A Revolução Liberal de 1820 & Macau – 200 anos da primeira revolução contemporânea

[dropcap]A[/dropcap]s Invasões Francesas – Junot, Soult, Massena (a mais destrutiva) e até a de Marmont – a Guerra Peninsular – que coincide com a Guerra da Indepêndencia Espanhola (factos que ocorrem entre 1807 e 1814) – a fuga da rainha D.Maria I, do príncipe regente D. João – proclamado rei D. João VI a 6 de Fevereiro de 1816 – e, parte da corte, da nobreza e alguma alta magistratura – à volta de 15 mil pessoas –, “Cofres vazios, moeda sem valor e juros proibitivos” – vivia-se numa iminente suspensão de pagamentos, a bancarrota. Um país arruinado e exausto, que vivia sob a alçada da tortura, censura, repressão e miséria.

Foi a 24 de Agosto de 1820 – fez 200 anos – que um grupo de patriotas se pronunciou no Porto, em favor da “regeneração da pátria”, do “regresso do rei”, pela “salvação da Pátria através da razão e da justiça”. Afastaram a “Regência”. Morreu o Portugal velho (poder absoluto), nasceu o Portugal novo (começou a era da cidadania, das liberdades cívicas e da igualdade perante a lei).

A 21 de Novembro de 1806, a França decreta o “Bloqueio Continental”. Em finais de Novembro de 1807, o Príncipe Regente, a Rainha, a Corte e grande parte da administração portuguesa, fogem para o Brasil, para escapar às tropas napoleónicas, que já invadiam Portugal. O País ficou entregue a um conselho de “Regência”, com a protecção da Grã-Bretanha, que configurou o País como um simples protectorado, e que não queria perder o controlo de uma rota comercial que lhe era extremamente vantajosa, útil – a do vinho do Porto, que dominava desde o princípio do século XVIII. A Grã- Bretanha vinha da (1812 – 1815), tinha um grande “poder” mercantilista, era já uma grande “potência” mundial, mas precisava de equilibrar a sua economia. Portugal tornou-se “uma possessão comercial inglesa arruinada” A “ordem” do bloqueio era isolar economicamente as Ilhas Britânicas, sufocando as suas relações internacionais.

Junot entra em Lisboa sem resistência uns dias após a partida da “corte”. Entretanto, Napoleão e a Espanha assinam um tratado para “retalhar” Portugal. A Espanha ocupou o Norte e o Sul e o exército francês o Centro. O acordo foi “Sol de pouca dura”, já que, em Maio de 1808, uma insurreição em Espanha leva à retirada dos exércitos espanhóis e a declarar a França como inimigo.

Este exemplo inspirou os portugueses. No princípio do século XIX, o Estado português vivia do comércio entre o Brasil e a Europa – era pouco, mas já era um passo na nossa autonomia económica, já que, no século XVIII, Portugal “só” vivia do ouro do Brasil, abandonou-se a agricultura e não se apostou numa industrialização do País. Com invasões e guerras, aumentaram as despesas, diminuíram as receitas, e o País cai numa situação económica precária – a falência.

De 1808 (da passividade) a 1820 (à revolta) sopram ideais da Revolução Francesa e rupturas das cortes de Cádiz. Errâncias que inspiram “um desejo absurdo de sofrer” – fome, violações, miséria, violência, pânico, rebeliões. Era insustentável viver sob o domínio inglês. Os escombros das invasões. O pronunciamento militar em Espanha, em Abril de 1820, a tortura/assassínio dos “grandes que oprimiam” os colaboracionistas da “Regência”, a criação de milícias para combater inimigos, o aparecimento de uma nova elite letrada, tudo se viveu, tudo se aprendeu, tudo deu azo a um mau estar constante que levou o povo a dizer “Basta!”. Como dizia Agustina Bessa-Luís, uma “Revolução há-de ser também uma revelação”.

Em 1815, enquanto os vencedores de Napoleão discutiam o futuro da Europa, em Viena, após a decapitação do , depois de vitórias sucessivas, esbarrando apenas na Rússia e em Portugal (com o auxílio inglês) – , a 16 de Dezembro, D. João VI “decretava a elevação do Brasil a reino, equiparando-o a Portugal”. Chamou ao Brasil as melhores tropas portuguesas (5 000 soldados, pagos por Lisboa), com a ambição de conquistar a “Banda Oriental”, do que é hoje o Uruguai. Começa uma nova fase da “nossa” presença no mundo, aquilo a que mais tarde se viria a designar como a “americanização” da monarquia portuguesa, tornar o Brasil no “grande império da América do Sul”.

Já em 1817, houve uma conspiração frustada a favor de um governo constitucional contra a regência inglesa que governava em nome do rei D. João VI, no Brasil. No dia 18 de Outubro desse mesmo ano, no campo que desde 1755 se chamava de Santana, o povo assistiu ao espectáculo, que durou 9 horas – do meio-dia às nove da noite -, do enforcamento, por traição à pátria, de onze desses sublevados. Só não assistiram à execução do cabecilha – o general Gomes Freire de Andrade (herói de quinze campanhas napoleónicas), que foi sacrificado nessa mesma manhã, mas fora de Lisboa – para não haver distúrbios – no campo de Alqueidão, junto a São Julião da Barra. “Tu, que deste aos homens tudo o que tinhas e viveste de mãos abertas acabas enforcado com o rótulo de traidor” – lamenta Matilde de Melo, mulher de Gomes de Freire d’Andrade. A partir de 1879, este campo passou a designar-se Mártires da Pátria.

Para este “episódio” da História convém ter presente o livro “Felizmente Há Luar”, de Luís de Sttau Monteiro. Recriada em dois actos, a história relatada na obra é baseada na tentativa falhada da “revolta” de 1817. O tema central do livro é a figura do General Gomes Freire de Andrade e a sua condenação à morte, levada a cabo pelo regime do marechal William Beresford, com o apoio da Igreja. A malícia, o humor, a ironia, a crítica mordaz, trocista, sarcástica, o escárnio, de tudo um pouco Sttau Monteiro deita mão para enobrecer/empobrecer a triste “sina” dos portugueses: “Vê-se a gente livre dos Franceses, e zás! Cai na mão dos Ingleses! E agora? Se acabarmos com os Ingleses, ficamos nas mãos dos Reis do Rossio” (Conselho de Regência); o desprezo de Beresford por Portugal – “E as àrvores… quem não viu as àrvores da minha terra, nunca viu árvores”; o substituir a monarquia absoluta pela constitucional – “a conspiração destina-se a implantar neste Reino o sistema de Cortes”. Denominada por Sttau Monteiro como apoteose trágica, nela o autor “Recorre à distanciação histórica para projectar uma luz reveladora sobre o presente”, uma espécie de dissertação ética, em que um facto histórico serve para denunciar as repressões políticas, perseguições e injustiças em Portugal na década de 60 – um incentivo à revolta. O livro foi publicado em 1961 e foi, desde logo, censurado pelo Estado Novo.

Macau não ficou indiferente à partida do Príncipe Regente para o Brasil. “Entendeu, então, o Senado (…) ser da sua obrigação, enviar, nessa ocasião, um representante seu ao Rio de Janeiro, para apresentar, em seu nome e no da cidade, ao Príncipe Regente, efusivas congratulações pela sua chegada ao Rio de Janeiro” – Luís Gonzaga Gomes, em <Páginas da História de Macau>.

O escolhido para representar a cidade foi o vereador António Joaquim de Oliveira Ramos, mas por impedimento deste foi nomeado o morador Raimundo Vieira Pereira, no entanto, quem finalmente desaguou na capital brasileira foi um comendador, de seu nome Domingos Pio Marques.
26 de Dezembro de 1818 foi a data marcada para a celebração da aclamação de D.João VI. Do cartaz das festas, o “número” mais importante das comemorações foi o acto solene de aclamação de D. João VI, que se efectuou pelas 15H00, no Salão Nobre dos Paços do Concelho, atestado de nobreza, clero e povo. A cerimónia, que se prolongou durante a tarde, viria a terminar com a subida ao palco do capitão mor, que clamou: “Real, real, real, pelo mui alto e poderoso senhor D. João VI, nosso Senhor. Imediatamente, o Governador (Castro Cabral) repetiu, em voz alta, por três vezes:” – em <Páginas da História de Macau> de Luís Gonzaga Gomes. Durante três dias, três, a cidade viveu em grande regozijo. As iluminações eram deslumbrantes. Uma banda deliciava os ouvidos da população em .

Em 1820, no Porto, dá-se finalmente o golpe de misericórdia. O exército revoltou-se, tomou e deu o poder aos burocratas e magistrados (os liberais). As ideias iniciais eram criar um sistema representativo (fez-se por sufrágio indirecto e universal), que desse voz ao povo – em oposição ao que até aí se passava, o poder dos reis portugueses era absoluto: “o rei fazia a lei, executava a lei, e interpretava a lei, julgando-a em susprema instância” -, controlar despesas, legislar, entregar o poder judiciário aos juízes e o executivo ao rei e aos ministros, e voltar a submeter o Brasil aos superiores interesses de Portugal. “Havia mil maneiras de adiar, distorcer ou simplesmente não cumprir o que as cortes determinavam”, como os dependiam do exército, não se atreveram a cortar despesas. Pretendia-se a transferência do poder do monarca para o povo.

