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Esta é a centésima crónica que publico no Hoje Macau e com ela encerro esta Confeitaria que abriu há mais de quatro anos. A palavra assinala uma certa herança comum às culturas portuguesa e japonesa, afinal o mote inicial com que se propunha dar alguma coerência temática ao que se viesse a escrever: um olhar português sobre a vida no Japão e o mundo a oriente, tendo como título genérico uma palavra usada nas duas línguas, no caso o confeito, que terá atravessado mares e tormentas até se instalar tranquilamente nas ementas japonesas.

Foi no final de Setembro do já longínquo 2018 que se publicou o primeiro texto, no rescaldo de animado fim de verão em terras lusas e graças às formidáveis alquimias do João Paulo Cotrim, exímio criador de espaços onde respirar fraternidade e desenvolver liberdades criativas. Entretanto deixou-nos, com a desolação inevitável, e deixou também uma Lisboa mais pobre e mais triste. Foi num desses preciosos momentos inventados pelo Cotrim que conheci o Carlos Morais José, director do Hoje Macau, que desde logo acolheu esta Confeitaria e me deu total liberdade para escrever o que quisesse sobre o que quisesse.

Só lhes posso estar agradecido, a ele e ao José Manuel Mendes, o editor que nunca cheguei a encontrar. Desconhecia esta possibilidade de participar num projecto editorial – espaço sempre altamente propenso a conflitos, inerentes a inevitáveis divergências de estilos e perspectivas – sem ter qualquer tipo de problema em mais de quatro anos.

Foram anos extraordinários, estes. A Confeitaria abriu em Sapporo, cidade no norte do Japão com longos invernos cobertos de branco, onde vivia na altura, quando nem sequer conhecia a quente e húmida Hiroshima, onde estou agora a dar por encerrado este longo ciclo de cem crónicas. Essa foi a mudança menor, no entanto, resultante de meras circunstâncias laborais, as inevitáveis formas de subsistência a que temos obrigação de atender, mas que felizmente continuam a contar pouco. No que realmente interessa, as mudanças foram muitíssimo maiores: termino este ciclo de regresso aos jornais com um outro ciclo ainda no início, o do crescimento da Sara, cuja chegada a este precário planeta foi devidamente assinalada com crónica publicada quatro dias depois de nascer, no início do verão do ano 2020.

Nasceu a Sara em plena epidemia de covid-19 e esse foi um dos temas maiores da Confeitaria, como seria talvez inevitável: foram 11 as crónicas directamente dedicadas a este tema, a primeira das quais no início de Março de 2020, quando o vírus que já se tinha instalado na Ásia, desde finais de 2019, e dava os primeiros sinais da sua chegada à Europa. Hoje já parte do mundo vive num ambiente pós-covid mas esse não é certamente o caso de quem vive no Japão – e na Ásia em geral, aliás -, onde os quotidianos ainda carregam esse peso das restrições inerentes à tentativa de controle de uma pandemia que, apesar de tudo, já pareceu bastante mais grave.

A vida e a cultura no Japão constituíam o mote inicial com que se decidiu abrir esta Confeitaria e de facto houve nove crónicas que assinalaram essa perspectiva pessoal sobre os quotidianos no país do sol nascente, sempre a abordar temas que já me fossem familiares mas que ainda assim me parecessem ter qualquer coisa de especial e extraordinário para justificar o tempo e a atenção de quem lesse.

Na realidade, nos primeiros contactos com estes lugares geográfica, cultural e linguisticamente distantes, tudo nos parece estranho e especial. O tempo, no entanto – e às vezes nem é preciso muito – ajuda a distinguir entre o que é novidade ou diferença e o que é ignorância ou preconceito. A “literatura de viagens” contemporânea está cheia disso, vê-se facilmente. Ainda assim, arrisquei partilhar impressões rápidas de visitas a lugares próximos, com cinco crónicas escritas sobre a China, Tailândia e Indonésia, resultado de fugazes experiências de visita.

Em todo o ocaso, foi o turismo – o assunto que me ocupa profissionalmente enquanto investigador e professor – que ocupou a maior arte do espaço desta Confeitaria: 26 crónicas, publicadas entre os fins de Setembro de 2018 e de 2022, que foram assinalando tendências na forma como se usa o tempo e os recursos para o lazer e a viagem ou as particulares implicações de uma pandemia global sobre uma actividade que pressupõe movimento, deslocação e contacto.

