos. O estigma carolíngio é o ícone do europeísmo contemporâneo. Mas o que resta da koiné eurodemocristã da qual, após a II Guerra Mundial, originou a União Europeia nas suas primeiras vestes comunitárias, sob o patrocínio do novo hegemónico do Ocidente, os Estados Unidos da América?

(Continua)

14 Ago 2025

O Papa Americano (II)

(Continuação da edição de 24 de Julho)

Ergo, o cristianismo também é pagão porque, na história, enquanto se dispõe a acolher o seu fim. A proposta de Newman de abrir as portas da Igreja aos leigos combina com uma visão teológica muito ampla. Talvez se possa ver um traço inconsciente disso no apelo caro a Leão XIII, referência não apenas nominal de Prevost, que convida a «sair da sagrada estátua» no espírito de sua encíclica Rerum Novarum (1891), hoje muito citada. E reflecte-se no impulso dos inovadores que gostariam de compensar a tremenda crise de vocações recrutando leigos de ambos os sexos para as divisões do papa. A reelaboração do mistério do Sol e da Lua encontra eco na era contemporânea (1958) no então arcebispo de Milão (Papa Paulo VI), último (até agora) governador da cátedra de Pedro, insusceptível de movimentismo pois «A Igreja é comparada até à Lua, cujas fases de diminuição e crescimento reflectem a história alternada da Igreja que decai e se recupera, e que nunca falha, porque fulget Ecclesia non suo sed Christi lumine, brilha não com a sua própria luz, mas com a de Cristo».

A prova ontológica do êxtase romano-cristão, o arrepio da comunhão com Deus todo-poderoso na sua intimidade histórica com a aeternitas Augusti (a imortalidade de Augusto), selo do Império Romano, está na abside da Basílica de Santa Pudenciana. Talvez a casa de Pedro. Destaca-se o mosaico mais antigo de Roma, datado do início do século IV. No centro, Cristo na pele do Imperator Orbis Terrarum, Senhor do Céu e do mundo. Atrás dele, a cruz gemada constantiniana, sobre um fundo azul de pôr-do-sol riscado por pálidos cirros avermelhados. Ao seu lado, os apóstolos Pedro e Paulo, vestidos como senadores romanos, simbolizam a concórdia entre a ecclesia ex circumcisione judaica e a ecclesia ex gentibus pagã ou não judaica. Oriente fundido com Ocidente. Incardinados em Roma. Tanto que os líderes Pedro e Paulo serão por vezes assimilados a Rómulo e Remo.

Nos primeiros três séculos da era cristã, a aristocracia senatorial continua a reivindicar a preservação dos ritos pagãos. Para os seguidores de Jesus, a Urbe continua a ser Babilónia. Entre o imperium (poder temporal ou político) e o sacerdotium (poder espiritual ou religioso) estabelece-se uma rivalidade de longa data, nunca resolvida. Somente após Constantino, no trono de 306 a 337, a sede imperial-papal inclina-se para o segundo corno do poder, o eclesiástico nascente, divino e secular, intercepta e acompanha o imperium sine fine (império eterno) em declínio, destinado a reproduzir-se por gemulação nos âmbitos germânico, bizantino, moscovita e franco-americano. Caput mundi (Capital do mundo) torna-se sede apostólica. Na narrativa do historiador jesuíta Karl Schatz afirma que «As duas correntes confundiram-se numa só e o carácter único da Roma antiga foi comunicado à Roma eclesiástica, papal, refundando a sua primazia. A nobreza romana trouxe como dote a sua maneira de pensar, o carisma da sua liderança, o seu talento para conciliar os opostos, o seu senso prático sóbrio como o do poder. Assim, tudo o que tinha tornado Roma capaz de dominar o mundo».

O universalismo católico é de raiz romana. É bom lembrar o estigma, quando o esgotamento da linhagem local no trono de Pedro expõe os particularismos que enfraquecem o clero e o povo de Deus. Aqui, a poucos passos do túmulo de Francisco em Santa Maria Maggiore, descobrem-se as pegadas mundanas da relação dos cristãos com a Cidade terrena, na espera activa da Cidade de Deus, entre o já e o ainda não. Entre o Apocalipse de João, que vê no Estado a Besta que surge do abismo (13,1 e seguintes), e a Carta aos Romanos (sempre 13,1 e seguintes por alguma razão desconhecida), na qual o civis romanus Paulo ordena que «Todos devem submeter-se às autoridades constituídas. Na verdade, não há autoridade senão a de Deus pois, as que existem são estabelecidas por Deus. Portanto, quem se opõe à autoridade opõe-se à ordem estabelecida por Deus». Em sintonia com Jesus, que se dirigindo a Pilatos determina: «Tu não terias nenhum poder sobre mim, se não te tivesse sido dado do alto» (João, 19,11). Entre estes dois pólos, que em casos extremos podem levar ao ascetismo ou à mundanização da instituição eclesiástica, corre a história universal da Igreja, do Gólgota até hoje, ao mesmo tempo alegre e sombria.

O que nos obriga a remontar a Cristo «Caesaris Caesari, Dei Deo Dai (a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus)» (Mateus, 22,21). Quatro palavras de Jesus inauguram séculos de disputas sobre a relação entre o cristianismo e o poder político, tratadas em milhões de páginas. Inscritas na dupla cidadania do cristão, na terra e na Cidade de Deus. Daí guerras hermenêuticas não apenas virtuais, cismas, condenações e reabilitações papais. Rios de tinta ou de bits no seu valor binário simbólico do dualismo Estado/Igreja, mas também de sangue derramado para traçar o caminho certo na questão central da geopolítica eclesiástica. Tensão permanente. Radicalizada com a ascensão de Leão XIV ao trono, rara, se não única, coincidência entre identidade nacional e missão papal, ambas relacionadas com o máximo poder no campo, seja mundano, seja religioso. O que deve o papa, não apenas americano, aos Estados Unidos, o que o “Número Um” gostaria do seu cidadão ecuménico?

Jesus é crucificado porque os romanos o identificam como um zelote que se autoproclama rei dos judeus. Aderente, como outros apóstolos, entre os quais Simão, talvez Judas e o próprio Pedro, ao movimento armado dos zelotes, guerrilheiros (terroristas, corrigiria um Caifás dos dias de hoje) em luta para libertar a Palestina do jugo de Roma. Cristo simpatiza com a causa zelote, mas rejeita a violência, muito menos ambiciona tronos terrestres. Estabelece o historiador e teólogo luterano francês Oscar Cullmann, no seu clássico “Deus e César” afirmando «A posição de Jesus situa-se além tanto de uma aceitação acrítica do Estado romano quanto da resistência política a esse Estado». Uma vez que ele «procura a polis futura». Há algo de pilatesco nesta interpretação? Muito, diria o blasfemo. O dualismo entre poderoso e cristão é traduzido na tensão entre presente e futuro, replicaria o prático.

Para resolver a disputa, convoca-se mais um jesuíta, Francesco Occhetta, autor do prefácio do ensaio de Cullmann que diz que «Certamente, para um cristão, o Estado está no céu, mas o terrestre também é bom, mesmo que seja um Estado pagão, desde que as suas tarefas permaneçam dentro dos limites atribuídos pela vontade divina».

7 Ago 2025

Aí estão eles

Portugal está a ferro e fogo há mais de uma semana. Aí estão eles, os fogos. Os fogos da inoperância, da demagogia, do desleixo, da incompetência, do altruísmo, da corrupção, dos incendiários criminosos, dos madeireiros interesseiros e da legislação absurda. Arouca, Ponte da Barca, Gondomar, Nisa, Santarém, Penafiel, Castelo de Paiva, Cinfães e dezenas de aldeias são o palco das chamas descontroladas, do desespero de populações, de casas a arder, de animais a morrer, de bombeiros heróicos exaustos, de aeronaves que caem, de moradores a tentar apagar chamas com mais de 10 metros de altura com uns baldes ou umas pás. São 131 Concelhos em risco máximo. A área ardida já é o triplo de 2024. Já foram detidos pelo excelente trabalho da Polícia Judiciária cerca de 30 suspeitos de fogo posto. A maioria das vezes pagos por madeireiros a quem interessa madeira queimada para vender rapidamente e obterem rendimentos destes crimes. Numa noite, viu-se um carro passar junto a uma floresta, passados cinco minutos deu-se início a um fogo enorme que ainda lavra na zona de Ponte da Barca. Os fogos são iniciados por incendiários criminosos, que na maior parte das vezes os tribunais mandam em liberdade.

Mantivemos contacto com um prestigiado geólogo que nos disse que existe uma legislação absurda, no que respeita à limpeza dos terrenos ao redor das casas. Legislação que obriga a limpar uma área circundante das casas com 50 metros. O geólogo explicou que 30 metros seria o suficiente e que a obrigação de limpeza de 50 metros é caríssima para pessoas que vivem do pouco que têm. Resultado: pouca gente limpa os terrenos e o combustível ali está à espera dos incendiários. O mesmo geólogo salientou-nos que o terreno em Portugal contém uma quantidade de biomassa que levará a termos incêndios durante mais uma década, no mínimo. O Governo apareceu com uma nova ministra da Administração Interna que pode saber de coser meias, mas de incêndios é um zero à direita. Nem sequer abordou o problema enorme de continuar adiada a compra de novos helicópteros que tanta falta fazem.

Este ano, à semelhança de outros anos, já tivemos bombeiros feridos, aldeias evacuadas, idosos, mulheres e crianças a dormir no chão em pavilhões polidesportivos, aeronaves a cair e várias casas ardidas. A propósito de casas, uma crítica contundente para os emigrantes que constroem vivendas de três pisos, gastando centenas de milhares de euros, no meio da floresta e depois querem os bombeiros em todo o lado onde as chamas colocam em perigo essas vivendas. A situação é trágica para milhares de portugueses, mas todos os anos é a mesma coisa: permitem a plantação de eucaliptos e pinheiros em todo o lado, quando deveria existir um planeamento global com terrenos apropriados à plantação ordenada de pinheiros, carvalhos, eucaliptos, sobreiros e outras árvores. A falta do referido ordenamento geológico e demográfico leva à desgraça a que assistimos. No sábado passado, dia em que vos escrevi estas palavras, já mais de 20 moradores tinham ido para o hospital e 10 bombeiros receberam tratamento hospitalar. Há mais de uma década que ouvimos dizer que tem de se fazer qualquer coisa. Obviamente que há soluções, mas a maioria dos projectos fica nas gavetas governamentais. E como ninguém o refere, nós salientamos a acção arriscada e profissional dos jornalistas repórteres que têm arriscado a vida de dia e noite a uma temperatura que tem rondado os 45 graus, fugindo das chamas, a dormir e a comer deficientemente. Deixo-vos imagens contundentes deste drama que Portugal está a viver com mais um cenário global de incêndios.

