Rui Flores VozesO estertor de uma candidatura [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] semana horribilis de Donald Trump na campanha eleitoral norte-americana parece não ter fim. Foi apenas no dia 7 de Outubro que o vídeo de 2005 sobre o seu alegado “modus operandi” com as mulheres foi divulgado. Enfraquecido pela divulgação do vídeo, que surgiu na imprensa americana e um pouco por todo o mundo dois dias antes do segundo debate eleitoral com Hillary Clinton, a opinião pública decretou que, mais uma vez, ele havia perdido o embate. A seguir ao debate, surgiram as primeiras alegações de assédio sexual alegadamente perpetradas por Trump. Partem de mulheres, aparentemente insuspeitas, com mais de 60 anos, que nunca se quiseram fazer ouvir e que só saíram do anonimato impulsionadas agora pelo facto de que ele, na discussão com Clinton, ter dito que nunca praticara qualquer comportamento que se assemelhasse a um avanço sexual não consentido. Entre esse momento e este fim-de-semana, o candidato republicano transformou-se numa espécie de saco boxe em que os sucessivos golpes começam a produzir um impacto cada vez mais profundo. No momento em que escrevo estas linhas são já 11 as mulheres que se expuseram publicamente, afirmando que foram vítimas do “predador sexual” Trump. A consequência imediata é a queda nas sondagens. É evidente que numa sociedade como a norte-americana, puritana, conservadora nos costumes (como são frequentes as polémicas sobre casamento homossexual, aborto, adopção por casais homossexuais ou consumo de drogas), a linguagem de Donald Trump seria tudo menos adequada para conseguir convencer o voto decisivo das mulheres. Numa altura em que a igualdade de género foi considerada por António Guterres, futuro secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), como prioridade para o seu mandato e em que vários Estados europeus transpõem a convenção do Conselho da Europa para a prevenção e combate à violência contra mulheres e violência doméstica, que criminalizou, por exemplo, o piropo, a campanha contra Trump não irá parar, tornando irrelevante o debate final entre os dois candidatos marcado para a próxima quarta-feira (quinta em Macau). No entanto, apesar de toda a polémica e da queda nas sondagens, Trump ainda atrai um número considerável de eleitores. A média das sondagens nacionais mais recentes revela que 40 por cento dos americanos registados para votar gostariam de ver o republicano na Casa Branca. A média das sondagens nacionais, dos institutos e das empresas que regularmente actualizam as previsões quanto ao resultado final das eleições de 8 de Novembro, dá conta de que a antiga secretária de Estado tem uma vantagem de cinco pontos percentuais. Apenas numa dessas sondagens Trump aparece à frente de Clinton, com uma vantagem de dois pontos percentuais. Trump chegou até aqui com o discurso típico dos populistas, contra as elites, pela defesa do homem comum, do “nós” contra “eles”. “Eles”, os hispânicos, os muçulmanos; “nós” os brancos, os “verdadeiros” americanos. O realizador Michael Moore, autor de um documentário notável, “Where to invade next” (que deveria ser visto por todos aqueles que estão descrentes no que conseguiu alcançar a Europa da igualdade, da fraternidade, da solidariedade e dos direitos humanos), começou há meses uma campanha contra Trump, apelando à mobilização contra o candidato republicano. Tocando a rebate as campainhas dos riscos que os Estados Unidos correriam caso Trump vencesse, Moore foi dos primeiros a elencar as razões do êxito do discurso o candidato, que aponta particularmente ao homem branco, da classe média, do Upper Midwest, que foi ao longo dos anos mais recentes perdendo postos de trabalhos e poder de compra, por causa do declínio da produção industrial em quatro estados nucleares da economia norte-americana, Michigan, Ohio, Pensilvânia e Wisconsin. Consequência de acordos como o NAFTA, o acordo de comércio livre da América do Norte. Mas, fora o discurso destinado ao homem branco da classe média – muito focado nas questões económicas, afinal a preocupação cimeira dos eleitores – Trump foi perdendo capacidade de atracção e vê-se agora chamuscado pelo seu passado. Trump não foi capaz de agregar. Alienou o voto hispânico com a mensagem da construção de um muro para isolar os Estados Unidos do México; não convenceu os afro-americanos com a pergunta “What the hell do you have to lose?”. E afastou os mais tolerantes com a mensagem de que iria banir a entrada de todo e qualquer muçulmano nos Estados Unidos. Devido ao discurso populista, anti sistema, anti elites, Donald Trump transformou-se num alvo fácil. Apanhou muitos socos, mas o homem branco manteve-o de pé. Agora nem o “verdadeiro” americano nem os líderes republicanos o conseguem conservar à tona da água. As mulheres, que segundo as sondagens têm muitas dúvidas sobre a seriedade de Hillary Clinton, estão agora em massa no campo da candidata democrata. Se as eleições fossem hoje e se apenas as mulheres fossem autorizadas a votar, Hillary seria eleita com 458 votos do colégio eleitoral (contados todos os votos dos 50 estados, nesta eleição indirecta do Presidente norte-americano). Se apenas os homens fossem às urnas, Trump seria eleito com 350 votos do colégio eleitoral. Para se ganhar a Casa Branca é preciso garantir 270 votos. Apesar de irrelevante quanto ao resultado final, o debate desta quinta-feira é imperdível. Não, evidentemente, para esclarecer o que quer que seja. Há muito que os debates políticos não contribuem para esclarecer, adicionar votos ou alargar a base de apoio. São apenas um momento – mais um – de infotainment. Tão apetecido como um qualquer episódio dos fenómenos televisivos “Game of Thrones” ou “Veep”. Acossado, provavelmente ferido de morte (passe a imagem de cariz político), Trump vai disparar em todas as direcções para tentar beliscar Clinton. Mas Hillary, como política experiente que é, vai passar pelo debate como um árbitro da liga inglesa de futebol em dia de dérbi: discretíssima. A 21 dias das eleições, parece que não há volta a dar. Nem o gongo parece poder salvar Trump.
Rui Flores VozesEstou na bolha [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]ideia de que vivemos numa bolha censória que nos protege de tudo o que é diferente daquilo que habitualmente vemos e lemos não é nova. Ganhou destaque, no entanto, nos Estados Unidos, nos últimos dias, com notícias de que o Facebook teria apagado estórias de cariz marcadamente conservador da secção dos posts mais vistos e comentados (trending). A ideia seria a de que o Facebook estaria apostado em favorecer visões mais liberais. Com um congresso maioritariamente conservador, a notícia levou o presidente da comissão do comércio a requerer explicações à empresa de Mark Zuckerberg, que as negou. Naturalmente. O conceito da filter bubble, de uma bolha protectora online que estabelece por nós aquilo que consideramos ser mais relevante, foi uma constatação a que chegou Eli Pariser, presidente da MoveOn.org (uma plataforma online de discussão política), após ter estudado a forma de funcionamento do Facebook e do Google. As suas conclusões tornaram-se virais em 2011, quando participou numa TedTalk. O conceito é muito simples e explica-se num parágrafo. Os motores de busca na internet e outras aplicações registam os nossos hábitos de pesquisa, de navegação, avaliando as páginas que abrimos e o conteúdo dos posts que gostamos e que comentamos. Quando fazemos uma nova pesquisa, os resultados obtidos são influenciados pelo registo do nosso histórico. Isso é evidente não apenas na forma como os resultados são ordenados, mas também na publicidade associada a páginas que visitamos. Por exemplo, se através do Agoda ou do Booking.com pesquisarmos um destino de férias, quando visitamos páginas em que estas empresas promovem os seus produtos somos confrontados com propostas – normalmente a preços imbatíveis – feitas à medida para a cidade, praia ou destino que procurámos anteriormente. Trata-se de publicidade feita à nossa medida. Para os nossos gostos. Para as tendências que preferimos. Para a ideologia com a qual estaremos mais identificados tendo em conta os textos que lemos online. Faz isso o Google. Faz isso o Facebook. Se nas nossas pesquisas anteriores – por exemplo de notícias – preferimos em várias ocasiões o The Guardian ao The New York Times, a BBC à Russia Today ou o Público à Folha de São Paulo, quando voltamos a fazer uma pesquisa de notícias, os resultados serão ordenados pela tendência das nossas preferências anteriores. Se assim continuarmos, chegamos a um momento em o que The New York Times, a Russia Today e a Folha deixam de aparecer nos resultados da nossa pesquisa. Por uma questão de irrelevância. Se não vemos o que têm para nos dizer, acabam por desaparecer ou ficam muito para baixo da lista de resultados. Quem tem tempo para ver mais do que os dez primeiros? No caso do Facebook, a forma como esta bolha opera – uma bolha construída por algoritmos e incluída na parte não contratual da plataforma – é igualmente bastante visível. Os amigos cujos posts raramente comentamos ou a quem nunca colocamos um gosto deixam simplesmente de aparecer na nossa news feed. Isto afunila consideravelmente o nosso mundo. É como se vivêssemos num espécie de redoma, inócua, asséptica, em que nos é mostrado apenas aquilo que não vai contra os nossos valores, os nossos ideais. Embora não o tenhamos pedido a ninguém – recorra-se uma vez mais ao exemplo inicial das notícias – não nos deixam ver a visão alternativa plasmada nos artigos da Russia Today. E deixam de aparecer no nosso news feed no Facebook opiniões contrárias às nossas. Esta não é uma questão de somenos. O Facebook é cada vez mais a principal fonte de informação para milhões e milhões de pessoas. Segundo o reputado centro de estudos de opinião norte-americano Pew Research Center, 63 por cento dos utilizadores do Facebook usam a plataforma para saberem o que se passa no mundo. Se parte do que se diz e que está a acontecer nos é escondido, estamos todos cada vez mais a fazer leituras do mundo em que várias cores possíveis estão omissas. As horas passadas no Facebook servem apenas para reforçar as ideias que já tínhamos e não para nos questionarmos a nós próprios. Por razões de “relevância”, somos forçados a concordar connosco próprios. A não nos desafiarmos. Vivemos pois tempos em que os algoritmos substituíram o trabalho do censor prévio. E por mais que Zuckerberg diga que não há censura no Facebook, é fácil concluir que, sempre que nos ligamos à plataforma, os posts que surgem no topo da news feed são os dos amigos com quem mais interagimos – aqueles que mais comentamos e que mais gostamos – e não aqueles cujos posts apenas comentamos ocasionalmente ou raramente gostamos. Isto tem consequências profundamente nefastas. Estamos pois fechados numa bolha, na qual apenas vemos os queridos amigos que bajulamos e com os quais temos um forte relação de proximidade, alegadamente intelectual. A diferença, o sal da vida, vai sendo substituída pelos sorrisos dos que constituem a nossa tribo, que nos tornam alheados em relação ao extraordinário. E deixamos de nos indignar, pois somos cada vez menos confrontados com aquilo que nos deveria fazer objectar, criticar. Tal qual o pai que acompanha o filho ao parque infantil e tenta garantir que ele não caia ou se magoe. No fundo, esse pai não quer perder o mundo perfeito em que as crianças são pequeninas e podem ser protegidas por um mero abraço. Um mundo em que as crianças não crescem e hão-de para sempre precisar da ajuda do progenitor.
Rui Flores VozesCelebrar a Europa [dropcap style=’circle’]”[/dropcap]Celebra-se hoje o dia da Europa. Aquela que ficou para a história como a Declaração Schuman foi proferida pelo então ministro dos negócios estrangeiros francês, a 9 de Maio de 1950. Nessa data, Robert Schuman propôs a criação de uma Europa unida. Então apenas ao nível das indústrias pesadas do carvão e do aço. Sessenta e seis anos depois, a maior parte dos sectores de actividade da Europa são “comuns”. Na sexta-feira, quando recebeu o prémio Carlos Magno, no Vaticano – uma distinção dada a quem se empenhou no reforço da construção europeia –, o Papa Francisco verbalizou um certo negativismo em relação à construção europeia. Um tom que parece alinhado com outros líderes que não têm “apenas” responsabilidades religiosas. Com a crise financeira a não dar sinais inequívocos de recuperação, com a vaga de migrantes a acentuar brechas entre os Estados-membros, com o terrorismo “made in Europa” a levantar dúvidas sobre o processo de integração de minorias, o discurso negativo sobre o estado actual da Europa é até bastante comum. O optimista Marcelo Rebelo de Sousa, por exemplo, a caminho de Moçambique, não deixou de revelar uma certa preocupação, salientando que “a Europa não está fácil”. Mas regresse-se ao Papa. A política é feita por sinais, através de gestos ou de discursos. E o Papa, que pela primeira vez aceitou um prémio internacional, fê-lo também, uma vez mais, para chamar a atenção dos líderes europeus para o drama dos refugiados. Líderes como Martin Schulz, Presidente do Parlamento Europeu, Donald Tusk, Presidente do Conselho Europeu, Jean Claude Juncker, Presidente da Comissão Europeia, ou Angela Merkel, chanceler alemã, estavam presentes nas primeiras filas. Ouviram o Sumo Pontífice perguntar o que é que tem estado a acontecer com a Europa humanista. O que é facto é que, embora o Papa esteja numa cruzada por uma Europa mais solidária – e sobretudo para que a política de recepção e acolhimento de migrantes seja diferente e mais eficiente do que aquela que os Estados-membros acordaram –, às vezes parece que está apenas a pregar aos peixes. Uma certa Europa, dos nacionalismos, dos extremismos, da fortaleza continental, não parece estar disponível para o ouvir. É pois fácil fazer o discurso negativo sobre a União Europeia (UE). É simples apontar os inúmeros erros em que caíram os líderes europeus nos últimos anos. O discurso pela positiva é mais difícil. Há dias perguntava-me, à laia de desafio, uma figura com responsabilidades no mundo da investigação em Macau, nas vésperas de fazer uma intervenção sobre a Europa: “O que hei-de dizer de positivo sobre a UE?” Uma certa narrativa construída na esfera pública e reproduzida pela comunicação social, do descalabro actual da União, é tão forte que até alguns académicos, europeístas convictos – habituados a olhar mais para a árvore do que para a floresta – se deixam ficar com dúvidas. Apesar de todas as críticas, de todas as dificuldades, a UE merece ser enaltecida. E a campanha do referendo sobre a continuidade do Reino Unido na Europa está a revelar-se um excelente fórum – um fórum insuspeito, aliás, dada a natureza do envolvimento britânico na União, sempre com um pé dentro e outro fora, já que se excluiu de Schengen, do euro, da política europeia de asilo – para se escutar o que de positivo tem a Europa. A União é um espaço de liberdade como há poucos no mundo. E não é apenas um espaço de liberdade de circulação, de pessoas, de bens, de capitais. É um espaço de liberdade de expressão, entre outros direitos humanos. A organização não-governamental Repórteres Sem Fronteiras divulgou recentemente o seu relatório anual sobre a liberdade de imprensa. Finlândia e Holanda ocupam os dois primeiros lugares do ranking. Seguidos pela Noruega – que estando fora da EU, acompanha a União em muitas das suas políticas, incluindo Schengen. É um espaço de tolerância democrática. Em que uma coligação de esquerda radical consegue formar governo na Grécia e a extrema-direita chegar à segunda volta das presidenciais na Áustria. É um espaço de aceitação das diferenças e da diversidade, em que um candidato trabalhista, filho de emigrantes paquistaneses, que professa a religião muçulmana (e cuja mulher aparece em público trajando o véu) consegue ser eleito presidente da autarquia de Londres. Num contexto global em que o silogismo refugiados = muçulmanos = terroristas se transformou numa generalização que dificulta o dia-a-dia de milhões de pessoas, não é pouco. A UE constitui o maior mercado comum do mundo, com mais de 508 milhões de pessoas. O que propicia oportunidades únicas para empresas, pessoas, para o desenvolvimento pessoal, profissional, técnico. A este nível, os programas Erasmus, de intercâmbio de alunos universitários e de estágios no interior da UE para alunos recém-formados, têm feito mais pela criação de uma identidade europeia do que qualquer campanha de informação pública de larga escala ou disciplinas sobre a construção europeia, quer ao nível do ensino secundário quer universitário. Os fundos comunitários procederam ao desenvolvimento sem precedentes das regiões mais isoladas da Europa. O investimento em países como a Espanha, Irlanda ou Portugal transformou as infra-estruturas destes Estados – entre outros – de uma forma espectacular. A integração chega a quase todos os níveis. A partir de Julho, por exemplo, vai ser possível viajar pela Europa e falar ao telefone ou usar a internet sem pagar roaming. “Vem tarde”, dirão os mais cépticos. Mas o que é facto é que a União conseguiu convencer as poderosas operadoras de telecomunicações a abdicarem de uma fonte considerável de rendimentos. A integração europeia e a suas estruturas de diálogo contribuíram para o maior período de paz na história do continente. E este é uma das valências da construção europeia que não se pode ignorar e explica grande parte da capacidade de atracção do continente. A política dos “pequenos passos” de Schuman trouxe-nos até aqui. A uma Europa multicultural, mas unida à volta de um conjunto de valores. Não são poucos esses traços comuns. Hoje, como sempre, devem ser assinalados. Contra o pessimismo reinante em época de desafios extraordinários.
