Entre Zelig e Maigret

Pulvis et umbra sumus.
HORÁCIO

[dropcap]C[/dropcap]onforme prometido na semana passada, seguem-se algumas histórias, historietas e reflexões avulsas. Creio que, a par das que há já alguns meses vos venho confiando, serão reveladoras de um aspecto da minha personalidade no qual, modestamente, emulo o grande Comissário Maigret, criatura maior de Georges Simenon e o Zelig de Woody Allen: a vontade de ser toda a gente, de me fundir com todas as paisagens físicas e humanas com que me cruzo, o que, certamente, resulta em que seja uma pessoa de traços pouco claros, dificilmente apropriável, talvez mesmo vaga. Mas, agora, é tarde para mudar e, na verdade, não me parece que conseguisse aprender a ser de outro modo. Passemos, pois, adiante, na costumeira toada:

1 – D., arqueólogo, estava cansado de ouvir um museólogo cujo trabalho se centrava, sobretudo, nos chamados ecomuseus e cuja personalidade era, sem dúvida, algo autocentrada. Teve, então, a seguinte tirada: “É natural que te interessem os ecomuseus, porque são os únicos museus com eco: ecomuseu — eu, eu, eu…”.

2 – F., um amigo que, trabalhando para a O.N.U. e para a Cruz Vermelha, tem vivido as últimas décadas entre teatros de guerra e de fome, encontrava-se algures na Indonésia, a gozar umas miniférias da sua participação no processo de estabilização da independência timorense. Ao abandonar uma esplanada, foi abordado por um meliante local que, a cada recusa sua, lhe propunha um novo item de uma infinda ementa de iniquidades: drogas leves, drogas duras, meretrizes, mancebos, etc. Após uma última e enfática recusa, o dito malfeitor deu-se por vencido durante alguns segundos, mas, vendo, subitamente, uma luz ao fundo do túnel, aventou ainda: “Óculos escuros?”… F. não pôde deixar de sorrir face ao inesperado downgrading das mercadorias e, apesar de tudo, lá lhe comprou um par de lunetas.

3 – Ernesto Sampaio foi um dos mais interessantes escritores e críticos da segunda metade do século XX português. O seu livro “Fernanda” (editado pela Fenda em 2000, um ano antes da sua morte) é uma das mais belas elegias da língua. Ora, nos últimos meses da sua vida, tive oportunidade de beber bastantes copos com o Ernesto, num bar que então tinha no Bairro Alto (o mesmo se podendo dizer, pasme-se, de Cleonice Berardinelli, decana dos estudos portugueses no Brasil). Num texto publicado em 2013, o enorme Manuel da Silva Ramos recordaria: “(…) convidei o Ernesto para jantar n’A Provinciana, que é uma tasca ali perto do Coliseu, por detrás do Teatro Nacional. O Ernesto veio e comemos sardinhas. Ele andava cada vez mais triste mas o nosso jantar foi mais uma vez um modelo de humor, de como o riso pode ser a salvação do mundo. Rimos muito como dois desesperados absolutos e bebemos bem e no final levei-o ao Bairro Alto. Continuámos a beber e isso fazia-lhe bem. O Miguel Martins tinha nessa altura um bar na rua da Rosa e foi aí que levei várias vezes o Ernesto para ver se o trazia de novo à vida. O Miguel, grande admirador da obra do Ernesto, nunca nos deixou pagar nada. Bebíamos pois no meio da juventude, no meio da agitação geral”.

4 – Também conheci Fernando Lopes-Graça, nas comemorações de um seu aniversário na sua cidade natal de Tomar. Disse-me que, havia não sei quantos anos, não abria um piano. Para compor, bastavam-lhe a imaginação e a ciência, sem necessidade de verificação sonora. O mesmo constatei, anos mais tarde, suceder, por vezes, com António Victorino de Almeida, a meias com quem escrevi quatro canções para uma peça de Gogol encenada por Maria do Céu Guerra. Cinco linhas nas costas de um envelope ou num guardanapo de papel e a música flui.

5 – A dado momento da minha vida, após anos de audições musicais e reflexão sobre elas, decidi dedicar parte da minha limitada criatividade à “improvisação não-idiomática”, o que teve como corolário a gravação de bandas-sonoras para vários filmes e séries de televisão e, sobretudo, a edição, em 2014, do CD “Dada Dandy: A Favola da Medusa feat. George Haslam” pela prestigiada editora Slam Records, em cujo catálogo pontificam todos os nomes maiores do free-jazz britânico e, bem assim, luminárias como Max Roach ou Mal Waldron. Mas, antes disso, tocara já, por exemplo, com músicos como Anabela Duarte (dos Mler ife Dada), Beverley Chadwick (saxofonista de Robert Wyatt), Dennis González, Floros Floridis, Filipe Homem Fonseca (meu irmão siamês na música e membro do inenarrável duo Cebola Mol), Gail Brand, Jon Raskin, Ken Filiano, Patrick Brennan, Rodrigo Amado ou Wade Matthews, o que é para mim um privilégio e um prazer ímpar. Este último, no folheto do seu disco “Oranges”, escreve: “Imagine we’re eating dinner at Miguel Martins’ house. Imagine the wine is extraordinary. Miguel has brought me to Portugal to play three concerts, and I end up playing four…a real treat.”

6 – Tenho tido, também, a oportunidade de ver letras minhas registadas em disco por artistas como Marco Rodrigues, Cuca Roseta, Carla Pires, João-Paulo Esteves da Silva, Fernando Alvim ou Ciganos d’Ouro. E de ter poemas meus gravados na Sérvia e no Brasil. É uma experiência curiosa, essa de ouvi-los, em vez de lê-los.

7 – Elogio da dispersão: “Quando alguma coisa é alguma coisa, deixa logo de ser as outras todas, e isso é uma pena. O que é preciso é ser tudo ao mesmo tempo”, Agostinho da Silva.

8 – No meu caso, como em muitos outros, a acumulação destas actividades só é possível mediante o abandono das expectativas económicas que a maior parte dos cidadãos portugueses consideraria mínimas e pelo desenvolvimento de estratégias de sobrevivência quase sempre bastante fastidiosas. E é castrador que assim seja. Não posso deixar de pensar no que seria a produção de tantos e tão talentosos amigos caso não tivessem de debater-se com tais constrangimentos. Mas, pelo menos por cá, tarda em cimentar-se a percepção colectiva do facto óbvio de que ter gente confortavelmente dedicada à produção cultural é caro, mas que muito mais caro é não tê-la.

31 Jan 2018

Biografias e paradoxos

[dropcap style≠‘circle’]B[/dropcap]rando — nalguns momentos de alguns contextos, um actor absolutamente extraordinário — é uma das minhas grandes embirrações, só superado pelos seus discípulos/lacaios Anthony Perkins e James Dean.

Suponho que para partilhar da minha posição baste ler a biografia “Brando Unzipped” (“Brando mas pouco”), escrita por Darwin Porter. O actor assinou, em tempos, uma autobiografia, “Songs my mother taught me”, mas, nessa, tudo é revestido por uma sobrecapa de edulcorante cor-de-rosa.

Gosto de biografias. À antiga, encomiásticas ou mesmo romanceadas. Quanto a esta nova tendência, desbocada e sem freios, devo confessar que me deixa, muitas vezes, perplexo. Que move estes biógrafos?

É que Porter expõe, implacavelmente, o carácter e o comportamento do actor e os efeitos nefastos destes sobre quem o rodeava. A sua homossexualidade frenética, que funcionava a par de uma heterossexualidade ora vingativa ora cosmética, são centrais à análise que realiza.

