Anabela Canas Cartografias h | Artes, Letras e IdeiasOdor a mar [dropcap]E[/dropcap], ainda no momento em que distraidamente sinto o copo de chá a escaldar nas mãos, pela oscilação estranha de uma memória que me ultrapassa e afunda na enormidade do tempo, um abalo de terra sabe-se lá sob que impacto, lembro-me de como estou próxima das dunas do outro lado do agora mar. Recuo milhões de anos antes da deriva continental, penso em todas as derivas, e logo ali obliquamente a escassos graus de latitude sul nesta Pangeia ancestral, mergulho os pés nus nessas outras areias. Transpondo a distância, naquilo que é afinal um pequeno salto sobre o fio da navalha. Tenho que pensar neste fio. Mas isso será uma outra história para depois. Por agora são 21 graus a sul e a longitude, essa variável em milhões de anos. De ínfima a relevante. Desço lentamente com o dedo no mapa deste planeta solitário e lanço-o á esquerda sobre o mar como os olhos. Estendo ainda o olhar pelo deserto nesta ânsia de contemplação e mais para oeste saio pelo deserto de azul do oceano. Não estátua de sal, ou me desfaço e perco nesse olhar. Recuo uns graus a sul e não é o deserto, deserto, mas um olhar em plenitude. Talvez em busca de palavras ou de uma luz. E descendo mais um pouco começa a desenhar-se. É talvez um farol em Alagoas. Apontado ao mar. Há tantos. E de súbito coloco-me do outro lado. Seguindo essa imensidão como se ao longo do braço de luz. Caminho pela orla costeira da Ponta Verde, como em qualquer outra franja à beira-mar. Encontro Aurélio. Sim, aquele do dicionário das palavras difíceis. Ou fáceis. Sentado em bronze, com o seu amor à Língua portuguesa. E, noutro ponto, Graciliano Ramos. Um outro ser em bronze, que caminha de cigarro contemplativo e olhar baixo, como quem conta palavras nos passos. Como o realismo pode ser belo ao evocar a passada do caminhante. Eternizados ambos no seu olhar contemplativo para o mesmo longe, mesmo que de dentro. Em busca das palavras também eles e ambos. Porque pensariam achá-las perdidas na imensidão sem ruído. Como a do mar de palavras. Ou no fim dos raios de luz destino das noite do farol. Com um me apetece sentar e com o outro caminhar. No seu silêncio. E com o outro, chegar. Porque é um outro dos faróis de Alagoas – o mais bonito de todos – estranho fantasma de outro tempo e uma bela e envelhecida construção em bronze, também, o que me paralisou de espanto. Terá sido belo no seu tempo. E é diferente e belo neste tempo que parece pedir dramaticamente que pare. Deixando a sua luz apagada para que não demasiados olhos por aqui cheguem a mudar este paraíso de areia branca e águas finas de azuis e verdes. É a praia Foz Rio de São Francisco, um rio que barrado mais atrás, esmoreceu no encontro com o mar e o deixou subir mais acima. Uma foz é sempre um pouco revoltosa. Como certos encontros. A adaptação de águas diferentes. Como a espantar visitantes. E se muito o mar cobriu, o resto o fizeram as dunas ao sabor do vento. Também estas escondem segredos de quem viu submarinos pela calada da noite em busca de água doce. Armas debaixo de água e olhar de crocodilos em busca de farol que os guiasse. Este, inclinado como um velho campanário de Pisa, primos na música que lhes descrevia a alma. A um e a outro. Neste, em forma de luz. Distantes, mas hoje mais. Do que na longínqua Pangeia sem monumentos. O mar avançou deixando-o fantasmático, ensimesmado e inclinado, e mais que centenário guardião deste mistério de vidas antigas. É o farol discreto, crivado de ferrugens e oxidações várias. Feito de texturas de cores insólitas na pele de bronze com odor a mar, como rugas crestadas de cento e tal anos. Viu submarinos alemães na segunda guerra, abusarem da sua luz inocente. Mas a luz, quando toca, toca a todos. Pescadores como contrabandistas. Talvez por isso se apagou. Se inclinou cabisbaixo. E se corrói por dentro e por fora de mistérios que se teceram ante a sua luz. Como um anjo prestes a afundar, ou a levantar voo. Quantos graus de inclinação tem aquele olhar baixo, como de cílios introspectivos a furtar o olhar ao horizonte, para sempre? Narciso? Não. Não chega a inclinação a tanto, ficando-se antes pelas águas um pouco além como quem luta contra a ventania do tempo de través. Aspirar. Como uma exclamação de odor a mar. Oh…perfume a mar distante. Com uns graus de inclinação. Jubilado pelos astros. Ou não fossem eles, e porque se fez noite, seria bem escura a vasta abóbada. Invisível e belo fantasma, agora. Breu em redor. Acendo um cigarro. Mas preciso de um pouco mais de luz para lhe apreciar o fumo. Habituada a esta omnipresente luz artificial que de repente se apagou no bairro. Nestes quarteirões em volta. Acendo uma vela e penso vai voltar. Há sempre que ter velas em casa. Mesmo que seja preciso percorrer com um rápido pânico os corredores na mais completa escuridão. E, acesa, parece uma qualidade imensa de luz, necessária e no contraste com tudo o resto. Misterioso poder suave de iluminar. Chama. Como um farol as águas ao longe e saber onde se desenha terra. E depois, há sempre os astros.