A 3 de Agosto de 1821 – após treze anos de ausência – “uma nau, duas fragatas e seis outras embarcações provenientes do Brasil”, ancoram no rio Tejo, frota que transportava o rei D. João VI, o seu séquito de 400 pessoas e os seus bens. O Rei só pode desembarcar depois de se ter comprometido a jurar as bases da Constituição, resultantes do movimento iniciado no Porto, em 24 de Agosto de 1820. Após os actos públicos oficiais, D. João VI partiu para o convento das Necessidades, onde o aguardavam os deputados às Cortes Constituintes. Houve eleições para as Cortes Constituintes. Estas reúnem-se regularmente a partir de Janeiro de 1821 e, a 23 de Setembro de 1822, é jurada a primeira Constituição Portuguesa – é a primeira Revolução Contemporânea. Nasce uma nova ordem, a da “vontade da nação, do exercício da cidadania e do sistema parlamentarista”. O Rei deixou de ter o poder de veto ou dissolução e deixou de ser o chefe do Estado. Um novo “credo político” instala-se em Portugal, o liberalismo. Nada voltou a ser como dantes, Portugal mudou de face.

Após 1822, o Rei dissolveu as Cortes, aboliu a Constituição, numeou o seu filho D. Miguel generalíssimo do exército português e D. Pedro, no Brasil, entra em rebelião aberta com Portugal. A 7 de Setembro de 1822, o Brasil, que não queria voltar ao seu estatuto colonial, revolta-se nas margens do rio Ipiranga, em S.Paulo, e dá o toque final, o “Grito do Ipiranga”, a Independência do Brasil.

Já a estava prestes a ser aprovada, é que chegam a Macau os “ecos” da “Revolução” Liberal. O Leal Senado reúne-se a 19 de Agosto de 1822, para, “em assembleia-geral e por sufrágio popular, eleger os novos membros da Câmara. No dia 24 o novo regime demócratico foi consagrado por um Te Deum cantado pelo Bispo D. Fr. Francisco de N. Senhora da Luz Chacim (1804 – 1828), em que foi pregador o dominicano Padre António de S. Gonçalo de Amarante (fundador do periódico Abelha na China)” – Beatriz Basto da Silva, na Os liberais substituem os conservadores. O Ouvidor de Arriaga demite-se, figura enigmática “tão turtuoso quanto astucioso”. É ordenado o novo governo municipal, sendo restaurada a independência do Leal Senado, perdida pelas “Providências” de 1783. Isto porque, com elas, e uma vez mais cito a autora da , “o Ministro das Colónias, Martinho de Melo e Castro por instigação do ex-Governador das Índias, Salema e Saldanha, reformou o poder do Governador”. Vivia-se então no reinado de D. Maria I. O Governador poderia, a partir daí, impor o seu veto sobre qualquer moção senatorial, só com o seu voto. Foi a 4 de Abril de 1783 que apareceram essas “Providências”, emanadas de Lisboa, por ordem da Rainha, que “cerceavam o poder do Senado em favor do Governador e, ordenava ainda que se tomassem contas ao Senado e que este não tomasse qualquer decisão sem que fosse ouvido o Governador” – Padre Manuel Teixeira, na <Topomínia de Macau>.

A 22 de Janeiro de 1822, José Baptista de Miranda e Lima escreve uma carta, em nome dos liberais, ao Rei e às Cortes, pedindo a restauração do Senado à situação anterior a 1873 – “Um Senado que a tudo era Superior”. Macau passa a ser, entre 1 de Julho a 23 de Setembro de 1823, governado pelo Senado.

O “poder” governativo português em Macau – salvo algumas excepções -, sempre lutou/apoiou as instituições e princípios democráticos. Assim sendo, o Senado (o poder/assembleia do povo) recuperou o antigo sistema municipal: os poderes legislativo, excutivo e judicial, tendo sido retirado ao Governador (Castro Cabral) toda a responsabilidade administrativa. O Senado governou Macau até 9 de Janeiro de 1834, data em que foi publicada a “Nova Reforma Administrativa Colonial”.

A “22 de Fevereiro de 1835, o Senado foi dissolvido pelo novo Governador – Bernardo José de Sousa Soares Andrea, investido de plenos poderes como Governador Civil. Daí em diante, apenas competiriam ao Senado os assuntos municipais, embora ainda fosse chamado de Leal Senado” – em de Montalto de Jesus.

Essa tendência revolucionária e liberal veio a ter repercussões em todas as colónias portuguesas. Sob uma “nova” ordem liberal, Macau exigiu, desde logo, a “dissolução do batalhão do Príncipe Regente (que tinha sido criado a 13 de Maio de 1810) e a sua substituição por uma guarda municipal, a isenção de Macau do pagamento de subsídios a Goa e a Timor, o direito para os cidadãos nascidos em Macau usufruírem do privilégio de ocuparem cargos civis e militares e não menos importante, o levantamento das restrições sobre a imprensa” – em de Geoffrey C.Gunn. Nasce a uma quinta-feira, no dia 12 de Setembro de 1822, “A Abelha na China”, periódico liberal, o primeiro jornal de Macau, com a finalidade de informar e orientar a opinião pública sobre a nova ordem Constitucional. O seu último número seria a 23 de Setembro de 1823, num total de 67 edições. O levantamento das restrições à lei de imprensa era de 1821.

São dos anos mais cinzentos – será que o cinzento nivela todas as diferenças – e intensos vividos em Macau, nessa época de ruptura. Há o golpe e o contra-golpe de Arriaga. O Governador e o Ouvidor (Arriaga) são detidos e encarcerados. Há a condenação e fecho da “Abelha na China”. Vive-se um mau estar permanente entre conservadores e liberais.

A partir de 23 de Setembro de 1823 “forma-se um Governo de salvação” – um “Governo de Triunvirato”: o Bispo (D. Fr. Francisco), o Ouvidor, (demitido/ausente) – que é substituído por um vereador, e o Sargento-mor João Cabral (o militar de maior patente). Este Governo dura até 28 de Julho de 1825.
Só em 1825 é que foi jurada, em Macau, a .

D. João VI morre a 10 de Março de 1826 (58 anos), envenenado.

Nasce uma “nova” era num já longo caminho da identidade e da cultura democrática em Macau – a preservação da “Memória”. Tempos próximos, mas já tão abandonados na “Memória” – desenraizamento (?). Sussuros de outras vozes adulteradas por “novos” ventos, inacreditáveis estes “novos” ventos, ventos de mudança. Dúvidas (?) Temos de tresler o sentimento da ausência, o sobressalto da razão. Restam-nos dúvidas, interrogações, perplexidades – um regresso ao passado -, um reencontro com a História.

16 Set 2020

Símbolos da nostalgia

“(…) onde estão as boas pessoas quando acontecem coisas más? Quando acontecem coisas más, as boas pessoas ou estão caladas ou então a agir mal”
George Orwell (1903 – 1950)

 

[dropcap]A[/dropcap] geometria do vazio traz consigo escolhas de vida, gestos variados, sentidos diversos – um mundo de passagem. São ciclos de vida. “Envelhecendo eu revelo o meu carácter não a minha morte”, até porque, e segundo Max Weber (1864 – 1920), “os homens já não morrem saciados da vida, mas simplesmente cansados”.

As sociedades modernas quebraram, fruto do tédio, do privilégio e da agonia intelectual. Não alimentamos os sentimentos. Não se cresceu com o que se aprendeu. É triste. O medo faz parte da estratégia – “este não é tempo para a indiferença” -, o medo paralisa o Homem, a Humanidade. George Orwell usa esta sugestiva frase: “O importante não é manter-nos vivos, é manter-nos humanos”.

Paramos, bloqueamos. O medo é uma infecção contagiosa. O medo ajuda a impôr as ditaduras.
O que nos dizem e como nos dizem, o que existe e como existe, o que fazemos e como fazemos, está certo? Não podemos cristalizar o desejo, a escolha, a opinião. Temos de pensar de mente aberta e criativa. Temos de descobrir algo de novo e pungente a cada dia. Acabar com estes caminhos obscuros de fragmentos de ignorância.

Não há presente sem futuro – “um futuro que se constrói igual ao passado, não é futuro e por isso não tem futuro” -, só que a raiz dos males futuros está a ser plantada (?) nos erros que se cometem no presente. Percebem?

Somos de hábitos sem grandes vícios. Existimos.
Franquear fronteiras?
À fé? À fantasia? Ao pecado? À caridade? À fraternidade?