Bem assim, não poupa outras estrelas de Hollywood – a pedofilia de Spencer Tracy ou o masoquismo brutal de James Dean, por exemplo, entre muitos outros homossexuais encapotados, chocará quantos, ao longo de décadas, abrigaram os seus sonhos burgueses à sombra das mistificações dos grandes estúdios.

O “closet” de Rock Hudson é, à luz do que é exposto nesta obra, algo de absolutamente trivial, embora o mal-estar que isso lhe causava fosse tanto que lhe provocou um tique que lhe destruía, continuadamente, a unha do polegar direito.

Outras biografias têm revelado factos deste teor:

Em “De Niro: a biography”, por exemplo, John Baxter expôs a homossexualidade do pai do actor, o pintor e escultor Robert De Niro, Sr., que chegou a ter um envolvimento amoroso com o enorme Jackson Pollock. Aliás, recentemente, De Niro filho assumiu o facto, com toda a naturalidade, acrescentando que teria gostado de discutir o assunto com o seu progenitor.

“Ginsberg: A Biography”, de Barry Miles, entre muitos outros factos potencialmente chocantes, aborda as relações sexuais entre o escritor beat e o irmão mais novo, deficiente mental, do seu namorado.

Ao escrever estas linhas, ando a ler uma espécie de autobiografia do romeno Ion Pacepa, responsável pelos serviços secretos de Nicolae Ceaușescu, em que a homossexualidade de Yasser Arafat é revelada.

Repito: Que move estes biógrafos? No caso do último livro referido, trata-se, claramente, de um ajuste de contas. Mas, quanto aos demais, os seus autores são, supostamente, admiradores dos biografados. E, contudo, parecem achar por bem expor factos que os mesmos preferiram não publicitar. Porquê? Guiá-los-á uma espécie de moralismo? Se sim, parece-me altamente imoral (como, aliás, os moralismos quase sempre são). Ou estarei a complicar o que é simples e o objectivo dessas manobras será, simplesmente, vender livros, ganhar dinheirinho, à custa da privacidade alheia?

Depois destas leituras, como é bom regressar a qualquer uma das vibrantes biografias que saíram da pena de Stefan Zweig e de que fui grande leitor na adolescência. A de Erasmo de Roterdão ou a de Fernão de Magalhães, por exemplo. Ou, até, à extensa e imaginativa biografia de Camões assinada por Campos Júnior.

Não há verdade que valha uma boa estória.

Em minha defesa, devo dizer que nada de pessoal me move contra os referidos biógrafos. Aliás, Darwin Porter assina, com Danforth Prince, a 17ª edição (2002) do guia turístico Frommer’s relativo a Portugal e aí, a propósito de um bar que tive no Bairro Alto, afirma (e prefiro não traduzir): You don’t have to be an avid reader to enjoy this place, but the breadth and scope of literary knowledge that has been mastered by its owner might leave you deeply impressed. Miguel Martins, who’s usually tending the bar, teaches courses (…) on the history of Jazz, and welcomes everyone – from the most conservative to the most counterculture of hipsters – into his nightlife joint.

Simpático.

Confesso que me dá algum prazer ver-me referido em letra impressa. Apercebi-me disso bem cedo – teria uns dezasseis anos quando o South Shore Chronicle, um jornal da Nova Inglaterra, publicou uma série de artigos sobre Lisboa em que me era dado algum destaque, pois servia de guia ao jornalista, o meu amigo Leo Pilachowski.

Ganhei-lhe o gosto.

Bem mais divertida é a biografia do grande Robert Mitchum assinada por Lee Server e subintitulada “Baby, I don’t care”. Permito-me contar-vos dois dos episódios aí relatados:

Numa entrevista, a dado momento, perguntam a Mitchum, actor da “velha guarda”, sem grandes preocupações metodológicas, acerca dos seus “registos”. Sendo que boa parte da sua carreira fora dedicada aos westerns, ele responde: “Como actor, tenho dois registos: com cavalo e sem cavalo”.

Um outro episódio, de graça dificilmente traduzível, ocorreu quando Mitchum se preparava para contracenar com uma actriz muito religiosa e extremamente avessa a palavrões. Constrangido, um membro da produção abordou o actor, conhecido por praguejar muitíssimo:

— Senhor Mitchum, ela instituiu uma espécie de caixa de esmolas. Se alguém disser merda tem de meter lá um dólar. Se disser porra, dois dólares.

O actor interrompeu-o, perguntando:
— And how much does she charge for a fuck?

17 Jan 2018

Padres, álcool e aquilo

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a minha família paterna, oriunda de uma aldeia da região de Coimbra, a influência dos padres sempre se fez sentir. Aliás, entre os meus inúmeros primos contam-se um arcebispo de Braga e o actual pároco da Sé de Lisboa. As missas por alma dos mortos são quase diárias e, nas festas de anos dos mais velhos, os padres são presença imprescindível.

Naquelas aldeias, hoje quase despovoadas, a capelas só são abertas no Verão, para responder ao afluxo de gente que, ida de Lisboa, vai passar férias à terra. Ora, numa destas ocasiões, uma prima minha assistiu à seguinte situação:

A capela estava cheia. Só mulheres. O padre começou o serviço. Passado pouco, uma fiel interrompeu-o:

— Ó Senhor Padre, quando é que nos mostra aquilo?

Ao que este lhe respondeu:

— Calma. Isso é depois.

Mas pouco havia progredido na sua função já outra voz se fazia ouvir do meio da assistência:

— Ó Senhor Padre, quando é que nos mostra aquilo?

A minha prima achava-se, naturalmente, intrigada. Finda a missa, porém, o mistério dissipou-se, ante a sua incredulidade. Com a maior desfaçatez, o padre pegou numa mala, pousou-a sobre o altar e começou a retirar do seu interior uma grande variedade de cosméticos, destinados a serem vendidos ali mesmo.

Acumulava as funções de sacerdote com as de revendedor da Avon e não achava qualquer inconveniência em realizá-las a ambas no mesmo local.

É um lugar-comum dizer que a realidade, por vezes, ultrapassa a ficção, e claro que isso depende da ficção de que se fala, mas dar-vos-ei três exemplos de histórias verídicas dignas de figurarem nos anais do neo-realismo ou do realismo mágico latino-americano.

A primeira passa-se numa taberna da linda cidade de Tomar, onde vivi um pouco mais de um ano:

Certo dia, pela hora do lanche, entrei na referida tasca, situada, se a memória não me engana, perto da sinagoga, e pedi uma cerveja, um queijo seco e um pão. Só depois comecei a observar a paisagem circundante. Era um verdadeiro repositório de pó, teias de aranha e serradura para encapotar a sujidade do chão. Ora, o proprietário, ante o meu espanto, achou por bem esclarecer, cheio de orgulho:

— É bonito, não é? Tenho este sítio há trinta anos e nunca foi limpo!

Limitei-me a responder-lhe que, afinal, me ia ficar pela cerveja. Embora não seja dado a grandes esquisitices, o queijo e o pão tinham, subitamente, perdido o seu encanto.

A segunda história passa-se num bar de beira de estrada (aquilo a que os espanhóis, desempoeiradamente, chamam um puticlub), situado próximo de Palmela, onde fui levado por um amigo em cuja quinta de Azeitão me achava a passar férias.

Encontrava-me sentado, bebendo o meu whisky e apreciando o panorama, quando a minha atenção se achou presa pela sucessão de pinturas parietais que pretendiam embelezar as paredes da sala. As primeiras, como convinha a um estabelecimento daquele género, representavam mulheres nuas, em poses convidativas. Muito bem. O problema surgia mais adiante, quando estas davam lugar a um pai e um filho caminhando, de mão dada, rumo ao sol, e, até, a um Cristo crucificado.