Rui Flores VozesEstou além [dropcap style=’circle’]E[/dropcap]u li o mais recente livro de Henrique Raposo, “Alentejo prometido”. Começo por escrever esta frase por que a polémica que ele gerou, algumas semanas antes do seu lançamento, quando a obra não estava ainda disponível quer nas tradicionais livrarias quer nos supermercados – que crime de lesa-majestade esse, o de colocar livros à venda ao lado das couves e dos enlatados – foi desenvolvida sobretudo por aqueles que não leram aquilo que o autor considerou ser o seu primeiro “road book”. No entanto, essa é, agora, a norma. Comentar sem ler. Criticar sem ver. São os tempos de hoje. Não há volta a dar. O mundo é assim. É o mundo em que se coloca um texto no Facebook que demora no mínimo 20 minutos a ler, mas que, ao fim de dois ou três, tem já dezenas de “likes” e comentários. É o tempo do “posto, logo existo”. Cada vez mais pronunciado. Em média, só para dar dois exemplos antes de voltar ao livro do Raposo, as pessoas passam quatro horas por dia na internet. Um estudante de Hong Kong, para terminar estes parênteses, passa (não escrevo “perde”) duas horas por dia nas redes sociais. Pois, dizia eu, li essa obra proscrita por uma certa intelectualidade presumida – ai se João Soares fosse também alentejano, o que ele não teria escrito nas redes sociais! Teria seguramente contribuído para que o livro se tornasse mais procurado do que morangos em dia de desconto. Li e gostei do que li. Primeiro uma declaração de interesses é devida. Comecei a ler o autor há mais de 13 anos. Conheço a sua obra, pois, desde quando ele ainda não era uma figura reconhecida nem escrevia diariamente no Expresso. Quando ele ainda não irritava esses opinadores “online”, em busca de todas as oportunidades para afirmar a sua superioridade. Uma questão de brilhantismo. Gostei do livro, porque “Alentejo prometido” pretende responder a uma pergunta básica que, creio, muitos dos que têm tido terras distintas como porto de abrigo, se perguntam amiúde, quando a multiculturalidade aperta: onde estão as nossas raízes? Um enorme amigo, há anos a deambular pelo mundo, três anos aqui, quatro anos além, faz aliás essa pergunta sobre a origem das raízes sempre que conhece alguém. As raízes são fundamentais. De onde vimos? Por onde andaram os nossos familiares? Essas raízes fazem aquilo que somos hoje e ajudam a determinar onde nos vamos encontrar amanhã. E também o que lemos e o que escrevemos. Aquilo que transmitimos aos que nos rodeiam e até o que passamos aos nossos filhos. Às vezes nem notamos que o fazemos. É como se a nossa cultura – o que somos, de onde viemos, para onde vamos – falasse por nós. Como se nos transformássemos numa espécie de instrumento. Numa caixa-de-ressonância. Tendo a esperança de ainda encontrar no Alentejo esse tronco comum, Raposo foi até ao sul de Portugal, às terras dos seus pais, tios e avós, à procura dos valores, das crenças, em suma, da cultura que marca os alentejanos. Assumiu um risco, coisa que qualquer analista social assume, o de através da sua amostra fazer generalizações e traçar o retrato do Alentejo que conhece. E por isso tenha dedicado alguma atenção à condição feminina e a encontrar explicações para elevada taxa de suicídio entre os alentejanos. “Alentejo prometido” é antes de mais um livro corajoso. Só alguém com coragem é que se expõe da maneira que Raposo o fez, levando os leitores às origens da sua família, aos problemas e dramas sociais que a marcaram, a ela e às comunidades onde ela esteve e está inserida. A recolha pessoal que fez para o livro, as dezenas de entrevistas que refere e os dados estatísticos que consultou, as obras sociológicas e antropológicas que cita, dão ao livro uma profundidade que as reportagens de fim-de-semana dos jornais não têm. Como em tudo na vida, não temos que concordar com todas as passagens nem gostar de toda as opções, quer estéticas quer de conteúdo, desta obra profundamente descritiva. Nem concordamos. Mas a conclusão a que chega, de que não se revê naquele Alentejo com que se deparou, é uma constatação até pouco ou nada polémica. Afinal, acontece um pouco a todos – agora a generalização é minha – que acabam por passar grande parte da sua vida fora dos locais onde têm as suas raízes. Embora continuemos a falar delas, elas não voltam a ter a forma nem o significado do tempo em que as experienciámos inicialmente. Porque fazem parte de algo que já não é palpável. As férias grandes – quando havia férias grandes e o tempo avançava sem qualquer vertigem – tinham um sabor que nunca mais saborearemos porque os tempos, esses tempos e as suas circunstâncias, não se repetem. Os primeiros namoros. Os primeiros aromas. Os primeiros sabores. Uma certa inocência que se vai perdendo inexoravelmente. Não há possibilidade física de que volte. E isso, para quem cresceu na grande cidade e só volta amiúde às origens, é uma espécie de corte absoluto. O mesmo acontece a essa espécie urbana de emigrante que dá pelo nome de expatriado que quando regressa a Portugal já não parece sentir-se em casa da mesma forma que se sentia há dez anos. E não é apenas a questão de já não encontrar as casas da aldeia que foram sendo destruídas, ou os amigos que se foram afastando e desaparecendo. É – como sempre – uma questão cultural. E a cultura é tudo. Engloba tudo. Inclusive ter primeiros-ministros detidos e não acusados, ou advogados de primeiríssima dimensão que dizem ignorar o que são off-shores. Um pouco como cantava António Variações, esse não-alentejano, “Porque eu só estou bem aonde eu não estou”.
Rui Flores VozesCansados disto tudo! [dropcap style=’circle’]E[/dropcap]stamos cansados disto tudo. As recentes eleições em Espanha, em que o Podemos quase roubou o segundo lugar ao PSOE na primeira vez que foi a votos a nível nacional; em França, em que a votação expressiva na Frente Nacional fez os partidos políticos tradicionais unirem forças para travar o domínio absoluto do partido de Marine Le Pen em várias regiões do país; ou em Portugal, onde se assistiu ao reforço dos grupos parlamentares dos partidos da extrema-esquerda; são alguns dos sinais dados pelo eleitorado de que as pessoas estão cansadas da forma como têm sido governadas pelos partidos ao centro. Querem alternativas e estão disponíveis a dar o seu voto a forças lideradas por pessoas que têm uma aflitiva falta de experiência política ou que são marcadamente populistas. E toda a gente o sabe. O centro-esquerda e centro-direita têm-se revezado no poder nas últimas décadas por toda a Europa. Esses partidos têm controlado as decisões no centro nevrálgico da política comunitária em Bruxelas. São eles, o chamado “centrão”, quem tem definido as grandes políticas que gerem a vida dos cidadãos no interior União, incluindo as questões mais ínfimas das actividades comerciais, da nossa existência económica, das nossas vidas. O resultado final tem sido uma normalização não apenas dos produtos que podem ser comercializados no interior da União Europeia mas de todos os aspectos da nossa vida colectiva: o que comemos, o que vestimos, o que gostamos. Com a erosão da soberania económica, monetária e política, a normalização atinge elementos cruciais da gestão da coisa pública: aquilo que pode o Estado deter e como; o quanto pode o Estado endividar-se; que impostos pode cobrar. A criação do euro – uma divisa forte que morde os calcanhares ao dólar norte-americano enquanto reserva cambial – assim determinou. Mas, convém lembrar, não poderia ser de outra maneira. Sem estas limitações, o euro (agora a moeda comum de 19 Estados-membros) não funcionaria. Simplesmente. O problema aqui terá sido o da incapacidade de a União ter avançado para uma total harmonização fiscal. Porém as reservas expressadas, quer por muitos dos governos dos 28 quer pelas diversas opiniões públicas nacionais, não o permitiram. O “centrão” tem contribuído para o desenvolvimento e estabelecimento de uma narrativa do “não podemos”: não podemos ter um défice orçamental superior a 3 por cento do Produto Interno Bruto, não podemos ter uma dívida pública superior a 60 por cento da mesma riqueza nacional. Todas essas regras, muitas delas pouco explicadas às diversas populações, foram contribuindo para o actual estado das coisas. De saturação. É evidente que este cansaço não teria acontecido se a Europa hoje, no final de 2015, fosse ainda a Europa de meados de 2008, quando a crise financeira internacional não tinha ainda eclodido e o crédito internacional era ainda barato. Por outras palavras, se vivêssemos ainda hoje os tempos das vacas gordas. Apesar de alguns sinais de revitalização económica, o esforço a que foram sujeitas as diversas economias “intervencionadas” pela Troika não parece ainda ter chegado ao fim. De que a tormenta ainda não passou. E de que os efeitos da crise social vão prolongar-se no tempo. Pelo menos, no tempo útil da vida profissional de quem tem agora 45 anos, se encontra desempregado e não tem perspectivas de ver as condições da sua vida melhorarem no curto-prazo. Foi aliás por terem chegado a essa mesma conclusão, de que a esperança num futuro melhor é nula, que milhares de candidatos a refugiados e imigrantes se têm metido a caminho da Europa, fugindo a uma vida de miséria em África, no Médio Oriente ou no Afeganistão. Também grande parte das centenas de milhares de portugueses que saíram do país desde que a crise financeira rebentou, o fez com o objectivo de encontrar um porto de abrigo mais seguro. Não é, pois, no fundo, muito diferente. As pessoas estão, pois, saturadas. Da forma como são tratadas. Da forma como foram construindo as suas sociedades. Da falta de perspectivas. Este caldo negativo poderia levar ao aparecimento de líderes motivadores, que arrastam multidões e que promovem a mudança. Mas perscruta-se o panorama político internacional e os rostos que nos surgem são pouco ou nada motivadores. Faltam modelos. Que inspirem. Que liderem. Angela Merkel, personalidade do ano segundo a revista norte-americana Time, pelo seu papel na defesa dos refugiados, não pode ser aqui considerada. (Há quem nos lembre que a Alemanha, o motor da economia europeia, a campeã das exportações, enfrenta uma grave crise demográfica e a chegada de milhares trabalhadores qualificados sob a forma de refugiados ajudaria a colmatar). Nem pode tão pouco Barack Obama, o líder do alegado mundo livre, primeiro presidente negro dos Estados Unidos, que é, afinal, o campeão dos ataques com drones – essa forma de se fazer a guerra sem a decretar. Sobram outras figuras, de outros “mundos”. O revolucionário Papa Francisco, com uma agenda reformista, que promete combater a opulência do Vaticano e pôr a Igreja Católica ao serviço daqueles de quem dela mais precisam – agenda e linguagem que explicam aliás a sua tremenda popularidade. E sobra, talvez, Malala Yousafzai, vítima dos talibãs no Paquistão, que esteve à beira da morte, por ter ousado fazer-lhes frente, defendendo o acesso das raparigas à educação, contra a vontade de uma certa ideologia do passado. Malala tem 18 anos. Com o montante do Prémio Nobel da Paz (e outros) criou a Fundação Malala. Tem como objectivo promover a educação para todas as crianças no mundo. Na edição especial sobre 2016 da revista The Economist, Malala escreveu: “A UNESCO estima que custará 39 mil milhões de dólares todos os anos até 2030 para pagar os estudos a todas as crianças [que estão fora do sistema de ensino], desde o ensino primário ao secundário, por 12 anos, grátis. Parece muito, mas o dinheiro está aí. É uma questão de prioridades. Esses 39 mil milhões poderiam ser alcançados facilmente se todos os países da OCDE atribuíssem 0.7 por cento do seu PIB à ajuda ao desenvolvimento e alocassem apenas 10 por cento desse montante à educação. Outro modo seria escolher livros, não balas. Cortar oito dias de despesas militares globais seria equivalente a um ano de educação para todos.” Um pouco de idealismo é tolerado em época de celebrações. Acredite-se, pois, que um mundo melhor é possível.
Rui Flores VozesRadicalizados em casa [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]terrorismo torna-se global. Depois do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIL) ter atacado em França a 13 de Novembro, um casal provocou a morte a 14 pessoas na Califórnia, na semana passada. Em Londres, um outro cidadão foi detido numa estação de metropolitano por ter apunhalado passageiros em trânsito. Enquanto perpetrava o ataque ia gritando “isto é pela Síria”. Já o governo da Tailândia, no dia do aniversário do monarca, anunciou que 10 alegados activistas da organização que controla parte do território do Iraque e da Síria teriam entrado no país, com a intenção presumida de proceder a atentados. Os alegados alvos, fez-nos saber a inteligência tailandesa, seriam os milhares de turistas russos que, pelo período do Natal e do ano novo, desembocam nas praias do país, fugindo ao Inverno. Ainda que os contornos do que se passou em San Bernardino, na costa oeste dos Estados Unidos da América (EUA), sejam tudo menos claros – com analistas a expressarem dúvidas sobre a narrativa que está a ser construída –, o que é facto é que 14 pessoas foram mortas em plena festa de Natal e que, acto contínuo, um casal foi perseguido pela polícia e abatido dentro da sua viatura. Segundo o que nos é dito por quem controla a investigação, o casal professava a religião muçulmana (foi a primeira mensagem que se escutou) e havia prometido apoio ao ISIL no Facebook. Pelo menos terá sido isso o que fez a mulher há poucas semanas – Tashfeen Malik, uma paquistanesa que viveu vários anos na Arábia Saudita. A validação desta visão do acontecimento foi feita pelo próprio Presidente Obama, que, no seu discurso semanal à nação, pela rádio, no sábado, fez saber que era “inteiramente possível” que o casal se tivesse radicalizado. O FBI estava a tratar o evento como um caso de terrorismo. Tanto mais que o ISIL logo revelou pelos seus meios habituais, online, que se tratava de um casal de apoiantes da causa. Independentemente das narrativas que estão a ser construídas, quer nos Estados Unidos, contra os muçulmanos – basta para tal ouvir a campanha dos candidatos republicanos à Casa Branca –, quer na Europa contra os candidatos a refugiados e imigrantes, o número de atentados terroristas está a aumentar. Desde os ataques da Al Qaeda, em 11 de Setembro de 2001, o terrorismo aumentou exponencialmente. Segundo a Global Terrorism Database da Universidade de Maryland, houve 1882 atentados em 2001 contra os 16.818 registados no ano passado. As intervenções internacionais no Iraque, mas também na Líbia e na Síria, terão contribuído para este fenómeno. São já os próprios norte-americanos quem o reconhece. Michael Flynn, antigo chefe da Agência de Inteligência Militar dos EUA, veio dizer recentemente ao jornal alemão Der Spiegel que a guerra no Iraque e a eliminação de Saddam Hussein foram erros históricos, um “falhanço estratégico”, que contribuíram para a criação do ISIL. O mesmo se aplica a Muammar Khadafi e à Líbia, que “é agora um Estado falhado”. O número de atentados perpetrados por pessoas que se auto-radicalizaram está igualmente em crescendo. Os lobos solitários que, a partir de casa, através da internet, foram descobrindo o mundo do extremismo, deixaram-se “fascinar” pelas ideias redentoras do ataque suicida e transformaram-se em máquinas de guerra da chamada jihad. Segundo um estudo recente da Universidade de Georgetown (EUA), o número de ataques, no chamado mundo ocidental, perpetrados por indivíduos não directamente afiliados com organizações terroristas, mas que passaram por um processo de radicalização, cresceu de 30, na década de 1970, para 73, na primeira década do Século XXI. Embora não identifiquem um modus operandi único na forma como um potencial candidato se deixa seduzir pela ideia de radicalização, estudiosos do terrorismo afirmam que, por trás deste processo de auto-radicalização há sempre uma crise pessoal na sua génese, como a perda de um familiar, de um amor, um despedimento. O filme francês “La Désintégration” (2012), de Phillipe Faucon, que o Programa Académico da União Europeia para Macau vai mostrar hoje, pelas 18h30, na Universidade de Macau, explica bem esse processo pessoal. A par disso, há uma máquina de propaganda disponível online que inclui recrutadores à distância, disponíveis a contribuir para a metamorfose. A falência do modelo multicultural explica como é fácil fazer de um jovem adulto desenquadrado um potencial terrorista. Um pouco por toda a Europa é patente a incapacidade de integração nas sociedades da segunda e terceira gerações de imigrantes, nascidos já em território europeu. Embora sejam formalmente franceses ou belgas, por viverem em verdadeiros guetos sócio-culturais nos subúrbios das grandes cidades, sem qualquer esperança de subirem a escada social, não se identificam com os valores dominantes. São “presas” fáceis para o recrutador online em busca de seguidores. É evidente que uma imensa maioria que estabelece contacto com estes extremistas, acaba por se afastar da doutrina que professam, pois, para muitos, a excitação de ter passado por lá e de ter gritado alguns slogans contra o ocidente lhes chega. Mas outros não. Como se tem visto, a estratégia que está a ser seguida para aniquilar o Estado Islâmico, focada no ataque à liderança da organização, demora a produzir efeitos. E a semente do terror está já plantada em muitos bairros, cidades e países onde o potencial de recrutamento é grande. Vai ser preciso tempo. Vamos ter de nos habituar a controlos de segurança mais apertados – a União Europeia, confirmou, por exemplo, esta semana, a entrada em vigor, já em Janeiro, da partilha das listas de passageiros no espaço europeu – e a uma fragilidade inequívoca, que é a de nenhum Estado poder afirmar com toda a certeza de que está imune ao terrorismo.