Mas o turismo também foi uma porta de acesso à discussão sobre a economia capitalista contemporânea, com a degradação acelerada de recursos, crescentes desigualdades e injustiças sociais ou esmagadores processos de gentrificação mal disfarçados de renovação urbana e branqueados com palavreado “inteligente” e “sustentável”.

Além do turismo, houve 22 as crónicas que discutiram e criticaram a insustentabilidade do capitalismo actual, incluindo os seus cartéis internacionais que determinam políticas económicas, e reinventam as suas máquinas globais de extorsão sistemática, branqueamento de capitais e fuga ao fisco.

Na realidade, todas as 99 crónicas que escrevi têm como pano de fundo um sistema económico irracional, altamente predatório e violento, ainda que essa análise se possa exprimir enquanto se discutem temas aparentemente diferentes, como sejam as alterações climáticas e as ações de mobilização e protesto das gerações que sentem o futuro comprometido e que só encontram como resposta a ameaça de prisão, o que também ocupou quatro crónicas desta Confeitaria.

Este sistema económico que nos tocou viver é também o resultado de uma certa crise das ideologias que contrapõem a solidariedade e a comunidade à competição e ao individualismo – tema que ocupou três crónicas, por manifesta falta de assunto – e tem também implicações sobre o ambiente de violência e ódio racista e fascista que vai ocupando espaço mediático e político contemporâneos – assunto que motivou outras três crónicas. Até a transformação das embaixadas nacionais em pobres gabinetes de prestação de serviços a empresas turísticas, assunto que também ocupou uma crónica, tem e ver com este servilismo de Estados que cada vez menos se preocupam menos com comunidades e mais com a farsa da eficiência dos negócios.

Poucos ou nenhuns destes temas estavam programados desde o início: foi sempre a realidade, na sua imprevisível e surpreendente evolução, que foi abrindo os caminhos que aqui fui explorando. Aliás, mesmo o único tema que tinha à partida espaço garantido nesta agenda em sempre em construção – os Jogos Olímpicos de Tóquio, aos quais dediquei cinco crónicas – acabou por se realizar uns anos depois do previsto e com portas quase fechadas.

Por outro lado, com a devida prudência e contenção, só dediquei ao futebol uma crónica, que é assunto ultra-sensível e capaz de suscitar melindres inconsequentes. Também dediquei uma crónica ao José Mário Branco, das melhores pessoas com quem tive a sorte de me cruzar, e outra perda maior nas nossas vidas. Voltarei eventualmente ao Hoje Macau, num registo mais ocasional, mas agora é tempo de fechar a Confeitaria, que eu sempre gostei de sair quando a festa ainda vai boa. Valeu a pena a travessia. Obrigado!

2 Dez 2022

Wrong speech, pá

Assim se pronunciou o secretário-geral da ONU quando iniciava o seu discurso durante a COP 27, a conferência promovida pelas Nações Unidas para definir políticas de combate às alterações climáticas em implacável curso. Lá estavam as câmaras a captar o caricato momento de hesitação perante as palavras que algum serviço de assessoria mais distraído entregou erradamente para aquela delicada circunstância, com a situação resolvida com um espontâneo e gracioso “I think that I was given the wrong speech, pá”.

O momento que parece ter sido de graça, tendo em conta o agrado abertamente manifestado por convivas presentes, que riram com gosto neste grotesco espectáculo que também inclui arriscados números de ilusionismo estatístico e contorcionismo retórico.

Foi a 27.ª vez que se organizou esta “Conference of Parties”, ou COP, o que talvez se possa traduzir para português como “Conferência das Partes”, o que não soaria grande coisa se se tratasse de algo que se pudesse levar a sério, mas que talvez se adeque (porque não, pá?) a esta comédia com que as partes se entretêm e divertem.

Afinal, mais um discurso errado faz pouca diferença: com ou sem Guterres na liderança, já são quase três décadas de discursos errados, feitos de palavras tão eloquentes como ocas e inconsequentes, desde que as ditas partes se começaram a reunir, sob a égide da ONU, em Berlim, em 1995.