Espantado, dirigi-me a um dos empregados de balcão e indaguei:

— Ó chefe, sabe explicar-me o porquê destas pinturas…?

Ao que ele retorquiu, visivelmente incomodado:

— Não me diga nada! O pintor, a meio do trabalho, converteu-se aos Jeovás e fez este lindo serviço!

Este episódio passou-se com o meu amigo T.: andava no Instituto Superior Técnico e tinha um colega que, aos dezoito ou dezanove anos, nunca tinha bebido álcool — nunca, sequer, o tinha provado (era aquilo a que os irlandeses chamam “um pioneiro”). Ora, numa festa académica, os colegas lá o convenceram a beber umas quantas cervejas. O rapaz sentiu-se mal e veio para a rua sentar-se num murete e vomitar. Acontece que, estando ele nesses preparos, por mero acaso (evidentemente), faltou a luz naquele quarteirão.

Os colegas foram dar com ele lamentando o seu destino:

— Meu Deus, o que é que eu fui fazer? Fiquei cego…

4 Jan 2018

Do que eu gosto

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma festa de anos. Eu, bêbedo. E, entre os convivas, encontrava-se J., um dos mais reputados mestres de karaté do país, homem, à altura, de cinquenta e muitos anos, mas cuja observação, sem que se esteja toldado pelo álcool, basta a perceber que é detentor de capacidades físicas incomuns. A dado momento, armado em valente e em parvo, pus-me a questionar, sobranceiro, as chamadas artes marciais:

— Mas o que é que vocês fazem que eu não consiga fazer?

Entre nós encontrava-se uma mesa de vidro com, talvez, metro e meio de largura; diria que, no total, nos separavam uns três metros. Ora, num ápice, em resposta à minha pergunta, J., com uma agilidade como nunca antes vira, saltou sobre essa distância, encostou-me a mão aberta à garganta, ficando a milímetros desta, e disse:

— Você é capaz de fazer tudo o que eu faço, só que mais devagar.

Escusado será dizer que, nessa noite, pela minha parte, a garrafeira do nosso anfitrião teve de ser castigada em dobro.

Desse encontro, aparentemente não muito agradável, nasceu uma relação que viria a resultar em que se acrescentasse mais um cargo à lista daqueles que poderiam constar no meu currículo (se o tivesse), sem que, na prática, impliquem qualquer esforço relevante da minha parte – o de Presidente da Assembleia Geral da Federação Portuguesa de Sumo.

Neste caso, porém, a relação com a instituição não era totalmente descabida, já que sou um grande apreciador da modalidade, como, aliás, de tudo o que ao Japão tradicional diz respeito.

Gosto da arquitectura japonesa, da cerimónia do chá, das roupas, da música, do espírito samurai, dos haikus, da literatura contemporânea (com destaque para Yasunari Kawabata, Yukio Mishima e Kakuzo Okakura), de ikebana, etc.

Estou, aliás, em crer que um dos mais belos planos da história do cinema se encontra em “Hachi-gatsu no kyôshikyoku” (“Rapsódia em Agosto”), filme de Akira Kurosawa, datado de 1991: uma velhinha, frágil, munida de um guarda-chuva que de nada lhe vale, luta contra a chuva e o vento, no meio de um arrozal. Imagem poética que, evidentemente, se perde na mera descrição. Aliás, o filme é, todo ele, muito belo, maculado, apenas, pela participação (porquê, meu Deus?) do pseudo-actor Richard Gere.

Outras imagens cinematográficas, daquelas de que ficamos para sempre reféns: o travelling inicial de “Recordações da Casa Amarela” (1989), de João César Monteiro, com a Lisboa ribeirinha filmada a partir de um cacilheiro; o lago cor de sangue de “L’Enfer d’Henri-Georges Clouzot” (1964), filme que, na realidade, nunca existiu, isto é, de que só conhecemos os trechos incluídos num documentário realizado quarenta e cinco anos mais tarde; a neve de “Im Kampf mit dem Berge” (1921), de Arnold Franck; a leitura de um trecho de Thomas Mann, na praia, em “O Cinema Falado” (1986), de Caetano Veloso; a estrada enevoada em “Identificazione di una donna” (1982), de Michelangelo Antonioni; a casa de praia de “Pauline à la Plage” (1983), de Eric Rohmer; ou, até, uma outra casa de praia, a de Elizabeth Taylor, em “The Sandpiper” (1965), de Vincente Minnelli.

(Só agora, ao reler estas linhas, reparo que a água – líquida, congelada ou condensada, salgada ou doce – é comum a todas estas imagens).

Mas não me posso esquecer do sexo nos filmes de dois Marcos – o fellatio de Maruschka Detmers em “Diavolo in corpo” (1986), de Bellocchio, ou toda aquela orgia de “La grande bouffe” (1973), de Ferreri.

E, claro, os rostos das duas mulheres mais belas da história do cinema: Romy Schneider e Monica Vitti. Só para vê-los valeria a pena estar vivo.

Ou Claudia Cardinale — cara de falsa inocência num corpo todo ele desejo.

Gosto também, e muito, de gastar o meu tempo vendo filmes maus, lendo livros maus, ouvindo música má – e por maus quero dizer, apenas, despretensiosos. Situemo-nos, pois, por breves instantes, no campo do puro entretenimento. Escapism, como dizem os ingleses. Gosto de policiais norte-americanos, escritos a metro, a contra-relógio, com o objectivo de vender, de chegar ao maior número possível de pessoas, sem complicações. Gosto de filmes policiais franceses dos anos 70, americanices adaptadas à realidade gaulesa. Gosto de bandas-sonoras ligeiras, muitas vezes de pendor erótico, bem sixties/seventies – François Roubaix, Armando Trovaioli, Larry Manteca, Phillipe Sarde, Maurice Lecoeur, Laurie Johnson, André Popp, Giovanni Fusco, Piero Piccioni, Roberto Pregadio, Mike Colicchio, Christopher Gunning, Michel Magne, Georges Garvarentz, etc. Investiguem. São a música perfeita para um fim de tarde de Verão num bar de praia.

E, já agora, três canções lindas, cantadas por mulheres e que figuraram em filmes: “L’Appuntamento”, por Ornella Vanoni, “C’est ainsi que les choses arrivent”, na voz de Isabelle Aubret, e “Who were we”, por Kylie Minogue.

12 Dez 2017

Tudo o que é intermédio é supérfluo

When the dog bites, when the bee stings/ When I’m feeling sad/ I simply remember my favorite things/ And then I don’t feel so bad.

Oscar Hammerstein II

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]ndar a pé é outro dos meus hábitos. Nele se conjugam o gosto de ver o que na paisagem é permanente e o que muda a toda a hora com o prazer de cansar o corpo com agrado, o que, estimulando a nossa dimensão puramente animal, contribui para um equilíbrio holístico que tantas vezes falta ao homem sedentário.

Ando muito em Lisboa. Ando muito quando me encontro num sítio novo, procurando descobrir-lhe os aspectos menos óbvios, off the beaten track. Andei muito pelos campos de Portugal, em locais anteriormente muito pouco pisados pelo homem, tentando descobrir traços de ocupações de antanho – aquilo a que, em Arqueologia, se chama fazer prospecção.

Quando me encontro por um período pequeno numa cidade rica de interesse, obrigo-me a caminhar de manhã à noite, por forma a fazer o melhor uso possível do tempo ao meu dispor. Nisto, sacrifico muitas vezes os meus companheiros de viagem, não ficando, contudo, com qualquer sentimento de culpa, pois sei que, passado o cansaço, invariavelmente mo agradecem.