4 Ago 2025

O Papa Americano (I)

“The bishop is not supposed to be a little prince sitting in his kingdom, but rather called authentically to be humble, to be close to the people he serves.”
Pope Leo XIV

Leão XIV encarna a dupla crise da América e da Igreja Católica. Versão contemporânea da antiga tensão entre o império e o papado. Sujeitos incomparáveis por natureza que, por constituição, se excluem mutuamente. Nascidos para redimir o mundo de acordo com os seus princípios. Com a arma do poder em todas as suas dimensões expressas hoje na Terra, depois de amanhã talvez noutros planetas, a América. Com a intenção de converter a humanidade à presença do Reino de Deus encarnado em Cristo, a Igreja de Roma, mediadora entre o Céu e a Terra. Missões impossíveis, mas indispensáveis. Está em jogo a própria identidade. A vida. Cada uma, no seu plano, vive e sofre do crisma original do Ocidente, ao qual ambas se referem de forma diferente; o universalismo. Parte que se sonha inteira.
Sonho que se transforma em pesadelo para os Estados Unidos, que temem morrer globalizados por terem ousado americanizar o mundo. Pelo contrário, a Igreja que, com Francisco, esboçou a saída para as periferias constata que as ovelhas não são muito atraídas pelo pastor, muitas vezes fogem dele. Especialmente no seu núcleo de origem, europeu e ocidental. E se a Igreja desaparecesse de si mesma? Cabe ao novo papa, veremos se mais híbrido ou americano, estabelecer em concílio sinodal a trajetória do povo de Deus. Cabe à sua pátria natal discernir se e como aproveitar a sua esteira para se curar. O clima actual informa-nos que Washington e Roma não seguirão caminhos paralelos, muito menos solidários, para curar a doença que parece assimilá-las. A instituição temporal dotada de religião civil, o “American way of life”, opta com Trump por uma dieta geopolítica de emagrecimento de nada de grandes e comprometedoras aventuras no vasto mundo, fortificação do reduto americano em expansão ártica.
Fiel à tradição ocidental desfigurada pelos iluministas, positivistas e comunistas. A outra, de inspiração celestial e inculturação variada nos territórios de missão marcados pelas dioceses, herança tardo-romana, não tem casca em que se retrair sem se desfigurar. A abertura à ecúmene é a sua razão de ser. A ser modulada de acordo com uma geopolítica eclesiástica sempre actualizada. Nunca se submetendo ao “Número Um” do momento. Se Trump, entusiasmado com a tomada americana do Vaticano com o advento de Leão XIV, conta com um catolicismo pós-franciscano disposto a oferecer um suplemento de alma ao seu magistério rude e imprevisível, está enganado. Como se ilude o alto clero da Santa Igreja quando confia ter arrancado um bilhete premiado ao escolher um sucessor americano para Pedro. A oferta da Papal Foundation e de outros patrocinadores prometidos do outro lado do Atlântico «tem condições», tem restrições rigorosas, como informam «doadores» em equilíbrio entre Deus e Mamona.
É claro que, antes de se encerrarem na Capela Sistina, os cardeais passaram muito tempo a discernir as consequências financeiras da inspiração que o Espírito Santo lhes teria concedido, o que, parafraseando o jargão eclesiástico, é uma revelação. A sede vacante não é tempo de virtudes teologais, mas sim cardinais. Como observou em 1997, com ironia curial, o cardeal Joseph Ratzinger a quem lhe perguntou se o papa era eleito por escrutínio divino afirmou «Eu não diria isso, no sentido de que é o Espírito Santo que o escolhe. Diria que o Espírito Santo não assume exactamente o controlo da questão, mas sim, como bom educador que é, deixa-nos muito espaço e liberdade, sem nos abandonar completamente. Assim, o papel do Espírito Santo deve ser entendido num sentido muito mais elástico, não que dite o candidato em quem se deve votar. Provavelmente, a única certeza que oferece é que o facto não pode ser totalmente arruinado. Há demasiados exemplos de papas que, evidentemente, o Espírito Santo não teria escolhido». Não sabemos se o acaso, a necessidade ou a Providência impuseram Robert Francis Prevost no trono de Pedro precisamente na encruzilhada entre as duas (suas) crises.
Certamente é um sinal dos tempos. Vulgarmente representado na selfie artificial divulgada pela Casa Branca, com a qual, na véspera do conclave, o pseudo-Trump disfarçado de papa invadiu a esfera mediática. Quase como para santificar a comunhão entre a Quarta e a Primeira Roma, em ordem hierárquica. Faltava apenas que o pontífice cesariano se dividisse em dois para se dar a unção real. Ironia do conto, pois na fotomontagem, o papa Trump veste-se totalmente de branco, como Francisco. Talvez também por isso, ao ostentar-se urbi et orbi, Leone enriqueceu a batina branca com os símbolos clássicos do pontificado. Mas um grão de verdade expõe essa imagem blasfema. Há muito de eclesiástico na autoconsciência da América. Da mesma forma, há muito de imperial na história da Igreja.
Os Estados Unidos nascem e crescem como uma religião autocentrada em peculiares declinações cristãs. Independentemente da seita ou confissão a que pertençam, os americanos vivem versões estreladas e listradas. Católicos incluídos. Os catolicismos americanos, bastante mundanos, mais conscientes e conflituosos do que nunca, ocupam espaços distintos no rebanho do pastor de Roma. Com e contra as ramificações protestantes predominantes, estabelecidas ou neo-evangélicas, professam o Credo Americano. Religião celebrada na sua época áurea pela nação-Igreja autodenominada ápice da humanidade. Farol da Liberdade, portanto, universal. Autocéfala e ao mesmo tempo católica no sentido etimológico e, portanto, ecuménico da palavra. Como consequência de tantas contradições formidáveis, a crise de identidade da superpotência mundana é ao mesmo tempo própria e mundial.
A Santa Sé, grandioso repositório de cultura e fé, expressão geopolítica da Igreja de Roma e seu órgão supremo de governo no Estado da Cidade do Vaticano, em plena Urbe, nasce, vive e confronta-se com o imperium sine fine em todas as suas ramificações. Os túmulos romanos de Pedro e Paulo, primeiros impulsionadores da evangelização, confirmam a potentior principalitas, a autoridade preeminente do caput mundi em relação aos veneráveis patriarcados originais de Antioquia, Alexandria, Éfeso, Corinto e Tessalónica. A religião dos apóstolos germina sob Tibério na Palestina, expande-se na pars occidentalis da Primeira Roma, delimitada pela instável bipartição estipulada em Brindisi entre António e Otávio quarenta anos antes de Cristo, sanção da heterogeneidade permanente entre Oriente e Ocidente. Depois, baptiza com Constantino a Segunda Roma, ideal-tipo da metrópole de fundação totalmente cristã. Há um milénio que disputa com a ortodoxia da Terceira Roma, coração do império moscovita que se exibe cristão, na utopia de ser reconhecido como terceiro pulmão do Ocidente, com a Europa e a América.
E há oitenta anos convive com a primazia terrena da Quarta Roma, eleita por puríssimos pais peregrinos anglo-irlandeses e erigida por ex-colonos britânicos apaixonados pela tradição helenístico-romana, de modo a corresponder em código através de pseudónimos latinos. A Ecclesia permixta descrita por Santo Agostinho, referência de eleição do papa Prevost, onde se misturam trigo e joio, fertilidade e esterilidade, amor e inveja, descobre-se ferida. Os cismas líquidos que a corroem tendem a coagular. A prioridade do pontificado é a costura das rupturas que dilaceram o corpo da Igreja. Sem renegar Francisco, fechar algumas das brechas por ele abertas, distinguindo aquelas que merecem ser preenchidas das perigosas ou precárias, descartáveis. À espera que os posthumos releiam o seu papado, captando alguns traços proféticos demasiado incoerentes com a realidade, não só eclesial, para poder já agir.
Hoje ressoa o aviso de Bento, mestre do agostinianismo, sobre a necessidade de proteger a missão ad extra do excessivo optimismo sobre a fé como «pressuposto óbvio da vida comum» afirmando que «Não podemos aceitar que o sal se torne insípido e que a luz seja mantida escondida». Mesmo que isso signifique que a Igreja se queira isolar de graça no mundo sem graça? O clero católico divide-se em três. Aqueles que privilegiam a missão, aqueles que privilegiam a instituição e aqueles que navegam entre as duas correntes. A pedra de toque continua a ser o Concílio Vaticano II. Para os primeiros, deve ser desenvolvida a abertura missionária ao povo de Deus, ou seja, à Igreja propriamente dita, juntamente com o impulso ecuménico. Para os segundos, prevalece a defesa da tradição contra a submissão aos sinais dos tempos, que pode induzir à heresia. Sair ad gentes, portanto, contaminar-se para evangelizar, ou entrincheirar-se em nome da fé «pura»?
Na história, o carisma do papa inclina o barco de Pedro para um lado ou para o outro. Hoje muito mais do que ontem, com o pontífice superstar, enquanto o seu povo parece contrair-se, em crise de caridade interna e de atracção externa. Na vulgata, Francisco é considerado um campeão irregular da Igreja em saída, pela história, doutrina e carácter. Pastor por excelência. Ou em excesso, para os críticos. Bento XVI, seu predecessor traumatizado pelo peso do múnus petrino, é o epónimo do fidei defensor. Teólogo perspicaz. Herr Professor raro do seminário. Claustrofóbico. Simplificações questionáveis, mas poderosas. Leão XIV nem um nem outro. Pelo menos nas intenções de muitos dos seus eleitores. Convertam-se a ele a partir das margens opostas, conscientes das cisões latentes ou já efectivas que estão a fragmentar o arquipélago eclesiástico em ilhas e ilhotas autocentradas. Católicos diferentes. Certamente não romanos. A biografia e algumas palavras do papa americano exaltam a sua vocação pastoral, a proximidade com os humildes. Gestos pontifícios e outras palavras marcam a recuperação de símbolos e liturgias tradicionais. Com uma metáfora política que outrora nos teria colocado no Índice dos Livros Proibidos, poderíamos ver em Prevost um democrata cristão renascido, ancorado no centro, olha para a esquerda enquanto toma cuidado para não ter muitos inimigos à direita. Ou vice-versa. «Pedro, adelante con juicio» expressão da novela “Os noivos” utilizada para pedir a alguém que proceda con precaução e discernimento em uma situação difícil ou complicada.
Leão XIV deve governar a Igreja em missão. Fixar o rumo, manter o leme direito, revitalizar a Cúria e reconectá-la às periferias eclesiais, muitas vezes indiferentes, se não adversas, à cátedra de Pedro. Para manter o mundo à beira do abismo de guerras sem fim. Os princípios da Igreja confiaram a este monarca tranquilo e decidido a tarefa de curar as feridas que sangram o rebanho de Cristo. Para que o fim do catolicismo não antecipe o fim do mundo. Talvez seja tarde, talvez não. Certamente é uma tarefa que Leão XIV poderá iniciar, mas não consolidar. A doença está demasiado disseminada, há muito tempo, para ceder a terapias milagrosas. Passou quase meio século desde o desaparecimento do último pontífice vocacionado (não só) para o governo da Igreja que foi Paulo VI (1963-1978). Os quatro sucessores não quiseram ou não puderam dedicar-se à máquina de Pedro. João Paulo I (1978) por falta de tempo e de firmeza, João Paulo II (1978-2005) por excesso de personalidade, Bento XVI (2005-2013, falecido em 2022) por comovente inaptidão, Francisco (2013-2025) porque queria «fazer barulho» («hagan lío!») para poupar o seu rebanho da morte por asfixia clerical.
Papas conservadores e/ou revolucionários, inadequados e/ou relutantes em reformar na continuidade. A decomposição do tecido católico e a desculturação da sua classe dirigente são tais que excluem um Vaticano III. A menos que se aspire a uma implosão libertadora, para recomeçar a partir de micropatriarcados autocefálicos, nacionais ou subnacionais, de tom neo-ortodoxo. Mais facilmente, a partir de seitas espiritualistas emotivas de cunho neo-evangélico, fiéis a Mamona. Para compreender o desafio do Papa Prevost, convém partir daqui. Está em jogo o sentido da Igreja. Tanto espiritual como terreno. Nunca existiu nem poderá existir um cristianismo separado da realidade do mundo. A Santa Igreja Romana foi e continua a ser, apesar de ferida, um formidável sujeito geopolítico que desenhou a história universal.
Há dois mil anos, católicos e outros cristãos vislumbram nela vários sinais e cores. Retiram dela lições diferentes. Doutrinárias, pastorais e geopolíticas. Para muitos, confirmação da fé em Cristo. Para menos, mas influentes, anúncio do apocalipse iminente. Aos estudiosos da geopolítica, resta a obrigação de estudar a visão e a acção da Santa Sé no cenário da história, cruzando no sentido próprio e figurado o factor humano e a especificidade religiosa. Elegemos como Carta Magna do modo cristão de estar no mundo o misterioso “Carta a Diogneto”, manuscrito grego anónimo do século II-III encontrado em 1436 em Constantinopla por um clérigo latino.