Anabela Canas Cartografias h | Artes, Letras e IdeiasCaminho de Sahel [dropcap]L[/dropcap]onga estrada. Quantos anos têm estas palavras novas, já irisadas de dunas? Forma-se uma bolha, no tempo. Como uma erupção dermatológica que vai passar ou deixar marca. Na pele. Do deserto. Uma ruga nas areias assestadas ao vento. Como ombro defensivo. O dia mais pleno e a paisagem mais longa. A ociosidade que evolui nas dunas como as rugas do tempo a lavrar o rosto e com a lentidão inexorável que só ele sabe. Lembrar tantas coisas não vistas e não vividas. Tantas, que nelas nos encontramos. Que liberdade imensa só assim. Bem vês, estamos ali, mais longe do que o imaginado simplesmente nos dias iguais. Vou. E sei que nos encontramos lá. Para um chá perfumado de menta e um sol tórrido. A fugir. Lento. O toldo em franjas. Mas nada importa porque se coa a luz e o tempo pára. Em coisa escuras “para ser amadas entre a sombra e a alma”, como dizia Neruda. Ou lugares possíveis que dizias, estendendo a mão mapa. Tiravas da carteira esses catões de visita que sigo, a vir dar aqui. Onde haveria que voltar e sempre. É talvez por isso ou porque que não há dia maior do que o do deserto. Nem lugar que menos sombras ocultem. À luz, sem que tudo se faça visível, sem cantos sombrios e estátuas a encobrir a face que conta. Em segredo nas luzes da cidade. Olho para dentro deste copo de chá, que tenho entre as mãos. É preciso que na transparência do líquido não veja um chá deserto. Não me apanhes pela noite, viajante. Enquanto o chá me arrefece sem emenda nas mãos. E, pontual, chegou, como outras vezes, em sua vez a ausência. Há desertos de viagem, como objectos portáteis que trazemos connosco. E há os desertos grandes que se estendem ao olhar e, na comparação, os reduzem a ínfimas partículas de um punhado de areia, no enorme continente. Espraiamos os olhos como quem os atira ao mar. Refrescam a alma sedenta de correr como só o faz um chá quente. E quantas vezes – outras – à beira do deserto. Deserto do tórrido esplendor a sós. O ar do deserto. Move-se. Cedo ao perfume e à linguagem do chá no copo de vidro, a escaldar e a espalhar um aroma de menta. Das folhas sóbrias a acabar vida na beira do desvão do copo e um oásis. Abismar as pupilas mínimas e os lábios nessa fronteira do líquido transparente. E doce, sempre demasiado doce. Para lá, não há esquinas nem ângulos abruptos. Só esse mar. Em drapeados que não parecem temer nem acabar. O Sahel. Esta faixa quase árida de savana seca, com um verão chuvoso mas pouco. Lacrimal. Sahel é quase nome de anjo. Uma longa asa estendida à cintura de África, como quem dissesse, daqui para cima o deserto. Porque quando atraca a um território, revira-se a terra em alguns graus no eixo de rotação diário e cria desertos de longitude indeterminável. Mas agora as penas um muro. Uma barreira de árvores contra a vastidão crescente. Onde mais te poderia encontrar? Neste terraço ressequido sobre o mar de luz. Nem precisava de me virar porque pressenti sem equívoco a enormidade que quase alteraria o eixo de rotação da terra de novo em mais uns graus. Não fora assim antes e seria bem outra a paisagem. Que a mudar, seria como a minha num minuto determinante. E mesmo se mais um grau apenas, da rotação, a mudar, muitos quilómetros de deserto novo sobre as terras limítrofes. Que deserto é tudo o resto. O que se instala. Sentes o poder? Veio, chegou antes de se anunciar. À beira do nada, a orla do estéril. Em contrição pelo aperto inclemente e do sol. Se alguns reconhecem a linguagem do deserto. Se ouvem as vagas como senão sentido, ouvido e amado. Secreto rumorejar de areias sob os pés, porque o restolhar é indiscreto, o sentir. Sair daquele ponto apontado no mapa. Nas entrelinhas de um mapa, encontramos por vezes quem voou sem destino e amarou em dunas. Uma trepidação lânguida do ar, como se toda a realidade a rescender do deserto da terra logo ali aos pés, num fumegar a respirar o calor intenso. Como se acabada de sair das trevas frias e ainda fumegante. Sahel, como outra franja de deserto qualquer. Percorrida de caravanas, de alforges repletos de coisas essenciais. Segredos. Armas. Coisas que o comum mortal não coloca na lista do necessário. Mas cada um sabe de si e do que transporta. Descalço-me. Os pés, a alma exaustos de caminhar. Os oásis existem, afinal. E depois, mais além não interessa mais do que o teu olhar indizível. Então estás aqui finalmente no meio deste nada. Nada mais carece de sentido nenhum. Porque cheguei, porque me sentei, descalcei as botas doridas e simplesmente rejeitei a possibilidade dessa dor menor entre o meu olhar e tu. Ali. Na minha frente e longe de tudo. Uma camada de tempo e abstracção. Mais que não seja desta dor insistente. No deserto, onde acampar senão na voz de uma voz amiga. No semáforo inclemente desse sol sem-abrigo nem destino. São vozes, as do deserto que nos toma. E quentes. Sobejantes ao sol que ilumina. A importância ou o esquecimento. Olho mais além. Ali está ele, parado, extático em espera. Ao apelo na atmosfera densa e tórrida, a inundar pulmões e alma de caminho, volta-se de frente e reconheço-o inconfundível. Cruzamentos nas linhas do mapa, da mão estendida. O relógio parado sem prazo a extinguir, fecho as folhas amareladas do sol a esta escrita. As palavras não crescem no deserto. A plenitude. Talvez. Longe da selva, urbana. Demasiado urbana. Onde cada pessoa é demasiado humana. E só ele, anjo. Mas as árvores crescem. Lentamente. A grande muralha verde contra o avanço do deserto. A verdade é chegar. Ninguém vem tão longe senão para se encontrar, ou um amor. O chá aromático, de folhas, no copo que rolo nos dedos e ainda a escaldar, o dirá. Senão o tempo.