Rui Flores VozesMá sorte ser jornalista [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]diário i e o semanário Sol vão fechar em Portugal. Alegadamente darão lugar a um novo projecto mediático. Isto é uma péssima notícia. É dramático, naturalmente, para os 120 profissionais que vão ser despedidos. E para as suas famílias. Entre aqueles que vão agora para o desemprego estão sobretudo jornalistas. Desde o início da crise financeira de 2008, já terão sido despedidos em Portugal 1200 profissionais do sector da comunicação social. Um olhar mais distanciado destas duas redacções e menos próximo dos 120 dramas por que estas pessoas estão por estes dias a passar, o que esta notícia revela é que a liberdade de expressão fica mais pobre, o pluralismo mitigado e a capacidade de todos nós conseguirmos interpretar o mundo diminuída. É evidente que este não é um problema específico do sector da comunicação social. Infelizmente. É transversal ao sector empresarial português. A crise – convém sempre recordar – começou por ter natureza financeira. Mas depois de ter afectado profundamente a economia portuguesa, continua ainda hoje, acima de tudo, a ser marcadamente social. Isto explica, por exemplo, que, nos quatro últimos anos, tenham saído de Portugal, para procurar trabalho no estrangeiro, temporária ou permanentemente, mais de 485 mil pessoas. O que os dados do Prodata nos dizem também é que, desde 2008, encerraram sempre mais empresas do que aquelas que abriram, com a excepção do ano de 2013 (os números do ano passado ainda não estão disponíveis). Sem dados tão sistematizados acessíveis online, no sector da comunicação social podemos apenas pintar o quadro das últimas décadas. Nos anos da pujança económica e da inundação de Portugal com fundos comunitários, centenas de jornalistas foram formados. Foi um fenómeno, que coincidiu com a explosão das rádios piratas e a subsequente legalização do sector. Não foram apenas os cursos universitários, quais cogumelos, que se reproduziram um pouco por todo o país. Também os cursos técnico-profissionais levaram a que fossem chegando ao mercado profissionais qualificados, que foram entrando nas redacções, rejuvenescendo-as, e trazendo um pouco mais de conhecimentos teóricos aos seus profissionais. Os jornalistas da “velha guarda” – da tarimba –, formados no dia-a-dia das redacções, foram paulatinamente cedendo os seus lugares aos jovens vindos das universidades. Com a crise económica, as receitas da publicidade caíram e as empresas de comunicação social foram ao longo dos anos procedendo a reestruturações que conduziram inevitavelmente a despedimentos. Em parte, isto tem muito que ver com os avanços tecnológicos e com as diversas tarefas – outras – que os jornalistas passaram a desempenhar. Os tempos são completamente diferentes hoje nas redacções do que eram há apenas duas décadas. O advento da internet, primeiro, e do social media, depois, modificou totalmente o papel desempenhado pelo jornalista. Não foi assim há tanto tempo que as equipas de reportagem eram constituídas por quatro pessoas: o motorista, o repórter de imagem, o jornalista e o paquete que carregava o material. Eram tempos extraordinários. Quando se saía da redacção para se fazer a cobertura de um incêndio e o motorista não estava imediatamente disponível, corria-se o risco de que quando lá chegados, o incêndio já tinha sido controlado ou mesmo debelado. Isto era um drama para as televisões (ou melhor, televisão, que só havia uma), pois não haveria imagens para mostrar das labaredas. Agora, passe a imagem, o jornalista vai sozinho em reportagem, mais o seu bloco de notas, câmara de filmar e gravador. A primeira grande alteração foi a introdução dos telemóveis. Subitamente, os jornalistas deixavam de estar obrigados, quando estavam em reportagem no interior do país, a descobrir um estabelecimento comercial que os deixasse usar o telefone para ditar a notícia para a redacção ou a gravar pela linha telefónica. Era ainda preciso parar o carro – é um facto –, levantar a antena do “tijolo” do telefone móvel, escolher uma localização em que o sinal da operadora fosse suficientemente forte para a voz ser escutada e gravar a peça. Com a internet, o jornalista deixou de escrever apenas uma estória, para o dia seguinte. Passou a ter de actualizar regularmente o website de publicação. Se numa primeira fase os jornais ainda estabeleceram secções para o online, recorrendo às centenas de licenciados que estavam a sair dos cursos universitários, há muito que o jornalista é agora uma espécie de três-em-um. Faz a peça para o online, para a TV e para o jornal do dia seguinte. Põe som e imagem no website e ainda escreve uns parágrafos, as mais das vezes, do sítio onde está em reportagem. São tempos totalmente diferentes. Com a digitalização da rádio, o técnico de som saiu de cena – é agora o jornalista que produz e grava a peça sozinho. Com estas inovações tecnológicas, a par com os cortes salariais, as reduções de quadros e a crise no sector, o jornalista médio deve hoje produzir três vezes mais do que acontecia há 20 anos e aufere, em média, consideravelmente menos do que se ganhava então. O resultado de tudo isto, para o consumidor final, é o triunfo do jornalismo mainstream, suportado financeiramente por meia dúzia de empresas transnacionais, com interesses em áreas de negócio estratégicas. E leva a que o jornalista sobrevivente, aquele que ganha menos agora do que quando chegou a chefe há 15 anos, se interrogue sempre, e cada vez mais, se tem “tempo” para escrever sobre esta ou aquela estória. Talvez não haja. Sistematicamente. Uma das grandes consequências disto tudo é o desinvestimento no jornalismo de investigação. Com algumas honrosas excepções, como a RTP – viva o serviço público! – e o seu programa de investigação emitido às sextas-feiras, pouco se investiga em Portugal. E o aumento de popularidade de blogues independentes, que fazem um esforço para tentar enquadrar a actualidade. De resto, de uma maneira geral, estamos todos a deixar de nos interrogar como é que tão rapidamente nos foi dito que havia um passaporte sírio ao lado de um dos alegados terroristas que se fizeram explodir em Paris, ou como havia uma câmara de televisão a filmar o avião de combate russo a ser abatido pela Força Aérea Turca, em terra de ninguém, um dia depois de uma cimeira Rússia-Irão. (Em memória do Francisco, que, há 23 anos, me desafiou a ser jornalista.)
Rui Flores VozesRefugiado me confesso [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]sentimento antimuçulmano está a crescer na Europa. Essa é uma das consequências imediatas dos atentados de 13 de Novembro, em Paris. Outra é a de que os refugiados não são mais bem-vindos na Europa. Esta tornou-se bem visível algumas horas depois dos acontecimentos que ceifaram a vida a 130 pessoas na capital francesa, quando o novo governo polaco anunciou que iria suspender de imediato a sua quota-parte de acolhimento de refugiados. A narrativa que está a ser construída é a de que pelo menos um dos autores dos atentados de Paris terá passado pela Grécia integrado no fluxo de refugiados que estão em marcha desde a Síria até à Europa. É difícil fugir à tentação de escrever que a narrativa procura criar as condições para que o silogismo ponha termo à entrada de mais refugiados no continente europeu: todos os refugiados são terroristas, logo não mais refugiados na Europa. A vida é injusta. Todos o sabemos. Mas esta generalização, como tantas outras generalizações, tem em si um mal enorme. As percepções têm um poder imenso. Formamo-las ao longo dos anos em relação a todos os outros que fogem à norma. Uma norma à qual nos fomos habituando e transmitindo aos nossos filhos, que nos marca de uma forma indelével, e que está por detrás de todos os comentários que fazemos e que determina o que somos e como vimos os outros. Mesmo que nos esforcemos por ignorar as percepções, elas estão sempre presentes no nosso dia-a-dia. O candidato a refugiado não é uma pessoa que está em condições de escolher o quer que seja. O refugiado é alguém que perdeu todas as possibilidades de ser. Esgotaram-se-lhe as hipóteses. Deixou de ter opções. É alguém que está confrontado com apenas uma saída: morrer ou fugir. Quando o caminho se afunila desta maneira ninguém pode ser acusado de estar a tomar más decisões. Para muitos, para uma imensa maioria, esta é a sua verdade. A sua história. É evidente que os custos que acarreta a longa viagem da Síria ou do Afeganistão até à Europa não podem ser suportados por todas as famílias. São famílias remediadas as que se metem à aventura até ao continente europeu e que conseguem pagar todos os subornos e as tarifas de transporte, de barco, de comboio, de carros, aos contrabandistas de gente. Os que se aproveitam da miséria humana hão-de subsistir sempre, tanto mais que o negócio é rentável e sem qualquer tipo de onerosidade associada a prémios de seguro nem a reclamações em caso de má prestação do serviço. Até porque nos casos das viagens pelo Mediterrâneo, não poucas vezes o que tem acontecido é a “mercadoria” acabar no fundo do mar, sem possibilidade de ser intentada qualquer tipo de acção judicial. O silogismo é perigoso porque nos faz esquecer o que efectivamente sofrem estas pessoas. É claro que haverá radicais islâmicos entre os refugiados que chegam à Europa. A probabilidade é grande que, entre as mais de 800 mil pessoas que já se meteram a caminho do continente europeu desde o início deste ano, haja vários potenciais terroristas à espera de um sinal para atacarem. Mas a argumentação de que se deve ter muito medo pois os candidatos a refugiados que chegam à Europa são acima de tudo homens jovens já não colhe. Na verdade, segundo os números mais recentes daqueles que já foram registados – os outros não poderão, naturalmente, ser contabilizados –, 73 por cento dos refugiados e migrantes são do sexo masculino e 81 por cento têm menos do que 35 anos. Os seus países de origem têm uma pirâmide etária bastante jovem. E culturalmente não há abertura para que as mulheres de vinte e poucos anos saiam de casa dos pais nem tão pouco para que as mais novas viajem sozinhas. Essa é uma dimensão da igualdade de género que está por alcançar. Em muitos casos, as mulheres ficam para trás. O homem vai à frente, desbravando caminho, na esperança de um dia poder construir as condições para que o resto da família se lhe junte, em segurança. É por isso que são sobretudo homens aqueles que chegam à Europa originários, na sua grande maioria, de países de fé muçulmana. A realidade é demasiadas vezes muito difícil de retratar. E de ser credível. Quando as estórias que ouvimos nos são tão distantes, custa-nos muito acreditar nelas. Como se escutássemos um conto fantástico. A União Europeia tomou a decisão no final da semana passada de reforçar os controlos das fronteiras externas da Europa, obrigando os europeus ao mesmo tipo de escrutínio a que têm estado sujeitos os cidadãos de países terceiros. Até ao final do ano vai ser estabelecida uma lista de passageiros de viagens aéreas no interior da Europa à qual terão acesso todos os Estados-membros, de forma a que se possa controlar com mais eficácia os movimentos de eventuais suspeitos de redes terroristas. Ainda bem. É preciso que continuemos a estar ao lado da política de abertura aos refugiados por todos os que, justificadamente, merecem ser acolhidos na Europa, no final da mais longa viagem da sua vida, fugindo de uma morte certa.
Rui Flores VozesUma Europa que treme [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]s atentados de sexta-feira, 13, em Paris, são um ataque aos valores que têm marcado a União Europeia. São um tiro brutal aos direitos humanos, à liberdade de movimentos, à democracia, à tolerância. Os ataques, alegadamente perpetrados por comandos do Estados Islâmico, poderiam ter como intenção punir os governantes franceses pelas intervenções militares na Síria e no Mali. Poderiam. Pelo menos essa foi a argumentação usada no comunicado dito oficial. Mas o pior dos efeitos vai sentir-se no interior da própria União Europeia. A reacção imediata dos novos governantes polacos, algumas horas depois dos atentados da noite de sexta-feira, afirmando que já não iriam aceitar as quotas europeias de refugiados, é apenas um sinal do que aí vem. Receia-se o pior. O terror vai passar a fazer parte do dia-a-dia dos europeus. Isso é cada vez mais evidente. Aquela sensação única de liberdade, de segurança, de tolerância, a que nos habituamos nas últimas décadas, vai sofrer um revés profundo. O discurso pró-securitário, contro “o outro”, o “anormal”, vai ganhar terreno. Combater essa mensagem, fácil, de que “os outros” são os culpados de todos os males da nossa vida, requer persistência, requer visão de longo prazo. Os tempos de hoje, marcados pelo discurso de consumo imediato, tendente a reforçar pequenas vantagens competitivas que nos garantam um posto, uma eleição, não são os mais apropriados para uma cultura de esperança. Essa verve contra “o outro” já estava bem presente no discurso mediático desde que a Europa se tornou numa espécie de última tábua de salvação para quem foge da guerra no Médio Oriente, das perseguições étnicas ou da pobreza extrema em África. A tentação é fácil. E vai dar os seus frutos. A extrema-direita – com a honrosa excepção portuguesa – tem estado a ganhar terreno nas últimas eleições no interior da Europa. Foi assim na Grécia e na Áustria. Nas recentes eleições legislativas na Polónia, por exemplo, a esquerda nem ao Parlamento chegou. Com a Frente Nacional em alta, liderada pela mais “domesticada” Marine Le Pen, as eleições regionais do próximo mês poderão significar, uma vez mais, o crescimento da intolerância. Contra “o outro”, o “estranho”, o “desconhecido”. O mundo está mais perigoso. Segundo os dados estatísticos da Universidade do Maryland, o número de atentados terroristas desde o 11 de Setembro de 2001 aumentou exponencialmente. Nove vezes! A Global Terrorism Database revela que em 2001 houve 1882 atentados, quando em 2014 esse número chegou aos 16,818. Esta contabilidade ainda não inclui, naturalmente, os atentados contra o Charlie Hebdo ou os de sexta-feira passada. As intervenções no Iraque, na Líbia ou Síria terão seguramente contribuído para este fenómeno. Embora em muitos casos, a Europa tenha apenas apoiado os Estados Unidos da América nesta senda de resolver os problemas lá fora, para que eles não nos cheguem cá dentro, o que é facto é que, depois de 14 anos de guerra contra o terrorismo, o terror está cada vez mais perto de nós, no centro da Europa. As soluções não estão na ponta de uma qualquer varinha mágica. Aliás, a cada dia que passa, a cada nova tentativa de acolher o outro, de propiciar uma integração mais efectiva, sem guetos nem favores, vão se esgotando fórmulas. Neste mundo global, as comparações são fáceis. Essas, sim, estão na ponta de um qualquer clique de rato. E a internet está disponível em todo o mundo. A ideia que há um exército imenso de possíveis mártires dispostos a imolar-se por uma qualquer causa – jovens desempregados, sem perspectivas de futuro, sem educação formal, sem possibilidade de serem – torna o planeamento da luta contra os terrorismos uma tarefa quase impossível. A imprevisibilidade do próximo ataque, quando é de dentro da “fortaleza” europeia que vêm algumas das principais ameaças, vai levar ao reforço inexorável da componente securitária dos Estados europeus. E isso é uma fatalidade. O medo não é bom conselheiro. Mas os próximos tempos, de impotência, contra o Estado Islâmico, de intolerância, contra “o outro”, poderão ditar o fim de uma certa era. Desde a sua criação, a Europa tem sido um espaço de tolerância, de estabilidade, de desenvolvimento. Os 70 anos de paz na Europa estão ameaçados como nunca estiveram. Se a Europa não for capaz de se unir – os líderes europeus têm-no mostrado nos últimos meses que de facto essa é uma tarefa muito complexa – a União, tal como a conhecemos, poderá ter os dias contados.