Provavelmente, esta propensão para as caminhadas, que, de certo modo, o que fazem é alongar o espaço, é a cara de uma coroa que, pelo contrário, pretenderá minorar a dispersão, para melhor direccionar a acção – falo da minha preferência por casas pequenas. Antigas e pequenas. E, sobretudo, por casas. Versus apartamentos.

É bom transitar da rua directamente para o nosso espaço, sem passar por escadas partilhadas com vizinhos.

É bom estar na rua, espaço comum, social, e é bom estar no nosso espaço, de reclusão e silêncio.

Tudo o que é intermédio é supérfluo.

Seria bom, rodando 360º, sentados numa cadeira giratória, termos ao alcance da vista tudo o que possuímos, o que nos pode fazer falta.

O mais próximo que estive disto foi no bairro da Madragoa – simultaneamente tradicional e sossegado, como não acontece com Alfama, com a Mouraria, com a Bica ou o Bairro Alto –, numa casinha de vinte seis metros quadrados, incluindo uma sala, um quarto, cozinha e casa de banho.

Morei também em Sapadores, numa bela mico-vivenda, em open-space com mezzanine e um pátio interior, integrada numa “vila” de 1908, que era o espaço ideal para uma só pessoa.

Mas a casa mais agradável em que vivi foi na Ilha de Moçambique. Situada num primeiro (e único) andar, sobre uma loja, da rua, passando um portão, subia-se uma escada que conduzia a um pátio, tendo à esquerda a cozinha e a casa de banho e à direita o quarto e a sala. As janelas da frente davam para a rua onde se situava a loja, sob umas arcadas, e do referido pátio avistava-se, para um lado, uma das mais belas praças da ilha e, para os outros dois, o Oceano Índico, em toda a sua magnificência, banhando na areia um improvável mangal.

Essa possibilidade de uma paisagem esplendorosa nos entrar dentro de casa é relativamente rara.

O melhor exemplo disto, conheci-o também em Moçambique, desta feita em Maputo. H., diplomata, fotógrafo e escritor, morava num apartamento situado num dos andares cimeiros do prédio da Embaixada de Portugal e uma das paredes da sua sala ampla era, praticamente toda ela, uma janela, só vidro, dando-nos a sensação de pairarmos sobre o Índico, num permanente convite à viagem imóvel.

Recordo as noites que aí passámos e em que, depois de jantar, conversávamos com calma e moderação, dando primazia à audição musical – e, por estranho que possa parecer, como casava bem aquela paisagem, aquele mar de entre África e Ásia, com os sons barrocos de Henry Purcell ou Marin Marais…

Está bom de ver, a casa, a dita reclusão, implica, apenas, a selectividade, não o anacoretismo. É bom receber amigos, fazê-los companheiros, no sentido primeiro da palavra, de alguém com quem se compartilha o pão; é óptimo conversar, o que transcende em muito o que acontece a maior parte das vezes que duas ou mais pessoas falam umas com as outras, comunicando muito pouco.

5 Dez 2017

Homens e mar

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]mar é gostar de todas as maneiras, em qualquer situação. Como diz o ritual católico, amar e respeitar, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. Amar é sermos nós, indissociáveis, é não sermos um sem o outro. É definirmo-nos por essa pertença. A uma pessoa ou a uma ideia, a um espaço ou a uma instituição.

Que me perdoem os mais descrentes nas enormes virtudes do futebol mas não poderia aqui deixar de dizer isto: mais do que ser do Benfica, sou Benfica – não me consigo conceber sem isso, sem me saber parte não tanto dessa família mas, acima de tudo, dessa transcendência, em que oficiaram sacerdotes como Eusébio ou Vítor Baptista, Chalana ou Futre, Preud’homme ou Bento, João Pinto, Rui Costa ou Simão Sabrosa. Sê-lo é, muitas vez, transportarmos uma tristeza que não chega a beliscar a fé, mas, muitas mais, vivermos uma alegria e um agradecimento ao muito que se conjurou para que nunca sequer nos tivesse passado pela cabeça que pudéssemos ser outra coisa.

Pertenço também, de um modo muito diferente, ao Mar, ainda que nunca tenha estado embarcado por mais de algumas horas. Mas, desde miúdo, sei que, se tivéssemos várias vidas, a do mar, apesar de todos os medos que desperta, seria uma das minhas escolhas. Bastaria que, nesse regresso, Deus me apetrechasse de uma dose de coragem bem superior à que agora tenho. Porque, não restem dúvidas, os homens do mar são, em maior ou menor medida, verdadeiros heróis.

Assim, sem essa coragem, quase sempre inconsciente, que faz de alguns homens mais do que apenas homens, restou-me sempre navegar deitado numa cama ou num sofá, sentado a uma mesa ou num banco de jardim, navegar por entre letras impressas a negro sobre papel branco, que, passado pouco, têm o condão de se transformar em pequenos objectos flutuando sobre as vagas indomáveis de um qualquer oceano, navegar, enfim, as viagens dos outros.

Tantos livros para a adolescência (não livros juvenis, tal como os livros para crianças não devem, eles mesmos, ser infantis…), avidamente lidos nessa idade, e a que regresso ciclicamente, numa tentativa desesperada de não romper os últimos fios que me ligam ao rapaz que então era, cheio de possibilidades e esperanças.

Estando a falar do Mar, vem-me à ideia uma história que me foi contada por T., antigo comandante da marinha de guerra, hoje remetido à periglicofilia, isto é, ao coleccionismo de pacotes de açúcar.

Certa vez, encontrando-se um navio por si comandado parado algures no oceano Atlântico, suponho que sobre a Fossa de Porto Rico, decidiu ele permitir à tripulação que se banhasse livremente naquelas águas, prazer de que também pretendia participar. Contudo, mal se entregara a tal deleite, regressou a bordo, atacado de pânico – ocorrera-lhe, subitamente, que entre ele e o fundo do mar estavam mais de 8000 metros de água, isso mesmo, oito quilómetros, a distância que, em Lisboa, vai do Rossio a Algés, em linha recta!

Como o compreendo, eu que sou dado a vertigens e outras fobias, mas, no entanto, a verdade é que bastam menos de dois metros de água para uma pessoa de estatura média se afogar, o que, aliás, não é, de modo algum, inaudito.

Um homem do mar que muito aprecio é – não podia deixar de ser – o Capitão Archibald Haddock, companheiro de Tintim, fumador de cachimbo, herdeiro inverosímil do Palácio de Moulinsart, grande bebedor, praguejador de bom coração e lágrima tão fácil quanto a ira. Com as suas forças e fraquezas, Haddock personifica, para mim, a bondade humana – what you see is what you get.

Ora, nas guardas de alguns livros de Tintim, Hergé colocou – só os mais atentos terão reparado – um desenho do protagonista e do seu cão, Milú, vestidos de esquimós, situação que não integra nenhuma das estórias por ele publicadas.

E tenho pena, porque acontece que os povos da América árctica, da Gronelândia às Ilhas Aleutas, genérica e abusivamente chamados Esquimós (pois alguns destes autodenominam-se iúpiques, inupiates, inuítes, unangans, etc), os seus artefactos (as roupas, o calçado, os óculos de neve, as armas de caça), os seus ritos e a sua música são outra das minhas paixões, embora esta ainda insuficientemente investigada.

Um dia, assim a vida me conceda tempo e vagar, estudarei com mais afinco a vida destoutros homens do Mar.

E é tão rica e longa a História dos que, por esse mundo fora, ao Mar se fizeram, buscando alimento, comerciando, guerreando, em lazer ou em busca de ciência!

Os viquingues foram outro exemplo interessantíssimo de povo marinheiro. Em Roskilde, no sudeste da Dinamarca, tive oportunidade de visitar o magnífico Vikingeskibsmuseet (Museu dos Navios Víquingues), inaugurado no ano em que nasci, 1969, para albergar seis naves escavadas em Skuldelev, em estados de conservação muito interessantes.