Há uma peça belíssima de Alves Redol (1911 – 1969), justamente apelidada de “Fronteiras Fechadas”, editada postumamente, em 1972. Relembro aqui o autor de “Barranco de Cegos”, após anos de ausência, não só pelo Homem, um dos grandes entre os maiores do Neorrealismo, mas sobretudo pelo seu carácter, já que, ao longo da sua obra, sempre tentou ser “um operário das letras ao serviço de uma obra artística colectiva”.

Temas quentes nessa peça do autor de “Gaibéus”: a coragem de quem passa fronteiras clandestinamente à procura de uma vida melhor e/ou a fuga da opressão – cinco mulheres – a condição feminina; as ideologias; a cláusura; o enriquecimento ilícito dos traficantes; a avareza. Apesar dos anos, “Fronteiras Fechadas” mantém uma grande actualidade, também porque os grandes temas de Alves Redol foram, são e serão sempre, aos olhares atentos, temas do presente. As suas grandes questões são políticas, económicas, sociais e culturais – faltou-lhe a questão da saúde.

No passado dia 10 de Junho, nas “Comemorações do Dia de Portugal e das Comunidades Portuguesas”, o Cardeal José Tolentino de Mendonça deixou uma mensagem em que alertava para os perigos do modelo de sociedades que se estão a construir, palavras que merecem uma reflexão. E passo a citar “O desafio da integração é imenso porque se trata de ajudar a construir raízes e essas não se improvisam: são lentas, requerem tempo, políticas apropriadas e uma participação do conjunto da sociedade” e, acrescentava, “Sem compaixão e fraternidade fortalecem-se apenas os muros e aliena-se a possibilidade de lançar raízes. A comunidade não se reforça esquecendo as periferias, mas fazendo delas motor da sua própria coesão”. É preciso que a identidade germine e o orgulho de pertença cresça, para que todos nós – sem excepção de credos e etnias -, possamos participar no bem comum da cidade.

Razão que persiste e se perpetua. Ao espanto ou desencanto? Ao desencontro ou ao encontro?
Para quando a confissão dos pecadores e/ou perdão dos hereges?

Onde estão os “sacerdotes” da ordem e do poder? Por onde se passeiam os perdedores do culto das palavras, vãs e inúteis?

Não esperem um novo ciclo de “Concertos da Vida”. A época foi adiada.
A incompetência não é negociável, até lá, as ideias continuarão a ser uma forma de contaminação e intimidade. Até quando?

Estamos a viver uma fase crítica. Recuamos no tempo. Vivemos numa época subordinada aos três movimentos de Newton (1643 – 1727), que são as leis de base da mecânica clássica: aceleração, reacção e inércia. Haja saúde!

“O Mundo é o que é, os humanos que não são nada, que se permitem não ser nada, não têm lugar neste mundo.” V.S. Naipul (1932 – 2018)

24 Ago 2020

Tudo é disperso, nada é inteiro

“Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro”
Fernando Pessoa (1888 – 1935) em

 

[dropcap]T[/dropcap]odos sabemos que uma evidência não é absoluta garantia da extinção da polémica – “a nossa História pertence-nos é como a colonização: reprimiu-nos mas não nos roubou as almas, transformou-nos mas não nos mudou a identidade”. Uma divergência nunca se deve transformar numa dissidência. Por vezes o inaceitável é facilmente aceitável, fruto do sistema que criámos para “viver”. Não no que somos, mas sim como vivemos/pensamos. Um escândalo em câmara lenta vai deixando de escandalizar, de forma lenta – existe mas torna-se dissolúvel. Já poucas ou nenhumas forças nos restam para lutar.

Não podemos viver de abstrações filosóficas ou doutrinárias.
Temos de transgredir, transformar o presente.
A vulneralidade não será uma experiência existencial?
Omite-se a verdade conscientemente.

Interrogação do poder fundador das palavras – crítica da linguagem (?) – ou palavras exaltadas.
A sociedade civil tem de ter capacidade intectual para resolver alguns dos vários problemas que se nos colocam neste “mundo” contemporâneo. Não podemos esperar por ordens superiores para organizar diferentemente as “nossas” vidas. Valores, normas, estratégias, ética, criatividade, lazer, solidariedade, para combater causas “imperiais”, ambiente, património, racismo, xenofobia, repressão consumo, autoritarismo, capitalismo, globalização, energia, destroços, remendos do dia a dia,…… ou seja tornar o ilimitado limitado – sem silêncios discretos. Temos de procurar uma maior dignidade para as nossas vida. Não nos podemos excluir da mudança. Temos de saber cruzar, intersectar a consciência global com a inquietação individual (procurar um mundo de recolhimento intelectual). A ignorância é a causa podre do desrespeito. Respeitar é conhecer. Até porque nunca é tarde para emendar, mas é preciso corrigir o rumo. Falta-nos a capacidade da incapacidade. Temos de saber governar o “nosso” poder. Não podemos usar o “nosso” poder para nos destruirmos – usemos a “nossa” Voz.

É o iludir da razão, desiludindo os pensamentos. Sem justificações.
As misérias vêm ter connosco. São as misérias que nos conhecem. O que estamos a viver e a forma como vivemos é um problema político, que exige respostas cívicas. É que não poucas vezes protegemos o atrevimento, a ignorância, o demérito, a incompetência, a deslealdade. Esta misteriosa continuidade entre aparição e dissolução, entre presença e indefinição. Fazemos escolhas por defeito. Desprezamos o pensamento. Improviso?

Mudados os tempos, de tolerantes e livres, os tempos de ontem, a inflexíveis e obstruídos, os tempos de hoje…mudados os tempos.

Temos de saber reinventar as nossas aspirações – “ com o optimismo de quem anseia alívio e sem a euforia de quem espera transformações”. Sociedade obediente, silenciosa e submersa como se nos estivessem a pagar a ociosidade e os privilégios (?). Sem modelo, nem definição.

O grande problema são as visões monolíticas da sociedade. Não existem contradições (pensamentos).
Hesita-se muito entre a teoria e a prática, ou por outras palavras, entre a acção e o pensamento, mas, ao não se saber gerar pensamento, não se estimula o debate de ideias. Procuram-se…

É preciso termos tolerância contra os dogmas e pragmatismo contra a utopia. Até porque não vamos incutir ao povo noções desajustadas da realidade.

Como alguém disse: “Utopia é pensar que podemos continuar como até aqui, quando tudo indica o colapso de uma civilização baseada na competição, na ganância, na opressão, na exploração e na violência contra o outro, seja o humano, o animal ou a Terra”.

Os pavões não dormem à noite e só gritam quando sentem o tigre…..

“A tempestade não suspendeu a viagem, mas ofereceu a oportunidade para descobrir o que significa estarmos no mesmo barco.”

Luís Vaz de Camões em , Canto IV

19 Ago 2020

O viver a existência das palavras

AS PALAVRAS

“São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
Leves.
Tecidas, são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta ? Quem
as recolhe, assim,
cruéis,desfeitas,
nas suas conchas puras ?”

Eugénio de Andrade (1923/ 2005), poeta.

 

[dropcap]A[/dropcap]o escrever, o que me interessa é estabelecer encontros e desencontros entre diversas realidades. Ou partindo do sentido da reconversão fazer da desorganização uma organização ordenada de palavras, ou fazendo das divergências convergências de encontro de pensamentos, ou da inacção em acção de ideias, ou tornar o invisível, visível da realidade. Uma reconstrução – a sobrevivência. Não gosto de trocar a realidade pelas sombras projectadas ou imagens desfocadas, uma realidade que se transmuta – -, ou uma aversão à ambiguidade.

Deixaram-nos na incumbência de interpretar a utilização manipuladora das palavras. Será que estamos a fazer o trabalho de casa? Não haverá uma subserviência ao politicamente correcto. O concreto não é irritante pelo que mostra, mas por aquilo que denuncia. Escrever é de alguma maneira subverter.

Faz-me lembrar a história da borboleta – símbolo da metamorfose. A borboleta transforma-se, mas é livre (não há muitos). Vive pouco tempo, mas aproveita-o como ninguém. Defeitos (?) Alguns. Virtudes (?) Muitas – “quem não se contradiz, não diz nada”, então por estas bandas… A quantas metamorfoses já assistimos em Macau? A um número infinitivamente grande.

Os portugueses são previsíveis e unânimes. Como se olha nos olhos de quem agiu ou age como se fosse dono? Existem muitas sombras no calcorrear da vida – subporções de ideias ou o obliterar da existência, porque perdemos a ressonância emocional.

“Temos a tendência para Ler o que confirma as nossas ideias” – é preciso um esforço maior e saber questionar, já que o tempo dilata-se e a expectativa instala-se, despejamos os destroços enferrujados da memória. As palavras têm o poder de se reflectir como espelhos. As imagens opostas (a realidade) têm leituras invertidas. Cada um de nós é um manual profusamente ilustrado, com páginas soltas, com destinos traçados não que aguardem uma desgraça – com um sentido épico – numa das curvas da vida. As viagens são feitas de reflexões e memórias. Temos de viver menos com exclamações e ilusões e com mais interrogações, sem convenções e preconceitos. Esperam-nos desafios e adversidades.