Rui Flores VozesO que fazer com tantos refugiados? [dropcap style=’cirlce’]O[/dropcap]s números justificam a interrogação. Só no que diz respeito aos deslocados do conflito na Síria haverá neste momento mais de 10 milhões de pessoas longe das suas casas, 40 por cento dos quais no estrangeiro. Ao contrário da narrativa que alguma imprensa internacional tenta fazer passar e a ideia que a sucessão de cimeiras da União Europeia possa transmitir, a maior parte dos refugiados não está no interior das fronteiras da Europa. Segundo dados da Organização Internacional das Migrações (OIM), até Outubro terão chegado à Europa cerca de 650 mil pessoas, muitas oriundas da Síria e do Iraque, mas também da Eritreia, da Somália ou do Afeganistão. O país que mais refugiados acolheu até agora é a Turquia, onde se encontrarão à volta de 2 milhões de sírios. Este número explica a disponibilidade da União para custear parte da despesa de Ancara com os refugiados. A oferta de 2 mil milhões de euros teria um objectivo muito claro: garantir que os turcos mantivessem as fronteiras da Turquia com a Grécia fechadas a não europeus. Além da Turquia, onde estarão perto de 20 por cento de todas as pessoas que saíram da Síria desde o início da guerra civil, em 2011, só no Líbano, um Estado com pouco mais de 5 milhões de pessoas, haverá mais de 1 milhão de Sírios. Em termos globais, segundo dados do Alto do Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), ainda encabeçado por António Guterres, há por esta altura 60 milhões de deslocados em todo o mundo. Um número mais elevado do que em qualquer outro momento desde o fim da II Guerra Mundial, há 70 anos. A grande preocupação para muitos responsáveis políticos da União Europeia nos últimos meses tem sido a de travar a vaga tão grande de candidatos a asilo, mas também a emprego. Tem sido esse o sentido das decisões tomadas pelos 28 Estados-membros nas cimeiras, a começar pela mais recente, de “pagar” à Turquia para manter os refugiados fechados no seu território, ou a mais “antiga” de aceitar apenas 160 mil pessoas no interior da União nos próximos dois anos. Isto já para não mencionar as decisões individuais de países como a Hungria, que construiu vedações nas fronteiras com a Sérvia e com a Croácia. A União Europeia é naturalmente um destino atractivo, quer para refugiados, à procura de um local estável, desenvolvido, onde possam (re)encontrar a paz, quer para imigrantes económicos, a tentar uma nova vida, em países em que o trabalho é ainda bem pago e os apoios sociais existentes. A União corresponde à ideia idílica de paraíso na terra. A guerra está fora das suas fronteiras há 70 anos, o grau de integração política e económica fez da Europa um dos blocos mais poderosos do mundo. Esta atracção é explicada também por uma prática que não se consegue apagar de um dia para o outro, apenas por que o número de candidatos a asilo aumentou exponencialmente. Ao contrário de outros países, destinos típicos de imigrantes, como os Estados Unidos, o Canadá ou a Austrália, em que prevalecem mecanismos de quotas ou de sorteio, a União tem tido uma política de portas abertas aos imigrantes. O número total de autorizações de residência atribuídas pelos 28 Estados-membros da União Europeia foi, só no ano de 2014, de 2,3 milhões. No ano passado, foram admitidos pela primeira vez na Europa, para trabalhar, estudar ou por razões familiares, quase três vezes mais pessoas do que o número de candidatos a asilo que já chegaram ao continente europeu desde o início do ano. Os números, divulgados na semana passada pelo Eurostat da União Europeia, representam uma diminuição de 2.2 por cento em relação ao ano de 2013. E de 9 por cento quando comparados com os de 2008. Quase um terço das autorizações de residência foi concedido no âmbito de reuniões familiares, cerca de 25 por cento foram autorizações de trabalho e 20 por cento no quadro de autorizações para prosseguir estudos. Ucranianos, norte-americanos e chineses estão entre as nacionalidades que mais procuraram a Europa para residir. Tendo em conta estes números e a incapacidade de os Estados lidarem, por si só, com uma vaga tão grande de refugiados, sobretudo os países em redor da Síria e do Iraque, dois investigadores da Universidade de Oxford, Alexander Betts (especialista em imigrações) e Paul Collier (um economista bem conhecido pelo seu livro “The Bottom Billion” e as armadilhas ao desenvolvimento que têm afectado os países mais pobres do mundo onde vivem mil milhões de pessoas) acabam de propor nas páginas da Foreign Affairs a criação de zonas económicas especiais para refugiados, onde os deslocados poderiam desenvolver os seus negócios e contribuírem quer para o desenvolvimento dos países de acolhimento quer para a futura reconstrução dos seus países de origem. Ao contrário de pagarem as tendas miseráveis em que os refugiados são mantidos e os mantimentos que lhes são distribuídos, os Estados de acolhimento, com a ajuda das principais potências económicas, que já contribuem bastante para a manutenção das operações do ACNUR e de outras agências que trabalham com os refugiados, investiriam em bairros residenciais e em zonas industriais, ajudando os refugiados, nas palavras de Betts e Collier, a ajudarem-se a eles próprios. Não se julgue que isto é perpetuar uma situação que se quer provisória. Os estudos mostram que os refugiados (os tais que vivem nas tendas miseráveis) acabam por ficar, em média, 17 anos nos países de acolhimento. Todos os problemas podem ser vistos como situações, desafios ou oportunidades. O que parece é que muitos dirigentes políticos europeus ainda não passaram a fase de olhar para a vaga migratória como um problema.
Rui Flores VozesCombater a pobreza extrema [dropcap style=’circle’]O[/dropcap] dia mundial da erradicação da pobreza foi comemorado no sábado. Numa altura em que a atenção da imprensa internacional está focada na crise dos refugiados que tem afectado a Europa nos últimos meses, passou um pouco ao lado o dia que as Nações Unidas escolheram para salientar os esforços que estão a ser envidados para melhor as condições de vida daqueles que normalmente não têm voz. Antecipando a comemoração, o Presidente da República Popular da China, Xi Jinping, anunciou que espera acabar com a pobreza no país em cinco anos. Para isso, vai adoptar medidas para ajudar a levantar do chão os 70 milhões de chineses que ainda vivem abaixo do limiar da pobreza. Desde a abertura económica preconizada por Deng Xiaoping, a China conseguiu operar aquilo que é entendido pelos analistas como um autêntico milagre. Seiscentos milhões de pessoas foram resgatadas da pobreza extrema. Um efeito sem comparação com qualquer outro no mundo. Nunca tantos em tão pouco tempo foram retirados do estigma da pobreza extrema. Quando se visita hoje a aldeia olímpica de Pequim, um dos bairros mais recentes de Xangai ou o centro de Cantão, não nos lembramos que o desenvolvimento exponencial chinês tem pouco mais do que 30 anos. No entanto, apesar de todo esse desenvolvimento, suportado em crescimentos anuais do Produto Interno Bruto (PIB) durante vários anos acima dos 10 por cento, a China continua em 2015 a ser um país de profundos contrastes onde coabitam muitos dos mais ricos multimilionários com – de acordo com os dados oficiais – 70 milhões das pessoas mais pobres do mundo. A pobreza extrema é uma daquelas coisas que precisa de ser sentida de perto para nos impelir a querer mudar o status quo. As notícias que são transmitidas pelos telejornais, ao final do dia, de uma forma estereotipada, asséptica, sobre a impossibilidade da vida em destinos tão improváveis como a Somália, o Sudão do Sul ou a Síria (só para dar três exemplos aleatórios), quando já não temos capacidade para assimilar o que se passa fora do ridículo bairro em que vivemos e queremos apenas saber se o melhor ponta-de-lança da nossa equipa já recuperou daquela mazela matreira que o deixou de fora dos convocados nas duas últimas semanas, não produzem qualquer efeito no cidadão médio quanto mais no político que tem nas suas mãos a possibilidade de produzir uma mudança. Felizmente, as funções profissionais que tenho desempenhado ao longo dos anos levaram-me a países extraordinários que me expuseram aos povos mais amáveis do mundo mas também aos mais pobres. São países tão exóticos quanto a República Centro-Africana. Quando falo da minha experiência profissional em Bangui muitas das pessoas, mesmo algumas daquelas que me são próximas, tendem inicialmente a pensar que me estou a referir a uma localização geográfica no continente africano e não efectivamente a um Estado. Mas de facto ele existe, embora com as dificuldades que podem ser elencadas a uma organização política que não está implantada por todo o território, que tem necessidades crónicas de cumprimento com as suas obrigações orçamentais e que se vê confrontada com desafios permanentes à sua integridade política por grupos estrangeiros que têm como objectivo final a apropriação dos recursos naturais abundantes. A República Centro-Africana, mas também outros países como a Serra Leoa ou Timor-Leste, pôs-me em contacto com uma realidade estranha a muitos de nós, as das pessoas que vivem apenas para… sobreviver. Estipulou-se para as Metas de Desenvolvimento do Milénio que as pessoas abaixo do limiar da pobreza seriam aquelas que viviam com menos de 1.25 USD por dia ou 37.5 USD por mês. Pouco mais do que nada. Quando se diz que estas pessoas (sobre)vivem com 300 patacas por mês, trata-se de uma falácia. Muitas destas pessoas continuam a viver num sistema de trocas directas. O documentário francês de 2013 “Sur le chemin de l’école” (No caminho para a escola) mostra isso com uma crueza que poucos filmes o fazem. Além de pôr em evidência as dificuldades que têm quatro grupos de crianças a irem para a escola na Argentina, na Índia, em Marrocos e no Quénia, mostra-nos quanto aquilo que temos por certo é afinal apenas uma figura de estilo. O “Sur le chemin de l’école” dá-nos a conhecer quatro retratos de quatro continentes. Não foi por acaso que o continente europeu ficou de fora dos exemplos escolhidos pelo realizador Pascal Plisson. Essa escolha lembra-nos que o mundo como nós o entendemos é, para mais de 20 por cento dos outros habitantes do Globo, muito diferente. Também não é por acaso que a Europa esteja a ser o destino de um número sem fim de candidatos a refugiados (600 mil desde o início do ano até agora). Viver abaixo do limiar da pobreza é uma dificuldade conceptual básica. Não se consegue imaginar. Vimo-la nos filmes, mas não queremos acreditar. Afinal essas são imagens criadas em Hollywood ou noutra qualquer Meca cinematográfica. Escolher como prioridade retirar 70 milhões de pessoas até 2020 – qualquer coisa como um milhão por mês – parece um objectivo ambicioso. Mas é uma meta na direcção certa.
Rui Flores VozesTodo o Nobel é político! [dropcap style=’cricle’]A[/dropcap]atribuição na semana passada dos prémios Nobel da literatura à bielorussa Svetlana Alexievich e da Paz ao Quarteto Nacional Tunisino reforça a ideia, defendida por vários analistas, de que o Prémio Nobel é um galardão de cariz marcadamente político. Este ano, os valores subjacentes aos prémios atribuídos pela Academia Sueca e pelo Comité Nobel Norueguês, mais do que terem uma dimensão política, são demonstrativos de uma agenda programática que se pretende promover. Uma narrativa que prossegue os valores da democracia liberal e que ambiciona ser adoptada pelos mais diversos povos. Segundo a Academia Sueca, a jornalista e escritora bielorrussa Svetlana Alexievich foi premiada devido à sua “escrita polifónica” – dará, pois, voz a muitas outras pessoas, que é “um monumento ao sofrimento e à coragem no nosso tempo”. E sobre o que tem escrito Alexievich, mais conhecida pelos seus trabalhos jornalísticos do que pelos seus livros? Os seus trabalhos mais notáveis são os que dizem respeito ao fim do império soviético. Ao fim de uma certa ordem política que morreu com a queda do Muro de Berlim. O livro “O fim do homem soviético: Um tempo de desencanto” é um documento que ajuda a compreender a desagregação da antiga União Soviética e é, aliás, a única obra da autora já publicada em português. No prelo está outra que tem como objecto sobreviventes da tragédia nuclear de Chernobil. O comité norueguês do Nobel da Paz, por seu lado, escolheu o Quarteto Nacional Tunisino pelo contributo dado pela organização, que reúne representantes de quatro estruturas representativas da sociedade civil da Tunísia, para a consolidação democrática no país. O organismo terá tido um papel decisivo na procura de consensos na sequência da Primavera Árabe na Tunísia, cuja revolução, em 2011, levou ao afastamento do Presidente Ben Ali. O quarteto tem uma composição singela, incluindo representantes de organizações tão díspares como um sindicato, a União Geral Tunisiana do Trabalho, uma organização patronal, a União Tunisiana da Indústria, do Comércio e do Artesanato, a Ordem Nacional dos Advogados, e a Liga dos Direitos Humanos. [quote_box_left]Sem um indicador universalmente aceite sobre o número de vidas que uma qualquer pessoa ou entidade conseguiu preservar, não será possível apontar-se critérios objectivos para identificar possíveis vencedores[/quote_box_left] O caso tunisino é o único em que a Primavera Árabe, alimentada pelo apoio de instituições ligadas ao governo norte-americano a bloggers e outros internautas, conseguiu eleger um governo estável. É o mesmo país em que, em Junho deste ano, um jovem se passeou calmamente por uma das praias de Sousse, numa das estâncias balneares mais frequentadas da Tunísia, armado com uma pistola automática, matando indiscriminadamente quem estava a descansar. Ao fim de alguns minutos, o terrorista, que seria mais tarde identificado pelas autoridades tunisinas como Seifeddine Rezgui, assassinou 39 pessoas. O papel das organizações da sociedade civil na procura de consensos e na tentativa de suplantar bloqueios que tendem a travar soluções duradouras não é de somenos. Em alguns dos países em que trabalhei pelas Nações Unidas foram organizações oriundas da chamada sociedade civil – organizações não-governamentais, representativas de sectores profissionais, ou temáticas, com um enfoque considerável nos direitos humanos – que puseram termo a longos impasses (como na adopção de uma nova lei eleitoral na Republica Centro-Africana) ou obrigaram políticos a dominarem a sua verve racista (através da adopção de códigos de comportamento eleitoral, como durante as campanhas eleitorais na Guiné-Bissau e na Serra Leoa). Não se põe em causa a importância das organizações da sociedade civil, nem particularmente o papel do Quarteto na Tunísia. Elas são essenciais. Mas só são verdadeiramente operativas num quadro de tolerância democrática, numa democracia liberal. Numa semana em que subiu de tom a retórica da NATO face à Rússia, a propósito dos bombardeamentos levados a cabo por Moscovo na Síria, contra posições alegadamente detidas pelos militantes do Estado Islâmico, não deixa de ser uma coincidência que merece ser salientada, que a Academia Sueca promova quem use a sua escrita para salientar as contradições soviéticas e exponha os tiques autoritários de certos líderes políticos. Nem deixa de ser relevante recordar que ainda esta semana a norte-americana Foreign Affairs, uma das revistas de relações internacionais mais influentes no mundo ocidental, publicava um artigo lembrando o papel de Vladimir Putin no encerramento das mais variadas organizações da sociedade civil na Rússia. Caso se considerasse que a criação literária, como qualquer outra forma de expressão artística, não fosse subjectiva, talvez se pudesse eventualmente ter como critério orientador o número de obras publicadas pelo autor, o número de cópias vendidas ou mesmo o número de línguas em que o autor foi traduzido. Mas isto não faz qualquer sentido. A criação artística é, felizmente, subjectiva. E em muitos casos, os autores mais subjectivamente notáveis não são necessariamente os mais populares. No caso do Nobel da Paz, em que talvez o valor mais relevante que se pretende preservar é o da vida humana, sem um indicador universalmente aceite sobre o número de vidas que uma qualquer pessoa ou entidade conseguiu preservar, não será possível apontar critérios objectivos para identificar possíveis vencedores. Por isso, todos estes prémios são, na sua essência, subjectivos. Resultam de escolhas políticas que têm subjacente um quadro de referência que aponta num determinado sentido. Nestes dois casos, uma certa democracia liberal que se pretende universal.