Ficaram famosas algumas destas reuniões, ou os documentos que se fizeram aprovar para alimentar a fé da humanidade num mundo melhor, ou pelo menos mais viável. Desde logo o famoso Protocolo de Kyoto, acordado na Conferência de 1997 e em vigor desde 1998, que havia de tornar a antiga capital japonesa numa das maiores atracções turísticas do país e hoje a única urbe do Japão onde se observam com clareza os problemas do excesso de turismo e a sua decorrente insustentabilidade. Foi a primeira vez que as Partes – os países envolvidos, entre os quais Portugal – se comprometeram a implementar limitações e atingir reduções concretas nas emissões de gases tóxicos, devidamente quantificadas.

Valerá pouco a pena contar esta triste história de empolgados discursos e generosas intenções ditadas pela pompa e circunstância dos magníficos salões onde decorrem estas celebrações anuais de animado convívio entre as Partes. A esta pompa corresponde sempre e implacavelmente uma realidade que não há como distorcer no dia a dia do planeta a seguir a cada um destes momentos: mesmo quando finalmente se acordou, em Paris, 2015, definir um conjunto quantificado de metas para se atingirem objectivos específicos no controle do aquecimento global, o certo é que se continuou a falhar contínua e rotundamente até hoje. Na realidade, com a breve excepção registada em 2020, com uma ligeira quebra motivada pela inevitável reclusão imposta pelo Covid-19, as emissões de gases tóxicos continuaram sempre a aumentar.

É por isso que há quem não se ria desta farsa sistemática e permanente, por mui graciosas que se achem as Partes. É a juventude do mundo, essas pessoas que pressentem um futuro curto, que temem pelo desaparecimento do habitat onde era suposto alimentarem sonhos de futuros felizes, e onde afinal vão descobrindo preocupações crescentes, antecipando problemas cada vez mais graves, enquanto observam como se sucedem políticas vazias de resultados envoltas em discursos de reiterada demagogia, que vão afinal alimentando as mesmas relações de poder e a mesma predação sistemática e implacável de recursos que um sistema económico profundamente injusto, desigual e irracional vai impondo dia após dia, após ano, garantindo a riqueza exorbitante de uma pequeníssima minoria e a decorrente miséria de grande parte das 8 mil milhões de pessoas que habitam este cada vez mais precário planeta.

Por isso protestam, com formas determinadas mas pacíficas, pelo menos até ver. São adolescentes e estudantes, na sua larga maioria, com informação, esclarecimento, organização, pacifismo, determinação. Estão em muitos sítios do planeta, sobretudo nos países mais desenvolvidos, os que mais beneficiam do gigantesco problema que têm vindo a criar década atrás de década, num processo contínuo de crescimento de consumo e produção que despreza os limites dos recursos e do planeta. Estão quase sós estas pessoas, no entanto: pelos vistos o futuro conta pouco para quem já só olha para curtos prazos de vida e reformas antecipadas.

Além de um planeta em acelerada destruição, o que esta sociedade tem para oferecer a esta juventude em desespero de causa é a pancadaria que for necessária para a manter na quietude do seu silêncio. Com a brutalidade que for precisa e os tribunais que forem necessários, quem participar nestas ocupações pacíficas de espaços públicos já sabe que vai ter dos poderes dominantes a mesma resposta repressiva, em Lisboa como noutros lugares. Até à cadeia, se for preciso.

Na realidade, a repressão que se abateu rapidamente e em força sobre quem se manifestou em Lisboa durante estes dias em que o secretário-geral da ONU cumpria o ritual de ler discursos errados, pá, já era conhecida de outros momentos e lugares, até relativamente próximos. Também eram adolescentes as pessoas que a polícia retirou com brutalidade de manifestações pelo clima em praças de Londres, poucas horas depois de se sentarem pacificamente.

Não gerou esta violência nenhuma onda crítica ou solidariedade massiva, mas, nos mesmos dias, criticava-se internacionalmente, na ex-colónia britânica de Hong Kong, a utilização da força pela polícia chinesa para dispersar manifestações que duravam há um mês, bloqueando diariamente o trânsito de dois milhões de pessoas e envolvendo a destruição violenta de várias estações de metropolitano.