“A nossa capacidade de não ver as coisas é infinita. É que passamos a vida, por irresistível inclinação antropológica, a construir e a pintar mundos para nós mesmos” – na opinião do filósofo norte-americano, Nelson Goodman (1906 – 1998 ) – ,“a nossa indisciplina mental é perdulária”.

Vivemos num Mundo de contradições. Há uma certa fragilidade e efemeridade da vida, há uma certa obscuridade do pensamento, o que nos torna almas ansiosas que necessitam de respostas. Ninguém no-las vai dar. Teremos de as saber encontrar. Saberemos (?), o tempo urge. A esperança faz-nos depreciar o presente. A mudança, como sabemos, começa quando começamos a pensar nela.

Não nos podemos queixar, não tivemos uma disrupção inesperada, o que não temos de momento é capacidade de construir opostos – pontes -, pensamentos íntimos, é um malogro geracional, continuamos, enfim, uns prestáveis poetas…criamos fissuras para sobreviver, vivemos ainda de crenças, mas a um cidadão, nos tempos que correm, não lhe é permitida a ambiguidade, eu sei que nos conformamos desde que haja compensações. É o dilema da existência…

“Os azares das palavras são mais terríveis que os azares do tempo!”
Palavras – a sua influência depende de três coisas : “de quem as diz, da qualidade do que se diz e da frequência com que se diz” – as palavras. Segredos omitidos, palavras não ditas, saborear o saber da sabedoria, a insatisfação existêncial das palavras!

“ As palavras dançam nos olhos das pessoas conforme o palco dos olhos de cada um”
Almada Negreiros (1893-1970)

5 Ago 2020

O (des)equílibrio da existência

[dropcap]D[/dropcap]esvalorizamos valores – existimos –, há chantagem em vez de princípios, há vassalagem no lugar de dignidade e o mais preocupante é que o debate público está centrado “em pontos específicos, mais formais do que substanciais, mais conjunturais do que estruturais”. Continuamos sem uma estratégia, um esforço intelectual, um código de existência, ou seja, já não somos capazes de produzir sons de ruído. “Não há tempo para desesperar, o desespero é para os privilegiados”- segundo James Baldwin (1924 – 1987) – há uma obstrução do passado.

Problemas existem: políticos, sociais, económicos, jurídicos, culturais, laborais, mas nós longe das obsessões por quimeras “empoeiradas” e, sem vontade de um entendimento colectivo de aventura e compromisso, aprendemos a lição – recapitulação da matéria da lição anterior -, sentamo-nos como bons alunos, que sempre fomos, a aprender – de que se deve evitar encenações -, só o palco principal é para os actores.

Não se trocam argumentos, atiram-se farpas – fruto dos agasalhos das tertúlias, existe (?), do calor da discussão, ruído (?), dos injustiçados da razão, calúnias (?), das movimentações ocultas, pecado (?) opinião objectiva, idealismo (?), decisões concretas, emoção – “Não procuro esconder nada; o tempo vê, escuta e revela tudo”.

A reflexão íntima? As conversas nunca deveriam ser desperdiçadas. Onde estão aquelas “desfechadas” e duras falas? Devemos exercitar a emoção.

Carregamos paciência. Ultrapassamos facilmente escolhas, curiosidades, destinos, pesadelos, ímpetos, represálias, até à meta final, esperança. A esperança desobstrui os problemas.

É próprio das pessoas que entram na velhice contemplar a vida passada, com interesse, e olhar o futuro como uma “desforra” do interesse – é um balanço da “caixa” da vida, o débito e o crédito -, virtudes antigas, novas exigências.

A curiosidade da vida – mudanças, contradições, polémicas -, traz consigo vitórias e derrotas. A vivência é difícil e complexa, talvez não estejamos destinados a procurar, apenas a encontrar – possuímos uma qualidade abstracta.

O nosso atraso é mais cultural – existência sem destino -, do que material, somos almas dilaceradas pela dúvida, ouvimos as liturgias do poder (uma combinação perfeita entre sagrado e profano), condenámos mas não existimos -, vivemos num mundo de sombras e de ambiguidades. Ajoelhamo-nos ao poder. Temos voz nos bastidores.

Poderíamos ter aproveitado este hiato temporal, para arrumar o que esta(va) desarrumado, até porque o destino tem que ser uma ambição, não uma fatalidade. “Não conseguimos reconhecer uma derrota ou o mérito de uma vitória alheia”. Procuramos o estatuto de “Ter”, esquecemos o “Ser” e, à nascença, abandonamos o “Estar”. Muitas histórias, muitos acontecimentos, – fomos perdulários no bem comunitário (relação/confronto), mas mantivemos fidelidade à palavra – os “restos” do passado. Ouve uma paragem no tempo entre o antes e o depois – o chamado “passo em branco”.

Na continuidade da “Novidade (1999)”, aceitamos os “factos” com tremor e temor. Soubemos desconstruir o guião social. Fomos interlocutores entre saber e poder. O discurso oficial apostava na franqueza e excluía a intimidade – sem querer quebrar os laços. A palavra no tempo. É nobre, a desconfiança saudável. A memória, a cultura, o conhecimento. Existe – é um fardo pesado —, mentalmente o sentido físico do pesadelo. Porquê?

Não soubemos fazer convenientemente o “Luto” e isso deixa marcas futuras. Como sabem existem diversos estágios de um luto. Primeiro, a negação; depois, a raiva; a seguir, a resignação; e finalmente, a aceitação

Não nos deixaram ouro, incenso e mirra – levaram na bagagem -, deixaram-nos na “praia”, onde a terra acaba e o mar começa. Aboliram antes de partir o pensamento absoluto do debate e a diabolização do pensamento crítico, ganhámos uma pobreza desenganada, a ironia – foram as prendas, dos rostos ausentes. Existimos fruto da prudência…

Não há “reinos” de oposição, desamor, conflitos ou angústia.
Este texto é pura ficção, qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. Não esperem palmas – já não há público na plateia…

30 Jul 2020

O desconforto da vida

“Entre mim e a vida há um vidro ténue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu não lhe posso tocar”.
Fernando Pessoa (1888 – 1935)

 

[dropcap]A[/dropcap] vida das pessoas baralha narrativas fáceis, não são novelas, contos – viajar através da vida -, é um longo, sinuoso e árduo caminho. Não somos apenas fruto das nossas escolhas. Outros nela interferem de maneira abusiva, pelo prazer de mandar, desequilibrar, inquietar. Existem também sociedades que esvaziam o “cidadão” da sua capacidade de escolher, transformando-o num simples fantoche, marionete – subjugam-no. São governos malévolos.

Ao instinto que sonha, à razão que ordena, à inteligência que observa e compara, à justiça com alma, à ética com rosto, à curiosidade pela inocência do futuro, tudo se perde na ditadura da ilusão.

Uma vida com propósito, significado e prazer, é dar voz a mais e melhor política, lutar pela protecção ambiental – não por moda ou em abstracto -, defender o património cultural – material e imaterial -, “enfrentar uma política educativa vocacionada para fomentar o facilitismo e a ignorância”. Devemos exigir um ensino que contribua para formar indivíduos cultos, interessados e activos – seres pensantes – Homens Livres. Já nem falo de Saúde (falta poder de decisão), nem de Habitação (é preciso articular ferramentas). Há “massa”…

Há uma máxima de Tolstói, que se aplica a Macau, que nem uma luva e, passo a citar: “há quem passe pelo bosque e apenas veja a lenha para a fogueira”.

São intrigantes, complexas, vadias, esdrúxulas certas crónicas de vida – engolir em silêncio, sofrer vinganças sobre ideias, assédio moral, crimes sexuais, enclausurar a ambição, a tortura que atordoa a velhice – os direitos do cidadão não podem depender de uma capacidade tecnológica – , a dor dos catequistas do regime – queixam-se –, mostram um ar deprimido, violência doméstica, viver a utilidade do inútil, o vejetar no mundo subversivo social.

Os caminhos a seguir são sempre um dilema. O desconforto, o imprevisível da vida.

A grande crise que se vive hoje em dia é uma crise de valores e comportamentos individuais e de vida em sociedade. Não “é a economia, estúpido!”. Existe défice de cultura, educação, ciência, civismo – há uma grande histeria de ignorância e estupidez.

Não se ouvem ruídos, mas silêncios, precisamos de uma vida que decline os silêncios. Temos de reavaliar a base espiritual da sobrevivência… Pode-se comprar o coração do povo, mas, espero, nunca se comprará a inteligência da sociedade. Apesar desta permanecer incapaz de perguntar, descobrir, exigir.
(Isto são apontamentos dos meus cadernos de tendências, tento reconstruir o pensar, delinear, perscrutar o horizonte – a luz crepuscular da vida –, cheio de omissões e contradições da minha longa caminhada existencial. Permanecer ou atravessar?)

Valerá ainda a pena construir espaços (lugar) e tempos ? Não, denotamos já uma expressão de cansaço existencial (um desenraizamento da identidade), é preferível guardar o “silêncio da memória do que o ruído da celebração”. A vida flui – Macau será a morgue onde jazem as ilusões!