Rui Flores VozesTrabalhador humanitário: profissão de alto risco [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]uma altura em que a vaga de migração para a Europa não parece abrandar e os governos europeus têm dificuldade em encontrar uma resposta comum para um problema que põe em causa a solidariedade europeia, o papel das organizações humanitárias ganha relevo. Na ausência de políticas tendentes a favorecer o acolhimento dos refugiados – como se vê no caso dos países do grupo de Visegrad (Hungria, Polónia, República Checa e Eslováquia), que recuperaram uma aliança de sete séculos para rejeitar políticas de acolhimento de refugiados – as pessoas, individualmente, e a sociedade civil, através de organizações, têm tido um papel essencial ao prestarem apoio aos migrantes que tentam encontrar na Europa um porto de abrigo. As imagens correram mundo há semanas, quando habitantes de várias cidades da Alemanha, por exemplo, foram para a rua acolher os estrangeiros recém-chegados. Ofereciam-lhes café, água, roupa, numa verdadeira demonstração de que os refugiados eram bem-vindos. E não o fariam, seguramente, a pensar na necessidade da reposição demográfica do país, razão que muitos apontam, por estes dias, para justificar a boa vontade germânica. Afinal, muitos dos candidatos a refugiados entrevistados pelas cadeias internacionais de televisão falam inglês fluentemente, têm cursos superiores, são técnicos aparentemente capacitados e poderiam com facilidade ser integrados na locomotiva económica alemã, que continua a evoluir a grande velocidade, consequência do excelente desempenho das suas exportações. Mas a dimensão da onda de refugiados veio contrariar um pouco a tese conspirativa de que o afluxo de migrantes à Europa resultava de um interesse particular germânico. [quote_box_left]Quer na Síria quer no Sudão do Sul, a maioria dos bens disponibilizados às populações já são entregues por via aérea, de forma a diminuir o risco para os trabalhadores humanitários[/quote_box_left] O que é facto é que a vaga não tem parado. E ninguém sabe quando vai parar, contingente que depende da resolução de um número de conflitos que persistem em tão díspares locais quanto o Afeganistão, a Eritreia, o Iémen, o Iraque, a Síria ou a Somália. Neste campo da resolução dos conflitos, é naquele que está mais activo, o da Síria, que uma eventual resolução ganha força, quando militares russos e americanos parecem finalmente começar a falar numa possível divisão da Síria em vários partes com a manutenção no poder de Bashar al-Assad. Esta onda de refugiados e o apoio que têm recebido de organizações não-governamentais contrasta, de facto, com a atitude pouco entusiasta com que alguns Estados têm lidado com o assunto. Mas permite também reflectir um pouco sobre o papel das organizações de apoio humanitário e as dificuldades que têm no terreno. Fazendo fé nos dados mais recentes, a comunidade global de trabalhadores humanitários contabiliza 450 mil pessoas. É quase o equivalente a dois-terços da população de Macau que trabalha para agências internacionais como o Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, a Cruz Vermelha Internacional, o Programa Alimentar Mundial, o Fundo das Nações Unidas para as Crianças. Segundo um estudo publicado recentemente pela Humanitarian Outcomes – um centro de investigação e de assessoria na área do trabalho humanitário – só em 2014, houve 190 ataques de grande dimensão contra trabalhadores de organizações humanitárias. O crime mais cometido contra os trabalhadores humanitários é o rapto. No total, houve 328 vítimas em 27 países. O Afeganistão, a Síria e o Sudão do Sul são os países mais violentos. Na verdade, o número de ataques a trabalhadores humanitários diminui quando comparado com 2013. Mas parece que não há grandes razões para celebrar, pois, no último ano, muitas das agências internacionais de apoio humanitário diminuíram a sua presença no terreno, particularmente nas áreas mais inseguras. Ou seja, nos territórios onde as populações mais precisam de ter um mínimo de apoio – água, comida, abrigos, kits de higiene – para viverem no limiar da dignidade, é onde as agências internacionais têm desinvestido. Como está bom de ver, é desses territórios que fogem os refugiados que por estes dias chegam em massa à Europa. Quer na Síria quer no Sudão do Sul, países extremamente perigosos para o trabalho humanitário, a maioria dos bens disponibilizados para as populações já são entregues por via aérea, de forma a diminuir o risco para os trabalhadores humanitários. A Síria é mesmo o maior conflito activo que tem dentro das suas fronteiras uma percentagem menor de trabalhadores de apoio humanitário. Mas os dados sobre os ataques aos trabalhadores humanitários podem nem corresponder à realidade que se vive no terreno. É que, por um lado, as agências internacionais, para evitarem uma contabilidade negativa do aumento do número de ataques, há muito que recorrem às chamadas organizações locais da sociedade civil para fazer a distribuição dos bens que têm para doar às pessoas que deles precisam. As organizações locais, por seu lado, para não perderem o contrato de associação com os grandes da ajuda humanitária, acabam por escamotear o número de ataques que efectivamente sofrem. Ainda para mais, estas organizações, que têm orçamentos limitados e falta de pessoal qualificado, cortam sempre nos custos relacionados com a segurança e são em muitos casos vítimas silenciosas dos conflitos cujos efeitos procuram diminuir.
Rui Flores VozesNobel para o Papa, já! [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]Papa Francisco está por estes dias em Cuba, seguindo-se depois uma visita pontifícia aos Estados Unidos da América. Antes de se meter a caminho das Américas, Francisco chamou ao Vaticano os ministros do Ambiente da União Europeia para lhes dizer três coisas: que o combate ao aquecimento global não se faz apenas por palavras; que a União deveria tomar a liderança na preparação e na negociação da conferência internacional sobre as alterações climáticas marcada para o início de Dezembro, em Paris; e que o combate ao aquecimento global tem de ser feito a par do combate à pobreza, pois os mais pobres são invariavelmente aqueles que mais sofrem com os problemas relacionados com o aquecimento global. A questão das alterações climáticas é apenas uma das várias questões em que o Papa tem mantido um papel de destaque, chamando a atenção para a necessidade de o mundo agir antes que seja tarde de mais. Em Junho, divulgou uma encíclica sobre o tema. Nela, Francisco dizia que o ambiente era um “bem comum” e que a humanidade tinha que mudar o seu estilo de vida. A forma como age sobre as matérias de cariz social, económico e político, é bem distinta da dos políticos populistas que acordam para os problemas em tempos de crise e que lançam tiradas desprovidas de conteúdo para serem repetidas pela comunicação social, sem consequências directas mais do que parecerem que estão a tentar fazer alguma coisa. O Papa foi dos primeiros líderes mundiais a chamar a atenção para o drama dos refugiados que assola agora o continente europeu. Quando visitou o Parlamento Europeu em Novembro do ano passado – revelando uma capacidade de antecipar os problemas que têm marcado a União Europeia neste Verão – apelou ao despertar humanista de uma certa Europa “envelhecida”. O Vaticano teve um papel decisivo na reaproximação de Havana a Washington. É evidente que a Igreja Católica tem um interesse directo na normalização das relações diplomáticas de Cuba com o mundo. Mas acima de tudo, aprecia ver a normalização do regime dos irmãos Castro com os direitos humanos, entre os quais está a liberdade religiosa. A revolução cubana de 1959 restringiu a prática religiosa no país. Francisco visita, pois, como Papa, um país que está aos poucos a “normalizar-se” com a prática religiosa. A seguir à revolução, Fidel decretou o ateísmo como a doutrina reinante no país. Ao longo dos anos, a narrativa de que a prática religiosa era reaccionária e anti-governo fez o seu caminho. Quando, em reportagem, em 1996, visitei Cuba pela primeira vez, a Catedral de Havana, de São Cristóvão, estava fechada, a cadeado. E o lixo que a escadaria ostentava era um sinal de que a preservação imaculada da casa de Deus não era uma prioridade. Nessa viagem, que decorreu em simultâneo com os Jogos Olímpicos de Atlanta, assisti a um comício de Fidel, de mais duas horas, na província de Holguín, em que o presidente cubano afirmava que as medalhas conquistadas pelos cubanos valiam a dobrar: não eram apenas um sinal de que os atletas cubanos eram os melhores, tinham também um sabor especial por serem ganhas em território “gringo”. Francisco intervém, pois, de forma estruturada. Inteligente. Responsável. Com o poder moral que a Igreja deveria sempre ostentar, mas que os casos de assédio sexual têm minado ao longo dos anos. Nesse aspecto, também Francisco se distingue dos outros, tendo tomado, em várias ocasiões, medidas disciplinares contra prelados que encobrem casos de assédio sexual, tendo até deixado cair bispos e arcebispos. As alterações que promove dentro da Igreja não são de somenos, com resultados práticos para os praticantes. Os procedimentos para a anulação dos casamentos, possibilitando que católicos tornem a casar, foram recentemente facilitados. A dessacralização do cargo que ocupa é outra das marcas do seu papado. Há dias, ao entrar no avião que o levaria a Cuba, o Papa carregava ele próprio a sua pasta de cor preta. O chefe máximo da Igreja Católica deixou de ostentar o vermelho e o dourado – cores que estavam sempre presentes em Benedito XVI – para usar o simples branco. Com os seus gestos, com a forma simples e directa como é capaz de falar com a pessoa comum, Francisco transformou-se num fenómeno de popularidade. Na visita às Filipinas, em que chorou ao ouvir a história da vida atormentada das crianças de rua, reuniu à sua volta, numa missa, em Manila, uma multidão avaliada em seis milhões de pessoas. Um recorde. Numa altura em que se diz que há uma crise de valores, que faltam líderes políticos com capacidade de movimentar massas e de apontar o caminho, o Papa transformou-se numa espécie de farol moral que a Igreja Católica tinha perdido. Numa semana em que o ex-secretário do comité Nobel publicou o seu livro de memórias e veio dizer aquilo que muitos pensam, que a atribuição do Nobel da Paz a Barack Obama, em 2009, foi prematura e que os anos seguintes da sua governação provaram o erro que foi a atribuição do prémio ao presidente norte-americano, está na altura do Comité Nobel olhar para a obra que Francisco está a erguer e distingui-lo com uma honra perfeitamente justa.
Rui Flores VozesRefugiados na Europa: resposta mínima [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]União Europeia acaba de dar mais um espectáculo triste de falta de solidariedade. Com declarações pouco sérias sobre a crise dos refugiados, pronunciadas nas fronteiras leste da Europa, e com os motores da integração europeia aparentemente distraídos quanto ao tema – afinal, o Presidente Francês aproxima-se rapidamente de eleições e não quer dar pretextos para que Marine Le Pen suba ainda mais nas sondagens – uma resposta comum tem-se revelado impossível. Mas independentemente das iniciativas individuais de acolhimento por parte dos Estados-membros, o que esta onda de candidatos a refugiados tem mostrado é uma total incapacidade e uma desesperante falta de vontade política de a União lidar institucionalmente com o assunto. Essa inabilidade viu-se na primeira metade do ano quando a Comissão apresentou um plano para lidar com a vaga de candidatos a refugiados que previa o acolhimento de apenas 40 mil pessoas nos próximos dois anos. Ou seja, se o plano tivesse sido implementado como proposto, teriam sido autorizadas a entrar na Europa, a título excepcional, apenas 20 mil pessoas este ano. Nos últimos dias, têm entrado no território da Hungria mais de três mil pessoas por dia. O plano inicial desenhado pela Comissão Juncker foi depois aumentado por decisão dos Estados-membros. Acordou-se, no final de Junho, que o número de refugiados subiria para 60 mil – isto após uma reunião que durou a noite toda e que terá sido, segundo vários relatos, uma das cimeiras mais azedas da história recente da União Europeia, com vários chefes de governo, de dedo em riste, acusando-se mutuamente de insensibilidade social. Foi aberta uma porta para mais 20 mil pessoas oriundas especificamente da Síria e da Eritreia que ainda não estavam na Europa, tendo a Hungria e a Bulgária ficado de fora, devido a razões económico-sociais, como também o Reino Unido, por opção. [quote_box_left]Prevê-se nova maratona negocial. Não se acredita que a Comissão tenha aproveitado as férias de Verão para fazer um curso intensivo de mediação política. Receia-se, pois, que a crise política continue a fazer o seu curso no interior da União[/quote_box_left] Tudo mudou nos dois últimos meses. Por um lado, os políticos – como grande parte da população europeia empregada – foram de férias. E as imagens do aumento da vaga de refugiados pareciam notícias do além, pouco nítidas, pouco claras, pouco audíveis – como acontece com as notícias das desgraças que ocorrem no interior de África, e não são poucas, ou dos acidentes com fábricas na Índia ou na China em que morrem pessoas aos magotes. Não têm nada a ver connosco. Não nos afectam grandemente. É da natureza humana: se não nos afecta directamente, porque é que nos havemos de preocupar? Um pouco como o aquecimento global, não é assim? Quando os dirigentes políticos regressaram aos gabinetes e tinham sobre as suas secretárias os números de candidatos a refugiados que haviam entrado na Hungria e na Grécia enquanto estiveram a banhos, ficaram chocados. De acordo com os dados da Organização Internacional das Migrações (OIM), até 31 de Agosto, terão já entrado na Europa mais de 350 mil pessoas. E logo depois levaram com a fotografia, na primeiras páginas de vários jornais europeus, do cadáver de uma criança síria de três anos morta numa praia da Turquia, quando procurava, com o pai, a mãe e o irmão, de cinco, chegar de barco à Grécia. Foram pois compelidos a agir. A Comissão multiplicou por quatro o seu programa original e está disponível para convencer os Estados-membros a aceitarem 160 mil pessoas nos próximos dois anos. A Alemanha e a França são os Estados-membros que irão receber a maior fatia destes refugiados, aumentando também substancialmente a quota individual de cada um. Portugal, por exemplo, subiria a sua contribuição para o esforço de acolhimento de refugiados para 4775 pessoas, quando na proposta anterior previa apenas a integração de 1701. Esta crise, mas sobretudo a imagem da criança morta, Aylan Kurdi – e, de facto, há que considerar que há imagens de cadáveres e há outras imagens de cadáveres – parece ter agitado consciências adormecidas. Por outro lado, é interessante ver que durante semanas os media internacionais foram tratando as vagas de pessoas que fogem das guerras na Síria e no Iraque como “migrantes”, mas agora, finalmente, adoptaram o termo “refugiados”, mais consentâneo com a realidade. A diferença não é meramente semântica. O estatuto de refugiado permite, a quem o consegue obter, adquirir protecção social por parte do Estado de acolhimento, a qual está vedada ao mero imigrante, que procura num outro país uma oportunidade de trabalho e, potencialmente, melhores condições de vida. A reunião da próxima segunda-feira do Conselho de Ministros de Justiça e Assuntos Internos deverá discutir a proposta da Comissão. Os chefes de governo da República Checa, Eslováquia, Hungria e Polónia já anunciaram a sua oposição ao plano das quotas. Prevê-se, pois, nova maratona negocial. Até porque não se acredita que a Comissão tenha aproveitado as férias de Verão para fazer um curso intensivo de mediação política. Não será caso para espanto, por outro lado, se os ministros dos Estados-membros, seguindo o exemplo dos seus chefes de governo, aproveitem a reunião para voltarem a trocar insultos. Receia-se, em síntese, que a crise política continue a fazer o seu curso no interior da União.