Anabela Canas Cartografias h | Artes, Letras e IdeiasUm semáforo na Etiópia [dropcap]L[/dropcap]uzes coloridas. Vermelho, verde. As acções doseadas no fluir do tráfego por cores. Sempre para uns uma e para os outros a de sinal contrário. Quem conduz adora as ondas verdes de semáforos a mudar à sua passagem sem interrupção. Chegar cedo. Mas para cada onda verde, existe transversalmente uma enorme onda vermelha a barrar a pressa de outras vidas. Num avanço interrompido e sincopado como a subida ao castelo. A atenção aos sinais nos pequenos capítulos do dia. E haver sempre um sinal escondido. Amarelo intermitente. Um peão que pode passar com sinal vermelho se não vem carro, um automóvel a virar a curva quando não vê peão. Os dias de episódios anódinos que perfazem o quotidiano. Em tudo insignificantes e idênticos aos de outros dias. Mas que ficam a macerar lentamente, desesperantemente, muito depois. Como a ânsia de resolução de uma equação simples e determinante que invade a consciência sem aviso. Nesta construção invisível em que se manipulam irreversíveis conjuntos concorrentes e aleatórios de circunstâncias, de que se é alvo e de cujos efeitos se fica pendente, na ignorância do que poderia ter sido. Se de outro modo. Virar num cruzamento e à curva parar o carro para deixar passar um homem, por acaso idoso, por acaso de uma cor qualquer, que começa a atravessar, com o semáforo vermelho dos peões a dizer-lhe para não o fazer e eu a fazê-lo hesitar. Deixar passar. Porque era uma pessoa. Porque era um idoso. Porque tinha uma cor qualquer, e por uma razão qualquer. Porque ele não tinha razão e eu não tinha pressa. Por nada de especial que simplesmente me parou. Ele. Como poderia não ter sido assim, ele não estava em risco, eu nunca tenho tempo. Coisas sem importância. E não batalhas para ganhar uma guerra qualquer. Perder quinze segundos na corrida da manhã e logo um pouco mais à frente parar num sinal vermelho. Uma sequência com uma moderada dose de consequência. Nada de especial. Mas foi aí que sem o pensar, sei agora, algo se imiscuiu no anódino do episódio como se dissesse para comigo que ali é que a porca torce o rabo. Não que eu tenha olhado para o sinal a mudar como quem olha para a arrogância de que quem exerce um daqueles pequenos poderes que dão satisfação a alguns egos. Mas dei comigo a revirar as possibilidades de todos os ângulos como se daí adviesse como resposta, o sentido da vida. Que mente a minha. A precisar de respostas. Mas não, o sinal vermelho não foi claro na arrogância apressada de cair naquele momento, para parecer determinante o ínfimo pedaço de tempo que tinha despendido a parar e deixar passar, a meter uma nova mudança e avançar. Estava simplesmente lá porque mudou ao seu ritmo. Podia pensar que os céus não recompensaram a escolha feita, com um sinal verde. Mas também que confirmam que mais minuto menos minuto perdido a deixar passar o homem, não alterara relevantemente o curso do dia. O sinal vermelho fez parar de uma maneira ou de outra. Perder trinta segundos. E depois pensar que, se não tivesse deixado passar o homem, poderia ler o inevitável sinal vermelho como a condenação do gesto mesquinho. Ou como a confirmação de que deixá-lo passar em nada teria atrasado o meu caminho. E se caísse o sinal verde? Pensaria que tinha valido a pena o gesto egoísta, caso não tivesse passado o homem, ou que era a recompensa por tê-lo deixado passar se assim fosse? Duas hipóteses: deixar ou não deixar passar. Para cada uma, duas luzes de semáforo de colorido diferente e ambas possíveis a seguir. Para cada cor da luz, duas leituras possíveis. Recompensa ou penalização. Não há uma ética no acaso. E no final do pequeno episódio, de novo o sinal íntimo e intermitente. Não imaginar. O que poderia ter-se cruzado num dia qualquer, como destino, em resposta a um minuto que se perdeu ou se ganhou. Como se alguém mexesse fios de marionetas e como se o fôssemos. A aproximar ou afastar de sonhos. As luzes são sinais. De trânsito. De curta validade. A respeitar, de qualquer modo e para além deles. Sinais da importância de um sinal. A cumprir ou a não cumprir. E só. Sem mais respostas, sem validação sem orientação para além do momento curto e logo obsoleto. Outros sinais são como um semáforo na Etiópia. Uma agulha num palheiro. Lembro-me daquela praça em Adis Abeba onde nunca estive. Um cruzamento de loucos e sem semáforos. Onde o único sentido que prevalece, é o de cada um. E chegar onde se quer. Não. A vida não se apresenta clara nem dá respostas unívocas. Esconde a causalidade das pequenas coisas, como quem se reserva para o melhor ou não pretende assustar. Como o platonismo de Kafka. Uma realidade sempre a caminho de ser e nunca sendo. Não uma direcção e não um fim, somente um sentido. Mas algumas respostas são prévias, como mantimentos para o caminho. E a única resposta vem de dentro. Como num teste de escolha múltipla. Avaliamos, escolhemos e voltamos a avaliar. Mas o caminho é às cegas, tirando pequenos sinais. Onde está o sorriso da cor e o nosso, a cor dos segredos – isso – diálogos a sós.