Nas alegadas democracias ocidentais, conhecem-se afinal muito facilmente os limites da liberdade de expressão e manifestação quando se confrontam os poderes com o vazio das suas propostas e a inevitabilidade do seu fracasso.

Não é necessária violência nem destruição: basta ocupar pacificamente espaços públicos e perturbar vagamente a ordem quotidiana. É certo que esta juventude vai continuar a fazê-lo, até porque não tem alternativa: quem se manifesta nestes dias contra a inacção das instituições perante o colapso do planeta tem a determinação infinita que lhe vem da tristeza de saber que tem razão.

18 Nov 2022

Cartéis

Nem só de cocaína vivem os cartéis, já se sabia, mas cá está a inflação mais ou menos globalizada para nos lembrar esse poder, opaco e invisível, marginal às democracias e predador de recursos e direitos, que agora ataca toda a gente, de uma maneira ou de outra, sem deixar margem para se fugir a um processo continuado e persistente de saque e pilhagem à escala planetária. Estes cartéis actuam em mercados legais e livres, regulados por leis e governos mais ou menos visíveis e supostamente também pelas mãos invisíveis dos mercados, como apregoam teóricos e vendilhões do alegado liberalismo económico contemporâneo.

Não há liberalismo nenhum e muito menos mão invisível de qualquer mercado, sabemos todos. Também não há concorrência justa, e muito menos perfeita, num sistema económico em que grande parte da regulação se faz através de acordos gigantescos entre as grandes corporações internacionais e os governos com mais poder nas sociedades globais em que nos tocou viver. Pior ainda: trata-se frequentemente de uma regulação partilhada entre o poder não eleito de grandes corporações, de bancos centrais independentes de governos, e de instituições internacionais que também carecem de legitimação directa, como é o caso da nefasta e decadente Comissão Europeia.

Evoca continuamente “sustentabilidade”, “inteligência” ou “solidariedade”, o discurso que emana destas pardas eminências que representam o poder dos cartéis contemporâneos, seja no domínio dos mercados internacionais, seja no controle das instituições que supostamente os regulam. Mas também tresanda a bafio, à velha estratégia de perpetuação do poder com base em palavras ocas e desprovidas do seu sentido original, o discurso que se vai propagando a partir destes elegantes meandros do poder.

E, no entanto, aí está a inflação, em todo o seu esplendor, a assinalar uma transferência massiva de riqueza de todos nós para os cartéis dominantes dessa farsa liberal que controla os mercados globais. É verdade que muita gente pelo mundo fora fez poupanças – até significativas – quando manteve o nível de rendimentos mas diminuiu significativamente o consumo, durante o longo período de reclusão imposta pelas restrições inerentes à pandemia de covid-19. Em certa medida, a actual disponibilidade dessas pessoas para um consumo superior ao que seria habitual – seja em viagens, produtos ou outros serviços – também contribui para explicar o aumento dos preços.

Além deste inusitado aumento da procura, há certamente um real aumento de custos de produção relacionados com o consumo de energia, que directa ou indirectamente acabam por afectar a maior parte dos produtos e serviços. Mas neste caso já saímos dos terrenos do vírus e da sua propagação, para entramos nos pantanosos tabuleiros dos jogos de poder dos cartéis, corporações e governos, nas suas manobras de disputa de poderes político e económico: se é a guerra na Ucrânia que está na origem de grande parte dos aumentos no custo de distribuição da energia, também é verdade que todas as opções alternativas que se possam vir a configurar dependem mais dos interesses e poderes das grandes companhias envolvidas do que de quem consume e há-de pagar as contas. Na realidade, a própria evolução do conflito e dos posicionamentos militares e geo-estratégicos que se foram configurando nos últimos anos no leste europeu são também sintomáticos da importância desses poderes que não controlamos.

Seja como for, os resultados são esclarecedores: os aumentos dos preços da energia estão eventualmente a cobrir custos de produção e distribuição acrescidos, mas estão também a proporcionar às empresas que controlam o sector níveis de lucro muito acima da exorbitância a que já nos tinham habituado – e nenhum patrão ou accionista maior destas companhias globais sofreu a mínima consequência desse tal aumento custos (antes pelo contrário).