O museu promoveu, depois, a construção de réplicas de alguns dos navios que alberga, um dos quais, o Helge Ask, navegou já nas águas do Sena e do Tamisa, imagine-se para que espanto dos desprevenidos.

Por entre outros aspectos mais sérios, encantam-me as indumentárias tradicionais dos homens do mar, tão variadas quanto os seus tempos, as suas geografias e funções. Gorros, galochas, grossas roupas de lã ajudam a compor retratos exteriores que o são também de modos de vida e das próprias almas. O mesmo se poderá dizer das variegadas formas das suas barbas.

Quando era miúdo, aí com uns quinze ou dezasseis anos, correspondi-me com vários museus a que nunca tinha ido e a que, aliás, nunca fui. Entre eles, o Western Australian Maritime Museum, em Freemantle, perto de Perth, e o Scottish Fisheries Museum, em Anstruther, na região de Fife. Consulto agora dois folhetos que na altura me enviaram e recordo-me de que decidi guardar estes, e não muitos outros, precisamente, tão-só, porque neles figuram velhas fotografias a preto e branco, do fim do século XIX ou do início do século XX, e, bem assim, algumas pinturas em que aparecem vários homens municiados do tipo de barbas que prefiro e a que se chama, comummente, passa-piolho.

27 Nov 2017

Divagar

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] vagar é o meu maior sonho, o mais difícil.

Quanto a estes últimos, tal gosto deve-se também à variedade das formas, entretanto tão uniformizadas.

Alguns dos meus preferidos: o Citroën Boca-de-Sapo e a carrinha Citroën HY, que, em Lisboa, deu peixarias e bibliotecas, a carrinha Volkswagen Pão-de-Forma, o Morris Mini e o Fiat 600 originais, o BMW Isetta, com uma só porta, na dianteira, onde se situava o volante, o “espacial” AMC Pacer X, o Simca 1100 (que era o do meu pai, na minha infância) e tantos, tantos outros, mais antigos, que, em Portugal, podem ser vistos, por exemplo, no Museu do Automóvel Antigo, em Caxias, ou no Museu do Caramulo.

Esse vagar, que me é tão invulgar e tão necessário, é parte da razão porque gosto tanto de museus, de bibliotecas, de algumas livrarias. Aí, encontro-me com a lentidão e o silêncio (o silêncio!, o adorado silêncio).

Algumas livrarias (poderia citar muitas outras): a Strand, em Nova Iorque, mastodôntica e completíssima; a Anticyclone des Açores, em Bruxelas, dedicada às viagens; a Librairie Ancienne, do simpático Patrick Laurencier, na bonita cidade de Bordéus; e acima de todas, exclusivamente dedicada aos versos, a saudosa Poesia Incompleta, livraria que de Lisboa se transferiu para o Rio de Janeiro e aí morreu, às mãos de duas sociedades que, claramente, preferem telenovelas.

Ocorre-me agora um outro estabelecimento, de que fui visitante habitual na adolescência e que permanece activo, no qual esses predicados do sossego e do silêncio se aliam a uma grande beleza, por via das peças expostas. Refiro-me à loja filatélica A. Molder, fundada por um emigrante húngaro, em 1940, e situada num 3º andar da Baixa lisboeta. Mesmo para quem não colecciona selos, é bem merecedora de uma demorada visita.

Estas contam-se entre as poucas lojas que não me incomodam – não gosto de fazer compras, em geral, e detesto comprar roupas e sapatos, em particular, tanto mais que o meu tamanho faz com que os esforços de prova resultem, o mais das vezes, infrutíferos. Assim, ao longo dos anos, venho, sempre que possível, deixando tais encargos em mãos alheias, felizmente sem que com isso me ache contrariado com o que visto.

Outra excepção a essa aversão às compras é, porém, a comida, pelo muito que gosto de cozinhar e, sobretudo, de comer. Gosto de bons supermercados, desde que não estejam muito cheios de lojas gourmet, desde que não sejam pretensiosas e sobreavaliadas, e, sobretudo, de mercados, com destaque para aqueles em que o peixe fresco, em diversidade e qualidade, prevalece, a par de frutas, legumes, flores, etc.

Já referi aqui o excelso Mercado dos Lavradores, no Funchal. Soberbos são, claro está, o Mercat de La Boqueria, nas Ramblas, em Barcelona, e o Mercado de San Miguel, em Madrid, onde também se compra e come. Mas a minha preferência talvez vá para mercados mais pequenos, como o de Ayamonte ou o de Olhão, terras piscatórias em que se sabe do valor de tantos peixes desconhecidos ou desprezados nas grandes cidades, e que se vão mantendo mais ou menos incólumes à avidez predadora de hotéis e restaurantes.

Aí se compra uma série de peixes saborosos (folhas ou cartas, agulha, ruivo, aranha, polvos pequenos, etc) a preços entre 1 e 2€/quilo. Ou seja, é possível até a um pedinte fazer as refeições que mais me agradam.

De todos os peixes, os que mais me seduzem são, no entanto, os de rio: fataça, truta, sável, a dispendiosa e trabalhosa lampreia, enguias (ou irós ou eirós). Nas margens do Tejo, em várias localidades, é imperioso comê-los: em Vila Franca de Xira, na Lançada, em Tancos (bem perto do belo Castelo de Almourol, fortificação medieva implantada numa ilhota no meio do rio) ou em Vila Nova da Barquinha, por exemplo.

Mas não se pense que sou completamente imune aos encantos da carne (aliás diria que, felizmente, não sou completamente coisa alguma). Acontece, apenas, que as peças de carne mais correntes – bifes, febras, costeletas, etc – me são mais ou menos indiferentes. O mesmo não se poderá, porém, dizer de fígados, pernis, cabidelas, ossobucos (ou jarretes), mãos de vaca e outras coisas que tais.

A propósito:

Até há meia dúzia de anos, achava a mão de vaca repugnante, meramente por questões visuais, sem que – cretino! – a tivesse, sequer, provado.

Acontece que, estava eu em Cabo Verde, fui convidado para jantar em casa de D., o porteiro do prédio em que vivia. D., muito pobre, habitava num cubículo, tendo por únicos “equipamentos” um colchão, o tapete sobre o qual, sendo muçulmano, fazia as suas orações e um “campingaz”. Sobre este, cozinhara, com dedicação e habilidade, uma tachada de mão de vaca com grão, que, pelos vistos, é prato que também se come na África ocidental, de onde provinha (do Gana?, da Gâmbia?, não me recordo).

Pensei com os meus botões: “Tens de te sacrificar, não te podes negar a comer o que, talvez com sacrifício, te preparou”. E assim fiz. Só que a repulsa limitou-se à primeira garfada. Imediatamente me apercebi de que o prato era delicioso e amaldiçoei-me por nunca antes o ter provado.

Desde então, e até porque Lisboa é pródiga em tascas e restaurantes que o confeccionam eximiamente e existem, também, muito aceitáveis versões enlatadas, não se passa um mês em que não coma este prato.

Mas como gosto mesmo de comer é em formato de tapas, com grande variedade de sabores, em pequenas quantidades, sobre a mesa. Hoje, eu, que outrora comia como um leão, só desse modo consigo ultrapassar uma medida mais ou menos frugal. Para isto, a cidade mais propícia que conheço é Bilbau, onde terei chegado a provar 15 iguarias numa só refeição.

16 Nov 2017

Marcas do desejo

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á certas pessoas a quem, por algum dom natural ou por mérito próprio, os demais têm dificuldade em dizer não. Sendo objectivo, devo afirmar que há muito me apercebi de que faço parte desse número.