4 Ago 2025

O Papa Americano (II)

“Let us disarm words and we will help to disarm the world.”

Pope Leo XIV

A Carta a Diogneto foi preservada em um manuscrito medieval. Destruída em 24 de Agosto de 1870 pela artilharia prussiana no bombardeio da biblioteca de Estrasburgo, mas preservado para a posteridade em três cópias do século XVI. Entre pergaminho, Constantino e ofensa bélica, haveria motivos para gritar milagre e catalogá-la entre as relíquias sagradas. Não tendo autoridade para tal, é de limitar a evocar o fundo deste autorretrato de grupo pintado por um seguidor de Jesus para uso do pagão Diogneto. Prolegómeno a toda geopolítica cristã. Em análise trinitária. Primeiro, «Os cristãos representam no mundo o que a alma é no corpo». Segundo, «Habitam cada um na sua pátria, mas como se fossem estrangeiros; respeitam e cumprem todos os deveres dos cidadãos e assumem todos os encargos como se fossem estrangeiros; cada região estrangeira é a sua pátria, mas cada pátria é para eles terra estrangeira». Terceiro, «São como peregrinos que viajam entre coisas corruptíveis, mas esperam a incorruptibilidade celestial». Pode-se imaginar algo mais actual?

Mais subversivo do que o ordo amoris evocado pro patria sua por J.D. Vance na qualidade de vigário do bispo de Mar-a-Lago, que suscitou reprovação no moribundo Francisco e na então eminência Prevost? Um fio misterioso liga o desconhecido escriba paleocristão às correntes de disputa em torno da missão evangelizadora. É de desenvolver para historicizar a essência antropológica e social do homo catholicus ao longo de três pistas paralelas e entrecruzadas como milagres da geometria divina no sentido e forma da Igreja; a sua relação com o poder político e a sua raiz euro-ocidental. Três maneiras de compreender a crise da empresa cofundada pelos santos Pedro e Paulo nos seus dois mil anos de história. Temos assim uma ideia do que está em jogo hoje. Sim, o barco está a afundar enquanto a orquestra toca maravilhosas melodias. Prevost é chamado a endireitá-lo. É verdade, «não é mais tempo do homem sozinho no comando». Mas sine papa nulla ecclesia. E sem Igreja, muitas seitas. Até mesmo satânicas.

O Vaticano, Capela Sistina, manhã de 9 de Março de 2013. Os senhores cardeais estão reunidos em pré-conclave para traçar o perfil do sucessor do papa Ratzinger. O arcebispo de Buenos Aires, Jorge Mario Bergoglio, faz um discurso improvisado fulminante de cinco minutos sobre o mistério da Lua. Alegoria destilada no início do século III na eclesiologia alexandrina, em torno do grande exegeta Orígenes (cerca de 183/6-254/5), que lê no tríptico astral Sol-Lua-Terra o nexo Deus-Igreja-Mundo. Para Bergoglio, é um manifesto da Igreja evangelizadora, imune às inclinações mundanas daqueles que a querem fechada em si, por si e para si. Ousando brilhar com luz própria. Não reflectida pelo Sol/Deus para iluminar a sua missão terrena. Narcisismo teológico ao dizer «Às vezes penso que Jesus bate por dentro, porque o deixamos sair. A Igreja autorreferencial pretende manter Jesus dentro de si e não o deixa sair». A evocação lunar contribuirá para a convergência de grande parte dos cardeais em torno do candidato argentino, derrotado por Ratzinger no conclave de 2005, também graças ao apoio do confrade Cardeal jesuíta Carlo Martini que denunciará o atraso bicentenário da Igreja em relação ao mundo em favor do teólogo bávaro.

Atrito entre jesuítas. A imagem lunar fala da inspiração intelectual que o contacto com a tradição helenístico-romana inspira nos primeiros cristãos. O cristianismo primitivo é filosófico, depois dogmatizado na teologia. Baseia-se na tradição neoplatónica para procurar respostas aos seus paradoxos, como a presença do Mal no mundo criado por Deus ou a divindade de Cristo no contexto monoteísta estabelecido pelo judaísmo. O que teria sido o cristianismo, o que restaria dele sem tanta hibridação? «Filosofia verdadeira», para dizer com Justino (100-163/7), pai da Igreja. Pensamento que se torna poesia. Nos seus símbolos alegóricos reconhecem-se os mártires, testemunhas de uma fé ilícita. Ateus, para os pagãos. Daí a inculturação entre cristãos e seguidores do panteão greco-romano afiliados ao culto, não ao dogma. Entre eles destacam-se os adoradores do Sol Invictus, do Helios querido pelo imperador Juliano (331-363), apóstata na tradição cristã.

No entanto, a sua mística solar «não era mais do que cristianismo disfarçado», observará Hugo Rahner, jesuíta a quem devemos uma profunda investigação na parábola do “Mysterium Lunae”. A sintonia cristã entre o Sol e a Lua é, de facto, influenciada pela desconstrução do culto solar helenístico-romano para o assimilar ao vínculo luminoso Deus-Igreja. Preparação para a Luz de Cristo. A encruzilhada entre teologia e missão versus autorreferencialidade dogmática que ainda divide o povo de Deus tem origem na apreciação da hibridização entre a prática cristã e os cultos pagãos, pois a cristianização de Helios e Selene é o ápice do sincretismo da era patrística. Diluição da verdadeira fé, pródromo da heresia, segundo os puristas que contraem o cristianismo em doutrina imune ao tempo.

Tese à iteração do dogma, à recitação febril do Credo. Enriquecimento da comunidade cristã para aqueles que, em vez disso, se deixam fertilizar «de fora». Rahner dizia que «O cristianismo nunca se apresentou como pura e simples doutrina». Foi capaz de realizar com perfeita segurança de si o gesto de se apropriar de tudo o que era verdadeiro e bom que tinha sido adquirido pelo espírito grego, e que lhe pertencia originalmente como propriedade, mesmo que ninguém o soubesse». De Orígenes ao futuro Francisco, o “Mysterium Lunae” percorre sub-repticiamente os séculos do papado. Os seus raios incidem tanto na teologia como na própria estrutura da Igreja. Em pleno século XIX, século do Sillabo e do Vaticano I, ápice do isolamento doutrinário e geopolítico do papado dentro das Muralhas Leoninas a exegese pregada no século XX por jesuítas como os irmãos Hugo e Karl Rahner ou Henri de Lubac é antecipada por John Newman, antigo anglicano e depois cardeal da Santa Igreja Romana, para quem «o que os pagãos disseram de verdadeiro, a Igreja fez seu».

24 Jul 2025

A porta das estrelas (III)

“Beginning immediately, Stargate will be building the physical and virtual infrastructure to power the next generation of advancements in AI, and this will include the construction of colossal data centers.”

Donald Trump

Para Elon, a IA é, pelo contrário, uma ameaça existencial a ser controlada e contida, para evitar que o seu poder se liberte e aniquile a consciência humana. Em suma, o que para Trump é a porta das estrelas, para Musk é o caminho para o inferno nem mesmo muito pavimentado com boas intenções. Altman sabe, e por isso toca nas cordas certas.

E coloca Elon «o empresário mais inspirador da nossa época», segundo a definição do chefe da OpenAi diante de uma escolha, a de seguir as regras do jogo escritas pelo magnata, contentando-se assim em ser um dos muitos nomes escritos no seu Manual Cencelli, ou largar tudo e perseguir sonhos de “palingenesia universal”. Não existe terceira opção. Mas os pontos de tensão entre o fundador da SpaceX e os homens da Stargate não terminam aqui. Musk também não gostou da piada de Trump sobre Larry Ellison e o TikTok. Questionado sobre a possibilidade de uma compra do aplicativo chinês pelo empresário, o presidente americano inicialmente evitou responder. Mas depois respondeu que também não se importaria se a Oracle o comprasse afirmando que « Também gostaria que Larry o comprasse».

O caso TikTok, que sofreu uma aceleração nos últimos meses, pode, portanto, constituir mais um elemento de atrito entre Musk e os homens da Stargate. Depois de evitar o encerramento da aplicação, prolongando a sua vida útil por setenta e cinco dias, Trump lançou a sua proposta. Cinquenta por cento da rede social chinesa deve acabar nas mãos americanas. Em relação a 2020, quando a intenção parecia realmente banir a «aplicação chinesa», o presidente mudou de posição.

O mérito também é da sua neta Kai que, como habilidosa golfista e criadora de conteúdos, fez com que o TikTok entrasse «no coração» do presidente, que acredita que a aplicação foi fundamental juntamente com a sua frequência de podcasts, sugerida pelo jovem Barron para conquistar os votos dos jovens. Portanto, o presidente não gostaria de bani-la, mas sim incluí-la num acordo mais amplo com Pequim. Pena que Musk se antecipou. A notícia, aliás nunca comentada por Elon, de um possível interesse do fundador da SpaceX na compra do aplicativo foi fornecida à Bloomberg e ao Wall Street Journal por «autoridades chinesas» não especificadas.

Atenção, não se trata de personalidades ligadas à empresa chinesa ByteDance, que controla o TikTok e com quem Elon Musk continua a manter relações estreitas. Estas figuras definiam Musk como um «intermediário» perfeito, dando a entender que as duas partes em causa ou seja, a China e os Estados Unidos podiam confiar nele. E, olhando bem, o único tweet de Elon sobre o assunto parece mesmo uma abertura de negociação pois diz que «Nunca fui a favor da proibição do TikTok, mas não entendo porque pode operar nos Estados Unidos e o X não pode operar na China».

Elon tinha feito a sua proposta de que garante ao presidente o TikTok, mas troca, abrem o mercado chinês para o X. Foi nesse momento que Trump interveio, especificando que, pelo menos oficialmente, a venda do TikTok deve ser negociada com a ByteDance, e não com «autoridades chinesas» não sendo melhor especificado. E, acima de tudo, o presidente ressalta que o aplicativo também pode ser tranquilamente comprado por Larry Ellison, que, aliás, gerencia a nuvem do TikTok nos Estados Unidos por meio da Oracle e esteve muito perto de comprá-lo em 2019.

O que quer dizer «Elon, não precisamos de ti. Nem para a IA nem para o TikTok». Sic transit gloria mundi? Ainda não. Mas Musk está encurralado. E nos seus ouvidos ressoam tanto o dilema de Altman «Trump ou a humanidade» quanto o imperativo categórico de Masayoshi Son, conhecido como Masa «Isto não é apenas negócio». Em suma, é hora de colocar os Estados Unidos em primeiro lugar.

Independentemente de sonhos transplanetários, universalistas ou mais prosaicamente chineses. Trump fez a sua jogada, coroando-se «rei tecnológico» da América. Agora caberá aos grandes magnatas da tecnologia organizarem-se em conformidade. Se pretendem desafiar-se uns aos outros com inovação, tudo bem. Se Zuckerberg, apesar de excluído do Stargate, considera útil investir sessenta e cinco mil milhões em IA, muito bem. O presidente não vai prejudicar quem ficou de fora da porta das estrelas. Pelo contrário, como um verdadeiro soberano medieval, vai oferecer água, terra e desregulamentação. Mas as relações de vassalagem e o interesse nacional não devem ser questionados. Quem pensa em usar a política para perseguir exclusivamente os seus interesses, sejam marcianos ou chineses, está errado.