Igualmente esclarecedores são os resultados que se vão observando noutros sectores, mais obviamente dependentes dos recursos energéticos que hoje pagamos com crescente preocupação. A aviação é um exemplo relevante, relacionado com consumos não essenciais, com o turismo internacional a beneficiar do acréscimo significativo de procura que resulta dos tempos de reclusão forçada e de interrupção súbita dos hábitos de viagem que muita gente foi adquirindo. Com as tais poupanças que se foram acumulando, muitas famílias, mais ou menos abastadas, procuram com a urgência possível voltar a viajar, dispostas a pagar o que se lhes for pedido, que os tempos são de excepção. Lucram então essas companhias que em tempos de covid despediram milhares de pessoas, o que se vai reflectindo, também, na pobre qualidade dos serviços que prestam. Entre subsídios governamentais para suportar a “crise”, redução de custos com despedimentos massivos, e subidas gigantescas de preços para uma procura disposta a pagar, o cartel da aviação é dos que mais beneficia (tal como o da energia) das presentes condições do “mercado” – ou, melhor dizendo, das condições políticas que se foram criando no planeta.

Mais dramático e problemático é o sector alimentar: aí não se trata da procura adicional de uma camada da população com uma vida abastada – ou pelo menos confortável: neste caso trata-se de alimentar – ou deixar de o fazer – todas as pessoas que habitam o planeta. Também neste cartel as grandes empresas globais vão beneficiando com lucros acrescidos das subidas de preços a que estão permitidas pelo controle dos mercados que lhes é possível. Também aqui a concorrência é limitada, quando se olha para os mercados globais e para a escassa soberania alimentar de grande parte das populações. Neste caso, os cartéis que nos dominam não impõem restrições à viagem recreativa: impõem a fome.

6 Nov 2022

O charme discreto da social-democracia contemporânea

São muitas vezes ténues as fronteiras entre o pensamento e as práticas das sociais-democracias contemporâneas e dos neoliberalismos mais ou menos hegemónicos que foram tomando conta do espaço e das decisões políticas desde os anos 1980, num processo sistemático e até agora imparável de degradação da democracia, aprofundamento reiterado das desigualdades sociais, concentração crescente do poder económico e político em grupos cada vez mais restritos da população mundial, e destruição sistemática e ocasionalmente irreversível de recursos naturais.

Restam espaços ocasionais onde essas diferenças se possam manifestar, como sejam as políticas salariais ou de estratégias para o desenvolvimento dos serviços e infraestruturas de transporte nos territórios.
Ambos os casos têm por estes dias suscitado acesa discussão na imprensa, redes sociais e outros espaços de convivência mais ou menos civilizada. E, na política portuguesa, em ambos os casos pouco sobra hoje da vontade social-democrata de promover formas de regulação da vida económica e social que não passem pela promoção e reforço dos mecanismos de mercado que a ideologia liberal apregoa.

É verdade que os nomes podem enganar – a mais proeminente família social-democrata chama-se socialista e a família ainda maioritária no campo liberal chama-se social-democrata – mas já levamos décadas suficientes para nos habituarmos a esta nefasta herança pós-revolucionária que adulterou as designações em nome de ocasionais e oportunistas fervores de Abril, entretanto devidamente arrefecidos.

Um desses assuntos já leva meio século de entretidas discussões mas vai sempre voltando com o entusiasmo inicial: que fazer do inusitado aeroporto estranhamente inserido no tecido urbano da capital do país, necessariamente limitado nas suas possibilidades de expansão e um estorvo inevitável para quem viva nas proximidades da circulação de aviões a baixa altitude, sobrevoando a diversidade de bairros da cidade até aterrar a uma inusual curta distância do centro? O mercado oferece oportunidades abundantes, promessas de uma clientela maior e geralmente endinheirada, pelo menos em comparação com a doméstica, ainda e por muito tempo parente pobre da uma Europa que, aliás, já viveu dias mais prósperos.