Lembram-se da história da Fada Oriana, da Sophia? Castigada. Perdeu as asas e a varinha de condão. Só ao tentar salvar uma velha que estava a cair do abismo, mesmo sem asas e varinha, saltou do abismo e agarrou a velha pelos pés. Aí, apareceu a fada rainha que lhe devolveu as asas e a varinha de condão. Perceberam ?
É esta a história…

23 Jul 2020

“Macau Património Mundial da Humanidade” – 15º Aniversário

O CENTRO HISTÓRICO DE MACAU foi inscrito
na lista do Património Mundial,
na 29a Sessão do Comité, em 15 de JULHO de 2005.

 

[dropcap]E[/dropcap]m 1513, os portugueses chegaram à China, à ilha de Tamão – “a ilha de veniaga” (que significa , ), situada no delta do Rio das Pérolas, numa frota comandada por Jorge Álvares.

A 17 de Junho de 1517, partiu de Malaca, rumo à China, a primeira embaixada portuguesa à corte de Pequim, numa armada comandada por Fernão Peres de Andrade, levando a bordo, como embaixador, Tomé Pires.

Esta embaixada tinha como objectivo oficializar e aprofundar os contactos com a China.
Apesar de algumas desavenças, conflitos, fricções e mal entendidos – como o édito imperial de 1522, que ordenava o encerramento do porto de Cantão à navegação de estrangeiros, com a consequente suspensão do comércio marítimo, a qual trouxe sérias dificuldades financeiras ao governo da província, que foi de mal a pior, os portugueses estabeleceram-se em Macau em 1553, fruto do estreitamento das relações comerciais sino-portuguesas e do reconhecimento dos serviços prestados – a armada lusa conseguiu acabar com os piratas e os rebeldes dos mares do sul da China.

As viagens transoceânicas entre o Ocidente e o Oriente são o primeiro passo da globalização – o que levou o historiador português Luís Filipe Barreto a escrever – “Entre os séculos XV e XVII começa a nascer toda uma estrutura de vida à escada mundial. Nascem os primeiros elementos de um comércio mundial com implicações na restante economia, bem como os primeiros traços de uma cultura mundial que troca, entre o Ocidente e o Oriente, o Norte e o Sul, ideias e livros, mas também alimentos e costumes”. Para Malyu Newitt, Professor Emérito no King’s College de Londres, Portugal foi “o primeiro Estado de dimensão mundial”.

O estabelecimento permanente e duradouro em Ou Mun (A Porta da Baía), fruto do diálogo e compreensão entre pares, abriu um novo período nas relações luso-chinesas. A cidade começa por se equacionar, desenhar, construir, numa pequena colina em dois espaços urbanos que se estruturam em Macau: a cidade chinesa, ou bazar, e a cidade cristã, ou europeia.

“De início, fizeram apenas umas dezenas de cabanas de palha, mas passado algum tempo, à medida que os artífices e comerciantes que procuravam lucros fáceis transportavam para lá tijolos, telhas, madeiras e pedras, construíram casas e tomou forma de uma povoação que atraía muitos navios para aí ancorarem, tudo à custa de outros ancoradouros que caíam em desuso” – segundo Guo Fei, em Crónica Geral de Guangdong.

Em 1563, Macau atingia já uma dimensão considerável, cerca de 900 pessoas, excluindo crianças, a par de vários milhares de malaquenhos, indianos e africanos. A primeira igreja, dedicada a St. António, data de 1558 e a primeira escola, fundada pelos Jesuítas, data de 1572.

Num clima de cooperação e bom entendimento, com um povo empenhado e empreendedor, a cidade cresce e Macau torna-se a placa giratória das rotas marítimas que ligavam a Índia, o arquipélago malaio, a China e o Japão – Macau ponto de encontro, cidade de abrigo.

Em 1654, D.João IV atribuí-lhe o título de Cidade do Santo Nome de Deus de Macau.
Resultado do diálogo e intercâmbio cultural entre o Ocidente e o Oriente, Macau conseguiu construir uma simbiose única multicultural, um testemunho vivo da assimilação e da coexistência das culturas orientais e ocidentais – foi essa vivência, tolerância e entendimento que fizeram “O Centro Histórico de Macau” membro da Lista do Património Mundial da UNESCO. Falar de Património não é discorrer sobre um tempo fechado ou um acervo do passado, é uma memória presente, que deve salvaguardar o futuro.

Templos, fortalezas, igrejas, casas… para os residentes mais distraídos e que ainda não conseguem recitar de cor os trinta lugares eleitos da nossa cidade, nunca é demais relembrar: Casa do Mandarim, Casa de Lou Kau, Casa Garden, Edifício do Leal Senado, Santa Casa da Misericórdia, Ruínas de S.Paulo, Igreja de Santo António, Igreja de S. Domingos, Igreja de Santo Agostinho, Igreja e Seminário de S. José, Igreja de S. Lourenço, Igreja da Sé, Fortaleza do Monte, Fortaleza da Guia, Templo de Na Tcha, Templo de A-Má, Templo de Sam Kai Vui Kun, Quartel dos Mouros, Cemitério Protestante, Antigas Muralhas de Defesa, Teatro D. Pedro V, Biblioteca Sir Robert Ho Tung, Largo de St. Agostinho, Largo da Companhia de Jesus, Largo de S. Domingos, Largo da Sé, Largo da Barra, Largo do Senado, Largo do Lilau e, por último, mas não menos importante, a Praça de Luís de Camões, o local de homenagem e de romagem ao tão amado poeta, constituem o , inscrito na lista do Património Mundial, na 29a Sessão do Comité, em 15 de Julho de 2005, há precisamente 15 anos.

A zona classificada como património desenvolve-se ao longo de um itinerário que começa no extremo sudoeste da península, no Templo de A-Má, percorrendo uma parte da cidade, em direcção a nordeste, até chegar à Casa Garden e ao Cemitério Protestante. O único monumento fora desse itinerário é constituído pela Fortaleza da Guia, com um dos ex-libris da cidade, o Farol da Guia, ladeado pela sua Capela – num total de 30 monumentos/locais.

A malha urbana classificada alberga uma história, humana e social – é um grande artefacto cultural da humanidade -, são cinco séculos de um conteúdo colectivo de diálogo.

O Centro Histórico de Macau foi designado como o 31º sítio do Património Mundial da China – tornando-se o Celeste Império o terceiro país com maior número de Sítios de Património Mundial inscritos no mundo, logo após a Itália e a Espanha e antecedendo a França.

Segundo a Carta de Nara, aprovada nesta cidade japonesa em 1994, a classificação de um monumento a Património Mundial da UNESCO tem por base dois parâmetros fundamentais: a autenticidade e a integridade. Penso que em Macau nos temos esquecido destes pormenores.

A história económica, bem caracterizada, condicionou a evolução urbana e arquitectónica da cidade. Numa primeira fase, as sedas e os produtos cerâmicos, o tráfico do ópio, os cules e o ouro numa fase posterior e, finalmente, o jogo. Este, apesar de ter trazido algum desenvolvimento económico e bem-estar à população, tem descaracterizado a vida e alguns valores e ferido a geografia sentimental de Macau.

Em finais do século XVI, o comércio prospera, a população aumenta. Fixam-se alguns elementos da nobreza ultramarina portuguesa, intensifica-se a instalação de missionários e padres e a radicação de pescadores chineses. Era uma cidade de ruas tortuosas, sem um planeamento e ordenamento prévio e uma estrutura consolidada, já com alguns núcleos populacionais bem definidos.

Sem adoptar qualquer modelo de raiz europeia ou chinesa, é este diálogo existencial que leva Austin Coats, no seu livro A Macao Narrative a escrever “só em Macau se experimenta a extraordinária sensação de estar num momento no tempo Ling Fong e dez minutos depois no Teatro D. Pedro V, cada qual constituindo enfática expressão de civilizações díspares, sem contudo produzirem qualquer choque cultural”. A cidade cresceu, aparentemente desorganizada, sem uma estrutura orgânica, fruto do pragmatismo da dinâmica comercial.

Durante o século XVII, surge a arquitectura civil europeia, sobretudo de tradição portuguesa, resultado das experiências bem sucedidas na Índia e Malaca, e alguns imponentes edifícios públicos – Misericórdia, Leal Senado, Hospital de S.Rafael, a par do desenvolvimento de uma arquitectura de tradição chinesa, sobretudo em novos projectos habitacionais. É nesta época que se constrói o novo Templo Kun Yam Tong e se renova o Templo de Ma Kok Miu, na Barra.

No século XVIII, a fisionomia de Macau alterou-se significativamente do ponto de vista político, social, urbano e populacional. A abertura do porto de Cantão aos estrangeiros levou à fixação de várias companhias europeias na cidade. Instala-se em Macau uma alfândega chinesa, para controlar o acesso ao estuário do Rio das Pérolas e cobrar impostos. É um século de abertura a novos conceitos arquitectónicos, construções de uma certa monumentalidade, erguem-se de uma nobreza – ocidental e oriental – endinheirada. Rasgam-se novas estradas e planeiam-se novos arruamentos. Constroem-se os Templos de Kuan Tai Ku e Lin K’Ai.