E quem acredita que a sua estrela pode brilhar mais do que a do presidente está muito enganado, porque o Donald está convencido de que «foi salvo por Deus para tornar a América grande novamente». Obviamente, não será fácil. As empresas tecnológicas que Trump está a tentar federar são simplesmente muito poderosas. E é sempre o senhor que depende do servo, especialmente se este último é capaz de produzir engenhocas tecnológicas capazes de levar a humanidade a Marte ou de superar a inteligência humana.

Stargate é, portanto, uma experiência social, antes de ser económica, tecnológica e geopolítica. Se os protagonistas da tecnologia americana ou seja, uma dezena de bilionários, todos com evidentes distúrbios comportamentais se mostrarem dispostos a colaborar entre si e com o governo, então o sonho americano poderá ser reprogramado. Se, pelo contrário, o caos e o rancor prevalecerem, a América morrerá, colapsando sobre si mesma. Exactamente como uma estrela.

10 Jul 2025

A porta das estrelas (II)

(Continuação da edição de 19 de Junho)

Obviamente, não é certo que Trump tenha sucesso nesta complicada tarefa de dividir para reinar. Entretanto, é perfeitamente possível que um desses actores desenvolva modelos de IA ou outras invenções tão poderosas que não possam ser ignoradas, obrigando o presidente a cooptá-lo em detrimento de outra pessoa, com todas as consequências que isso acarreta.

Um exemplo poderia ser a Microsoft, que em 2024 anunciou uma parceria com a Blackrock para fazer exactamente o que a Stargate deveria fazer, ou seja, lançar uma infra-estrutura física de IA. Já foram investidos trinta mil milhões e, este ano, serão adicionados outros oitenta mil milhões de dólares. Total são cento e dez mil milhões de dólares, dez a mais do que o portal das estrelas. Mas isso, para Trump, é um problema até certo ponto. Se as empresas competem para ganhar os seus favores e permanecem fiéis aos interesses americanos, tanto melhor. Os grandes nomes da tecnologia devem competir ferozmente entre si, produzindo inovação. Basta que não pensem que são mais importantes do que o presidente mesmo que talvez o sejam realmente.

Na sua monumental “Sociologia”, Georg Simmel distinguia entre competição existencial em que está em jogo a vida dos contendores e competição orientada para o resultado em que importa é a consecução do objectivo. Enquanto este tipo de concorrência prevalecer entre os magnatas da tecnologia americana, o Manual Cencelli ou como partilhar o poder criado por Trump funcionará. Mas se alguém se sentir existencialmente ameaçado por outra pessoa, a situação poderá explodir.

Estamos evidentemente em plena zona Elon Musk, campeão dos riscos existenciais. O fundador da SpaceX levou apenas algumas horas para reagir ao anúncio da Stargate. E, obviamente, fez no X, comentando secamente a publicação com a qual a OpenAi anunciava o nascimento do projecto afirmando que «Eles não têm dinheiro. A SoftBank tem menos de dez mil milhões de dólares, segundo fontes fidedignas». Ora, mesmo sem saber quais são as fontes fidedignas de Elon, os seus cálculos estão correctos. Se subtrairmos dos vinte e cinco mil milhões de dólares de liquidez que o fundo de Masa declarou no balanço de Setembro de 2024, os dezanove mil milhões de dólares que investirá na Stargate, restam cerca de seis mil milhões de dólares nas contas da SoftBank.

Mas, como vimos, o problema não é esse. E certamente não é essa a dificuldade de Elon. O fundador da SpaceX ficou de facto surpreendido com a jogada de Trump, que depois de o ter usado durante toda a campanha eleitoral como imagem pública, o fez desaparecer das cenas que importam com excepção da polémica que se seguiu à sua suposta saudação romana. Acima de tudo, porém, o ex-chefe da Doge (deixou o governo Trump e o seu cargo no Doge, o órgão encarregado de reduzir os gastos do governo dos Estados Unidos e reduzir empregos) não tolera que o projecto Stargate seja construído em torno da OpenAi, empresa que Musk fundou em 2015 sem fins lucrativos e que lhe foi roubada por Altman, acusado por Elon de querer ganhar dinheiro desenvolvendo uma Inteligência Artificial Geral (AGI) capaz de destruir a humanidade.

Em síntese clara de Musk, «A OpenAi é o mal». A situação é paradoxal. Trump, com quem Musk basicamente conviveu nos últimos três meses, despreza a IA de Elon e atribui a liderança operacional do maior projecto relacionado à IA da história americana àquele que, segundo o fundador da Tesla, não é simplesmente um concorrente, mas uma ameaça existencial à sobrevivência da humanidade. Consequência, um ex-representante do governo, como Musk, afirma publicamente que a Stargate é um projecto irrealista, incapaz de se financiar e liderado por pessoas malvadas prontas a «evocar o demónio da IA» para ganhar dinheiro.

Nessa loucura, o presidente teve que se apressar em declarar que Elon está apenas um pouco agitado porque no projecto «há uma pessoa que ele odeia» e que, de qualquer forma, não há nada com que se preocupar porque «eu também odeio algumas pessoas». A resposta de Altman a Musk, também publicada no X, foi quase imediata «O que é bom para o país nem sempre é bom para as suas empresas.

Mas espero que, no seu novo cargo, coloque sempre os Estados Unidos em primeiro lugar». O chefe da OpenAi demonstra conhecer Elon muito bem, porque acerta exactamente no ponto em que a América de Trump e o império de Musk podem tomar caminhos diferentes.

Para o presidente, o governo deve apostar no desenvolvimento da IA sem qualquer tipo de preocupação ética, filosófica ou ambiental, porque o objectivo é tornar a América grande novamente ou, pelo menos, garantir que continue maior do que a China.

26 Jun 2025

A porta das estrelas (II)

“The increase of artificial intelligence mega sites or mega cities will increase the Earth’s temperature by 2° because of the need for the energy input for AI to function. If that’s true then we have already gone beyond the danger point.”

George Lowells

No entanto, para compreender a viabilidade da operação e os seus impactos, é necessário proceder a duas ordens de considerações. Do ponto de vista financeiro, começam a surgir algumas dúvidas. Neste momento, a SoftBank e a OpenAi parecem estar dispostas a investir dezanove mil milhões de dólares cada uma no projecto, com o apoio de sete mil milhões de dólares da Oracle e outros tantos da MGX.

No total, estamos a falar de cinquenta e dois mil milhões de dólares, ou seja, pouco mais de metade do que foi anunciado. Altman e Masa não podem fazer muito mais. O modelo de negócio da OpenAi, que prevê basicamente reinvestir tudo, impede a empresa-mãe da ChatGpt de ter enormes reservas de liquidez para investir no projecto. Da mesma forma, de acordo com o balanço de Setembro de 2024, o fluxo de caixa da SoftBank ascende a «apenas» vinte e cinco mil milhões de dólares, insuficiente para atingir a quota fixada. Estes problemas existem, mas são de alguma forma solucionáveis.

Em primeiro lugar, a nova joint venture legitimada pelo presidente não terá problemas em recorrer ao crédito. E, de qualquer forma, a porta para novos investimentos por parte de um número limitado de parceiros permanece aberta, especialmente numa fase em que Trump prometeu empenhar-se em estimulá-los, simplificando o processo burocrático e livrando-se das regulamentações de Biden. Mas a questão mais problemática diz respeito aos equilíbrios internos do mundo tecnológico americano e à forma como o presidente pretende regular, obviamente de maneira informal, as relações entre os grandes actores do sector. A porta das estrelas parece, de facto, ter sido feita à medida da OpenAi. O objectivo de Altman, há alguns meses, era garantir um acesso mais simples e imediato aos dados, à capacidade de computação e à infra-estrutura física necessária para treinar os seus modelos de IA.

A Stargate responde a todos esses problemas, já que a OpenAi agora pode contar com a nuvem da Oracle (e não apenas da Microsoft), com os investimentos em capacidade de computação da joint venture e com os colossais centros de dados que serão construídos. Como disse uma fonte anónima ao Financial Times «A intenção da Stargate não é fornecer centros de dados ao mundo.

Tudo gira em torno da OpenAI». Além disso, ainda ao nível do hardware, a presença da ARM na joint venture sinaliza a vontade de Masa de oferecer à empresa especializada em chips IA, da qual é o principal investidor, um ecossistema no qual crescer. No momento, a ARM ocupa-se principalmente do design de chips, mas o plano de Masa é integrá-la com a Taiwan Semiconductor Manufacturing Company (TSMC) com a qual tem excelentes relações para criar uma alternativa à Nvidia. Para fazer isso, obviamente, é preciso muito dinheiro. No momento, a SofBank não tem esse dinheiro mas a Stargate também serve para isso, especialmente se o projecto pegar e a Nvidia tiver problemas para entregar as placas gráficas necessárias.

Os laços entre Masa e Altman são estreitos, porque ambos partilham o mesmo problema na cadeia de valor da IA, ou seja, o «gargalo» constituído pela empresa de Jensen Huang e a sua posição essencialmente monopolista. E as duas estrelas da Stargate têm excelentes argumentos para convencer Donald Trump da necessidade de investir numa empresa capaz de competir com a Nvidia, dado que, em 2024, Jensen fez negócios com a China no valor de cerca de dez mil milhões de dólares.

Não é só negócio. Mas, apesar da advertência chinesa, a escolha de Trump de confiar em Masa e Altman oferecendo-lhes vantagens industriais evidentes não é politicamente neutra. No entanto, tem uma lógica, que podemos compreender se alargarmos o nosso olhar e tentarmos entender como o presidente está a distribuir encargos e honras dentro do mundo tecnológico americano. Premissa, tal como salientado por Trump no seu discurso de tomada de posse, os dois sectores que receberão mais atenção da política tecnológica da sua administração são o Espaço e a IA.

E, observando os primeiros movimentos do presidente, salta imediatamente à vista que nenhum actor que lida com questões espaciais recebeu um papel na Stargate. Musk, que desenvolveu um modelo de IA chamado Inteligência Artificial Explicável (XAI), ficou de fora. Mesmo Bezos que com a Amazon Web Services (AWS) que é um dos principais fornecedores deste serviço não foi considerado. O mesmo vale para quem possui redes sociais e, portanto, é capaz de influenciar a opinião pública. Para Elon, vale o que foi dito anteriormente, enquanto Zuckerberg é mais incentivado a transformar o Meta em um super aplicativo como o WeChat, obviamente sem moderação de conteúdo.

A PayPal Mafia continuará a traficar IA no que diz respeito a questões relacionadas com a defesa, mas permanecerá fora das dinâmicas da Stargate embora continue potencialmente a investir na OpenAi, como fez Peter Thiel através do seu fundo de investimento (Founders Fund) em 2023. O objectivo de Trump é, em suma, evidente. Atribuir a cada actor tecnológico um ou mais nichos, evitando, porém, que surja uma figura dominante capaz de exercer poder em demasiados sectores estratégicos (IA, redes sociais, espaço).

(Continua)

19 Jun 2025

A porta das estrelas (I)

(Continuação da edição de 5 de Junho)

Para entender o projecto de Trump, é essencial assistir ao vídeo de apresentação do Stargate. O magnata começa a falar quase em burocratês, afirmando que o objectivo do projecto é construir «a infra-estrutura física e virtual para fortalecer a próxima geração de inteligências artificiais». Depois, faz uma pausa, respira fundo e prossegue com a afirmação fatal de que «Para isso, construiremos centros de dados colossais». Esta passagem, se o magnata tivesse optado por publicá-la no “Truth Social” em vez de anunciá-la em transmissão mundial, teria certamente sido escrita em letras maiúsculas trumpianas «CONSTRUIREMOS CENTROS DE DADOS COLOSSAIS».