Rui Flores VozesDa impunidade política na Guiné-Bissau [dropcap style=’circle’]A[/dropcap] nova crise política na Guiné-Bissau faz levantar dúvidas, uma vez mais, sobre a adequação do quadro jurídico-constitucional em vigor no país com a realidade sócio-política guineense. Esta é uma questão que tem sido levantada em tempos de confrontação política ou na sequência de mais um golpe de Estado. Desta vez, a crise colocou o Presidente da República eleito pelo PAIGC, José Mário Vaz, contra o líder do PAIGC e primeiro-ministro demitido, Domingos Simões Pereira, e a nomeação de um governo de iniciativa presidencial, chefiado por Baciro Djá, ex-ministro da Presidência do Conselho de Ministros que se incompatibilizou com o antigo secretário-executivo da CPLP. Tudo por alegada corrupção e incompetência do executivo. As crises político-securitárias têm-se repetido na Guiné-Bissau como em poucos outros países da África Ocidental. A história regista o facto de que, desde as primeiras eleições multipartidárias em 1994, não houve nenhuma legislatura que chegasse ao fim nem um Presidente da República que completasse o seu mandato. As razões para que isso tenha acontecido e continue a acontecer, 31 anos depois do primeiro acto eleitoral e 42 anos após a independência, são várias e têm sido apontadas nos últimos anos pelos mais diversos comentadores. As consequências directas são os golpes de Estado e os assassínios, mas o analfabetismo, o tribalismo, a incapacidade de diálogo entre os vários protagonistas políticos são alguns dos problemas que os diversos analistas têm identificado como causas estruturantes da instabilidade permanente que tem marcado a Guiné-Bissau pós-colonial. Uma das principais questões que enquadram o problema da recorrente instabilidade da Guiné-Bissau foi salientada pelo ex-representante especial do Secretário-Geral das Nações Unidas no país, José Ramos-Horta, quando há dias, nas páginas do Público, apontou o dedo a um dos mais recentes legados lusos, a influência jurídico-constitucional: “A crise resulta de uma Constituição que foi cozinhada em Portugal, sem qualquer consideração à realidade social da Guiné-Bissau, mas encomendada e absorvida na Guiné-Bissau, logo a seguir ao derrube do Presidente Amílcar Cabral. A partir desse primeiro golpe nunca mais conheceu paz.” Antevendo as dificuldades que poderiam existir entre o poder presidencial e o executivo, Ramos-Horta, diz o próprio, procurou deixar um conselho ao Presidente Vaz, quando deixou a chefia da missão da ONU na Guiné-Bissau: “Esse modelo Constitucional não desculpa tudo. A crise tem a sua génese no Palácio Presidencial, num Presidente que, mau grado as prerrogativas ou limitações dos seus poderes, devia acima de tudo ser o mediador, homem de diálogo, fazedor de consensos. Foi o que aconselhei o Sr. Presidente José Mário Vaz a ser: o homem do diálogo, o apaziguador. Obviamente ele não ouviu. Ou ouviu mas sucumbiu a tentação e resvalou pelo mesmo trilho muito perigoso por onde passou outros Presidentes de triste memória.”[quote_box_right]O reconhecimento da diferença e das especificidades sócio-culturais de países como a Guiné-Bissau deve ser o primeiro passo para se encontrar uma estrutura jurídico-política que permita a estabilidade, elemento essencial do desenvolvimento.[/quote_box_right] Político experiente, Ramos-Horta sabe do que fala quando refere que o modelo jurídico-constitucional guineense não se adapta à cultura sócio-política do país. Afinal, a Guiné-Bissau, como Timor-Leste mais de duas décadas depois, adoptou um sistema político inspirado no modelo semipresidencialista português. Tanto num caso como no outro, assessores portugueses estiveram por detrás das propostas que haveriam de ser consagradas em lei. A lógica do Presidente-mediador, apagador de fogos, proponente de compromissos é uma marca do sistema presidencialista. Uma marca que tem estado ausente da Guiné-Bissau de Vaz, como esteve ausente em Timor-Leste, em 2006, quatro anos depois da independência, quando Xanana Gusmão era o Presidente e o país, dividido entre dois grupos étnicos, esteve à beira de uma guerra civil. A questão constitucional está há muito identificada. Foi um dos problemas elencados, por exemplo, durante as duas dezenas de conferências organizadas pela Assembleia Nacional Popular, com o apoio do então Presidente da República, Malam Bacai Sanhá, “Caminho para a Consolidação da Paz e Desenvolvimento”, que procurou fazer o diagnóstico das principais causas de conflitos na Guiné-Bissau e avançou propostas para a sua resolução. Nesse documento, os que sugeriam a introdução do presidencialismo – o modelo em vigor nos vizinhos continentais da Guiné-Bissau, quer anglófilos quer francófonos – faziam-no “como forma de evitar conflitos de competências entre os titulares dos órgãos de soberania”. A principal fonte de problemas identificada, no entanto, foi outra: uma certa cultura de impunidade, que propiciou assassínios políticos, a descredibilização do Estado, o tráfico de droga. O reconhecimento da diferença e das especificidades sócio-culturais de países como a Guiné-Bissau deve ser o primeiro passo para se encontrar uma estrutura jurídico-política que permita a estabilidade, elemento essencial do desenvolvimento. No que ao impasse constitucional diz respeito, muitos não querem ver o problema. Parte da elite guineense foi formada em Portugal e não quer sequer abrir a porta à discussão, aparentando ser imune às lições da história, que nos mostram que, também no processo de consolidação democrática de Portugal, a tensão entre o poder presidencial e o poder executivo foi motivo de instabilidade. Outros aproveitam o actual quadro para dar razão aos que proclamam que existe uma espécie de poder à africana que tem alergia ao Estado de Direito e aos direitos das minorias, em que o Presidente usa o seu poder absolutamente numa lógica de total sobreposição da pessoa do Presidente ao Estado, na qual a concepção republicana do Estado está ausente. Ao optar por isolar Simões Pereira, um político reputado – que congregou o apoio da chamada “comunidade internacional”, de quem recebeu a promessa, há apenas cinco meses, da doação de mil milhões de euros de ajuda ao desenvolvimento – vai no caminho de perpetuar a instabilidade. As pequenas conquistas do último ano, tão celebradas pelos guineenses quer na sua terra quer na diáspora, vão ser todas postas em causa. Afinal, foi só agora, nos últimos meses, que Bissau, pela primeira vez em muitos, muitos anos, passou a ter electricidade 24 horas por dia. Vaz está no lado errado da história.
Rui Flores VozesISIS e a falência do modelo das liberdades e prosperidade [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]final, o que é o Estado Islâmico do Iraque e da Síria (ISIS, na sigla inglesa)? Como é que se explica que, em pleno Século XXI, uma organização terrorista que se transformou numa entidade política que administra um território com acesso a recursos estratégicos como o petróleo, recorra a práticas tão violentas como a decapitação? Que apelo é que tem esta entidade que leva alguns milhares de pessoas a deixarem a sua vida pequeno-burguesa nos subúrbios de Paris e de Londres, para ir combater ao lado dos insurgentes? Dito de outra forma, em que estado se encontra a sociedade “ocidental” para que alguns de nós deixem tudo para trás – família, irmãos, pais, nalguns casos, mulheres e maridos – para se juntarem a um grupo de criminosos? Antes de analisar as condições que permitiram o florescimento do Estado Islâmico, duas notas sobre a forma como a chamada “comunidade internacional” tem lidado com esta ameaça. O ISIS continua a controlar um vasto território entre a Síria e o Iraque devido, em parte, à incapacidade dos serviços de informação em avaliarem com rigor a ameaça que poderia constituir para as potências mundiais um movimento que se construiu no terror, na brutalidade exibicionista, sobretudo em relação às mulheres e a minorias étnicas e religiosas, e que procura na internacionalização a sua principal fonte de crescimento. As posições públicas do presidente norte-americano sobre o ISIS são um bom exemplo de como os principais líderes ocidentais não conseguiram identificar atempadamente o que se estava a passar no Médio Oriente, nem o “caldo de cultura” que permitiria à organização crescer. No mesmo mês em que o ISIS conquistou a cidade de Faluja, no Iraque, em Janeiro do ano passado, Obama minimizou o movimento comparando-o a uma equipa de basquetebol júnior do campeonato universitário norte-americano. Após ter afirmado que a melhor estratégia para combater organizações terroristas não seria a invasão de países terceiros e de ter autorizado a formação de movimentos rebeldes moderados na Síria, Obama acabou, mais tarde, por dar luz verde a ataques aéreos a alvos estratégicos do ISIS. Pelo meio, quatro americanos foram mortos pelo Estado Islâmico. Enquanto a administração norte-americana ziguezagueava sobre a resposta a dar, o ISIS foi consolidando posições e tornou-se numa plataforma de acolhimento de ocidentais, em parte devido a uma poderosa máquina propagandística que divulga eficazmente na internet os seus apelos e ideias. O investigador indiano Pankaj Mishra, autor, entre outros, do livro “From the Ruins of Empire: The Revolt Against the West and the Remaking of Asia” (2013), vê na capacidade do Estado Islâmico em atrair ocidentais uma nova expressão da falência do modelo ocidental de organização político-económica. Nas páginas do britânico The Guardian, Mishra escreveu recentemente um ensaio em que detalha que o ISIS explora para a sua vantagem o facto de muitos de nós vermos o mundo a preto e branco. Um aproveitamento que muitos fizeram no passado e muitos outros fazem no presente: basta ver e ouvir políticos em campanha eleitoral. Um mundo de uma aflitiva pobreza narrativa, que se resume a nós e eles. A nós contra eles. Esse mundo mostra que a perspectiva da prosperidade e da liberdade para todos – uma ambição das democracias liberais ocidentais, construção que os Estados Unidos da América e a Europa ousaram exportar para a Ásia e África, assente num conjunto de liberdades e numa organização económica capitalista – não passa de uma promessa inalcançável. De certa forma, é a própria construção europeia que está afectada. Afinal, a União tem sido construída na premissa da paz e da prosperidade. O que é facto é que as diferenças socioeconómicas são profundas, não apenas entre os diversos Estados, mas sobretudo no interior dos Estados. E a integração das minorias não tem sido totalmente eficaz.[quote_box_right]A promessa de paz e prosperidade associada às democracias liberais parece já não convencer todos. A prosperidade tem tido os seus revezes. E a disparidade de rendimentos e das condições sociais não tem diminuído, sobretudo após anos de crise económico-financeira[/quote_box_right] Cada vez mais pessoas sentem que existe uma enorme diferença entre as promessas de liberdade e prosperidade e a incapacidade das estruturas político-administrativas, de que fazem parte, em as concretizar. Como se um certo modelo se tivesse esgotado. A promessa de paz e prosperidade associada às democracias liberais parece já não convencer todos. A prosperidade tem tido os seus revezes. E a disparidade de rendimentos e das condições sociais não tem diminuído, sobretudo após anos de crise económico-financeira. O que leva muitos de nós a pensarem “O que faço eu aqui?”, e a terem dúvidas sobre a capacidade de subirem a escada social. Este é, em traços muito gerais, o universo de recrutamento do Estado Islâmico. A sua capacidade de recrutamento é considerável no mundo árabe, naturalmente. Segundo as estimativas conhecidas, no seu todo, 17 mil pessoas – sobretudo jovens –, oriundas de 90 países, terão viajado para a Síria e Iraque para combater. Da Tunísia, onde a Primavera Árabe começou (e que ambicionava a construção de um novo Estado, mais igualitário, mais justo, mais tolerante), terá partido o maior contingente. Um recente inquérito online do canal árabe da Al-Jazeera recolheu 81 por cento de votos favoráveis sobre a relevância da acção do Estado Islâmico. Essa capacidade de recrutamento é menor no mundo ocidental, mas segundo alguns cálculos, 3400 pessoas deixaram as liberdades e a prosperidade do Ocidente para se voluntariarem no Estado Islâmico. Embora estes números indiciem uma certa crise de um modelo incapaz de enquadrar e motivar todos, há um quadro de valores morais que subsiste e que ainda é a referência para a grande maioria. Até quando persistirá?
Rui Flores VozesO legado africano de Obama [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]recente visita do Presidente norte-americano a África, a última de um Barack Obama na reta final do segundo mandato, foi aproveitada por muitos analistas para avaliar o legado de Barack Obama para com o continente onde tem as raízes paternas. Os balanços são mais ou menos positivos consoante as filiações políticas dos autores. Mas embora Obama não tenha feito tanto pelo continente como os seus antecessores, parece estar a ser vítima das expectativas exageradas que foram criadas pela sua eleição. Quando Barack Obama foi eleito em 2008, eu estava então a trabalhar em África para a Organização das Nações Unidas (ONU). Assisti nesse dia a uma alegria infindável quer da população do país onde me encontrava em missão – o Chade, na fronteira entre o Sahel e a África negra, constituído na sua vasta maioria por uma população de fé muçulmana – quer dos colegas das Nações Unidas de origem africana. Foi como se de repente todo um novo mundo se abrisse aos nossos olhos, tudo porque o povo norte-americano, através do seu voto, havia escolhido o primeiro Presidente negro da sua história. No país mais poderoso do mundo. O “yes, we can!” era muito mais do que um slogan de campanha. Era toda uma política, de igualdade, de respeito pelas minorias, de afirmação do ser humano, que se tornava possível. Isso não era pouco. Perpassava a sensação de que tudo era agora possível, de que o mundo se iria tornar um lugar mais justo, mais integrado, menos desigual. E era por isso que muitos dos meus colegas africanos (mesmo aqueles que estavam em posições de chefia e que, por trabalharem para uma organização que tinha como princípios orientadores a igualdade entre géneros e a diversidade geográfica, foram sentindo ao longo dos anos menos a discriminação do que outros) se abraçavam e sorriam como se de uma ocasião única se tratasse. [quote_box_left]Obama é uma vítima das expectativas elevadas que foram criadas com a sua eleição. Mas como qualquer político bem sabe, a arte da governação passa pela gestão das expectativas[/quote_box_left] Muitos deles imprimiram nesse dia imagens de um sorridente Obama, disponíveis na internet, e colocaram-nas na parede em frente às suas secretárias. Outros tinham-no feito muito antes, quando o candidato democrata começara a corrida para a Casa Branca. Nesse dia, no dia em que é eleito, Obama conquista muitos daqueles que nunca quiseram acreditar para não se desiludirem. E este é o primeiro legado – o principal, talvez – que Obama deixa aos africanos. Tudo é possível. É possível acabar com os estigmas, com os fatalismos. É possível cortar as raízes do subdesenvolvimento. Dos atavismos. Por ter feito as pessoas acreditarem, Obama deu-lhes um capital maior do que o resultado das suas políticas para com o continente africano. Um capital que o Comité Nobel Norueguês reconheceu com a atribuição do Nobel da Paz. O prémio, atribuído logo em 2009, no início do seu primeiro mandato, foi-lhe concedido pelos seus esforços para fortalecer a diplomacia internacional e “a cooperação entre povos”. Mas também foi para salientar as diferenças entre a prática política do seu antecessor no cargo, que avançou para o Iraque, na sequência dos ataques terroristas do 11 de Setembro de 2001, sem mandato do Conselho de Segurança da ONU. Obama transformou-se, entretanto, no campeão dos ataques por drones, tendo sido contabilizados, oficialmente, até ao início deste ano, mais de 450 em países com os quais os Estados Unidos não estão em guerra, como o Iémen, o Paquistão e a Somália. Nove vezes mais do que os ataques autorizados por Bush e que mataram perto de 2500 pessoas, entre as quais 314 civis. É sobretudo “contra” George W. Bush que as comparações em matéria de política externa têm de ser feitas. Os especialistas em política externa lembram que o presidente republicano pôs em prática a Millennium Challenge Corporation, destinada a erradicar pobreza, apostando nas práticas de boa governação, e aprovou o Plano de Emergência para o Combate à SIDA. E que as iniciativas de Obama, como o Power Africa, uma parceria com os governos africanos que pretende alargar a plataforma de recrutamento de pessoas para as posições de chefia na África subsaariana, e a Young African Leaders Initiative, que tem como objectivo formar a próxima geração de empreendedores, educadores, activistas e inovadores, estão muito aquém do impacto dos programas desenvolvidos por W. Bush. No continente africano, Obama continua a dar prioridade à segurança sobre o respeito pelos direitos humanos ou às parcerias económicas. O comando militar americano no continente (Africom) está consolidado, mas falta uma presença visível norte-americana em termos de parcerias comerciais. Os chineses estão em África. Os indianos estão em África. Mas falta uma presença considerável de investimento Made in USA, reforçando uma certa frustração de líderes de opinião que esperavam que essa presença contribuísse para um reforço dos direitos humanos e para uma consolidação do Estado de Direito. Um pouco à imagem da declaração feita por Obama em Addis Abeba, no final da visita ao continente, em que afirmou que os presidentes não podem perpetuar-se no poder e que nada vai libertar mais o potencial económico de África do que eliminar o cancro da corrupção. O discurso não acompanha a prática, que uma presença norte-americana reforçada poderia forçar. De certa forma, Obama é uma vítima das expectativas elevadas que foram criadas com a sua eleição. Mas como qualquer político bem sabe, a arte da governação passa pela gestão das expectativas. E no caso das expectativas criadas por Obama, como o fecho imediato da Prisão de Guantánamo na ilha de Cuba, que permanece ainda hoje operacional, o Presidente não conseguiu concretizar o que se propusera fazer.