A cidade expande-se para fora dos limites habituais da sua geografia inicial, criam-se aterros e, finalmente, pensa-se, programa-se e criam-se novos modelos regulares de ordenamento. Macau ganha uma nova configuração com novos edifícios, residências, teatro e igrejas.

No princípio do século XX, Macau tinha já uma população de cerca de 66 mil habitantes e foi no último século também, que a cidade deu um grande salto quantitativo, não tanto qualitativo, em consequência não só da comercialização do ouro, mas sobretudo devido ao primeiro contrato de concessão do jogo.

Criou-se uma rede viária e um plano urbanístico. Melhoraram-se as infra-estruturas e as estruturas portuárias e aéreas, remodelaram-se alguns edifícios públicos, militares e igrejas e definiram-se algumas regras de gestão municipal. A cidade ganha uma nova fisionomia – estende-se, alarga-se, respira (?).

As alterações lavradas nos últimos anos no tecido económico e social do Território – Macau foi entregue sem um suspiro, sem um sobressalto, sem um remorso, nas mãos do deus jogo (depois da liberalização do jogo, o sofrimento) – foram bruscas, impensadas e nefastas.

Para alguns agentes económicos, o Património é ainda um obstáculo ao desenvolvimento e modernização do Território, quando na verdade é um dinâmico agente de progresso, um espaço de reflexão e preparação e, sobretudo, uma plataforma da identidade colectiva.

Três exemplos concretos que o património de Macau está ao abandono. – não há visão, não há estratégia -, o Convento da Ilha Verde está decadente – já houve projectos, já houve intenções -, abandonaram-nos, é triste. Deixar construir prédios com 90 metros de altura nas fraldas da Colina da Guia é um atentado. Em 2008, quando construíram o Gabinete de Ligação do Governo Popular Central na RAEM, com 88 metros, já foi mau, deixarem construir ao seu lado esquerdo um prédio de habitação privado, com 90 metros, foi um erro crasso – alguém será julgado por essas atrocidades e atentado ao património público? E o desenho, em ‘socalcos’ da torre mais alta, deixa imaginar que foi intencionado, para poder ser facilmente ‘fatiado’, se necessário fosse, mas a exígua queixa tarde chegou… Repetir o erro é gravíssimo. A arquitectura deve trazer soluções, não interrogações, deve conciliar, dialogar com o que já cá está, e bem, com a Natureza, com a população. Aqueles monstros- não têm outro nome – ali na Avenida do Dr. Rodrigo Rodrigues, ficarão para sempre cravados na alma da população, como tumores de um passado inconsciente, a subordinação de poderes económicos ao bem colectivo. E a esperança morre, ao ter sido, há bem pouco tempo, divulgada a autorização para a eclosão de mais outro mesmo ao lado, ficando a vista para o primeiro farol do Oriente barrada, quedando-se como um pouco estimado bibelot. Quem se preocupou com o habitat natural daquelas encostas, antes sobranceiras ao mar, da florestação exótica que restava da antiga praia do mangal, e que dava abrigo a dezenas de espécies de aves, aos esquilos? Tudo esventrado! Ou a ideia será, afinal, desbravar tudo o que é autóctone e natural, que ali vive imperturbável há décadas, e, eis senão quando, enviesando as leis, deixar construir arranha-céus a quem esteve longo tempo, sabe-se lá, à espera de melhores dias (?), e depois, a modo de conclusão (in)feliz, fazer um asséptico cimentado corredor enfeitado com plantas de estufa trocadas regularmente, para o bem e desfrute da população, claro!? Onde estão os jovens defensores de tantos ideais, que registam orgulhosos e reclamam subsídios para mais e mais associações com nomes que berram promessas? Onde estão as pessoas que gostam e conhecem verdadeiramente a sua cidade?

Um outro caso – poderia dar mais alguns exemplos, já percebi que não há grande poder de encaixe, as pessoas são fúteis no pensar e estão mais atentas ao que se lhes murmura no telemóvel do que ao que os seus olhos deveriam ver e acontece, inexoravelmente, à sua volta -, na esquina da Rua 5 de Outubro com a Travessa dos Faitiões, existem duas casas seculares com uma torre prestamista, não conhecem, não se faz nada pela sua preservação – a ignorância é pura e dura – nessa rua há mais património, conhecem (?), quais são as verdadeiras intenções (?) Abandono… é o mais simples. Preservar não é, definitivamente, um verbo na ordem do dia.

Macau é uma cidade de contrastes, de confluências, de diálogo, de coexistência, cidade de cor, luz, movimento, de odores, sabores, sons, um bem plural, inscrito na lista do Património Mundial da Unesco.

O Património Cultural é um elemento base da identidade – aos jovens uma palavra de incentivo e mobilização – vamos todos preservar de forma construtiva, activa e consciente. É preciso educar os olhos e os afectos. Envolver os mais novos na sua cidade, nas decisões, cativá-los para a beleza, fazê-los pensar e contar-lhes a História.

Macau, per capita, a cidade mais rica do Mundo, dizem! Inaudito! Somos ricos em quê? Absoluta incongruência. Que testemunho visível e invisível deixamos aos nossos e aos que nos procuram e de quem tão dependentes estamos?

O futuro é um longo e sinuoso caminho feito de muitos anos…

15 Jul 2020

Solilóquio mudo

Sim, na minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite
Clarice Lispector (1920 – 1977)

 

[dropcap]H[/dropcap]á uma melancolia guardada nos olhos da população. Incomoda-me ver as pessoas de olhos baixos –excluídas da vida. Sou um leitor de olhares. Ensinou-me uma voz amiga. Não há estímulos, sensações, não se vive, estamos soterrados. Há um grande desassossego.

Não falam deles – trocam palavras, não ideias – falam do Outro. Falam das desilusões do Outro, das obsessões do Outro, dos seus pensamentos, dos seus erros. Não é o seu conhecimento que eleva a sua opinião, é a sua ignorância. Não sabem gerar pensamento ou estimular o debate de ideias. Não são eles é o Outro. E quem é o Outro? É conciliador e dialogante, mas falta-lhe decisão, determinação e coragem – não se rende e nunca desiste.

“O Homem não é mais do que a série dos seus actos” – como afirmava o filósofo alemão Georg Hegel (1770 – 1831). A Arte de desconversar é mesmo um fim em si – é uma arte! Criticam por o burro ir ligeiro e eles a pé.
Surpreendem-me através da ocultação de conversas, ligadas ao imaginário do Outro, produzindo um jogo de tensão e reflexão entre o visível e o invisível. Mas todas essas conversas combinam uma boa dose de paixão, amor e obsessão. Existe o medo de dizer uma mentira, não a verdade. Não há inocência nas conversas, há sobrevivência. Vivemos de apontamentos.

Bisbilhotice e má língua criticam uns, outros falam em difamação e vingança. E, em lugar da distância, descobrimos a proximidade. Aceitam a plácida contrariedade e a crença nas virtudes da modéstia. São almas dedicadas a ser governadas pela vida alheia. A crise que vivemos não explica tudo. Explica as falhas humanas, as ambições, todas as assimetrias, comportamentos, maldades, erros. Faltou capacidade para prevenir e remediar – não remendar -a crise. Os governos mundiais, fora raras excepções, são metáforas da crise.

Gosto desta gente, queixa-se tão pouco, mas há gritos nas trevas – a rua quando espreita assusta, o medo e a solidão, começaram a fazer parte do nosso alfabeto, os dias ganham cor, ainda guardamos memórias de luz e sombra. Há um crítico(ar) da erosão, um simples percalço não um fim.

Sobre a solidão, “não é estar só é o estar vazio”. Há um texto lindíssimo de Rainer Maria Rilke (1875 – 1926) que diz o seguinte: “Devemos permanecer silenciosos e solitários e pacientes para acolher em nós a graça de uma hora que a muitos não chega a revelar-se, porque neles há demasiado rumor e uma escassa ordem.

Tudo depende afinal, de aprender a ligar-se àquilo que é grande, àquilo que vivemos apenas no coração e que nada pode turbar. Se nestes momentos de grande recolhimento e elevação compreendemos que a vida está naquilo que, palpitante e solene, se move em nós e nos deslumbra com lágrimas que brotam do profundo mais luminoso, então a modesta confusão que nos circunda ainda, o ordinário e o turbulento que corre não poderão já fazer-nos desanimar”.

O destino pode ser rumo, mas também fado – palavras obedientes -, não gostamos de coisas que nos fazem sofrer, precisamos de nos perder para nos encontrar. Vivemos muito à superfície, precisamos de uma vida que decline o medo, o silêncio – como dizia o poeta Cristovam Pavia “só há uma saída pelo fundo”.