A porta das estrelas, em suma, é algo muito terreno. Não se trata de escrever algumas linhas de software, mas de construir enormes galpões industriais onde armazenar uma quantidade gigantesca de dados, necessários para treinar as IAs a igualar e talvez superar a inteligência humana. Trata-se de desviar cursos de água inteiros para arrefecer as máquinas, dado o incrível consumo energético dessas infra-estruturas. A IA consome muita energia e certamente não é «verde». Trump percebeu isso e, portanto, o slogan da campanha Republicana de 2008 «drill, baby, drill!» também se adapta ao desenvolvimento da IA. Não é crueldade ou desinteresse em relação ao destino ecológico do planeta. É puro princípio de realidade. Típico, antes do presidente, do empresário. Porque Altman pode contratar todos os melhores engenheiros informáticos do mundo e recolher todos os dados que quiser, mas sem as GPUs de Jensen e a terra de Donald ChatGpt pode ser, no máximo, uma calculadora brilhante.

Numa entrevista recente, Jake Sullivan, ex-Conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos explicou que agora o Estado já não consegue exercer um controlo real sobre o desenvolvimento tecnológico, especialmente quando se trata de IA. É assim mesmo. Regular a OpenAi e empresas semelhantes é impossível. A inovação é muito rápida e não pode ser abrandada sem criar ameaças à segurança nacional. No entanto, como a IA não existe na natureza, mas tem de ser produzida, raciocina Trump, se eu quiser exercer poder neste processo, um poder, não uma governação ao estilo europeu que equivale a suicídio industrial, tenho de me inserir nas cadeias de valor. Como fazer isso? Às vezes, as soluções mais banais são também as mais eficazes. Certamente, o Estado não pode competir com Altman em software, com Jensen em hardware ou com Ellison e a Microsoft na nuvem. Mas continua a ser o único sujeito que possui o solo, sobre a qual exerce o monopólio da violência legítima e sobre a qual pode conceder autorização para «CONSTRUIR CENTROS DE DADOS COLOSSAIS».

Só o Estado pode decidir desviar cursos de água para direccioná-los para as instalações de refrigeração e fornecer aos centros de dados a energia necessária para alimentar a capacidade de computação. Nem as GPUs de Jensen, nem o software da OpenAI, nem a nuvem da Oracle o podem fazer. Neste mundo, só Donald Trump o pode fazer. Em termos económicos, trata-se de ocupar um ponto de estrangulamento numa cadeia de valor.

No momento, o presidente e os três mosqueteiros da Stargate (Ellison, Masa e Altman) estão alinhados. Portanto, o magnata promete uma enxurrada de ordens executivas e declarações de emergência para garantir o abastecimento de água e energia necessários para alimentar os colossais centros de dados que agora fazem parte da paisagem americana. No entanto, ao fazer isso, Trump também pretende sinalizar aos seus companheiros de viagem que a porta das estrelas ainda depende do Estado, pelo menos até que nas palavras de Max Weber «o último quintal de combustível fóssil seja queimado».

Perfurem. Assim e resumindo, através do Stargate, Trump pretende consolidar a primazia em IA em relação à China e manter alguma forma de controlo sobre a inovação. A responsabilidade financeira da operação ou seja, a tarefa de encontrar os cem mil milhões de dólares para começar e depois quintuplicá-los cabe ao SoftBank, enquanto a responsabilidade operacional é da OpenAi.

A Oracle disponibilizará as nuvens e a Nvidia as GPUs, enquanto ao governo cabe a tarefa de garantir o fornecimento de energia necessário para alimentar todo o processo. Stargate é, antes de mais nada, um projecto de infra-estrutura, que se concretiza na construção de centros de dados colossais e na futura criação de cem mil postos de trabalho. Como disse Trump no fórum de Davos, a porta das estrelas deve, de facto, ser inserida na estratégia industrial mais ampla do país, que consiste em «tornar os Estados Unidos uma superpotência industrial».

12 Jun 2025

A porta das estrelas (I)

“One must have chaos within oneself to give birth to a dancing star”

Friedrich Nietzsche

O projecto centrado na Inteligência Artificial (IA) anunciado por Trump redefine as hierarquias do Vale do Silício. E esclarece a natureza industrial da IA. Desde que venceu as eleições, Donald Trump passou muito tempo a discorrer sobre as estrelas. No início foi Musk, o famoso «astro nascente», por ocasião do primeiro discurso do magnata após a vitória eleitoral. Posteriormente, ainda ligado a Elon, foi a vez de Marte, a estrela vermelha e onde plantar a bandeira estrelada para actualizar o destino manifesto de um povo tão excepcional que precisa tornar-se transglobal. E então, como um raio em céu azul, chegou a hora do Stargate, a «porta das estrelas» com a qual Trump pretende relançar o sonho americano, ligando-o à inovação tecnológica e ao desenvolvimento da IA, com o objectivo concreto de preservar a liderança mundial.

Os Estados Unidos devem manter a superioridade tecnológica em relação à China que recentemente desenvolveu um modelo de IA (DeepSeek) capaz de alcançar resultados comparáveis aos do ChatGpt com hardware de nível inferior (segundo eles) e custos mais baixos porque só assim Washington poderá estabelecer com Pequim um «acordo» que é a nova palavra preferida de Trump a partir de uma posição de força. Stargate é um projecto potencialmente revolucionário. Trata-se de investir cem mil milhões de dólares imediatamente, destinados a quintuplicar, para acelerar o desenvolvimento da nova geração de inteligências artificiais, integrando a cadeia de produção material (centros de dados e chips) com a imaterial (gestão informática da nuvem e escrita de algoritmos). Para o fazer, Trump confia naqueles elementos do mundo tecnológico que, até ontem, estavam longe dos holofotes.

E sanciona o fim daqueles que, dentro do Estado, estavam ocupados exactamente com essas questões. Em resumo, a “PayPal Mafia” nas suas correntes thielista e muskiana ficará de fora da porta das estrelas, ocupando a antecâmara na companhia de Eric Schmidt, ex-chefe democrata do Google que preside à (caríssima) Comissão de Segurança Nacional sobre IA, agora totalmente vazia de sentido. A decisão de Trump é clara. Como um novo Adam Smith, o magnata propõe uma divisão do trabalho necessária para que nenhum dos grandes homens do sector tecnológico consiga acumular demasiado poder. Não existem estrelas tão brilhantes que possam ofuscar a do presidente, que aplica o mais clássico dos divide et impera. Será que vai funcionar? Para entender, temos que atravessar a porta das estrelas. Quando, no dia 21 de Janeiro passado, Trump apareceu na Casa Branca para anunciar o lançamento do Stargate, havia três pessoas com ele.

Menos conhecidas do que Elon Musk, muitas vezes em desacordo com o fundador da Tesla e ansiosas por mostrar ao mundo como também podem ser úteis ao magnata. Depois do presidente, o primeiro a falar foi Larry Ellison, co-fundador e Presidente Executivo da Oracle. A sua empresa trabalha com nuvem, ou seja, armazena quantidades imensas de dados para várias empresas tecnológicas. O empresário de oitenta anos, diante do presidente da sua idade, explica como a IA pode ser útil para a saúde. O seu discurso parece um anúncio publicitário. Mas cuidado com as aparências. Ellison teoriza o uso da IA para implementar um sistema de vigilância total, necessário para que «os cidadãos se comportem correctamente». O Presidente da Oracle é o único que não tem formalmente um papel na organização da Stargate, mas Trump apresentou-o como «CEO de tudo» e também deixou claro que ficaria feliz se comprassem o TikTok.

Trump e Ellison são da mesma geração, ambos são nova-iorquinos e conhecem-se há muito tempo. Provavelmente entendem-se muito bem. Em seguida, interveio Masayoshi Son, conhecido como Masa. Ele é o fundador, director representante, executivo corporativo, presidente do conselho e CEO do SoftBank Group (SBG), um grupo japonês de capital de risco, e será o responsável financeiro da Stargate. A tarefa de levar a capitalização da porta das estrelas a quinhentos mil milhões de dólares é, antes de tudo, sua. Mas, acima de tudo, como bom japonês, Masa sabe que o projecto nasceu com uma função antichinesa de que «Isto não é apenas negócio», fazendo questão de especificar. Trata-se de desenvolver a IA para não perder a corrida pela inovação com a China. E talvez também criar um recipiente para promover o desenvolvimento da Arm, a empresa inglesa que comercializa chips de IA e que figura como o carro-chefe dos investimentos da SoftBank. Por último, mas não menos importante, Sam Altman.

Em Novembro de 2023, após o caso que abalou os alicerces da OpenAI devido à sua demissão (posteriormente retirada), o Estado entrou na sua empresa. Informalmente. Mas a presença de uma figura como Larry Summers, ex-secretário do Tesouro e muito ligado aos aparelhos de segurança nacional no conselho da empresa-mãe da ChatGpt mostra claramente como o governo queria ter conhecimento das suas dinâmicas internas.

Hoje, pouco mais de um ano depois, é Altman que se liga ao Estado. O fundador da OpenAi desempenhará, de facto, o papel de responsável operacional da Stargate. E já obteve um resultado importante, uma vez que a Microsoft à qual a OpenAi está ligada por um contrato até 2030 concedeu à empresa de Altman a possibilidade de utilizar também os serviços em nuvem dos seus concorrentes para este projecto. Em particular, obviamente, os de Larry Ellison, CEO de tudo.

Aos principais actores juntam-se a própria Microsoft que disponibilizará a sua plataforma de nuvem (Azure) à Stargate e, obviamente, a Nvidia. Porque não existe IA sem GPUs (Unidades de Processamento Gráfico) para treinar os modelos de aprendizagem automática (machine learning). A Nvidia de Jensen Huang ainda é, de facto, praticamente monopolista no sector, embora o mercado esteja a expandir-se e seja cada vez mais difícil atender à procura. Por fim, o fundo dos Emirados Árabes Unidos (MGX) especializado em investimentos tecnológicos colaborará na gestão financeira da operação. E assim, quase como numa piada, a Stargate é, no final das contas, um recipiente no qual coexistirão um octogenário nascido no Bronx, um japonês de sessenta anos, um jovem guru da IA, a Microsoft, Jensen Huang com o seu casaco de couro e um fundo de Abu Dhabi.

A tarefa de Trump será coordenar essa massa humana heterogénea, unindo-a em torno de um objectivo estratégico que é desenvolver a IA para reprogramar o sonho americano e manter a China a uma distância segura. Tudo claro. Como proceder?

(Continua)

4 Jun 2025

A Grande América (IV)

(Continuação da edição de 22 de Maio)

Porque é que Putin não há-de ter mão livre para a Ucrânia? E quando ameaça arrancar a Gronelândia, de uma forma ou de outra, à Dinamarca atlântica (ou a si próprio), em termos que, teoricamente, poderiam desencadear um alívio para os prejudicados através do artigo 5.º do Tratado de Washington, não estará a enterrar a OTAN, o objectivo existencial da Rússia? E, ao mesmo tempo, marcar a vacuidade do Quadrilátero anti-chinês e alinhamentos similares, sempre destinados a ser revogáveis? Partamos do princípio de que não dispomos de nenhum documento parafraseado por Trump, Putin ou outro. Pelo contrário, estamos certos de que nunca poderíamos fazer melhor do que o escritor Leonardo Sciascia, uma vez que entre cavalheiros os entendimentos paramilitares são protocolados com um aperto de mão mesmo virtual.

Mas e se o fizéssemos? Teríamos um relatório do grande confronto com o seguinte teor. Título: “Para uma nova ordem do caos”. Parênteses atribuíveis ao Minuteman. Primeiro. Partilhamos um interesse comum em perpetuar a existência dos impérios uns dos outros, bem como dos (al) nossos próprios. (Sorrisos cúmplices.) Segundo. Notamos que uma guerra entre nós não teria vencedores. Todos perdedores. (Felicitações mútuas.)