Anabela Canas Cartografias h | Artes, Letras e IdeiasDicionário das palavras difíceis [dropcap]P[/dropcap]ensar como as palavras são difíceis e no mesmo mecanismo reflexo ocultar as difíceis, de dizer. Simples e límpido. Na infância, palavras difíceis, eram as desconhecidas a ver no dicionário. Mas não por serem duras ou por magoarem. Mudou quando crescemos. Agora, difíceis são as que custamos a dizer para fora desse limbo em que nos assolam de dentro. A construir ou a corroer. Ou as que abrem caminho na carne, sem anestesia, vindas de terra estranha. O que procuro nas palavras que se acercam quando escrevo, senão pacificar o desconhecido, o conhecido, é talvez difícil de decifrar. Um mapa. Surpreender um novo ângulo que o simples pensar não teria abarcado. As palavras são exigentes. Não se resignam com imprecisões. Perguntam na sua afirmação se estão no lugar certo do sentir do pensar. Mas num grau de exigência tocado de humildade. Elas pedem licença para ficar e dispõem-se a deixar lugar vago a outras, se vieram inconvenientemente. Se nos entenderam mal. São educadas. De bom feitio. E no entanto capazes de cortar a respiração de tão incisivas quando tocam a pele. A alma. Pergunto sempre, nesse caso, de que lado sem piedade saíram de mim. Quando as deixo aflorar o ecrã luminoso. Não posso deixar que me façam mal. As minhas, pelo menos. Hoje as palavras difíceis são as difíceis de escrever. As difíceis de pensar a dimensionar um julgamento sumário em si, e sobre quem, simplesmente pensadas, nos tornam. Às vezes correr no dia e nas coisas feitas e a fazer somente para chegar à noite. Entrar, descansar nela, essa interna terra de ninguém. Intervalo na voragem até mesmo quando demasiado lenta, amadurecida e penosa, dos dias. Penso que desperdício correr. Penso que desperdício tanto do que faço e tanto do que haveria a fazer. Penso. Que desperdício tão grande viver a pensar em vez de pensar a viver. E outras contas coloridas. Que faço aqui? Que caminho é este? Quando se sabe de antemão onde se vai terminar mas não como, e quando. Em pleno ou com a consciência pela metade. Serenamente ou em agonia. Comigo, com quem? A sós. Quase de certeza. Palavras a apagar. Coisas que não se devem dizer. Aprender a escrever silêncios. A viver palavras melhores – como? Mudá-las de lugar na casa do dicionário. Significados a dois, sinónimos a dois. Sentidos em grupo. Famílias de palavras com quem jantar à semana. Umas, que acariciem as outras. Há coisas difíceis de fazer. Mas há coisas ainda mais difíceis. Não há maneira mais infalível de fazer as primeiras, do que temer as segundas, adiar, fugir até ao limite do possível e nesse momento fazer uma série infinita de coisas fáceis e, para adiar mais um pouco as mais difíceis de todas, fazer as simplesmente difíceis. Tornadas, por magia da comparação, fáceis, afinal. Com a secreta satisfação de ver o que foi feito afinal. Mesmo por razões transversais. Mergulhar no covil de um monstro que se torna vizinho e cúmplice. Nunca se enfrenta serenamente um medo, senão em fuga de outra esquina atemorizante. Com as palavras, o mesmo. A escrita não é uma actividade voluntária. Não acontece quando quero, pelo contrário acontece quando não quero, quando não posso. Percorrer estes ténues limites da vontade é como equacionar a fila da confissão. Fujo do que me persegue mergulhando nisso. Não quero escrever isto que me assola. Na verdade é um soluço ou um vómito súbito. Uma certa e secreta escrita. Depois, num miradouro sobre este espaço nu. E vamos a ver, e já somos nós. De lápis na mão, emprestado, azul. Aquele Atlas, de países fora de moda. Sempre gostei de mapas de percorrer e sonhar. E tenho o oráculo. De Borges. Aquele livrinho de folhas finas e azuis em que nunca leio mais do que uma palavra, apontada cegamente. E quando aponto uma página vazia, penso: o presente não fala comigo, de momento e o futuro indisponível. Sempre fez sentido assim. Como em qualquer leitura profética, projctamos o que desejamos ler. Assim, uma única palavra, sem os labirintos que a atiram para bifurcações naturais a qualquer linguagem. Explicando, confundindo. Mas entre os livros de mapas, gosto particularmente do dicionário. Essencial à leitura daqueles. De que servem os mapas sem palavras de ir, vir, gostar, sonhar, querer. De um nunca. Um de novo. Em cada entrada o mergulho a pique. As dicotiledóneas ou as diatomáceas, tão perto da dicotomia da disposição. A secura lisa da apresentação. A poética revelação das palavras bonitas, das comuns, surpreendentemente versáteis. As estranhas paisagens de desconhecido de umas e do reconhecido noutras. E pensar que todos os livros e todas as conversas, de uma miríade de vidas cabem ali. Desarrumadas como quem acabou de se levantar de uma noite. Dissimuladas, na sua ordem alfabética. Duas páginas em frente. Virar esquinas do grosso volume. Pejado de vida, mistério, sons abafados pela estridência de outros. Um mundo. Que sempre espreito com fascínio e terror. Quantas palavras por estrear…Um parque florestal pejado de seres vivos até à mais recôndita camada. Um dia de arrumações, reorganizar o dicionário. Arrancar as páginas cuidadosamente sem estragar a encadernação. Como cartas de Tarot dispostas sobre a mesa. Consultar o insólito e novo agrupar de impressões em soluções para a vida. Respostas em jeito de amigas que não nos conhecem e quase acertam de tão longe. E com tanto ou tão pouco sentido, quanto a coerência se revelou incapaz de definir. Como uma outra poética, sem espartilho. Recortar e colar tudo de outro modo. Reorganizar sentidos. Palavras gastas com outras mais jovens. Talvez. Umas que não se conheçam, para ver. Deitar fora as que têm demasiado uso e me cansam. Já. Tempo, matéria, mental, ilusão. Que aluada sou neste perscrutar escuridão. Quando a hora é de quem dorme cedo ou tem compromissos para a noite e aqui, do lado de fora se gera a quietude que teima em não entrar. Olho sempre pela janela porque dela vem a noite e em mim ainda oscila este fundo interior. A querer sair e acalmar. Há que sair deste fundo de mim. Unir com uma linha fina de lápis F, delicado, nas folhas do pesado livro, a palavra estranha da entrada x da página da esquerda, à palavra comum da entrada y da página da direita, num casamento desigual e ir daí por diante no universo que se esboça. A pensar, exultante na perplexidade, que tudo está em tudo, escrito ali. Somente a precisar de arrumação. Como um destino. Que se quer ler nas estrelas. Mas é de escrever. Ou um Atlas. De que nos servem tantas terras desconhecidas, a que ambição desmesurada abrem território, penso. Há um mapa pessoal a desenhar. Uma soma de caminhos, um sistema vascular. Como um corpo e o único amado.
