Todo o Nobel é político!

[dropcap style=’cricle’]A[/dropcap]atribuição na semana passada dos prémios Nobel da literatura à bielorussa Svetlana Alexievich e da Paz ao Quarteto Nacional Tunisino reforça a ideia, defendida por vários analistas, de que o Prémio Nobel é um galardão de cariz marcadamente político. Este ano, os valores subjacentes aos prémios atribuídos pela Academia Sueca e pelo Comité Nobel Norueguês, mais do que terem uma dimensão política, são demonstrativos de uma agenda programática que se pretende promover. Uma narrativa que prossegue os valores da democracia liberal e que ambiciona ser adoptada pelos mais diversos povos.
Segundo a Academia Sueca, a jornalista e escritora bielorrussa Svetlana Alexievich foi premiada devido à sua “escrita polifónica” – dará, pois, voz a muitas outras pessoas, que é “um monumento ao sofrimento e à coragem no nosso tempo”. E sobre o que tem escrito Alexievich, mais conhecida pelos seus trabalhos jornalísticos do que pelos seus livros? Os seus trabalhos mais notáveis são os que dizem respeito ao fim do império soviético. Ao fim de uma certa ordem política que morreu com a queda do Muro de Berlim. O livro “O fim do homem soviético: Um tempo de desencanto” é um documento que ajuda a compreender a desagregação da antiga União Soviética e é, aliás, a única obra da autora já publicada em português. No prelo está outra que tem como objecto sobreviventes da tragédia nuclear de Chernobil.
O comité norueguês do Nobel da Paz, por seu lado, escolheu o Quarteto Nacional Tunisino pelo contributo dado pela organização, que reúne representantes de quatro estruturas representativas da sociedade civil da Tunísia, para a consolidação democrática no país. O organismo terá tido um papel decisivo na procura de consensos na sequência da Primavera Árabe na Tunísia, cuja revolução, em 2011, levou ao afastamento do Presidente Ben Ali. O quarteto tem uma composição singela, incluindo representantes de organizações tão díspares como um sindicato, a União Geral Tunisiana do Trabalho, uma organização patronal, a União Tunisiana da Indústria, do Comércio e do Artesanato, a Ordem Nacional dos Advogados, e a Liga dos Direitos Humanos.

[quote_box_left]Sem um indicador universalmente aceite sobre o número de vidas que uma qualquer pessoa ou entidade conseguiu preservar, não será possível apontar-se critérios objectivos para identificar possíveis vencedores[/quote_box_left]

O caso tunisino é o único em que a Primavera Árabe, alimentada pelo apoio de instituições ligadas ao governo norte-americano a bloggers e outros internautas, conseguiu eleger um governo estável. É o mesmo país em que, em Junho deste ano, um jovem se passeou calmamente por uma das praias de Sousse, numa das estâncias balneares mais frequentadas da Tunísia, armado com uma pistola automática, matando indiscriminadamente quem estava a descansar. Ao fim de alguns minutos, o terrorista, que seria mais tarde identificado pelas autoridades tunisinas como Seifeddine Rezgui, assassinou 39 pessoas.
O papel das organizações da sociedade civil na procura de consensos e na tentativa de suplantar bloqueios que tendem a travar soluções duradouras não é de somenos. Em alguns dos países em que trabalhei pelas Nações Unidas foram organizações oriundas da chamada sociedade civil – organizações não-governamentais, representativas de sectores profissionais, ou temáticas, com um enfoque considerável nos direitos humanos – que puseram termo a longos impasses (como na adopção de uma nova lei eleitoral na Republica Centro-Africana) ou obrigaram políticos a dominarem a sua verve racista (através da adopção de códigos de comportamento eleitoral, como durante as campanhas eleitorais na Guiné-Bissau e na Serra Leoa).
Não se põe em causa a importância das organizações da sociedade civil, nem particularmente o papel do Quarteto na Tunísia. Elas são essenciais. Mas só são verdadeiramente operativas num quadro de tolerância democrática, numa democracia liberal.
Numa semana em que subiu de tom a retórica da NATO face à Rússia, a propósito dos bombardeamentos levados a cabo por Moscovo na Síria, contra posições alegadamente detidas pelos militantes do Estado Islâmico, não deixa de ser uma coincidência que merece ser salientada, que a Academia Sueca promova quem use a sua escrita para salientar as contradições soviéticas e exponha os tiques autoritários de certos líderes políticos. Nem deixa de ser relevante recordar que ainda esta semana a norte-americana Foreign Affairs, uma das revistas de relações internacionais mais influentes no mundo ocidental, publicava um artigo lembrando o papel de Vladimir Putin no encerramento das mais variadas organizações da sociedade civil na Rússia.
Caso se considerasse que a criação literária, como qualquer outra forma de expressão artística, não fosse subjectiva, talvez se pudesse eventualmente ter como critério orientador o número de obras publicadas pelo autor, o número de cópias vendidas ou mesmo o número de línguas em que o autor foi traduzido. Mas isto não faz qualquer sentido. A criação artística é, felizmente, subjectiva. E em muitos casos, os autores mais subjectivamente notáveis não são necessariamente os mais populares.
No caso do Nobel da Paz, em que talvez o valor mais relevante que se pretende preservar é o da vida humana, sem um indicador universalmente aceite sobre o número de vidas que uma qualquer pessoa ou entidade conseguiu preservar, não será possível apontar critérios objectivos para identificar possíveis vencedores.
Por isso, todos estes prémios são, na sua essência, subjectivos. Resultam de escolhas políticas que têm subjacente um quadro de referência que aponta num determinado sentido. Nestes dois casos, uma certa democracia liberal que se pretende universal.

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