Terceiro. Em comum, teremos amanhã um inimigo oculto que é agora o nosso trunfo supremo, a IA. Tememos que ela se apodere do nosso comando e nos elimine a todos, juntamente com o resto da humanidade. (As últimas cinco palavras parecem irreflectidas.) Quarto. Estabelecemos uma linha vermelha comum a ser estendida ao resto dos Estados e imposta, se necessário, pela força (aqui Putin lembra a Trump as cinco políticas de Roosevelt, suavemente) como proibir o desenvolvimento da IA para além do limiar que não nos permitiria controlá-la. (evoca Fausto, lendo da caverna na adolescência desgraçada. Os dedos de Trump batem com impaciência). Quinto e último. Qualquer alteração ao grande confronto requer a unanimidade. (Os três maiores líderes mundiais cruzam as seis mãos em aprovação fervorosa.) Aparentemente a limpar a mesa de conferências, o sortudo escriba encontrou cartas de jogar espalhadas representando a Ucrânia, Canadá, Gronelândia, Panamá, a Lua e Marte. Entre outras.

Os cartéis do México não ficam esquecidos pois são organizações criminosas muito poderosas, não só no seu próprio território, mas também em muitas outras partes do mundo, incluindo a Europa. O termo “cartel” foi utilizado pela primeira vez pelos procuradores da Florida no início dos anos de 1980, durante um processo contra o grupo colombiano de tráfico de droga de Medellín liderado por Pablo Escobar. Esta palavra tem por objectivo traduzir, simplificando, as relações entre grupos criminosos frequentemente em conflito. Faz parte de uma convivência organizada entre clãs, polícias, militares e políticos. Nas malhas desta rede bem oleada, florescem interesses poderosos que vão muito para além de um comprimido de fentanil ou de metanfetamina. Actualmente, as duas organizações mais poderosas são o cartel de Sinaloa e o cartel Jalisco Nueva Generación, que, para abreviar, utiliza o acrónimo (CJNG).

Estas estruturas criminosas transnacionais estão envolvidas na produção e no tráfico de droga, na compra e venda de armas, no branqueamento de capitais, no contrabando de migrantes, na exploração da prostituição e da corrupção e na extorsão. Não menos importante, o mercado negro do petróleo e dos combustíveis e de minerais como o ouro e a prata. Nos primeiros nove meses de 2022, a empresa estatal mexicana de petróleo e gás Pemex perdeu setecentos e trinta milhões de dólares devido ao roubo de petróleo através da inserção de torneiras ilegais nos oleodutos. O futuro próximo também parece bastante sombrio devido ao impacto das novas e certamente mortíferas tarifas comerciais contra o México anunciadas por Trump.

No estado de Tabasco, a Pemex está a desenvolver um projecto de mil milhões de dólares para um novo campo de petróleo e gás, recentemente descoberto na zona de Bakté, que deverá estar operacional este ano. Não é por acaso que existem fortes tensões entre clãs criminosos em Tabasco. Em 2024, esse Estado ocupava o segundo lugar no México em termos de homicídios. A indústria mexicana de hidrocarbonetos está em crise devido ao esgotamento de importantes depósitos como Cantarell e Ku-Maloob-Zaap. As descobertas recentes são limitadas e o declínio da produção de petróleo e gás pode levar a graves desequilíbrios geopolíticos dentro e entre as fileiras do ilegal. O clã Sinaloa opera em quarenta e sete países. Há vinte e cinco anos que se dedica ao mercado das metanfetaminas e, desde há treze anos, também ao do fentanil.

O cartel importa da Ásia os precursores químicos para a produção de fentanil e fabrica os comprimidos nos seus próprios laboratórios, situados em locais onde é mais fácil controlar o território. Sinaloa vive actualmente uma fractura interna. As famílias Zambada e Guzmán (El Chapo) disputam a liderança de todo o cartel. Os conflitos e a guerrilha espalham-se por vários Estados mexicanos sob o controlo do mesmo grupo. Na cidade de Caborca, no meio do deserto de Sonora, tem-se travado uma guerra entre os Guzmán (Los Chapitos) e o cartel de Caborca pelo controlo desta zona chave na rota para o Arizona. Os mercados mais lucrativos para a metanfetamina estão na Ásia e na Oceânia, liderados pela Tailândia, Japão, Austrália e Nova Zelândia. Os lucros podem ser cem vezes superiores aos obtidos com as vendas nos Estados Unidos.

O comércio com a China é também importante, alargado pelos mexicanos a um peixe, a totoaba, pescado principalmente no Golfo do México, do qual se extrai a bexiga seca, muito importante na medicina tradicional chinesa. As ligações entre a China e o México são asseguradas por vários portos, entre os quais o de Mazatlán, inteiramente sob o controlo do cartel de Sinaloa, que também cede a utilização de porto de escala a outras organizações criminosas mediante pagamento. Igualmente importante é o porto de Manzanillo, no Estado de Colima, onde operam vários cartéis, incluindo o cartel de Sinaloa, embora o território circundante não esteja sob o seu controlo. No entanto, a maior parte do movimento de drogas e fentanil provenientes da Ásia é efectuada por via terrestre ou aérea. A fronteira com o Arizona está quase totalmente sob o controlo do cartel de Sinaloa. Os postos fronteiriços de San Luis, Rio Colorado e Nogales são funcionais para o tráfico de droga, mas também centros fundamentais para o contrabando de fentanil em comprimidos de marca destinados especialmente a pulverizar a zona de Los Angeles.

O movimentado posto fronteiriço de San Ysidro é um cruzamento aberto para o cartel de Sinaloa. Uma vasta rede de túneis facilita a travessia da fronteira entre os Estados Unidos e o México. Os túneis subterrâneos exploram os sistemas de esgotos e de água das cidades fronteiriças. Por vezes, são escavadas ligações entre casas no México e empresas americanas para que as mercadorias possam ser descarregadas e carregadas sem serem vistas. A utilização de drones ou o lançamento de catapultas são acontecimentos raros, mas realçados na imprensa por serem cénicos. O cartel CJNG expandiu-se como um negócio de franchising. Os seus líderes estão ligados entre si por casamento ou laços de sangue directos. Depois do cartel de Sinaloa, é o segundo maior distribuidor de droga nos Estados Unidos. Os principais mercados são o Japão e a Austrália.

A “Grande América” são os Estados Unidos prósperos e com poucas disparidades de rendimento e riqueza, onde a pobreza é mínima. As necessidades básicas essenciais, como os cuidados de saúde, são um direito e não um privilégio e estão universalmente disponíveis para todos. Uma nação com justiça e verdadeira como a proverbial senhora de olhos vendados segurando um conjunto de balanças, onde a rectidão é administrada de forma igual, e não apenas na aparência.

Uma nação que o mundo admira pela defesa da democracia universal e dos direitos humanos, respeitando os outros. Ao mesmo tempo, os infractores serão rapidamente tratados pela comunidade mundial, reforçada pelas suas capacidades militares muito eficazes. Uma nação que promove e desenvolve tecnologia de ponta para melhorar a vida em todo o lado. Uma nação que é universalmente respeitada pelos seus esforços para viver em condições ambientais óptimas e limpas, mas que não cede aos extremistas das alterações climáticas. E por último, mas não menos importante uma nação com capacidades militares com as quais nenhuma nação sonharia em querer envolver-se. Possível mas absolutamente inexequível com Trump.

29 Mai 2025

A Grande América (IV)

“America great again with Trump? No. America under trump previously was a joke but this time America is fast becoming a train crash. For a president who’s proud boast was that he never started any wars is pulling out all his fingers to make up for lost time. He will be in power for just four years but the damage he has created already will take decades to repair.”

Stephen Leader

O pai fundador, Thomas Paine, a que Trump alude quando exalta o senso comum, decretou que “Temos o poder de começar o mundo de novo”. A quintessência do americano é (era?) olhar para cima e para além, para saber se o europeu estava inserido no grupo. A certeza de não ter alternativa. Manifestamente, o seu destino é o declínio, confundido com um eterno presente. O risco da América não é o declínio, é o colapso. Porque, fixada em si, está a alienar o mundo. Enquanto monitoriza compulsivamente a febre, esquece-se de que a sua saúde é sempre relativa à dos rivais que seguem as suas próprias trajectórias. Consideremos a supremacia tecnológica, um parâmetro com base no qual a América determina a classificação das potências. As elites americanas estão unanimemente obcecadas com o facto de os chineses ultrapassarem a América em matéria de Inteligência Artificial (IA).

Trump acaba de lançar, entre trombetas, o colosso público-privado Stargate, com um capital futuro declarado (inflacionado) de quinhentos mil milhões de dólares, quando chega a notícia de que uma empresa chinesa autárquica desenvolveu capacidades semelhantes às da OpenAi e associados, gastando uma fracção do que a confiança dos “trustees” espera, através de técnicas de inovação lateral. Pânico na bolsa, nem sequer um Pearl Harbor virtual. Patéticas são as acusações contra Pequim de roubo de tecnologia e de exploração do baixo custo dos seus engenheiros, invejavelmente económicos. A que outra indisciplina se dedicaram os concorrentes durante as revoluções tecnológicas por exemplo, há dois séculos, dos americanos aos britânicos?

E quando a IA tirar empregos até a engenheiros qualificados, o que dirá Trump aos seus adoradores? Quando a América aceitar que não negoceia apenas consigo própria, compreenderá que o “bullying” gera resistência porque há culturas e interesses diferentes dos seus. O grande Andrew Marshall aka Yoda, director do “United States Department of Defense’s Office of Net Assessment” de 1973 a 2015, tinha consciência disso quando insistiu no método comparativo na análise de conflitos. Aquele que se considera tão superior que não tem de integrar as culturas e os interesses dos outros na avaliação das relações de poder, enquanto se autoproclama senhor absoluto do seu próprio destino, prepara o terreno para a derrota. Marshall não deixou nenhum herdeiro. E Trump não tem qualquer semelhança com ele.

Mas o “Terrível Simplificador” arrisca-se a chegar às mesmas conclusões a que Yoda talvez tivesse chegado, independentemente do seu percurso analítico. A salvação da América não reside num regresso à super ordenação sobre o sistema normal de poder. Nesse esforço, ela desmoronar-se-ia, e todos nós com ela. É melhor, enquanto há tempo, satisfazer primeiro entre (não exactamente) iguais. Revolução que implicaria uma auto-análise pungente. Por sua vez, só concebível com uma distância do “eu” inconcebível em Trump, menos ainda em Musk. Felizmente, a heterogénese dos fins, o velho Arquimedes escorrega no banho e descobre o princípio epónimo, perturba o tédio dos determinismos. O génio estável do acordo aplica a sua arte à geopolítica prática sem a extrair dos modelos matemáticos que enervavam Marshall, apenas porque “é assim que me divirto”. Mas o acordo é troca por definição. Pode sentir-se e talvez ser cem vezes superior ao rival com quem negoceia, mas ao negociar aceita-o tal como é. Legitima-o. E, claro, vice-versa. Então, o melhor ou o mais inteligente vencerá.

Recordando a reacção (privada) de John Fitzgerald Kennedy à construção do muro de Berlim “mil vezes melhor um muro do que a guerra! atrever-nos-íamos a parafrasear “mil vezes melhor uma negociação do que o apocalipse!”.

O frenesim de mudar tudo para que tudo mude antes que seja demasiado tarde obscurece o início do segundo Trump e pode fazê-lo descarrilar. Não invalida o facto de que, de tanto caos, possa surgir um princípio de nova ordem. Mais do que imperfeito, estamos de acordo. Nada a ver com a paz perpétua kantiana. Algo sugere que um grande confronto não é impossível entre os Estados Unidos, a China e a Rússia. Ajustar o passado e limitar o risco de apocalipse. Quando Trump anuncia que quer tomar pela força toda a América do Norte, não está apenas a actualizar Monroe. Está a declarar um vale-tudo.