Anabela Canas Cartografias h | Artes, Letras e IdeiasBatom para sair [dropcap]Q[/dropcap]uem sou eu, era o que ela talvez perguntasse. Mas mais tarde já não estava tão certa de que não fosse: o que sou eu. É tarde demais para lhe perguntar no seu já longínquo sono eterno. A minha avó Maria Antónia, de olhos vivos e por momentos perdidos nesse abismo profundo de uma dúvida que poucas vezes a terá feito hesitar. Porque me disse um dia às vezes eu pergunto-me assim quem sou eu. E na ênfase das reticências de quem não espera uma resposta e de quem não tem uma a oferecer, nos remetíamos ao silêncio. Ela na poltrona dela, eu no canto da minha. A medir a dimensão de tamanha questão, por momentos fora de qualquer registo parcial por papéis desempenhados, coisas vividas e feitas, nada por acabar. Excepto isto. Ou nem mesmo isto. Esta permanência até que se foi mas questionada entretanto. Talvez a pensar no nada que poderia advir. E como o futuro pode transtornar retrospectivamente a partir do ainda nem foi. Mas era talvez como se colocasse um espelho em frente do rosto para colorir discretamente a boca de rosa com aqueles batons que lhe duravam anos e só para sair. Talvez reflectisse a imprecisão do espelho. Talvez tomasse o seu lugar. Vendo-se de fora, redonda estanque plena e estranha. Irreconhecível por momentos. Desconhecida. Por momentos. Que ordem de grandeza tem uma questão como essa que tanto afunda e tão discretamente se esvai? O que fica de uma destas questões quando se apresentam ao consciente sem convite a entrar, a ficar por momentos. Não sei mesmo que simplicidade ou precisão teria esta sua pergunta. Na verdade, ao ouvi-la, muitas possibilidades se abriram. Hipóteses em alternativa como cenários enevoados, que se colocariam por detrás daqueles olhos vagos por momentos. Que parâmetros do fazer ou por fazer e de se encontrar ou se perder, a delimitar a pergunta, se terão alinhado. O ser para si, o ser para o olhar dos outros, o ser para quê ou o ser porquê. E em que lugar a vida, simplesmente evidente, se destronou como tal, a pedir mais do isso como explicação como sentido. Em que momento e porquê isso foi questão sem resposta. Porque ela não a teve ou tê-la-ia dito no decorrer daquele longo olhar para longe em que me convidou a olhar. Também. Fiquei até hoje abismada perante a recorrente enormidade, em frase tão curta, de se enumerarem três palavras de distinto eco de um ser. Como imaginar em que diferiam. Esse quem e esse sou eu em distintas tonalidades para aquele simples ser em si que se interrogava e em como essa afirmação dupla e confirmada de ser ela, era quase cancelada pela exterioridade de um impreciso quem. Consola-me em parte, pensar que ela sabia ser e sabia ser ela. Só não sabia quem. Esse quem que saiu dela numa interrogação de fora. Fora de casa. Como um batom de sair à rua. Mas entendi, investigando as funções redundantes ou falsamente o sendo de um eu um quem e um sou, numa única e curta frase, que nem quem sabe a fundo de gramática e da Língua pode responder à função desta estranha palavra quem, naquela frase naquele olhar. Como um ser estranho também ele a apresentar-se ao espelho e desconhecido dela. Quem sou, eu, que ridícula ambição de ser? Quem sou eu para além do que acho em mim? Quem sou eu de nada me revestindo? Quem sou eu, nada? Que nada me acho, e em nada me acho. Quem, afinal. Um mundo de afirmações nesta remota questão sem resposta. E, vendo bem, sem interrogação. Porque lhe faltava o ponto. Que diálogo suspenso. A sua questão sem interrogação, o meu silêncio cheio de coisas. Em espera. Um nada que passou. A encher-me a memória. Coisas. Querida avó, como somos diferentes. No batom. Eu não tenho tantas dúvidas longe do espelho. Somente espelhos. E aquela questão, tão pequena quanto a conseguirmos ouvir, tão irrelevante quanto quisermos, é como a entrada numa sala pejada de espelhos. Ficamos confundidos perante as múltiplas possibilidades e rimos. Identificamos o excesso e a aberração. Mas lá bem no meio há o espelho certo e razoável, e nele temos que nos reconhecer. Mas primeiro, reconhecê-lo. Depois, reconhecer quem o segura. Olho para ela. Vidrada de transparência por aquele olhar que me ultrapassa sem tocar. E também agora dos confins da memória. Não sei se a vi mais inteira naquele preciso momento em que me abrangeu, sem querer, nesse seu não saber que incluía o que de mim houvesse nela. E assim me excluía e deixava serenamente pendente de futura resolução. Ou que ela voltasse. E abismada no momento em que a interrogação fez tábua rasa de tudo. De quê, afinal? Talvez o diálogo sobre meandros da mente seja um território de isolamento a duas naquele momento. Uma pedra sobre o abismo que ficamos a contemplar. A tentar alcançar. Um enorme silêncio sem ponte. Sem a pequena ponta por onde desfiar o intrincado novelo, que seria o ponto de interrogação inexistente. Fiquei calada nela. Com os olhos nela. E ela sabe-se lá onde. Mas onde nem os seus nem os meus alcançaram. E mais ainda, agora. Que há tantos anos se foi. Com o seu batom rosa. De sair.