Rui Flores VozesA quem interessa a tensão em Calais? [dropcap style=’circle’]C[/dropcap]omecemos com um facto: entre refugiados, deslocados, pessoas em busca de asilo e apátridas há presentemente 55 milhões de seres no mundo. Isto equivale a cinco vezes a população de Portugal! Estes 55 milhões de pessoas são potenciais imigrantes a caminho de países em desenvolvimento. Entre esses, a Europa é uma das zonas do globo às quais os imigrantes mais apostam em chegar. Os refugiados partem sobretudo de África – Sudão, Somália, Líbia, Eritreia – ou do Médio Oriente, da Síria e do Iraque, com a Europa ali tão perto. Mas saem também do Afeganistão. Fogem à guerra, a conflitos internos, a perseguições políticas, à pobreza. Nada têm a perder. Partem com uma pequena réstia de esperança numa vida melhor, na possibilidade de poderem dar um futuro à família e a eles próprios. Para muitos, as precárias condições de vida que criaram nos acampamentos improvisados nos arredores de Calais, no norte de França, enquanto aguardam a oportunidade de se enfiarem no atrelado de um camião ou de conseguirem fazer a travessia no túnel no Canal da Mancha, são apenas um pouco piores do que aquelas que experimentaram nos campos de acolhimento para onde fugiram quando eclodiram os conflitos nos seus países de origem. Noutros casos, também as suas aldeias não têm água canalizada nem electricidade. Quem nada tem, nada tem a perder. No fundo, têm muito: uma força irresoluta que lhes permite não ceder aos milhares de quilómetros que tiveram de percorrer, às intempéries, à polícia. A sua capacidade de resiliência é enorme. São pois algumas destas pessoas que se encontram por estes dias em França. Depois da ilha italiana de Lampedusa, bem perto do continente africano, no início do ano, a tragédia humana dos que esperam chegar a um oásis de civilização mudou-se para Calais. E o circo noticioso mudou-se para lá também. É vê-los a todos – CNN, BBC… RTP – a transmitir em directo desde a porta de saída da Europa continental para o Reino Unido. É curioso, no entanto, que a imprensa internacional não mostre o drama dos refugiados que entram na Europa pela Hungria. Foi por essa fronteira a leste da União Europeia que muitos dos que aguardam a passagem para o outro lado do Canal da Mancha começaram a sua odisseia no interior da Europa. E é lá, na Hungria, que o governo conservador do primeiro-ministro Viktor Órban está a construir um muro de 170 km na fronteira com a Sérvia para travar um fluxo migratório sem precedentes. Até Junho, segundo os dados oficiais, ascendiam a 80.000 pessoas as que tinham atravessado a fronteira. Já em Itália o número era de 55.000. Na Grécia, 45.000. O total europeu andaria pelos 175.000. A partir de Calais, segundo os dados disponíveis, apenas 3.000 pessoas conseguiram chegar ao Reino Unido. Os refugiados procuram sobretudo chegar à Alemanha. No primeiro trimestre deste ano, Berlim teve de lidar com quase 50.000 pedidos de asilo, seguida pela França a uns distantes 17.000 requerimentos e o Reino Unido com menos de 13.000. [quote_box_right]Esta crise reforça sentimentos nacionalistas que estão a ganhar terreno na Europa. A repetição das imagens de Calais permitem que quem quer fechar a Europa a mais imigrantes ganhe popularidade[/quote_box_right] Devemos pois interrogarmo-nos: se a “crise” em Calais é de uma dimensão muito menor do que a que se vive na Itália, na Hungria ou na Grécia, porque é que a imprensa internacional está agora tão preocupada em narrar o que ali se passa? E porque é que o Governo britânico está tão empenhado em mostrar como esta crise sem precedentes afecta a estabilidade do reino de Sua Majestade? Dito de outra forma, ao contrário de se olhar apenas para Calais, é preciso ver o quadro geral. E no quadro geral está um primeiro-ministro britânico – que agora apela à União Europeia ajuda na resolução da crise dos refugiados – que aquando das últimas negociações, a pedido de Itália, se recusou a acolher refugiados. Este mesmo primeiro-ministro britânico comprometeu-se a fazer um referendo sobre a continuidade britânica nos tratados da União Europeia. Tem no interior do seu país partidos nacionalistas a crescer – partidos que recusam o carácter pacifista do Islão, como, por exemplo o UKIP – e que procuram acabar com o apoio concedido a quem consegue atravessar o estreito e encontra asilo no Reino Unido. A continuidade desta crise – as negociações no interior da União Europeia deram em nada nesta segunda-feira – tenderá a reforçar sentimentos contra a integração. Já esta semana a presidência da câmara de Calais clamou que a Europa não estava a ajudar, mas que eles franceses haviam ajudado a Grécia. Onde está a solidariedade europeia? Onde está a partilha da responsabilidade? Perguntava o presidente da Câmara de Calais, mas havia dito também o primeiro-ministro italiano quando no passado os Estados se revelaram reticentes em ajudar Roma a lidar com o problema de ter uma ilha tão perto da Líbia. Esta crise reforça sentimentos nacionalistas que estão a ganhar terreno na Europa. Viu-se com a questão grega, quando de certa forma o norte continental se opôs ao sul europeu, mediterrâneo. Viu-se com a crise dos imigrantes na Itália. Vê-se de novo agora, com Marine Le Pen, líder da Frente Nacional francesa, a vociferar que é preciso mais navios de guerra no Mediterrâneo para impedir que alguém passe. Os sinais de desunião são evidentes. O ministro sueco da justiça e da imigração acusou David Cameron de estar a pagar o preço de não ter aceitado mais refugiados; e o Presidente da República Checa veio afirmar que a crise de imigrantes é uma consequência da estratégia militar europeia e americana no Médio Oriente. A repetição das imagens de Calais e a manutenção deste status quo permitem que quem quer fechar a Europa a mais imigrantes ganhe popularidade. No final, é a Europa como um projecto comum de integração política que sai a perder. Aqueles que estão interessados nisso estão claramente por cima.
Rui Flores VozesQue sociedade é esta? [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]cartaz pode ser encontrado numa paragem de autocarro qualquer da cidade. Nele pode ler-se, em chinês tradicional, português e inglês: “Cumprimente verbalmente ou com gestos quando encontrar alguém conhecido” e “Agradeça quando lhe for prestada alguma atenção ou ajuda”. Duas frases em que a polémica está ausente e com as quais todos estaremos de acordo. Certo? O cartaz tem a chancela do Instituto de Assuntos Cívicos e Municipais (IACM) do Governo da Região Administrativa Especial de Macau. É um cartaz, entre outros, de uma campanha de educação cívica, que inclui mensagens como pedir às pessoas que ensinem aos seus cães a fazer “as necessidades em casa no sítio certo”. Sublinho o “em casa”. A minha experiência profissional tem-me levado a países em que abundam este tipo de mensagens, de campanhas destinadas a contribuir para alterar comportamentos sociais, associados, normalmente, a riscos de saúde. Ao lado da destruição da guerra civil, em Bangui, na capital da Republica Centro-Africana, ainda é possível encontrar hoje em dia mensagens que exortam os cidadãos a praticar sexo seguro, usando sempre o preservativo, ou que apelam a que as pessoas durmam debaixo de um mosquiteiro, de forma a prevenirem a malária. Ou então mensagens de educação política; em que se deixa claro, a possíveis eleitores, que o voto é secreto e que não devem deixar “vender” o seu por uma qualquer saca de arroz. O problema com o “nosso” cartaz, que nos exorta a cumprimentar as pessoas que conhecemos, não é a mensagem que ele transmite, um comportamento social tido por adequado em várias culturas. Estes comportamentos são inculcados nas crianças, até à exaustão, desde bem pequenas quando lhes é dito, por exemplo, dá aqui um beijinho a esta senhora, prima, vizinha ou outra coisa qualquer. Cumprimenta. Sorri! O problema deste cartaz é tudo aquilo que ele engloba, o quadro mais vasto que não cabe no escaparate da paragem de autocarro. É tudo o que está à sua volta. “The big picture” diria um anglófono. O problema deste cartaz é que nos leva a pensar: que sociedade é esta, a de Macau, em 2015? Poderia ser a de Macau ou outra, porque noutras culturas e noutras latitudes talvez não seja assim tão diferente. Mas é, de facto, sobre Macau que estamos a falar. É aqui que está o cartaz e é esta sociedade que impele pessoal dirigente, com capacidade de decidir estratégias de educação cívica, a incluir na sua campanha, em que são usados outros meios como a rádio ou a internet, uma coisa tão simples quanto “cumprimente quem conhece”! Dito de outra forma, este cartaz interroga-nos: o que somos quando dizemos cumprimente quem conhece? A actual vida em sociedade tem levado a um cada vez maior distanciamento em relação ao contacto pessoal directo, físico, não intermediado por uma qualquer plataforma de comunicação. Embora comuniquemos cada vez mais, fazemo-lo à distância. Temos todos os “amigos” disponíveis na ponta de um clique ou de um “sent”, seja no Viber, no Messenger, no Wechat, no Whatsapp, o que se quiser. Mesmo aí não cumprimentamos o nosso interlocutor. Vamos logo directos ao assunto: já viste isto? Já leste isto? Fiz isto! Conseguimos cada vez mais estar a par de tudo o que se passa – há cada vez mais pessoas a aprenderem o que acontece no mundo pelo que os “amigos” colocam online, do que por estarem a ver a BBC, a CNN ou a Al-Jazeera, ou por irem aos seus websites. Este homo telecomunicantes não vive bem com o contacto pessoal, frente a frente. À mesa, com os amigos (sem aspas), enquanto engolimos o jantar, temos o nosso telefone à frente; em vez de falarmos, de partilharmos as últimas com aqueles que ali estão, estamos a comentar o novo corte de cabelo do A ou a ver o vídeo que se tornou viral de um homem que caiu na rua sem que ninguém o ajudasse a levantar. Em grupo, em vez de pedirmos a alguém para nos tirar uma fotografia, esticamos o braço, ajeitamos o cabelo, sorrimos, e cá vai selfie. É por isso que o aluno deixou de cumprimentar o professor na sala de aula. E o professor deixou de olhar para o aluno, usando o microfone para se fazer ouvir, de olhos postos no powerpoint que exibe no ecrã ou no chão. É só ir à aula e ver o que se passa. No escritório, deixámos de pedir ao nosso colega sentado na sala ao lado para nos fazer isto ou aquilo em pessoa. Enviamos-lhe uma mensagem electrónica e já não partilhamos com ele o que nos está a acontecer na nossa vida. E muitas das vezes não escrevemos por favor. Quando entramos no autocarro, ocupamos, primeiro, o lugar da coxia na esperança que ninguém se sente ao nosso lado, no lugar da janela. Assim, talvez não nos incomodem e sigamos a viagem toda sozinhos. Vamos a ouvir música no telefone, com os nossos auscultadores, e a jogar Candy Crush, para o qual já convidámos todos os nossos “amigos” no Facebook. Segundo um estudo recente sobre o uso dos diferentes media, passamos em média 11 horas por dia ligados a plataformas de comunicação, entre as quais a internet, telefone, rádio ou televisão. Outros tipos de estudos, ainda numa fase embrionária, mostram que, em termos de afecto e de satisfação, conseguimos tirar o mesmo tipo de prazer e de consolo destas relações intermediadas. É por isso que o cibersexo foi alcandorado a estratégia para combater o perigo de contágio de doenças sexualmente transmissíveis. Precisamos pois que nos lembrem que devemos cumprimentar quem conhecemos. Como os nossos pais nos haviam ensinado quando éramos pequenos, mas que entretanto esquecemos. Há um certo hedonismo exacerbado, notório na ostentação dos nossos pequenos prazeres – o novo telefone, o novo tablet, o novo carro, a nova mala Louis Vuitton – aos quais podemos aceder sem ter de cumprimentar o vizinho quando o encontramos. Vizinho? Conheço eu o meu vizinho? Sei o que faz, de onde veio, quantos filhos tem? Não sei. Nem sei se seria capaz de o reconhecer na rua; afinal, quando passo à sua porta de manhã, já tenho os olhos postos no ecrã do meu telefone. Somos uma sociedade asséptica, focada em nós próprios e nos nossos pequenos prazeres quotidianos. Tenho dúvidas que isto se “corrija” com cartazes e campanhas na rua. Parece-me que será preciso mais.
Rui Flores VozesConsequências do drama grego [dropcap style=’circle’]Os[/dropcap] dias de tremenda tensão negocial à volta da grave crise financeira da Grécia vieram pôr em evidência algumas tendências da “nova” Europa. Principalmente três. As tensões nacionalistas estão a crescer por toda a Europa. Os partidos políticos pró-europeus, aqueles a que nos habituámos a chamar do “centrão”, preocupados com o crescimento dos extremismos, tanto à direita como à esquerda, foram criando as condições para que a coligação da esquerda radical grega (o Syriza) não conseguisse chegar a bom porto. A estrutura político-administrativa da União Europeia é incapaz de gerar consensos políticos. Todas estas conclusões podem ser resumidas através de uma só ideia: a construção político-administrativa da União Europeia (UE) está em risco. A forma como os dirigentes nacionais vierem a lidar no curto prazo com os desafios que a crise grega lançou ditará o futuro da União. A Europa institucional lidou com o Syriza com muita condescendência. Desde as primeiras reuniões em Bruxelas, nas quais participaram Alexis Tsipras e Yanis Varoufakis, no início do ano, que essa condescendência é visível. Deram aos radicais gregos o tratamento que era dispensado aos “miúdos” traquinas pelos directores de turma de um certo período da história (representados pela imagem do tradicional professor da escola primária, de régua na mão, sempre pronta a usar, mas não para medir uma qualquer distância entre dois pontos). A imagem do Presidente da Comissão Europeia numa dessas primeiras reuniões, abraçado a Tsipras, a puxar a sua própria gravata para ocupar o vazio da ausência de uma no colarinho do primeiro-ministro grego, acaba por ser uma excelente síntese da relação recente entre a União Europeia e a Grécia. Para dançar tango é preciso que haja uma convergência de vontades das duas personagens envolvidas. No caso de uma revisão estrutural da dívida grega e do processo de refinanciamento do país proposto pelo governo grego, Tsipras dançou sempre a solo. A UE, enquanto tal, optou por tocar uma outra música: a do pagamento dos empréstimos, no calendário que havia sido acordado com a Grécia no âmbito do primeiro e segundo resgates. Como se veio a ver mais tarde – através do olhar de fora da UE trazido para o debate político pelos relatórios do Fundo Monetário Internacional (FMI) – a ideia de uma reestruturação da dívida grega, leia-se perdão de dívida, não apenas fazia sentido como se tornou agora num imperativo que o FMI coloca como condição essencial para continuar a ser envolvido no affair grego. Como em quase tudo na vida, as análises externas dão-nos uma perspectiva muito mais realista sobre um qualquer conflito. É isso que explica, por exemplo, a popularidade dos conselheiros matrimoniais. Quando um casal deixa de conseguir lidar com as tensões internas e recorre a um serviço de aconselhamento profissional fá-lo, em muitos dos casos, para obter uma análise aprofundada das raízes do conflito na esperança de as poder resolver. Em muitas das situações – e não apenas na vida familiar –, essa perspectiva externa traz uma nova luz aos problemas, que as partes envolvidas, com interesses específicos no conflito, não conseguem ou não querem reconhecer. Na questão da crise europeia espoletada pela pré-insolvência grega, as análises mais certeiras e desapaixonadas que tenho tido a oportunidade de ler provêm de fora da UE. O FMI é uma dessas leituras obrigatórias. Até porque estão desprovidas das mensagens que o tal “centrão” europeu quer fazer passar. A dissimulada condescendência tinha apenas como objectivo fazer o Syriza saltar fora na primeira curva da estrada. A bem da “normalidade” política europeia, do pagamento dos empréstimos e da estabilidade do euro. Mas o problema grego veio, ao mesmo tempo, exacerbar um conflito latente entre nortistas e sulistas. Há uma linha de fractura que se agudiza entre o Norte e o Sul da Europa. Uma linha que teve na questão grega um momento de expressão das dissensões sobre o conteúdo da própria UE. A Europa é cada vez menos a Europa da solidariedade. Há uma narrativa que perpassa no Norte da Europa contra um Sul, imaginado a trabalhar menos horas, num ritmo mais descansado e que tem no Estado uma espécie de santo protector contra todas as intempéries. Esta narrativa fez escola quer nas elites, quer nas opiniões públicas da Alemanha, Holanda, Finlândia e Eslováquia, por exemplo, e foi escutada nas reuniões do Conselho Europeu pelo discurso de que já chegava de apoiar a Grécia. Este ressurgimento dos nacionalismos europeus não é de hoje. Agravou-se com a crise financeira que assola a Europa desde 2008. E põe autores credenciados a questionar se a Europa continuará em paz na ausência de prosperidade. O euro, infelizmente, ao contrário de ter aproximado as diferentes economias da Europa – ou as diferentes Europas – veio agudizar as diferenças entre elas. Em países onde o desemprego jovem chegou aos 50 por cento e a ausência de ocupação atinge um quarto da população, a crise potencia situações em que europeus acabam por ficar contra europeus. A tendência – com o aumento da dimensão eleitoral dos partidos nas extremidades do sistema – será a de o discurso contra a integração se tornar mais e mais popular. O futuro da Europa joga-se muito na resposta que os principais líderes políticos nacionais venham a dar às consequências que a crise grega teve nas estruturas político-administrativas da União Europeia. O combate aos nacionalismos emergentes não será fácil, sobretudo porque, a um certo nível, a construção europeia tem exaltado a existência do Estado-nação. A profusão de Estados-nação interessa naturalmente ao centro político-administrativo da União para reforçar o seu papel de facilitador de consensos. Mas esse é um dos seus principais problemas. A União não tem conseguido gerar consensos – além do caso grego, com todas as suas consequências políticas, outro exemplo recente é a abordagem ao fluxo de imigrantes africanos na Europa, em que a proposta inicial da Comissão foi simplesmente destruída pelos Estados-membros. Juncker é um eurocrata experiente, mas acaba de chegar à presidência da Comissão Europeia. Poderá estar a pagar o preço de uma certa indefinição de estilo inicial, mas o seu mandato adivinha-se extremamente difícil. E, no fundo, é a sobrevivência da própria União, tal como a conhecemos hoje, que poderá estar comprometida.