(continua)

21 Mai 2025

A Grande América (III)

(continuação da edição de 15 de Maio)

E depois, disseram, demasiadas vezes, que a Europa está nas leis da história, mas quem conhece essas leis da história? E quem é que alguma vez impediu os homens, especialmente os grandes homens, de irem contra as leis da história? Estávamos em 1966. Sumantra Maitra tem razão quando lhes pergunta “o que é que vos aconteceu? para os exortar, com alguma ênfase, ao papel de um “país ocidental chave”.

A sua tese atravessa a geopolítica da periferia marítima da memória quarentona, actualizada para as crises actuais, como as tensões entre turcos, gregos e franceses, aliados atlânticos de facto alinhados com eles próprios. O que acontece se rebentar um conflito? A Itália poderia concentrar-se na criação de dispositivos locais em algumas áreas-chave, assumindo a tarefa de fornecer apoio logístico e estrutural.

Os italianos têm uma marinha bem estruturada. Este é um domínio em que poderiam dar um contributo considerável, tratando da formação e da segurança nas costas sul e norte. Trump e o Pentágono estão correctos, pois nós os Europeus fornecemos a logística, juntamente com os serviços secretos, a cibernética e tudo o que for útil. Mas são os italianos que põem as botas no terreno.

Uma ideia que rejeitaram quando o Trump 1.0 os convidou a recuperar a Líbia. Não se tratava de imitar o malogrado desembarque concebido pelo então Presidente do Conselho de Ministros Giovanni Giolitti (1903-1914) em Trípoli, em 1911, a faísca da I Guerra Mundial, o golpe para as comunidades do Norte de África e levantinas italianas de que hoje tanto precisam.

A questão era saber se deveriam admitir um forte grau de controlo turco sobre a Tripolitânia, depois o controlo russo sobre a Cirenaica, ou cuidar do seu próprio quintal. Recusaram. Um erro que deve servir de lição para o futuro. O estigma da nossa época é a consciência de que o homem pode acabar com o mundo. Um privilégio até agora reservado a Deus para os cristãos, que tem a última palavra sobre como e quando. Um segredo que se opõe até Cristo, pelo menos segundo Mateus de que “O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não.

Quanto àquele dia e àquela hora, ninguém sabe, nem os anjos do céu, nem o Filho, mas só o Pai” (24,35-36). “Se o dono da casa soubesse a que horas da noite vem o ladrão, vigiaria e não deixaria que a sua casa fosse arrombada. Por isso, estai vós também preparados, porque o Filho do Homem virá à hora em que menos esperais” (24,43-44). Se este Evangelho se aplica, temos a certeza de que o ladrão está longe de casa, pois nunca antes o homem pensou no Fim.

Resta-nos esperar que a misteriosa “Katechon” da segunda carta de Paulo aos Tessalonicenses, a suposta força de contenção que prevalece sobre o caos, atrase o apocalipse e a vinda de Jesus. Se os filósofos e os teólogos discutem sobre o “Katechon” é porque vivemos o apocalipse como presente, não como futuro. Imersos no caos, desfigurados pelo anomos iníquo que o Senhor esmagará “com o sopro da sua boca” (2,8).

Será um sinal dos tempos que a Igreja Católica, durante séculos empenhada em infligir-nos “memento mori”, tenha suavizado essa ladainha depois de Hiroshima? Talvez receie perder o monopólio do mistério último, secularizado em conversa de café. Não entremos na diatribe apaixonada de quem, o quê, como é o “Katechon”. Hermenêutica inatingível. O que importa é observar como a percepção de viver dentro do apocalipse, a morte viva, exacerba o desespero do caos que nos paralisa. Ilude-nos a pensar que podemos escapar aos constrangimentos da política, ao modo da razão, à arte do simpósio. Uma tentação que gera terríveis simplificadores de todo o género.

Produtores de anomia que pretendem executar com o sopro da sua boca. Trump é o poder que abranda ou acelera a crise americana? Uma pergunta muito europeia. Para um americano, a questão não se coloca. Aqueles que estão convencidos de que pertencem, por graça de mandato divino, à entidade suprema benevolente, super ordenada ao resto dos humanos, tendem a imaginar a sua trajectória como uma sequência de ciclos em constante evolução ascendente. Desenhando círculos sem fim, apenas inícios. Nas fases mais baixas, o americano crente empurra para o topo porque o melhor ainda está para vir.

16 Mai 2025

A Grande América (III)

“We are going through a bad stage in the cold war-all wars have their bad stages. But in all wars when one is going through a bad stage one should concentrate first and foremost on the core of the problem; and the core for us is what is left of Western Europe.”

Weaknesses of Western Society

Pietro Quaroni

Nos últimos anos, temos assistido a um interesse sem precedentes dos americanos pela Europa. Inicialmente era “O que querem de nós?”. Uma mistura de condescendência e de desprezo simpático, que suscita respostas embaraçosas ou simplesmente o silêncio, uma vez que não estamos habituados a estabelecer o que podemos querer. Depois, a viragem brusca para “O que fariam no nosso lugar?”. Até ao contra-ataque de Trump. Com ele não há perguntas, apenas acordos pré-cozinhados ou improvisados. Tudo extremamente informal na base de que “Queremos isto, podem ajudar-nos assim, em troca recebem aquele outro. Boa sorte”. Claro que o poder de fogo é totalmente desproporcionado. Mortal é a retaliação em caso de insubordinação. O exemplo pode ser que se fizermos comércio de tecnologias de ponta com os chineses, no mínimo devemos esperar represálias em matéria de direitos aduaneiros e de regime de vistos, por cima da mesa, com passos acompanhados por baixo.

O que nos obriga a saber de antemão o que podemos querer do líder e a que preço. Nada de extraordinário. Variantes tácticas de uma estratégia. Esta deveria assentar nos nossos rendimentos geoestratégicos, que não só negligenciamos como até minamos. O sul do continente é mediterrânico em primeiro lugar, europeu em segundo. Mas vive-se este privilégio como uma vergonha. Não aproveitaram a vantagem da viragem médio-oceânica de que desfrutavam desde a abertura do Suez, que hoje corre o risco de fechar desastrosamente devido à crise do Mar Vermelho. O seu olhar marítimo vê as suas águas interiores como um limite e não como uma fonte que os empurra para o mundo e o mundo para eles.

Entre as heranças nefastas do seu europeísmo e do complexo de inferioridade que lhe está associado em relação às nações continentais, a hidrofobia é a mais prejudicial. A figura secreta da sua estratégia escapa-lhes pois são ocidentais porque são médio-oceânicos, não porque são europeus. Os seus vizinhos continentais, a começar pelos germânicos, são por vocação anti-médio-oceânicos. Desde tempos imemoriais. Como afirma a “Escola dos Annales”, o conceito de Europa nasceu contra Roma, quando a maré islâmica partiu o mare nostrum em dois, entre os séculos VII e VIII. Uma fractura que continua por resolver e a agravar-se. Continuam os italianos a ser o centro passivo, na melhor das hipóteses reactivo, do Médio Oceano, depois de terem sido o seu pivot decisivo.

Ridículo disfarçarem-se de pivots. É urgente voltar a dar sentido à sua geografia de posto avançado ocidental no meio do oceano. E que isso conte mais em relação à Alemanha e à França, que estão viradas directamente para o Oceano Mundial, enquanto eles têm de defender com unhas e dentes a saída pelo Suez e pelo Bab-el-Mandeb (O Estreito de Bab-el-Mandeb, em árabe, “porta da lamentação” é o epicentro da vasta região marítima que se estende desde o Mar Vermelho até às porções ocidentais do Oceano Índico, englobando também o Golfo de Aden e parte do Mar Arábico. Este estrangulamento, que tem apenas vinte e sete quilómetros de largura no seu ponto mais estreito, perto da ilha de Perim, separa o Corno de África do Médio Oriente e serve de antecâmara ao Canal do Suez, a passagem artificial que, desde a segunda metade do século XIX, liga o Indo-Pacífico sem limites ao sistema atlântico através do Mediterrâneo).

Juntamente com aqueles que estarão dispostos a trata-los como parceiros do meio do oceano. Em primeiro lugar, e certamente não só, os Estados Unidos. Eles sentem-se aqui em dívida para com o grande diplomata italiano Pietro Quaroni (os seus pensamentos e acções vêm descritas em “Pietro Quaroni, Italian Diplomacy and the Libyan Issue (1945-1949)” de Luciano Monzali) que pertencia a essa raça de servidores do Estado que entendiam esse privilégio como uma contribuição para a política externa. Mesmo contrariando as modas intelectuais, resistindo à tentação da burocracia e da politicagem. O seu opúsculo de ouro sobre o “Pacto Atlântico e Segurança na Liberdade”, publicado há sessenta anos, é de uma actualidade fulminante. Pietro Quaroni sugeria que se “enquadrassem numa política americana periférica” no seio da OTAN, evoluindo de uma “potência do mar” para uma “potência marítima”. O teatro talassocrático distingue-os dos seus parceiros continentais e dá-lhes maior liberdade de movimentos do que a França e a Alemanha.

Expresso na “defesa periférica baseada na cintura externa da Europa, Inglaterra, Península Ibérica, Itália e Grécia”. Não sendo uma potência naval, é capital para lhes reavivar o entendimento bilateral com a América como primeira potência mediterrânica, tal como aconteceu com a Inglaterra quando ainda dominava as ondas. Enquanto a sua política externa se manteve firme no princípio de que podiam tomar todas as liberdades excepto a de se voltarem contra a Inglaterra, qualquer tolice que tivessem feito tinha consequências graves; no dia em que esquecessem este princípio, as consequências seriam tais que ainda agora as recordariam. Hoje, em vez da Inglaterra, estão os Estados Unidos, e é a primeira necessidade de a política italiana entender-se com os Estados Unidos como pretende Giorgia Meloni. Não devem deixar-se arrastar, em nome de uma pretensa Europa, para uma política europeia que é de facto-anti-americana.

(Continua)

15 Mai 2025

A Grande América (II)

(Continuação)

“What is great about America? Slavery, Hiroshima, Nagasaki, Indian Removal, segregation, Vietnam War, Watergate.” – Anthony Galli

O que conta para o império americano é a Europa Ocidental, “a mãe da América”, ou seja, França, Alemanha, Itália, Reino Unido, Espanha, Portugal e a Escandinávia como abertura para o Árctico e barreira anti-russa (anti-chinesa). Sem esquecer que os menos interessados em proteger a Europa de Leste são os euro-ocidentais. Questão de perguntar aos dinamarqueses, alemães e holandeses se concordam em dar aos polacos e lituanos um peso decisório igual ao seu. Por que razão um Espanhol lutaria contra Moscovo se um estónio decidisse organizar uma revolução colorida na Rússia? Segundo Maitra, o Mediterrâneo continua a ser central para os americanos, mas não o Mar Negro. O nosso Oceano Médio é o ponto fraco da Europa. O perigo não vem do leste, mas do sul. Não se vêm tanques russos na Bélgica. Mas vê-se um número crescente de crises no Mediterrâneo, provocadas pela decomposição de Estados, como a Líbia, por causa dos franceses e dos britânicos. É por isso que a França é um dos países ocidentais fundamentais para a segurança comum. No entanto, nunca percebi porque é que em certas questões, como a defesa total da Ucrânia, a França e a Polónia podem ter posições de falcão. É querer ser mais católico do que o Papa? Ao longo dos séculos, a França foi o bastião do realismo. O que é que aconteceu? A essa pergunta surge a resposta número três que se poderia intitular de revelação, responsabilidade e oportunidade que é o triângulo da nossa segurança.