Anabela Canas Cartografias h | Artes, Letras e IdeiasO quarto [dropcap]C[/dropcap]rescente, minguante, ou simplesmente o quarto. Escuro. Que se teme como se tem em casa. O pavor do desconhecido que nos invade e está para além daquela porta. Que se abre sozinha num chamamento. Do lado de lá, ou do lado de cá. Quarto crescente, dizia-se, era o tempo de cortar o cabelo para que crescesse melhor. O que significa melhor? Mais rápido ou mais forte. Mas nunca as duas coisas. De acordo com as fases da lua. Mas é sempre a renovação. Tempo de mudança em catadupa ou em profundidade. A pedir paciência e distância para ler em longitude. Não tenho cortado. Há qualquer coisa impensada e ancestral, que me apetece, nisto. Talvez estranho. Se não será estranho tudo o que somos nos outros. Um bom jogador calculava a mão do adversário. Novas cartas de jogar, de marear. Mesmo as de avião chegavam com cheiro a maresia. Rasto de nuvens ou aroma de terra. Vindas sobre o mar a olhar para baixo e a contar milhas. Dias, até chegar a continente. Cheias. Mesmo se de pequenos faits divers. Palavras trazia-as o vento. Mas aquelas ficavam para sempre coladas amorosamente, com a discreta cola que une os pigmentos à folha, num para sempre que para sempre se podia revisitar. Saborear. Escrever é bom. Que pena perder-se o prazer das cartas. Não as de jogar, talvez mais sedutoras, mas de escrever. Ao outro, mesmo o outro de nós. Numa confissão de coexistência pacífica. As cartas são sempre uma emoção ao ponto de subir aquele nó. São tempo, tão tempo. Ultrapassado com tempo e com o tempo necessário. Dantes muito, hoje menos. O necessário para a ponte. O tempo parado, refeito remodelado. Um registo físico que se apertava nas mãos e prometia. E a caligrafia laboriosa, estilizada de quem se vestiu bem pela manhã para chegar ao outro. Tive um amigo. R. De há muitos anos e há muito retirado. Era apelido. Que parecia nome e era. Nunca tive tempo de passar a tratá-lo pelo primeiro nome. Pareceria uma outra pessoa. Vivia antes num quarto apertado, meticuloso e escuro, em que o visitámos – lembro – perto do antigo aquário. Um mundo recolhido. Como se a sofrer de tonturas e enjoo da trepidação do mundo. Mais tarde numa casa com luz. Tinha uma colecção de copos antigos. Delicados e lapidados, que guardava num móvel retro que abria com aqueles gestos lentos a orquestrar poesia. A voz, os olhos transparentes e as palavras repletas. Ao ponto de ser parte de um teatro e no medo de dizer coisas rudes e sem a deixa certa. Uma performance de zelo e o desafio da capa poética do tempo a passar, nessa escultura aprimorada para a memória. E um pé de rosas pequeninas e claras num vaso, que se dispôs a deixar partir porque deveria podar as raízes como os delicados ramos. São difíceis as rosas. Ou talvez não fosse isso, mais do que o que me ficou na memória ficcionada. Talvez naquele dia ela estivesse, a roseira mínima, por ela própria, simplesmente de partida. E ele, por um desses mecanismos de negação do inevitável, a iludir o destino da roseira cruzando-o com o seu. Bebeu demais naqueles copos, uma certa desistência do mundo como a dor da desistência da rosa. Da sua. Abalou, na soberba convicção da sua estranheza máxima. E da sua inviabilidade face ao mundo. Tornar-se ilegível e invisível. Para não ver a sua invisibilidade descontrolada. Uma ilusão de poder. Esta gestão do invisível poético. Retirou-se pelo caminho mais curto. Da face visível, vista daqui. Da sua face ao mundo e deste, na sua impraticável relação com a estranheza. Mas cada um a sua. E desapareceu de qualquer mapa. Espero que esteja por aí. Eu tinha aquele amigo. R. Escrevia cartas como ninguém. Adivinhava-as poéticas no seu hermetismo meticuloso. Que ele sabia. Porque as sabia para lá dos limites do legível. Há duas formas de abstractizar, mesmo na caligrafia. Uma, esse estender vogais e consoantes num gesto langoroso e largo que as dissolve numa linha que é quase um espreguiçar felino e sensual. Outra, esse retorno tenso e imbricado sobre si, em nós de brusquidão. Em cada haste um nó, em cada perna um cilício. Ou esse revirar a letra sobre si própria com um braço que se protege. Na caligrafia dele, tudo isto e a escala à beira do invisível. Do abismo. Que para ele seriam as palavras que só ele sabia como se despenhavam. Num pedido a serem lidas. Talvez, como se quisesse. E não nos seus limites. Angustia-me ainda, quando o lembro. Aquelas cartas – poucas, quando eu vivia longe – encriptadas numa escrita minúscula, indecifrável também por outros requintes que não a escala, também na forma. Já não bastasse o conteúdo. Pior do que o Edge Rank com mais de cem mil variáveis. Há tantas formas de ilegibilidade. Quase só o desfiar de linha plena de nós apertados e finos. Tão finos que não havia unhas que os desenleassem. Era para ser assim. Uma teia de sedução muito aquém do visível. A ilegibilidade assumida do ser face ao outro. A fuga desesperada à leitura. Conseguida. Desesperante. Protegida. Como um temor prévio de não ser entendido. Mas talvez maior, ainda, o pavor de ser entendido. Demais. E, não confiando no mundo, por defeito protegia as suas ínfimas flores nocturnas e exauridas. Ao ponto de as deixar ir. Quanto custa este envergonhamento de ser, de sentir, de ser sabido, sentido… Ele retirou-se em quarto minguante. Mas colecionava copos com alma. Vindos de outras casas e de outras vidas. Poeta solitário, virou-se para a poesia e esqueceu as pessoas para que não o esquecessem a ele. Uma espécie de abrupto – afinal – mergulho de novo num talvez outro quarto escuro. Aliviado de todo o peso extra, terá talvez pousado a caneta de vez. Sem ninguém de quem se esconder. Ou não. Não sei, até hoje, que lua nova lhe veio depois. Que crescente surgiu dali. Mas entendo, agora.