9 Jul 2020

A ditadura dos números

[dropcap]N[/dropcap]úmeros, percentagens, estatísticas – “usa-se a estatística como um bêbado usa os postos de iluminação – mais para se agarrar do que para ter luz”, na opinião de Andrew Lang (1844 – 1912)”.

A mim quando me querem enganar apresentam-me estatísticas, percentagens, números. Valores, preços, índices, inflação, queda, compra, venda, dívida, mercados, cifras, bolsa, Pib, é a linguagem corriqueira do dia a dia – usa-se e deita-se fora – é descartável.

Mas o que não me dão a conhecer são os números das empresas públicas, os números de quanto recebem – institutos, associações, academias, organizações… -, os que realmente me interessam, assim já não seria tão facilmente manipulado/enganado. Todos aqueles que recebem dinheiro do Governo/Fundação Macau deveriam ser obrigados a publicar anualmente o seu relatório de contas – transparência.

O enquadramento económico em que vivemos valoriza mais os números que as palavras. Tudo o que desejamos e conhecemos é mediado ou condicionado pelo dinheiro – é o quotidiano da economia/gestão.

Deixámo-nos guetizar demasiado pelos números – existem mas não são nossos Amigos. Os números serão servos, não os senhores, num futuro não muito distante. É o caminho da História. Eu sei, escusam de me lembrar, quando se dão os primeiros passos na escola, começa-se pelos números, vindo depois a leitura, mas isso é uma degeneração da escola.

Depois, existe o discurso económino dominante, que “arranjou uma novilíngua orwelliana recheada de anglicismos que afastam o cidadão do contéudo do discurso – yields, credit default swaps, hedge, bonds, etc.” – o que numa sociedade de grande iliteracia económica, mantém-nos ignorantes, aterrorizados, eu diria que, ameaçados. É um tsunami.

Nesta sociedade de soberba e de números, o futuro será violento. Um capitalismo abstracto e devorador (existe o pecado da gula). O mundo tem de girar em sentido contrário – 1% da polulação detém a riqueza mundial. Mas o filme que se segue é de terror.

A poluição vai aumentar de maneira desenfreada – as metas do Protocolo de Paris esqueçam – , vai-se procurar recuperar de maneira inconsciente o tempo perdido, nada será programado, nada será estudado. A mudança devia ser feita de forma gradual, global e planeada. Nenhum país, nenhum governo, tomará medidas estruturantes da sociedade (e eram fáceis ) – será o cada um por si e salve-se quem puder- será um caos. Já era, agora será pior, o mundo vai assentar só no pressuposto dos valores económicos e na procura incessante pelo lucro, vão – sem dó nem piedade -, substituir os valores humanistas – pelo poder da irracionalidade. Hoje, na dúdiva entre vida e dinheiro, sobrepõe-se o dinheiro. Não há objectivos públicos, há sim interesses económicos.

O Mundo passou a ser matéria-prima – é desolador.
A selva já era grande – em Macau então, não há palavras -, ter ou manter um trabalho vai ter um grande custo – frustação, ansiedade, irracionalidade, perseguição, solidão -, já que o trabalho não respeita, nem nunca mais respeitará a fragilidade da vida. É como diz a doutrina social da Igreja, “o trabalho é para o homem e não o homem (apenas) para o trabalho” – uma das medidas estruturantes da sociedade passaria por corrigir, emendar, aliviar, algumas medidas das actuais normas de trabalho – algumas normas actuais, ainda são reguladas como se estivéssemos nos princípios do séc. XVIII – e, lembrem-se das palavras de Michel Foucault, quando ele se referia ao século citado: “A vida não existe. Existem apenas seres vivos”, os “senhores mandam, os súbditos obedecem”.

O que agora nos aconteceu – pandemia – é apenas uma pequena parte do assustador mundo que temos pela frente. As quatro grandes ameaças do século XXI – segundo Stephen Hawking (1942 – 2018), “por ordem de importância: a inteligência artificial, uma guerra nuclear, as alterações climáticas e a questão demográfica”. É altura de todas as Nações do mundo se unirem em objectivos comuns.

O Mundo requer um novo olhar, um “misto de pragmatismo, flexibilidade e solidariedade”. Há deveres, não há direitos – a desumanização da vida!

“Escrever é também não falar. É calar-se. É gritar sem ruído”
Marguerite Duras (1914 – 1996)

2 Jul 2020

São João Baptista

“Depois desta batalha, os vitoriosos portugueses foram dar graças à Sé Catedral, prometendo o Senado e o povo idêntica comemoração na véspera da festa de S. João Baptista…” Instituído desde 1622 (até 1999), o dia 24 de Junho, data do nascimento de São João Baptista e data que celebra o milagre da vitória sobre os “Calvinistas da Holanda”, passa a ser comemorado como o “Dia da Cidade do Nome de Deus na China”.

Vitória que obrigou o Senado “por voto, a celebrar todos os anos a sua festa, segundo se lia numa antiga tabuleta que se encontrava na Câmara” – escreve Monsenhor Manuel Teixeira, referindo-se à sede do actual Instituto para os Assuntos Municipais, antigo Leal Senado, ainda apoltronado no emblemático edifício classificado património mundial.

A denominação de Macau como “Cidade”, em vez de “povoação”, é-lhe atribuída a partir de 1583. Acontecimento confirmado a 10 de Junho de 1586, por intermédio de D. Duarte de Meneses, Vice-rei da Índia e rectificado por D. João IV em 1643.

Com Portugal subjugado ao poder da Dinastia Filipina (1580 – 1640), Macau sofreu um rude golpe, não só com os vexames castelhanos de Manila – apesar de a bandeira dos leões de Castela nunca ter chegado a ser içada em Macau (Não Houve Outra Mais Leal), mas também, com as repetidas tentativas dos holandeses de se apoderarem da Cidade. Estes, inimigos de Castela e invejosos do nosso florescente comércio com a China e com o Japão, tentam, através da Companhia Holandesa das Índias Orientais, interceptar as redes comerciais portuguesas asiáticas e o seu porto de abrigo – Macau.

A frente da Guerra Luso- Holandesa (1595 – 1663), não vivia só de confrontos na Ásia (Índia, Malaca, Bornéu, Ceilão, Batávia…) com a Companhia Holandesa das índias Orientais, mas também com as Companhias Ocidentais, por causa dos escravos de África e sobretuto do açúcar do Brasil.

Macau à época, nas palavras de Jaime Cortesão, era, na sua origem, uma cidade de “fundação urbana puramente democrática, o que aproxima Macau sob este aspecto dos grandes burgos medievais (…). A cidade … deveu a sua rápida prosperidade à posição magnífica que ocupava cerca de Cantão, e a meio caminho entre o arquipélago malaio e japonês. Fundada por mercadores portuguêses, práticos já no comércio da China (…). Uniu-os desde o princípio a comunidade dos interesses comerciais; e a mesma avançada civilização do país, onde a cidade encravara, os auxiliou a manter no burgo uma tonalidade mais elevada que nas restantes cidades portuguesas da Ásia”.

Cidade burguesa, livre, cosmopolita – terra de comércio -, segundo Charles Boxer, “havia então uma bateria no ponto onde hoje existe o forte de Santiago da Barra, outra em S. Francisco e uma terceira em Bomparto. A cidadela de São Paulo do Monte, principiada em 1616, ainda não estava concluída de todo, embora devesse estar bastante adiantada; a ermida de Nossa Senhora da Guia estava ainda por fortificar, e não havia quaisquer outras obras de defesa”.

O primeiro sinal de um eminente ataque é dado quando “Chegaram a esta barra de Macao quando menos se esperava, a vinte e nove de Maio, quatro naos, duas Olandesas e duas inglesas”.

Uma ideia já antiga. A primeira tentativa remonta a 1601, a 3 de Outubro, quando os navios holandeses, o Amsterdam e o Gouda, sob o comando do almirante J. van Neck, tinham surgido à vista de Macau. Facilmente dominados, alguns homens viriam a ser presos e executados. Não contentes com o seu destino, os holandeses repetiram a sua sorte em 1607 e 1621.

Pouco fortalecida e nada fortificada, a Cidade, na opinião do governador geral das Índias Orientais, Jean Pieterzoom Coen – numa carta mandada aos seus superiores, diz que “Macau foi sempre uma praça aberta sem guarnição que, embora dispondo de algumas munições e de ligeiros entrincheiramentos, facilmente poderia ser tomada por uma força de 1000 a 1500 homens e convertida numa praça que poderíamos defender contra o mundo inteiro”.

É aqui que entra no palco das operações um nome que convém desde logo fixar, Lopo Sarmento de Carvalho. Foi ele que, desde logo, pressentiu, talvez devido ao seu ofício de Capitão, que algo de anormal, de estranho, se passava e que tomou, quanto antes, as devidas precauções na defesa da Cidade – “não dormia, como prudente, e entendendo os enganos de inimigo, ajuntou toda a gente que na terra havia, ordenando-a em companhias, fortificou os logares que lhe pareceram mais fracos, por onde poderiam os inimigos entrar, pondo capitães, e dividindo a gente o melhor que pode”. Previu que “Cacilhas que era uma praiazinha distante da cidade um quarto de legoa, que ficava detras de dois montes, poderia servir de facil entrada aos inimigos, que ganhando a praia e os montes, ficariam fazendo damno á cidade, pretendeu cercala com uma tranqueira forte mas, pela contradição que houve da parte da cidade …” – , o que se veio a verificar.