Quando tinha 15 anos, fascinado por um par de cachimbos por estrear que havia lá em casa e motivado, certamente, por uma imagética retirada ao cinema, resolvi que queria fumar cachimbo, e disse-o aos meus pais.

Faltavam poucos dias para, pela primeira vez, sair de Portugal sem a família. Iria uma semana a Londres, com um colega de Liceu.

No dia seguinte à minha declaração, minha mãe acompanhou-me a um depósito de tabacos que havia na Rua de São José e, aí, adquirimos uma calcadeira, escovilhões e, recordo-me, uma onça de Skandinavic Aromatic.

E lá fui eu para Londres, orgulhoso e deliciado, com o meu cachimbo entre os dentes.

No “Moby Dick”, a dado passo, Ahab afirma: “Oh, cachimbo meu, as coisas correm-me mal se os teus encantos se perderam!”. E assim é, de facto! – o cachimbo é bom companheiro em quase todas as ocasiões.

Na Ilha da Madeira, contudo, onde já estive perto de dez vezes, sabe Deus por que sortilégios (a humidade do ar?, o fantasma de Winston Churchill pairando sobre Câmara de Lobos?), apetece-me sempre fumar charutos. Gosto de caminhar pela cidade do Funchal, contemplando-lhe a flora e a arquitectura, enquanto aspiro o odor do charuto. Gosto de ir do Museu de Fotografia “Vicentes” ao Museu da Quinta das Cruzes, da Casa-Museu Frederico de Freitas ao Aquário Municipal, do Mercado dos Lavradores ao Museu Henrique e Francisco Franco, aspirando sempre aqueles aromas vindos do Brasil, das Caraíbas, das Filipinas ou de outras paragens do mar, remotas e tropicais.

Mais uma vez, ao gosto que tenho pela Madeira não serão, certamente, alheios os muitos traços da presença inglesa na ilha, traços esses, regra geral, bem conservados e postos em evidência, pelas autoridades locais ou pelos próprios britânicos.

Ora, isto faz-me pensar em cemitérios, outro tipo de locais que tendo a apreciar, e, nomeadamente, em cemitérios britânicos espalhados pelo mundo, que tive oportunidade de visitar: um no Lumbo, defronte da Ilha de Moçambique, datando da Primeira Guerra Mundial, em que repousam setenta e cinco almas e que, no meio de muita desolação, é mantido em impecável estado de conservação por um guarda para isso remunerado; o de Lisboa, onde, entre muita gente, prestigiada ou anónima, jaz o romancista Henry Fielding, o bem-humorado autor de “Tom Jones”; e o de Elvas, pequeníssimo talhão contendo, apenas, cinco sepulturas, datando de entre 1811 e 1863.

Contudo, os mais interessantes que conheço encontram-se, naturalmente, em solo britânico: são o Trafalgar Cemetery, em Gibraltar, e, sobretudo, o de St. Ives, na Cornualha, implantado numa colina verdejante, a beleza de cuja vista sobre o mar nos convida a demorarmo-nos.

No primeiro, uma placa presa ao gradeamento explica-nos: “Trafalgar Cemetery — Here Lie The Remains Of Some Who Died Of Wounds At Gibraltar After Nelson’s Great Victory In October, 1805, Those Killed During The Battle Having Been Buried At Sea. Other Graves Date From 1798.”

Falando de cruzes: Antoni Tàpies, o meu pintor preferido, em cujos quadros a cruz, sob diversas formas, está presente, diz, numa entrevista datada de 1987: “Uso símbolos espontânea e intuitivamente, o que me dá uma grande dose de prazer imediato. Isto parece terrivelmente simples e, hoje em dia, está talvez um pouco fora de moda falar da diversão como uma razão para produzir arte. Mas quando estou a trabalhar não analiso as razões porque escolho esta ou aquela forma, embora o pudesse fazer à posteriori. Durante muitos anos, trabalhei de um modo quase automático, inconsciente. Só quando os críticos começaram a questionar-me, como está a fazer agora, é que fiz um esforço para compreender o meu próprio trabalho em termos intelectuais, para entender por que é que tinha usado uma forma ou uma cor particulares num quadro. Quando ponho um símbolo num quadro, um x ou uma cruz ou uma espiral, sinto um certo tipo de prazer. Vejo que o símbolo dá ao quadro um poder particular, e não tento explicar por que é que isto acontece.”

Do mesmo modo, diria eu, não é preciso ser cristão ou fatalista para estabelecer uma empatia forte ou, até, muito forte com as cruzes dos cemitérios. Não é preciso pensar.

“Não pensar é o impulso mais íntimo do poeta”, afirmou o muito poeta António Maria Lisboa.

Creio que não escrever seria outro dos desejos desses homens e mulheres tão intimamente magoados pela realidade. Sendo-lhes ambas essas coisas impossíveis, escrever pouco, ou escrever com pouco, são, muitas vezes, as opções que lhes restam. Para proveito de todos nós.

O mesmo acontece com alguns dos actores que mais aprecio, praticantes do underacting, da economia expressiva: Robert Mitchum ou Lino Ventura, por exemplo, ou, no actual cinema norte-americano, Gene Hackman e Tommy Lee Jones.

Já quanto ao overacting a minha posição varia muito, consoante a sua qualidade e a adequação, ou não, ao propósito em causa. Peter O’Toole ou Peter Lorre, sempre. Marlon Brando ou Mário Viegas, às vezes. James Dean? Que irritação que aquilo tudo, invariavelmente, me causa!

Há uns anos, aprendi, com um especialista, a avaliar a lisura de uma tela com as costas da mão. Lisura desejável quando a textura não seja voluntária. Creio que, com a representação, é o mesmo: que seja lisa, a não ser que haja bons motivos para texturá-la.

7 Nov 2017

Do prazer

Time is what you make of it.

Anúncio aos relógios Swatch, 1996

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á muitos tipos de prazeres.

Há os prazeres prazerosos, claro.

Há os prazeres que acarretam algum sofrimento.

E há, também, o prazer da dificuldade. Este, regra geral, decorre de dois aspectos: o trabalho que foi necessário à sua fruição e o facto de esta implicar o encontro com outro – o criador – que trilhou esse caminho, incomum no seio de um tempo de facilitismos.

É esse o prazer que sempre me deram algumas obras de arte. E, a dado momento, quando esse mecanismo está em nós bem oleado, funcionando por si só, sem necessidade de manutenção, esses prazeres tornam-se imediatos, físicos, exactamente como os prazeres menos exigentes.

Blake, Pound, Joyce, Beckett, Lowry, o dadaísmo, o letrismo, etc, cabem, claramente, nesta categoria. (Permitam-me que lhes acrescente um português, quase desconhecido: Alberto Velho Nogueira).

O mesmo acontece, na música, com Kurt Schwitters, Luigi Russolo, John Cage, Luciano Berio, Mauricio Kagel, Frédéric Acquaviva, etc. Ou com o free jazz e a música improvisada. Sem Leroy Jenkins ou Kazushige Kinoshita, sem Derek Bailey ou Hans Reichel, a minha vida seria bem mais pobre e menos prazerosa.

Nas artes visuais, o mesmo sucede com Marcel Duchamp, Joseph Beuys e as suas extensas descendências.

Mas, claro está, estes prazeres não devem excluir o enorme prazer que nos dão a limpidez ascética, preclara, da música de Bach ou de Sainte-Colombe, ou dos versos de Camões, ou a pureza lúdica, essencial, dos pincéis de Raoul Dufy, Miró ou Calder.