Anabela Canas Cartografias h | Artes, Letras e IdeiasSecreta via das árvores [dropcap]F[/dropcap]olheio em paragens de acaso os cadernos destas escritas de O. Não lhe prendo as raízes. Tenho os olhos cheios de planície de sempre. Virasse-os do avesso e assim era o que lá encontro. Espaço. Sentido por detrás destas cores variáveis de vegetação e terra. Leio estas linhas nos diários de Olive e sei que são escritos de amor. Não estão datados por tonalidade de cicatriz. Talvez pela contorção dos torços. Folheio a eito páginas daquela escrita. As cores são serenas como bordado num vestido melancólico. Cores de janeiro. Voltando às árvores. Hoje deixo as que, serenas e verticais, parecem arrogantes de serenidade, saber, imutabilidade e razão. Seres de tonalidades soturnas discretamente emplumadas. Anjos nocturnos. Silenciosos ou embalados naquele marulhar conjunto da folhagem longínqua. Mas numa pujança que ao olhar se oferece terrível e esquiva matéria, densa e pesada ao sentir. Que partículas que não são matéria de quantificação nos sufocam o ar parado nos prendem os passos ao pé de uma cadeira e que de amarras não parecem ser fundamento. Que coisa estranha seria o gostar, prendido a critérios mas nada que se pareça à estranha a tudo isso e mesmo estrangeira emergência do amar. Amamos tantas coisas, se amamos e quando amamos. Amamos aquilo que nos enternece, nos causa desvelo nos transcende para lá do estrito lugar próprio, na vocação boa de amar. E amamos o sublime terrífico real de que nem sempre podemos gostar mas sabe-se lá porquê e o que nele se prendeu. Viro uma página e retomo o olhar que divagou para longe. Prendo-me às emocionais. Que as há na linguagem das formas. Aquelas que construíram campos de viagem e paisagens ilimitadas no terreno que não domino. Que nem sei como cabem em casa, e mais ainda nesta pequena caixa-de-ressonância. Mas é anseio que ficou a dar espaço. Amplificado para dentro. Feliz de ter visto tantas vezes, quando bastava só uma, que se estruturou como janela para o mundo. Elas em perfil sinuoso e lírico, sempre naquela espécie de agitação prévia à fuga, ao movimento, à dança. Como os sentimentos sempre prestes a extravasar porque não se fizeram para ser contidos. Apertados. Ou se o fossem, sempre entumescidos de coisas estranhas e tumultuosas. Espremidos destilariam algumas gotas de lágrima, ou apurando o silencioso olfato, talvez essências, perfumes claros e confusos simultaneamente. Olhando as pequenas árvores à beira da secura. No espaço de passagem. Os corpos em variações irrepetíveis, tensas, expressivas e as pequenas folhas de colorido exausto, despenteadas em vagas, preparadas de sempre para poupar a água. Formas dramáticas e penosas de se ajeitarem à imobilidade. Quem diria a riqueza que das suas dores se exala em estado líquido. Árvore pinga-amor. Tão longe as oliveiras dispersas pela planície seca e pálida, da macia e líquida, perfumada luz que virá dos frutos amenizar o pão. Tão longe do ouro essa cor preciosa. Quem diria. Tão diferentes da vertical e parada – sóbria, como se se pudesse dizer serena, se susceptível de sentir – natureza das outras árvores. Uma beleza sólida para outros dias. Hirtas afirmativas. Pontos próprios de uma exclamação como se universal. Gosto delas. Doem-me no fogo que as consome por todo o lado. Doem-me derrubadas em vida na centenária vocação ignorada. Ou em pé contra tudo mesmo sem vida para que os bicho se seguram da tragédia. Os bichos de rosto triste que se abraçam a elas ou uns aos outros ou a si próprios em desespero. Como os bichos são enternecedores e as árvores e tudo. Depois lembro de novo as oliveiras. Elas mesmas num arremedo ou ímpeto de fuga do incêndio. Da vida. Das mais maduras a perpassar uma espécie de encantatória semelhança com seres móveis que não são. Dramaticamente retorcidas como a necessitar arregaçar raízes e correr desarvoradas planície terra adiante. Com uma alma de duendes, de Elfos, de alquimistas com o mundo ao lume. Coisas insólitas a passar-me mente adiante, nas longas e antigas viagens por estradas nacionais. A passar dentro dos campos. Que semelhança poderia haver entre uma destas figuras de tragédia em contornos infantis e um amor sentido de adolescência. Em fuga, também, como uma vergonha de sentir. Aprisionadas à terra, mas aos olhos não. A dinâmica ilusão de fuga presa ao movimento eternamente potencial. Mas nunca praticado nem concluído. Talvez isso. E os emaranhados de cabelos a rarefazer e os pequenos frutos como pequenos seios albergam o saber do tempo e da solidão e da seca. Daquelas em tão ampla e longínqua planície que não há animal que lhe chegue por acaso a alçar a perna e a marcar território. O profundo acaso que não acontece. Árvores solitárias com vida própria e enormidades de céu como testemunha da sua infantil pequenez. Sem sexo nem género que as aprisione nem que as revele. Necessárias ou suficientes. Seres de perna curta mas as mais ágeis do reino a que pertencem se isso existisse de pertencer. Coisas estranhas de árvore. Mais secretas do que estranhas, essas coisas da vida das árvores. Encantatórias vestes de tule verde. De tudo. Essa folhagem leve e de cor ressequida de guardar e resistir. Vinda das profundezas da história natural, dos factos, mitos e lendas sempre se desprende a sua memória. E a sua presença a atravessar séculos, milénios. Fortaleza de amor à vida que o amor é sempre. Como uma coroa, expandiu-se em torno deste mar colorido e mediterrânico. Do sul do Cáucaso, das planícies do Irão, da Síria, da Palestina aos lugares da civilização Minóica e depois por todo o lado do litoral ao interior. A produzir, contorcidas e tenazes, um óleo que alivia feridas e dores, que alimenta e ameniza o pão. Longevidade milenária de muitas. A acompanhar a história ainda com vida. Como mães de civilização que não deixam de acompanhar o caminho. Folheio de novo para diante páginas e continuo na encantatória impressão de que são de um amor. Talvez às árvores. Talvez. Esvoaço rapidamente pela bacia da Mesopotâmia. Diz. De novo um salto à Palestina, à Síria, Creta – breve paragem na lembrança da época Minóica, estão por todo o lado – em torno das águas pacatas, transparentes do Mar Mediterrâneo com os murmúrios cheios de afogamentos. Talvez as medusas. De cabelo emaranhado e a produzir dor lancinante onde toca na pele. E o norte de África. Tudo desenhado nas cores delicadas do mapa já frágil e de vincos puídos sobre a mesa. Gosto de desfiar os nomes, como um crédito de milhas para navegar. Visita rápida às árvores milenares. Quando não há tempo para mais, fico-me pelas centenárias. Que circulam pelas planícies. As mais velhas, tantas vezes de corpos dissociados em dois, mas num abraço para a eternidade. Coisas estranhas de árvore. Poiso o caderno. Dobro o mapa. Mas não sei. Talvez O.