Revelação no sentido apocalíptico acima referido. Trump deixa cair o véu da hipocrisia acordada entre americanos e europeus. Os primeiros fingiam garantir-nos uma protecção ilimitada e nós fingíamos acreditar neles. De tal forma que muitos de nós acreditámos. De facto, funcionou muito bem. Agradecidos, regozijamo-nos. Mas é agora claro que a superpotência não defende todos os aliados até ao limite, alguns a troco de nada, e certamente nenhum de graça. Onde o preço, mais do que monetário, é humano e militar. É uma questão de inverter o postulado de Norstad. Ou seja, ter homens e armas em número e qualidade decentes para que, em caso de guerra, não cairmos num campo de batalha dispensável, bombardeado por amigos e inimigos nucleares. Como teria acontecido se a Guerra Fria tivesse aquecido, o que foi por pouco. Responsabilidade. Se pensarmos que podemos enclausurar-nos num canto do planeta, gozando dos nossos privilégios, a história de onde emergimos vai bater-nos à porta. Vai saquear os nossos apartamentos. Caoslândia avança. Aproxima-se da Europa Mediterrânica pelo Sul e pelo Leste, com as suas torrentes de cólera e de frustração, com a disponibilidade para a violência de povos jovens e sofredores, educados para ver nos europeus de hoje os netos dos seus antigos senhores.

O parâmetro decisivo da nossa condição geopolítica é a soma dos factores demográficos e biológicos. A Europa do Sul é a região com o maior número médio de pessoas idosas no mundo, compreendendo actualmente 21por cento da população, com mais de 65 anos. Prevê-se que atinja 30 por cento em 2050 e a Europa diminui a sua população entre 2022 e 2050 em -7 por cento ou seja em declínio galopante até 2080 em comparação com os pelo menos dois mil milhões de pessoas espalhados entre a África boreal e o Levante. A nossa idade média deverá ser superior a 50 anos, contra os cerca de 25 anos dos que nos vão bater à porta. Não é com tanques que se evita esta crise. Militarmente, precisaremos de instrumentos de controlo e interdição navais, aéreos, cibernéticos e espaciais, a par de uma componente terrestre (jovem) credível. Acima de tudo, teremos de desenvolver uma política corajosa de coexistência e cooperação com os povos e regimes do Médio Oriente, do Norte de África à Península Arábica. Regiões onde ainda gozamos de uma boa reputação. No entanto, estamos a dissipá-la como uma pensão vitalícia, quando ela deve ser reconquistada e alargada todos os dias.

O plano Mattei de investimentos em África de 5,5 mil milhões de euros é uma gota no oceano. É urgente resolver os antigos diferendos com a margem norte do Mediterrâneo, a começar pela França. O hábito de tropeçarem uns nos outros no pré carré do qual a França é obrigada a evacuar prepara o terreno para o fracasso mútuo. Quanto aos americanos, não pedem mais do que os apoiar, desde que se ponham as botas no chão, se necessário. Oportunidade. A OTAN não é ATAN, com um “a” de aliança. Um lema em si mesmo indigesto para Washington, porque aludiria a uma igualdade impossível entre líder e seguidores. Estamos em dívida para com o apocalítico Donald Rumsfeld por ter revelado, na véspera da agressão ao Iraque, a figura da OTAN e de qualquer outra organização militar liderada pelos Estados Unidos ou por qualquer outro líder.

A missão faz a coligação e não o contrário. E é o líder que define a missão. O dogma viveu ameaçado pelos nossos decisores na síndrome do abandono. Estamos tão habituados a considerarmo-nos passivos, a confiar no “Número Um” como em “Nossa Senhora”, que ignoramos o estímulo que o aviso contém. No esquema transaccional dos alinhamentos tácticos que desenham o caos actual, poderíamos transformar a necessidade de confiar em nós próprios em primeiro lugar. Não nos reduzirmos a patéticos cavaleiros solitários. Ainda assim, alguns actos de pirataria suave ajudariam, considerando o quão querido é para os anglo-saxões o desporto de manter alguém honesto e o quão pouco eles nos consideram capazes de proteger os nossos interesses. No mínimo, surpreendê-los-íamos. Nenhuma relação se mantém se cada um considerar a fidelidade dogmática do seu parceiro como um dado adquirido. Um certo grau de infidelidade, ou seja, de iniciativa, ajudaria a cimentar a relação bilateral com os Estados Unidos. O pior acordo possível, sem dúvida alguma.

8 Mai 2025

A Grande América (II)

“What is great about America? Slavery, Hiroshima, Nagasaki, Indian Removal, segregation, Vietnam War, Watergate.”

Anthony Galli

A primeira resposta, paradoxal, explica-se pelo instinto de compensação. O suicídio, em duas fases, de todas as antigas potências continentais entre 1914 e 1945, mergulhadas do estatuto mundial para o estatuto regional na mais vertical das catástrofes, suscita a necessidade de uma recompensa. Psicogeopolítica de massas. Se, enquanto Estado, já não é protagonista, o salto de escala (virtual) da nação para a Europa parece gratificante. Além disso, a vantagem de se apresentar como participante de uma civilização de apelo incomensurável, e não de uma estrutura política transitória e mensurável, garante contra as refutações da história. A entidade que não existe não pode morrer. O “projecto europeu” decorre desta astuta auto-representação. Seja qual for o significado deste génio, é sempre in fieri. Sol do futuro que conforta tibiamente o presente. Acto de boa fé até para os ateus.

O seu santo padroeiro, o Barão de Münchausen, sabe como se livrar de areias movediças pelos cabelos. O único problema é que nenhum actor geopolítico externo leva-o a sério. Muito menos os Estados Unidos e a Rússia. Quanto à segunda tentativa de resposta, trata-se de vestir a roupa americana. Não nos detenhamos nas razões que levaram Washington a permanecer na Europa Ocidental em 1945. A principal é indiscutível que foi impedir que os soviéticos a tomassem. Fiquemos no presente. Para facilitar a nossa tarefa, peguemos num mapa da Europa vista dos Estados Unidos e deixemo-nos guiar por um Virgílio de segura empatia trumpiana, Sumantra Maitra, director de pesquisa e divulgação do “American Ideas Institute”. O trabalho enquadra a fachada ocidental da Eurásia fotografada a partir do espaço. Perspectiva Starlink. Vai do Atlântico à profunda planície Sármata e à zona do Cáspio-Cáucaso, passando pelo Mediterrâneo, cuja vocação médio-oceânica é imediatamente apreendida pelo olhar talassocrático das estrelas e riscas.

A OTAN surge assim na sua ambiguidade estratégica. Não existindo uma potência europeia, nem satélites continentais americanos capazes de se protegerem sozinhos, para Washington este espaço estruturalmente defensivo pode tornar-se ofensivo, se necessário. Ou seja, no sacrifício de nós, europeus, para a salvação da América. Por detrás da afirmação de Trump de que todos os parceiros atlânticos gastem 5 por cento do seu PIB na defesa, esconde-se a sombra da doutrina Norstad, assim chamada em homenagem ao então vice-comandante supremo da OTAN, antigo organizador dos bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki. Que, com um eterno cigarro na ponta dos lábios, interrompeu, em 1954, uma disputa académica entre colegas europeus sobre quem deveria decidir sobre a utilização da bomba dizendo “Meus Senhores, pedimos-vos que garantissem a defesa da Europa com um certo número de divisões. O senhor disse-nos que, por razões económicas, financeiras e políticas, não nos pode dar esse número de divisões. Não queremos discutir as vossas razões. Aceitamo-las. Mas não se esqueçam de que, com isso, autorizaram-nos implicitamente a utilizar a arma nuclear para a defesa da Europa”. Ou seja, da América.

Dualidade do guarda-chuva nuclear americano, animada pelo novo presidente contra o “Inimigo” ou com o “Inimigo” contra nós. Iluminados por Trump/Norstad, veja-se o mapa de perto. O desdobramento atlântico parece côncavo. Destinada a absorver um improvável assalto russo ao “Velho Continente” e uma menos improvável penetração chinesa, utilizando a Federação Russa como aríete e explorando os seus postos avançados africanos, apontados ao coração da Europa. Para nos atrair para um ecúmeno sinocêntrico com a persuasão do comércio e a ameaça da força. Esta interpretação, que prevalece actualmente na América, pode facilmente desviar-se para a ofensiva. Basta conceber as alas Escandinava e Anatólia como dedicadas ao cerco de Moscovo. Muitos nortenhos, especialmente suecos, que foram campeões atlânticos durante a Guerra Fria no gelo, ficariam encantados. Muito menos os turcos salvo uma revolução colorida em Ancara (o fantasma de Fethullah Gülen, ou um golpe americano, continua a agitar o sono dos estrategas imperiais).

O centro do mapa, dividido em flancos esquerdo e direito, é ocupado pelo triângulo estratégico Trieste-Danzig-Constança. O porto juliano, miradouro marítimo das bases de Aviano e Vicenza ligadas a Ramstein a mãe de todas as instalações americanas na Europa, é o pivot para onde convergem os portos de escala Bálticos e Eusino. Aqui, os atlantistas estão ocupados a reforçar a infra-estrutura militar por detrás do duplo véu (a separação civil/militar é para fins académicos e de camuflagem táctica). Trieste é o jogador em torno do qual gira a equipa da OTAN, com Gdansk e Constanta como alas avançadas. Alinhada com Trieste está Lviv, a capital da Galiza ucraniana, um posto avançado indispensável para Washington. Quando os russos tentaram um golpe de Estado em Kiev, a 24 de Fevereiro de 2022, foi de facto em Lviv que os americanos e os britânicos quiseram transferir Zelensky como chefe do governo legítimo.

Trieste é, finalmente, a trave-mestra defensiva da Europa Central, o baluarte extremo depois do eixo Gdansk-Constança e da linha virtual entre o Categate e os Dardanelos. O flanco esquerdo prevalece sobre o direito. O seu valor estratégico é função da contenção da Rússia e da China enquanto potências árcticas que avançam em direcção à América graças à fusão acelerada dos gelos polares. O flanco direito é muito mais fraco, exposto à convergência da guerra na Ucrânia, das tensões na Geórgia-Cáucaso e dos conflitos em torno de Israel. Estamos na falha sísmica movida pela fricção entre a Ordolândia e a Caoslândia. O Estreito da Sicília, passagem obrigatória do Sul do Oceano Médio em direcção ao Oceano Índico, está muito mais exposto do que o Canal da Mancha, reprojectado pela ala Escandinava e pelo Báltico, festivamente ligado à OTAN. Tendo traçado o pano de fundo, é de deixar a Sumantra Maitra a tarefa de aprofundar a perspectiva das estrelas e riscas a partir da lógica trumpiana. Depois de ter tido uma indigestão de países da OTAN, desde os doze fundadores até aos actuais trinta e dois, sem contar com a Ucrânia e a Geórgia que batem em vão à porta meio fechada, Washington está a traçar linhas informais no organismo do Atlântico Norte.

A começar pelo óbvio que é a pletórica OTAN atlântica não escapa à lei de qualquer aliança, que distingue cavalos de cavaleiros (muitas vezes apenas um). O que é novo em Trump é que as hierarquias não dependem tanto do valor estratégico dos parceiros individuais como da vontade do cidadão americano de pagar o que for necessário para os defender, mesmo com sangue. Uma disposição de espírito que agora é rara. Se o “Cavaleiro Estrelado” se recusar a lutar pela salvação de qualquer um dos trinta e um cavalos, é como se estivessem duplamente em perigo como membros da Aliança, considerados um “Inimigo” absoluto pela Rússia, e porque são dispensáveis pelo “Número Um”, cuidadoso em não impor uma provação insuportável na frente interna. Como explica Sumantra Maitra, nenhum patriota americano pensaria em morrer pelos Estados bálticos ou pelo Donbas, enquanto poderia sacrificar-se, “com alguma hesitação”, por Londres, Paris ou Roma.

24 Abr 2025