Nada nasce de nada. E o sentido das vanguardas funda-se, profunda e solidamente, nas razões destes. Quando não, estamos no território do vómito sem sentido, que, oportunista, sempre alaga algumas frestas das vanguardas. E para esse não deve haver tolerância.

O mesmo acontece com a comida. A grande cozinha de autor é rara. A má cozinha de autor é ridícula. Serve, normalmente, para disfarçar a preguiça. Um grande cozinheiro não tem, necessariamente, de saber fazer uma perdiz à Convento de Alcântara, mas tem, pelo menos, de saber que ela existe e como é feita. Quando não, dêem-me, mil vezes, uma boa sertã de iscas e guardem para os CEOs as espumas e as granitas.

Há, ainda, outro tipo de prazer, que se vai tornando raro neste tempo de seriedades cosméticas, e que é, porventura, o que me cala mais fundo e melhor me individualiza. Falo do diletantismo, do apego a certas artes e ciências sem que se pretenda obter qualquer proveito pessoal que não o esclarecimento da curiosidade e, portanto, sem grandes preocupações estruturais e, sobretudo, sem qualquer remuneração.

Mais uma vez, os britânicos (alguns, claro está) servem-me de exemplo:

O birdwatching, a observação de aves, empenhada e informada, contará no Reino Unido com cerca de um milhão de praticantes.

O mudlarking, esmiuçar das lamas das margens dos rios em busca de antiguidades é, também, uma prática popular, desejavelmente realizada em articulação com arqueólogos e museus, cujas colecções amiúde enriquece.

A malacologia e a lepidopterologia amadoras, a recolha e o estudo de gastrópodes e bivalves e de borboletas, se praticadas conscienciosamente, são actividades extremamente gratificantes.

A filatelia, se saltar do patamar da mera acumulação para o da verdadeira curiosidade organizada, é um instrumento pedagógico valioso. Muito jovem, com ela aprendi, entre muitas outras coisas, boa parte do que ainda hoje sei de geografia política e da sua evolução.

Em todas estas actividades, existe o prazer de ir entendendo cada vez melhor o que se observa e os factores que o determinam, mas, à partida, tudo começa pelo simples prazer da contemplação. Da silhueta de uma pega rabilonga ou de um fragmento de cuspidor em porcelana, das pregas radiantes de uma concha de vieira ou dos padrões laranjas e negros das asas de uma monarca, ou, ainda, de um selo representando qualquer uma das coisas anteriores…

Recordo-me de, quando era miúdo, passar horas a olhar um conjunto de selos das ilhas Ryukyu estampados com belíssimos gastrópodes. E onde seriam as ilhas Ryukyu? Era imperativo esquadrinhar o globo terrestre até dar com elas, e que alegria ao encontrá-las!

Esse fascínio inicial por um objecto ligou-me, ao primeiro encontro, ainda numa ilustração de um livro, a algo que a maior parte das pessoas considerará tétrico, quando não mesmo repugnante — as cabeças humanas mirradas pelos índios jivaros da América do Sul. Trata-se de cabeças de inimigos, a que são retirados os crânios e que tomam então as dimensões de um punho fechado, mantendo, contudo, as suas feições e as longas cabeleiras.

Mais tarde, no Museu da América, em Madrid, e nos fundos do Museu Nacional de Etnologia, em Lisboa, tive a oportunidade de vê-las ao vivo. Que alegria, também então!

A surpresa, o inesperado, sobretudo numa época em que, desde tenra idade, somos bombardeados por informações que nos retiram quase todas as virgindades e, por conseguinte, a probabilidade dessas surpresas, têm um valor intrínseco, nas artes ou em quaisquer outras matérias. Convém, pois, estarmos abertos às surpresas ou deixaremos a vida passar-nos ao lado.

Uma história que ilustra bem este princípio é a seguinte:

Quando Georges Simenon propôs a primeira novela protagonizada pelo Comissário Maigret ao seu editor, Arthème Fayard, este respondeu-lhe:

— Estou disposto a publicar os seus “Maigret”, mas digo-lhe de antemão que não obteremos qualquer resultado. E isso por quatro razões: a) as suas histórias não são técnicas o suficiente; b) não há intriga amorosa; c) não existem nelas personagens suficientemente simpáticas ou antipáticas; d) acabam todas mal.

Os livros de Simenon, e os Maigrets em particular, tornar-se-iam, em breve, dos livros mais vendidos do mundo, para mais com um sem-número de adaptações cinematográficas e televisivas, em diversas línguas. Com os Maigret, Simenon fez-se um homem muito rico e enriqueceu muito os seus editores.

Fayard estava erradíssimo, é certo. Mas, honra lhe seja feita, editou o que lhe era proposto.

24 Out 2017

Valeu a pena

Omnia fui, et nihil expediti.

Séptimo Severo

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]esde que nasci, vivi rodeado de livros. Esses, os que já existiam lá em casa antes de mim, continuam sendo, e creio que serão para sempre, os que mais me marcaram.

Contudo, a dado momento, naturalmente, a biblioteca do meu pai deixou de ser suficiente para alguns aspectos da minha curiosidade e do meu gosto pessoal. Assim, comecei a comprar alguns livros e, sobretudo, a socorrer-me dalgumas das bibliotecas públicas que então existiam na cidade de Lisboa. As que os governos britânico e norte-americano nos proporcionavam (entretanto, ambas encerradas), contam-se entre as que me foram mais úteis.

É bastante provável que tenha sido aí que se geraram e estruturam vários aspectos da minha anglofilia, um amor por um Reino Unido que só muito tangencialmente existe e talvez nunca tenha existido de outro modo, por uma selecção que resulta numa invenção por medida. Mas não será sempre assim, com todos os amores?

Amo Madrid. Gosto do ruído das ruas e dos bares, dos seus restaurantes e tascas, do mercado de San Miguel e de outros mais pequenos, incrustados nos bairros, do Museu do Romantismo, da Real Academia de Belas Artes de San Fernando, do Museu Lázaro Galdiano, dos três grandes museus, mesmo se com filas à porta, etc.

Também gosto muito de Bruxelas, da Bélgica, em geral, e de Bruxelas, em particular. Uma cidade mal-amada pela maior parte dos que a visitam. Gosto do pequeno Impasse Saint-Jacques, do teatro de marionetas Toone, de mexilhões com batatas fritas, do Museu dos Instrumentos Musicais, de um densíssimo ragout que comi num pequeno restaurante familiar ao pé do Menino Mijão, dos Musées Royaux des Beaux-Arts, da brasserie A La Mort Subite, etc.

Gosto muito de uma pequena vila piscatória na Cornualha, chamada Polperro.

Amo, mais do que qualquer outro lugar, uma minúscula aldeia de xisto, atravessada por um rio, no meio da Beira Litoral. Dessa, não vos direi o nome.

Acerca de Lisboa também não falarei muito. A minha relação com a cidade é demasiado pessoal, quase doentia, certamente dolorosa, para que a minha experiência possa aproveitar a terceiros. Não, não faz sentido eu falar da Lisboa que existe e não tenho idade para falar da Lisboa-aldeia, de aguadeiros e choras.

Contudo, recordo uma cidade em que muitos aspectos desta última sobreviviam ainda, nos bairros históricos, a par de cinemas e centros comerciais microscópicos, sobretudo nas Avenidas Novas, os quais anunciavam já os muitos desmandos que, paulatinamente, foram tomando conta da cidade, que ganharam dimensões assustadoras durante o “cavaquismo”, e que tiveram a sua apoteose no verdadeiro monumento urbanístico-arquitectónico à saloiice triunfante que é o Parque das Nações.

Limitar-me-ei aqui a listar alguns museus lisboetas que me encantam: a Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves, a Casa-Museu Fundação Medeiros de Almeida, o Museu de Macau, o Museu da Carris, o Museu Geológico (um museu de um museu…), o Jardim Botânico Tropical (apesar do estado ruinoso em que se encontra).