Anabela Canas Cartografias h | Artes, Letras e IdeiasO ofício da memória [dropcap]E[/dropcap]sse curioso e imparável tecer subliminar. Que não se resume a arrumar colecções em gavetas distintas. No contínuo ofício da memória, se transcende o objecto da vontade, que na sua resignação própria, se sabe dever ser humilde e aceitar o que que dali nasce. E o que morre e o que se transforma no laborioso elaborar. Um fio subterrâneo de água invisível aos olhos, mas que nunca deixa o seu correr no sentido da nascente. Aquele momento em que se lembra, em que se esquece, ou em que se lembra que se esqueceu. Ou se lembra de uma outra forma. Ou se vê como uma desvanecida poalha de realidade o que foi forte e nítido e se lembra a curiosa dor de uma dor sem sentir. Ou se sente com toda a violência um baque como o de outro momento somente de lembrar. Com erro de paralaxe. Que o retorno da memória não pode deixar de ter. Viajamos todos os dias para pontos diferentes de nós. Mesmo que subtilmente. Somos o observador observado. Mas, espectadores, ao mudar de posição retemos do observado uma localização diferente. Sempre em erro, porque não há uma medida universal para o ponto certo do que somos e onde nos situamos ao revisitar a memória. Estamos em trânsito. Amanhã, logo se vê. Os anos vão passando por nós, nós neles, não se sabe de quando, para quando ou onde. Que rio, este. A Física explica tanto e no entanto não oferece o sentido. Porque é a paralaxe impossível à alma como ângulo rigoroso, mesmo momentâneo e pontual, e porque não é a memória matéria de rigor? E nem toda a matéria é diáfana ao ponto de o que vemos ser, ser exactamente o que é. E os raios dessa luz que nos chega da memória, refractados, a elaborar as imagens fílmicas do que vivemos, e sempre quebradas de uma alteração da forma. Como através de um líquido. Talvez não seja, a memória, um tecido sólido e subaquático. Mas em si, um filtro líquido. Ser uma espécie de multidão, com aquela característica de uma multidão em que ninguém conhece nenhum dos outros, até onde a vista alcança. E onde, mesmo se lá bem no meio houver gente conhecida, não se sabe que ali está. Ou uma multidão de conhecidos não íntimos, sem vidas cruzadas, sem síntese e sem compromissos. O que seríamos sem essa rede da memória a estruturar cada um que fomos no dia anterior ou no que o antecedeu. E assim até ao fim dos tempos que vivermos. Como uma manta tecida de todas as matérias que fomos sendo. Os dias em que estivemos e as noites que esquecemos, todos os lugares que fomos e os minutos que falhamos, todas as portas fechadas e todas as feridas abertas. Ou então, o contrário. Obra. Memória é tempo. É o tempo moldado como por arte de um ofício, com toques de genialidade ou profundos defeitos. Ambas as coisas, talvez. O tempo reelaborado, vivido e organizado. Ou desarrumado. Se a perdêssemos, o alívio que seria. A leveza do eterno presente. A vulnerabilidade. E cada informação, cada notícia que nos tomasse de súbito, que dano voltaria a fazer, sem essa rede de construção que vai progressivamente amenizando mesmo as dores que perduram, e amortece cada retorno. Toda a dor, uma pujança intacta acabada de nascer. De novo cada amor e cada luto, o primeiro impacto de uma grande emoção, a mesma desilusão de uma desilusão, o mesmo golpe de uma palavra cortante. O mesmo susto. A mesma pessoa que fomos. Dessa multidão, de que na memória se faz síntese. Às vezes, as palavras saem-me deixando um golpe doloroso desde lá do fundo e por onde me passam. (E são feitas de quê?). E deixam-me sem fôlego para outras por mais que doces. Produzem rasgos no tecido. Um xaile de lã macia delicada e protectora. Às vezes frágil. Às vezes uma rede do cabelo, às vezes uma de circo. A aparar o erro do trapezista nas acrobacias do sentir. E a queda, mesmo rápida e semelhante, pára naquele ponto suportada pela rede. Que não deixa cair até ao fim. Como um efeito lateral da memória, a quantificar e a comparar nesse confronto da queda, dados, como duas equipas num jogo. Solteiros contra casados, aquele clássico de domingos, no terreiro da vila. Quem ganha? O passado ou o presente? Estabilidade ou expectativa, maturidade ou juventude. Fica-se para saber ou por saber. Que bom, afinal, sermos tocados de mortalidade desde que nos lembramos. E mesmo antes. Já os genes a zelar por esse saber-nos mortais e pela sobrevivência. Se não fôssemos mortais. Seríamos mais insuportáveis. E mais sós. Assim, não há tempo para tudo. Lá vamos deitando fora algum lastro. Não se pode ter melhor amigo do que o tempo que tudo leva. Ou maior inimigo, porque o tempo tudo demonstra ter traído. Claro e transparente no seu lugar próprio – contudo – nem antes nem depois. Tenho visita assídua da memória. Talvez porque gosto de tecidos, de malhas, de estruturas celulares. Mas às vezes o que me apetece é dormir e esquecer. Quero tanto esquecer e tanto. Todas as noites eu custo a ir para a cama como quem não quer morrer. Talvez seja o temor de me esquecer – sei lá – a mim. Somos tão dados ao vazio. Mas não é a memória repleta de ausência e passado, o que melhor o preenche. Somente uma rede de suporte. De baloiço melancólico. Ou de apanhar borboletas. Só o labor do momento. O sim. O agora. Que esse, se não preenche uma parte densa de vazio, é como se não se existisse.