Responder a essas supostas exigências do mercado é o que se espera do receituário liberal: há que equilibrar a procura e a oferta e se há quem queira vir, haja também aviões suficientes pistas de aterragem, hotéis e tudo o que for preciso. Estamos cá para isso: com as oportunidades e o equilíbrio dos mercados não se brinca, como apregoam os patos-bravos e agiotas deste mundo. Já com o ambiente é tudo mais tranquilo: não há esgotamento de recursos não-renováveis, como os das energias fósseis, ou alterações climáticas mais ou menos evidentes, que neutralizem a fé inabalável que também as sociais-democracias decadentes com que nos toca conviver vão alimentando estes modelos de negócio que devoram o planeta e pouca riqueza geram para quem realmente precisa. A ideia de não se fazer aeroporto nenhum – nem expansão do que quer que seja – está, naturalmente, fora das agendas e dos espectáculos destas decadentes instituições e suas agências noticiosas.

Também a solução mais moderada que se foi timidamente desenhando – a utilização de um aeroporto já existente, em Beja, que promovesse a utilização de infraestruturas já construídos e sub-utilizadas, com a inerente a criação de oportunidades económicas em zonas economicamente periféricas, esteve longe de chegar às fases finais da discussão, onde se parece estar agora. Uma opção deste tipo seria o reflexo de uma política de transporte mais orientada para a intervenção sobre o equilíbrio do desenvolvimento regional e a justiça social e territorial do que para o aproveitamento das supostas oportunidades de mercado associadas ao tráfego aéreo. Debalde se alvitrou esta hipótese: o que prevalece é a concentração do poder e da actividade onde já existe poder e actividade, em nome de uma suposta – e aliás mais que duvidosa – eficiência económica.

Naturalmente que um aeroporto que servisse Lisboa – ou o Algarve – a partir de Beja pressuponha o desenvolvimento de uma rede de transporte ferroviário de alta velocidade, capaz de levar a freguesia chegada à planície alentejana até aos seus destinos na agitação da capital ou das praias do Algarve, quando não fosse o caso, naturalmente, de se manterem tranquilamente pelos prazeres da vida lenta no Alentejo, no campo, à beira-mar ou à beira-lago, que não são poucas as belezas da zona. Foi uma solução também ela pouco levada a sério, quer no campo social-democrata, quer no liberal: comboio de alta velocidade só se for para ligar os dois grandes mercados do país, Lisboa e o Porto, onde está o poder, o dinheiro e as pessoas: reforçar a centralidade com mais centralidade, juntando comboios mais rápidos aos de velocidade bastante razoável que já circulam, às três auto-estradas e às ligações aéreas.

Promover o comboio e usar o turismo para ajudar a financiar infraestruturas de transporte público eficientes e de qualidade para as zonas mais debilitadas nestes serviços também não é assunto que entusiasme a nossa social-democracia. Aliás, mesmo quando estes assuntos são tutelados no governo por figuras supostamente menos orientadas para as cartilhas do neo-liberalismo vigente, assistimos a um reforço sistemático dos mecanismos de mercado que alimentam o centralismo, ignoram as emergências ambientais e até os princípios básicos do supostamente consensual “desenvolvimento sustentado”.

Partilharam estas discussões parte do espectáculo noticioso quotidiano com outro assunto onde sociais-democratas e liberais podiam, noutros tempos, oferecer árdua e vigorosa batalha de gládio em punho: as políticas salariais para os próximos anos, tempos incertos, de guerra, especulação e exploração massiva de recursos colectivos, num contexto desta vez condicionado por níveis de inflação a que há muito não assistíamos. Conta a imprensa que só a CGTP ficou de fora deste acordo de médio prazo que garante níveis de aumentos salariais com rara precedência histórica.

Mas podia ser outro o espectáculo das notícias: afinal, o tal governo supostamente social-democrata, a suposta oposição liberal, os representantes das empresas e parte dos supostos defensores dos direitos de quem trabalha, assinaram um acordo que determina uma descida continuada e persistente do poder de compra de uma das populações mais pobres da Europa. A organização mais representativa de quem trabalha só podia ficar de fora deste negócio e assim fez. Afinal, com sociais-democratas assim, quem precisa de liberais?

20 Out 2022

Europa periférica

São os países menos desenvolvidos da Ásia que vão registar neste e no próximo as maiores taxas de crescimento económico do continente, estima um relatório recentemente publicado pelo Banco Asiático para o Desenvolvimento.