Como já devem ter percebido, os museus, alguns museus, sem didactismos ou tecnologias, mais ainda do que as bibliotecas, sempre foram os locais onde me senti melhor. Porque muitos deles estão quase sempre vazios, o que convém aos momentos em que me apetece fugir do mundo, porque não pertencem ao tempo e ao espaço presentes, porque combinam bem com uma certa forma de aristocracia, novecentista, vitoriana para ser mais exacto, que sempre cultivei de mim para mim.

Certa vez, inserido num grupo, fui realizar um espectáculo a Braga, ao Museu Nogueira da Silva, outro dos meus preferidos de Portugal (o predilecto é, certamente, a Casa dos Patudos, em Alpiarça). Ao chegarmos ao museu, que era suposto providenciar-nos alojamento, a senhora que nos recebeu disse que ficaríamos a dormir no próprio edifício. Supusemos que, nas traseiras, algures por detrás do belíssimo jardim, houvesse um anexo onde seríamos hospedados.

Qual não foi o nosso espanto (perdoem-me a formulação batida) quando fomos conduzidos a quartos que integram o espaço do museu e as camas de dossel e demais mobiliário foram postos à disposição dos nossos reais costados!

Em circunstâncias várias, tenho dormido em hotéis de muito luxo, aos quais, aliás, em geral, preferiria uma hospedaria modesta. Mas nunca antes nem depois daquela noite dormi num local tão condizente com os pergaminhos que a mim mesmo me outorguei.

De facto, às vezes, sabe bem sermos bem tratados. De tal modo que só então nos apercebemos do bem que nos faz, da falta que isso nos fazia sem que nos inteirássemos.

Há uns anos, decidi presentear-me, e à minha namorada de então, com uma viagem à Grécia, sem cuidar do facto de que a Páscoa ortodoxa decorria nesse período. O nosso destino final era a ilha de Spetses, uma das Ilhas Sarónicas, logo a seguir a Hydra.

Em Atenas, encontrámo-nos com um conhecido, calhou em conversa perguntar-lhe qual o melhor restaurante da ilha, tendo em vista o jantar da noite de Páscoa, e recebemos uma resposta cabal, quase impositiva.

O que não sabíamos é que a ilha iria estar repleta de atenienses e que uma chuva copiosa se abateria sobre todos nós.

Assim, ao chegarmos à porta do restaurante recomendado, uma turba cercava já a entrada, sem que, todavia, a sorte lhe sorrisse. As mesas estavam todas reservadas, e o mesmo deveria suceder nos demais estabelecimentos.

Preparávamo-nos, pois, para regressar ao hotel e debatermo-nos com uma longa noite de larica quando o dono do restaurante me perguntou: “Portugueses?”; e, ante o nosso espanto, nos conduziu à mesa que o tal conhecido, providencialmente, nos reservara.

E mais espantados e agradecidos ficámos quando, após o excelso repasto, nos foi servido, junto com uma travessa de sobremesas variadas, o anúncio de que a conta fora, previamente, saldada pelo nosso anjo da guarda.

Nessa noite, para mais embalados pelo marulhar das águas que lambiam as fundações do hotel, dormimos um daqueles sonos que não nos é dado dormir todos os dias.

19 Out 2017

As listas

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ra o século XV. Jacques Coeur, rico mercador da corte de Carlos VII, explorava, entre muitas outras actividades proveitosas, a mineração de prata de Pampailly, perto de Lyon.

Em inícios dos anos 90, era eu um jovem adulto, candidatei-me a participar nas escavações arqueológicas desse complexo mineiro, dirigidas por um professor da Sorbonne, de longas barbas brancas, arquétipo do soixante-huitard.

Recordo-me de que, quando nos encontrámos pela primeira vez, brindou-me com esta tirada, seguida de um abraço:

— Portugal? Otelo Saraiva de Carvalho!

Creio que trabalhei nessas escavações cerca de dois meses, de que guardo hoje, apenas, uma meia-dúzia de imagens e sensações, coadas pelo tempo: o cheiro da terra húmida, repleta de minhocas que o nosso trabalho repetidamente amputava; a bondade das refeições, em que aprendi a apreciar esses pequenos pepinos em vinagre chamados cornichons; uma breve aventura sexual com uma jovem franco-cabo-verdiana, de volumosíssimos cabelos loiros, encarapinhados, quase sempre contidos por um lenço, mas esplendorosos quando soltos; um par de visitas a um château próximo, propriedade de um casal de velhos anacoretas, que, quando estavam de feição a receber visitas, içavam uma bandeira branca num mastro, e que, a propósito da sua assumida xenofobia, me afirmaram: “Sabe, nós detestamos estrangeiros, em teoria. Mas temos tido o azar de gostarmos de todos os que conhecemos”; uma breve viagem a Belfort, quase na fronteira com a Suíça e a Alemanha, cidade em que os caracteres franceses e germânicos se confundem; um fim-de-semana em Paris para visitar uma namorada colombiana, que trabalhava na UNESCO e morava na recatada Rue Serpente, no Quartier Latin, e com quem continuo a contactar de vez em quando, embora não nos vejamos há anos.

Dessa viagem tinha, ainda há algum tempo, uma recordação física: uma cassete de Archie Shepp, saxofonista de jazz, comprada no Quai des bouquinistes.

Ora, há alguns anos, não tendo como aceder-lhes ao som, deitei para o lixo um saco cheio de cassetes, incluindo a dita. Suponho que esse desprendimento, extensivo a todo o tipo de bens materiais, signifique que compreendi que os objectos não fazem falta à memória.

Pelo contrário, creio que a limitam no que tem de mais estimulante – a capacidade de se desconstruir ou destruir, de se reconstruir ou reinventar.

De facto, nos últimos anos, tenho dado ou vendido quase tudo o que tinha, a começar pelos livros, a maior parte deles imediatamente a seguir a uma única leitura. Faço-o não tanto por necessidade mas por ter a noção clara de quais os que me voltarão a interessar no futuro, que são, percentualmente, bem poucos, até porque, se, por um lado, tenho este desapego à propriedade, por outro, gosto de ler quase tudo, mesmo coisas que sei serem muito pouco valerosas ou das quais tenho consciência de ter pouca capacidade de entendimento.

Assim, de alguns milhares de livros que cheguei a possuir em dados momentos, e dos muitos milhares de que, ao longo do tempo, fui proprietário, guardo, agora, poucas centenas.

Muito menos, ainda, são os discos.

Fotografias, por razões que não importa precisar, fiquei com pouquíssimas (a minha infância, por exemplo, ficou, para mim, quase indocumentada).

Tenho, também, alguns desenhos e fotografias de autoria de artistas amigos.

E, quanto a outros objectos, se excluirmos a roupa, em que também não sou pródigo, não ocuparia muito espaço a lista exaustiva de quanto possuo!

Voltando aos livros, gosto muito mais dos que partilham a vida vivida do que dos que têm o despudor de impor aos demais a entropia do escritor, isto é, a quantidade de energia deste que não é convertida em trabalho mecânico. Ou seja: desconfio daquilo a que se costuma chamar Literatura.

Um dramaturgo que conheço desde que éramos crianças, isto é, há mais de quarenta anos, escreve, a dado passo, no seu único livro de poemas: “estou já demasiado anglo-saxónico para escrever coisas que não sejam listas”.

Às vezes, também eu sinto que as listas – sem acréscimo de comentários – bastam a cumprir a função do texto, tanto junto do próprio escritor como junto dos leitores: fixar a memória sem recurso a objectos.

10 Out 2017