Rui Flores VozesJá não somos todos gregos, nem o Syriza [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão é viral, mas está disponível nas apostas online para quem gosta de arriscar. É possível fazer-se dinheiro com uma possível saída da Grécia do euro ou uma manutenção do status quo – uma continuidade, sublinhe-se, dramática para o povo grego, com mais medidas de austeridade, restrições à saída de capitais do país e introdução de uma nova divisa. No sítio de apostas online Betway, o principal patrocinador do clube de futebol West Ham da primeira liga inglesa, quem apostar quatro libras na saída da Grécia da zona euro ganha em troca sete libras, mais o valor da aposta inicial. Segundo um outro sítio online, o OddsCheckers, que faz a síntese das apostas disponíveis na internet com links para as casas de apostas, 55 por cento das pessoas que têm apostado na principal questão política europeia das últimas semanas crêem que a Grécia vai abanador o euro, contra os outros 45 que acreditam na manutenção de Atenas no clube restrito dos 19 países do Eurogrupo. Como em quase tudo na vida, a realidade da política – da negociação entre o Eurogrupo, a Comissão Europeia, o Fundo Monetário Internacional, o Banco Central Europeu e o governo grego – parece suplantar a mais fantasiosa imaginação de uma qualquer aposta online. Cinco dias depois de os gregos maioritariamente terem dito não a mais austeridade, num referendo considerado pelo próprio governo como um exercício democrático que outros Estados-membros da União Europeia deveriam ter a coragem de imitar, eis que o governo grego apresenta uma proposta aos credores que responde positivamente a quase todas as exigências às quais, até então, os gregos tinham dito oxi (nunca em tão pouco tempo houve tanta gente a aprender grego como agora, sobretudo partidários de uma esquerda europeia saudosa de causas agregadoras e capazes de provocar mudança). Podemos, sim, foi a nova mensagem de Alexis Tsipras, condicionada a uma reestruturação da dívida, à qual a Europa – leia-se Alemanha – não estava nem nunca esteve inclinada a discutir. [quote_box_left]Por mais que a Grécia tenha feito o seu caminho, alguns elementos chave do Eurogrupo têm muitas dúvidas sobre a capacidade deste grupo de homens e mulheres que governa hoje a Grécia em cumprir a palavra dada. E isso mina qualquer negociação e põe em causa qualquer futuro a 19. Pelo menos a 19.[/quote_box_left] É evidente que a situação económico-social se agrava na Grécia a cada minuto que passa. E que o desespero forçou os governantes a avançarem para um pacote de austeridade mais ambicioso do que a última proposta dos credores – aquela que tinha sido rejeitada pelo governo grego antes do referendo e que fora também afastada pela consulta popular. Independentemente do que vier a acontecer na cimeira de chefes de Estado e de governo da União Europeia deste domingo, 12 Julho, marcada para discutir pela enésima vez a crise grega (escrevo este artigo antes de a reunião ter começado), uma coisa é indubitavelmente certa: a União Europeia, enquanto projecto e entidade político-administrativa, sai desta crise muito enfraquecida. Este é um facto que parece dar razão àqueles que a criticam por ser extremamente burocrática, demasiado focada nas questões macroeconómicas e menos nos problemas e cada vez menos solidária, quer entre os diferentes Estados-membros quer entre as pessoas, os cidadãos da União – e desde 1992, com o Tratado de Maastricht, todos os cidadãos dos diferentes Estados-membros são cidadãos europeus, como atesta o passaporte de cada uma ou um. Para uma certa Europa, para a Europa que influencia a União Europeia e é capaz de determinar o seu rumo, a Grécia não é uma parte importante. Foi apenas até 2012, quando um segundo regaste financeiro teve de ser aprovado para salvar alguns bancos alemães e franceses de uma situação muito complicada – afinal eram eles quem tinha emprestado ao governo grego e estavam na contingência de não verem os seus créditos pagos, porque em apenas dois anos de austeridade imposta pela troika, o Estado grego estava de novo à beira do incumprimento. Agora é oficial – diz o FMI e insistem os norte-americanos. Sabe-se que as medidas foram extremamente gravosas e que a Grécia não vai lá sem um terceiro empréstimo internacional nem um aliviamento (pleonasmo para perdão) das condições dos dois anteriores. Mas alguns países não parecem estar disponíveis para ceder. Falta-lhes vontade para atravessar a sua metade da ponte para encontrar o Syriza – a coligação da esquerda radical grega – e aceitar algumas das condições que estão agora sobre a mesa. Afinal, os últimos meses foram de avanços e de recuos. De ausência de boa-fé negocial. De reuniões gravadas às escondidas através do iPhone e depois transcritas na imprensa. Por mais que a Grécia tenha feito o seu caminho, alguns elementos chave do Eurogrupo têm muitas dúvidas sobre a capacidade deste grupo de homens e mulheres que governa hoje a Grécia em cumprir a palavra dada. E isso mina qualquer negociação e põe em causa qualquer futuro a 19. Pelo menos a 19. Ainda para mais, depois de todo este processo – haja ou não fumo branco em Bruxelas neste domingo –, o Parlamento alemão terá ainda de apoiar a decisão. E essa parece ser um cenário pouco plausível. Na última semana, a opinião publicada alemã apontava para um só caminho, apelando à chanceler Angela Merkel para ser firme e rejeitar um entendimento com os gregos. O objectivo principal não é o de afastar o mercado de 10 milhões potenciais compradores das mercadorias alemãs. É o de punir os eleitores da Grécia por terem escolhido uma coligação de esquerda radical para governar o país e evitar que outros países sigam a mesma estratégia. O problema não é “apenas” o da Grécia sair. É sair e no curto prazo apresentar indicadores positivos, o que tornará o “crime” ainda mais apetecível. E isto não lhes sai da cabeça.
Rui Flores VozesExtremismo, o combate que falta Três raparigas foram atacadas a caminho da escola, no Afeganistão, por dois homens numa motorizada que lhes atiraram ácido à cara. Duas delas estão em estado crítico [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]autoproclamado Estado Islâmico divulgou imagens de um massacre de 25 soldados sírios perpetrado por crianças e adolescentes, que terá ocorrido no anfiteatro romano de Palmira, na Síria. Segundo o jornal Público, o vídeo de quase 10 minutos mostra os prisioneiros a serem conduzidos, por extremistas adultos, para o palco do anfiteatro romano e feitos ajoelhar, mãos atadas atrás das costas. Os jihadistas dão então lugar a um grupo de jovens, aparentemente com idades entre os 10 a 15 anos. Estão armados com pistolas e a cada um é atribuído um dos 25 prisioneiros, que serão depois executados. Neste fim-de-semana, o extremismo revelou, uma vez mais, como leva à prática de actos absolutamente hediondos. Faltam adjectivos para classificar este grau de loucura. Do lado dos que tentam fazer frente aos extremismos, há um tema que parece unir alguns especialistas em terrorismo que se dedicam a opinar sobre o que é que os Estados – particularmente os ocidentais – devem fazer para travar ameaças como as que colocam o Estado Islâmico: o combate ideológico. O combate ideológico não está a ser feito pelas principais potências – as que têm capacidade para travar militarmente o avanço do Estado Islâmico, por exemplo, ou de outros extremismos – escuta-se. A frase é catchy (diriam os anglo-saxónicos) e os especialistas repetem-na com preocupação. A necessidade de se travar o combate ideológico – o terrorismo não é apenas alimentado pelo dinheiro de alguns financiadores, mas também, ou sobretudo, pelas ideias que o motivam – leva alguns autores a proporem campanhas suportadas pelas máquinas administrativas dos Estados – campanhas na comunicação social, apoio financeiro a muçulmanos que se opõem à Sharia e à osmose entre Estado e religião. É verdade que a crueldade das imagens que o Estado Islâmico vai colocando na internet potencia uma qualquer campanha contra os extremistas. A morte banalizada – sem qualquer conteúdo – não consegue justificar uma qualquer luta. Mas as palavras também contam. E nesta guerra das ideias, as mensagens contam muito. Bem como quem as tenta fazer passar. Esta necessidade de combater a ideologia extremista fez capa, por exemplo, há quatro anos na The Economist. ‘Now, kill his dream’ (agora matem o seu sonho) escreveu a revista londrina na edição a seguir à morte de Osama Bin Laden. Mais do que a eliminação física de Bin Laden, era essencial aniquilar as ideias que a Al Qaeda parece defender. No seguimento destas ideias, Ayaan Hirsi Ali, uma antiga deputada holandesa, escreve na mais recente edição da Foreign Affairs (Julho-Agosto 2015), que, à imagem do apoio financeiro, material e moral que Washington deu aos desalinhados do antigo bloco soviético, seria necessário uma estratégia semelhante de apoio aos muçulmanos – líderes religiosos, intelectuais – que procuram reformar o Islão por dentro. Hirsi Ali sabe do que fala. Nasceu na Somália e foi, ao longo dos anos, perdendo a fé na religião muçulmana. O Estado holandês concedeu-lhe asilo para fugir a um casamento arranjado, em 1992. Vive agora nos Estados Unidos onde expressa frequentemente as suas opiniões contra a mutilação genital feminina e o Islão. Ela parte da ideia – expressa por outros especialistas – de que falta acontecer ao Islão o processo de reforma religiosa que ocorreu na Europa, no Século XVII, e que opôs católicos e protestantes e que contribuiu para a separação formal da religião do Estado. É difícil imaginar – como escreve aliás William McCants, antigo assessor do Departamento de Estado norte-americano na área do combate ao extremismo violento, numa resposta ao programa anti-terrorismo proposto por Hirsi Ali – que os Estados Unidos alinhem num combate que os colocará numa posição ainda mais difícil no mundo árabe. Por outro lado, o envolvimento de agentes associados a Washington no apoio a dissidentes – estudiosos do Islão ou religiosos moderados – que surjam na comunicação social propondo uma narrativa pró-ocidental pode ter consequências devastadoras para a imagem dos Estados Unidos, que seriam vistos como um Estado tomando parte numa guerra religiosa. Algo que a administração norte-americana não estará de todo inclinada a aceitar. Independentemente das considerações geopolíticas e de um eventual envolvimento dos Estados Unidos – assuntos que pouco ou nada dizem às raparigas do Afeganistão ou às famílias dos soldados xiitas e alauitas que combatiam no exército de Bashar al-Assad –, o combate ideológico é, pois, uma necessidade crescente. Hirsi Ali teve o mérito de o procurar elevar a política de Estado.
Rui Flores VozesPara lá do euro, eis os militares que se agitam [dropcap style=’circle’]C[/dropcap]ento e cinquenta oficiais das Forças Armadas portuguesas reuniram-se na semana passada, em Lisboa, para, mais uma vez, alertarem para aquilo que consideram ser uma degradação da qualidade dos militares lusos. O responsável por este estado de coisas é o governo, dizem, que tem vindo a adoptar um conjunto de medidas que visam a reestruturação das forças armadas. É sempre preocupante quando militares se reúnem e expressam o seu descontentamento. A reunião em si não é grave. O objectivo há-de ser o de chamar a atenção da opinião pública para a sua condição e lembrar ao governo o seu desagrado. Mais significativo é o facto de – justa ou injustamente – afirmarem publicamente que a acção do poder político tem contribuído para diminuir a eficácia operativa das Forças Armadas. Segundo dados do Instituto Internacional de Pesquisas da Paz, de Estocolmo, os orçamentos militares europeus têm vindo a diminuir nos últimos anos – consequência natural das crises financeira, económica e social que afectam a Europa desde 2008. A crise na Ucrânia levou a que NATO reafirmasse a promessa de os Estados-membros dedicarem mais de 2 por cento do total do seu Produto Interno Bruto (PIB) aos orçamentos militares. Devido a uma reforma em curso na Polónia – acelerada na sequência da anexação da Crimeia por Putin – Varsóvia, país vizinho da Rússia, irá pela primeira vez em 2015 alcançar esse objectivo. Neste momento, na NATO há apenas cinco países que se mantêm acima dos 2 por cento do total do PIB com gastos militares. Além naturalmente dos Estados Unidos da América (EUA), a maior potência militar mundial, com 3.5 por cento do PIB em gastos militares, na Europa comunitária há apenas quatro outros Estados-membros que gastam com os seus exércitos mais do que 2 por cento, a fasquia requerida à Aliança Atlântica para fazer face a uma possível ameaça russa: Estónia (2 por cento), França, Reino Unido e Grécia (2.2 por cento cada). A Grécia, uma antiga ditadura militar – que está esta semana, mais do que nunca, sob a atenção da imprensa internacional tendo em conta o seu iminente incumprimento financeiro –, com sensivelmente o mesmo número de habitantes do que Portugal, gasta mais 1.2 mil milhões de euros em despesas militares do que Lisboa. Este cenário talvez estivesse a mudar. Nas recentes negociações com os credores, o governo do primeiro-ministro Tsipras havia incluído no pacote de cortes acordado “em princípio” com a Comissão Europeia um abatimento considerável nas despesas militares. Agora que a decisão da continuidade da Grécia no euro será decidida pelo povo, nunca se saberá o que vai acontecer e esta alegada diminuição das despesas militares gregas talvez já não se venha a concretizar. Quando os Estados estão limitados de um modo supra-nacional com objectivos financeiros anuais, a questão dos seus orçamentos militares é sempre relegada para segundo plano. Outras prioridades (saúde, educação) se elevam. Afinal, o princípio Kantiano da paz perpétua entre democracias fez escola. É difícil para uma democracia justificar aos seus eleitores a necessidade de aumentar o seu orçamento militar quando está rodeada por outras democracias que se regem pelos mesmos valores. Esse princípio tem influenciado as decisões políticas de muitos países europeus em matéria militar e contribuído para a gradual diminuição, paulatina mas consistente, quer dos orçamentos quer da importância das forças armadas. Um recente estudo do Pew Research Centre (com mais de 40 mil entrevistados) revela que 68 por cento dos europeus confiam que os Estados Unidos intervirão em sua defesa, caso sejam alvo de uma ameaça séria. Mas apenas 48 por cento considera que o seu próprio Estado deve agir em caso de necessidade de defesa dos seus aliados. Fazer parte de uma aliança implica empenhamento. Implica compromisso. É como se a soberania se estendesse para lá das fronteiras. Em matérias militares, o dever não é só em relação a um povo, governo ou território. Vai para lá disso. A defesa de um Estado passa também pela manutenção da estabilidade ao nível sub-regional – no caso de Portugal, ao nível do continente europeu – através de uma activa participação nas responsabilidades internacionais. Respondendo às movimentações a leste, a NATO acaba de anunciar a constituição de uma força de intervenção rápida de 40 mil homens. Especialistas em matérias militares têm dúvidas se este número de operacionais será alguma vez alcançado. A participação frequente das forças armadas portuguesas em intervenções de manutenção de paz, quer sob mandato do Conselho de Segurança das Nações Unidas quer sob o estandarte da União Europeia, deve ser a regra. Mas, em ano eleitoral, num contexto de austeridade, é fácil ir atrás das opiniões públicas e contribuir para a diminuição da importância dos militares. Não se afirma aqui que Portugal tenha falhado nesta matéria. Mas a percepção de que os oficiais estão descontentes está aí. E sem militares motivados a situação complica-se. Um pouco.