O documento revê com manifesto pessimismo as anteriores previsões para o desempenho da economia chinesa, ainda severamente afectada pelo impacto das restrições relacionadas com a pandemia de covid-19. De qualquer maneira, a China deverá ter um crescimento do PIB próximo dos 3,5 por cento este ano – nada mal, para tempo de crise – ainda assim acima dos menos de 3 por cento que se projectam para o crescimento económico médio na União Europeia.

Diga-se, no entanto, que a incerteza quanto à evolução da economia dos países da Europa justifica inabituais cautelas: são tempos de guerra no Velho Continente e avizinha-se longo e frio Inverno, com escassez energética, preços despropositadamente altos, processos de recomposição acelerada das transações comerciais globais de combustíveis vários, numa inevitável transição pouco preparada dos fornecimentos de energia com origem em território russo para outras origens mais distantes, com as grandes empresas do lado ocidental do Atlântico a marcar nova posição dominante – e com os inerentes lucros monopolistas de empresas dos Estados Unidos em território europeu.

Estão naturalmente por fazer as contas a estas pouco subtis transformações geo-económicas mas parece certo que a Europa continua a perder boa parte da sua centralidade na economia e política globais: não só tem tido fraca autonomia face à liderança dos Estados Unidos em relação aos posicionamentos políticos e militares relacionados com a guerra na Ucrânia, como parece remetida a um papel cada vez mais periférico e dependente (dos EUA) nos mercados globais de distribuição energética. Não será difícil prever que este longo Inverno com inusitadas taxas de inflação também se manifeste numa degradação generalizada da posição cada vez menos dominante das economias europeias no contexto planetário.

É por isso que a notícia de que o crescimento económico no sudoeste asiático superou o chinês é menos problemática para a China do que para a Europa: na realidade, esta quebra ocorre no contexto de um contínuo e intenso processo de crescimento que tem caracterizado a economia da China nas últimas décadas e pouco afectará os benefícios que a sociedade chinesa foi acumulando ao longo do século 21: na realidade, não só a China mantém o seu papel cada vez mais central e preponderante na economia mundial, como vê este ano países vizinhos como a Índia, o Paquistão, as Filipinas, a Indonésia, a Malásia ou o Vietname a assumir maior relevo nas dinâmicas económicas globais. Não são certamente más notícias para a China.

Esta tendência vai marcando gradual mas inexoravelmente uma transição para novos desequilíbrios no desempenho das economias mundiais, em que a Ásia vai assumindo cada vez maior centralidade e onde a Europa se vai posicionando cada vez mais como um espectador interessado mas pouco consequente no seu posicionamento na economia global deste nefasto capitalismo contemporâneo: nem se apresenta como uma alternativa ecologicamente viável, socialmente justa ou politicamente pacifista, nem se posiciona como uma economia competitiva, capaz de aproveitar as oportunidades da super-liberalização vigente nos mercados mundiais.

Está hoje sob ameaça permanente o que sobra na Europa dos Estados Providência que a social-democracia foi construindo ao longo do século 20, sobretudo no centro e no norte do continente: economias dinâmicas, prósperas, com políticas sociais activas que promoveram educação, saúde, habitação ou mobilidade para quase toda a gente, num contexto de paz generalizada. Não faltaram os recursos para as infra-estruturas, nem para os serviços necessários para promover a eficiência dos sistemas económicos ou a equidade das condições sociais – incluindo o acolhimento sistemático de pessoas refugiadas que se foi fazendo até quase final do século 20.

Hoje começa a faltar quase tudo: as cartilhas neo-liberais impõem exíguos orçamentos públicos que comprometem as políticas sociais, enquanto a economia especulativa dos mercados globais vai mobilizando recursos financeiros cada vez menos orientados para o investimento produtivo. É uma economia onde muito se fala de inovação mas em que na realidade pouco se inova na capacidade de criar e distribuir riqueza. O modelo social europeu é cada vez menos exemplar e as pessoas que ficam para trás – ou à margem dos processos de desenvolvimento – são cada vez mais, num processo relativamente acelerado de concentração de rendimentos e poder. O dinamismo e o crescimento movem-se noutras paragens – neste caso na Ásia. Sobram, entretanto, os dejectos desta prolongada crise no continente europeu: os movimentos de inspiração abertamente fascista que vão ganhando protagonismo e até governos, outra vez.

7 Out 2022