Apesar de ser época de tufões (Junho), a maioria da população portuguesa andava no mar alto, o ofício de comerciante assim o exigia. Era o período do ano das compras da seda crua em Cantão e da grande viagem anual ao Japão. A cidade estava desprotegida, restavam poucos ou nenhuns para combater, mas por poucos que fossem, eram contudo “homens briosos e aptos para a guerra”. Na missiva acima citada, de Jean Coen, este refere que “Ao presente há em Macau uns 700 a 800 portugueses e mestiços e cerca de 10.000 chineses”.

A vitória, conforme afirmou Manuel Teixeira, deveu-se à “coesão dos seus habitantes, cujos interesses particulares eram os interesses da cidade. Quem tocasse nesta terra, tocava neles próprios; quem a atacasse, feria-os na própria carne, no sangue e na vida”.

Montalto de Jesus, no seu “Macau Histórico”, diz que havia apenas 80 europeus capazes de pegar em armas, o que é manifestamente pouco!

A esquadra holandesa que veio atacar Macau – 24 de Junho de 1622 – sob o comando do almirante Cornelius Reijersen, compunha-se de 15 navios – 13 holandeses e 2 ingleses (os números aqui divergem muito, estes parecem ser os mais fidedignos) – Zierikzee, Groeningen, Delft, Gallias, Engelsche Beer, Enchuysen, Pallicatta, Haan, Tiger, Victoria, Santa Cruz, Troom e Hoop (holandeses) e Palsgrave e Bull (ingleses). As forças de desembarque contavam com 600 homens europeus e outros 200 homens entre índios, malaios e japoneses (Charles Boxer fala em 1024 homens). Os ingleses recusaram-se a combater. A vitória dos holandeses parecia assegurada, tal era a despropoção de forças em combate. Os holandeses não estavam com pretensões de dividir o saque.

Para desviar as atenções, já a 23 de Junho três navios holandeses – Groeningen, Gallias e Engelsche Beer, bombardeiam o Forte de S. Francisco – “desde as duas athe ás seis horas da noite”, que se lhes respondeu no mesmo tom – “Eram os estrondos tão grandes, que pareciam medonhos trovões, e os pelouros vinham tão furiosos, que pareciam ligeiros coriscos, e em tanta quantidade que parecia um grande e grosso chuveiro”.

Na manhã do dia 24, os dois primeiros navios continuavam a bombardear. Gallias é fortemente atingido, vindo a afundar a 1 de Agosto.

O desembarque dá-se na praia de Cacilhas – duas horas depois do nascer do Sol.

Foram “os corações resolutos e braços esforçados dos seus moradores”, sobre o comando de António Rodrigues Cavalinho, que entricheirados num banco de areia da praia, receberam a tiro de mosquete o exército holandês. Apesar de entre os feridos do inimigo se contar o próprio almirante Reijersen, estes não cedem, tendo os portugueses dificuldade em conter a fúria holandesa. Em inferioridade numérica, a ordem é de retirada – “pela campina que corre ao pé da serra da Nossa Senhora da Guia”, sempre que possível ripostando.

É o Pe. Jerónimo Rho – italiano e grande matemático da congregação dos padres Jesuítas da Fortaleza de S. Paulo, que das três bombardas daí lançadas, (teria sido a sua, segundo reza a história), acerta num barril de pólvora mesmo no meio do exército holandês, o que terá desorientado e amedrontado as hostes inimigas.

Entram em pânico. Atemorizados, hesitantes – estavam estacioados na Fontinha – , planeavam alcançar pelo lado oriental o cimo do monte do “Charil”, (Monte da Guia). Lopo de Sarmento, ajudado pelo capitão João Soares Vivas, apercebeu-se das intenções dos holandeses e então, juntos, tomaram a dianteira pelo lado ocidental, incentivaram os seus homens, “com tão grande alarido e gritos de valorosos Portuguezes que foram bastantes intocentos mosqueteiros para os deterem”.

A coragem, ousadia e valor de uns – “união de almas e de corações, … coesão de espíritos” – , a mágoa, desolação e vergonha de outros – a batalha perdida, a humilhação, a fuga.

Os chineses alegraram-se com a vitória – “As autoridades de Cantão mandaram como presente de parábens uma grande provisão de arroz à cidade. Com sua licença, foi Macau bem fortificada”.

O verdadeiro herói do milagre da vitória sobre os holandeses – no dia de S. João Baptista de 1622 – foi, além da sua população, naturalmente, o Capitão-mor das viagens do Japão, o transmontano Lopo Sarmento de Carvalho – pelo seu conhecimento, visão estratégia e destemida bravura.

Com a reaquisição da independência nacional, em 1640, pondo fim aos 60 anos da Dinastia Filipina, com a aclamação de D. João IV como rei de Portugal, Lopo Sarmento de Carvalho pediu licença para regressar ao reino, “alegando os seus serviços nas partes da Índia por mais de trinta e seis anos”.

O pedido foi analisado em Janeiro de 1641, aludindo os conselheiros do rei os seus “grandes e assinalados serviços prestados em ocasiões de mayor importancia”. O despacho só viria a verificar-se em 1644. Reza assim:

“Por rezolução de S. Mg. de 14 de dez. De 1643
El Rey nosso Sr. hauendo respeito ao que se lhe reprezentou por parte de Lopo Sarmento de Carvalho fidalgo de Macao do nome de Ds da china e os seus bons serviços que naquellas p.tes lhe feito, por espasso de mais de trinta e seis annos; Ha por bem de lhe fazer merce de lhe conceder licença que se possa vir para este Reino com a sua caza e familia, E que possa trazer consigo seu sogro, E que vindo pella via de Goa, lhe de o Vizo Rey o fauor e ajuda q lhe pedir para a comodidade e passagem de sua pessoa e familia, E que se lhe passem p. isso os despachos necess.s. Lx a 4 de Jan. de 1644”.

O Boletim Oficial de Macau n.º 30, de 27 – VI – 1863 – sensivelmente duzentos anos após a mais gloriosa vitória contra os holandeses, descrevia assim a festa desse ano: “Na tarde pelo Senado a Procissão de voto popular, do milagroso S. João Baptista, testemunho dado a Deus, pelo milagre deste dia há dois séculos a esta parte, na vitória brilhante, heroísmo de armas e dedicação ao rei de Portugal que esta Cidade soube ganhar e, que é uma das mais ricas páginas da sua história”.

Temos um Santo Padroeiro – é outra especificidade da – , mas não existe um lugar de culto que lhe tenha sido especialmente erigido. Apesar de ser uma data já raramente difundida, o que a torna pouco ou nada conhecida, é uma efeméride que a todos pertence.

Na segunda metade dos anos oitenta, o arraial em honra de S. João Baptista realizava-se na recentemente já meio ‘assassinada’ mata de casuarinas (não fossem elas chamadas ‘árvores da tristeza’…) de Hác Sá, em Coloane. Era uma festa organizada pela Associação dos Aposentados e Reformados da Polícia de Segurança Pública, sob as ordens do Comante Dias. Uma festa do povo e para o povo – vadia, de rua. O tempo nem sempre ajudou, mas a essência e o conteúdo marcavam sempre presença. Alegria, boa disposição, animação, comes e bebes à farta – penso que foi aqui que Madeira de Carvalho bebeu um pouco de inspiração para a realização da Festa da Lusofonia.

Nos anos 90 – com a chegada do último governador de Macau -, institucionalizaram-se, nas arcadas do Fórum, as festas em honra dos Santos Populares. Da virtude passou-se ao pecado. Os arraiais eram abertos, mas o lustro, o pó de arroz, o rímel, o batom e a música – nem sempre eram adequados à efeméride. Sérgio Godinho, Janita Salomé, entre outros -, passaram por lá, animados, claro, por essa feira das vaidades. Foi perdendo adeptos, desapareceu.

Houve uns anos de recolhimento, talvez devido ao politicamente correcto.
Nos últimos anos, as associações de matriz portuguesa têm realizado, com esforço e dedicação, no Bairro de S. Lázaro, a romaria para celebrar e relembrar S. João, o Santo Padroeiro e protector da Cidade de Macau. Este ano, como estamos a viver uma situação atípica, o arraial não se realiza.

24 Jun 2020

Bloomsday – O dia de Joyce

«Música de Câmara XX»
“No escuro pinhal,
Na sombra fria,
Aos dois eu punha
No pleno dia.
Quão doce beijar
Pôr-se ali
Onde os pinhos altos
Se enavilham!
Teu beijo pousando
E mais tenro
Junto ao caos macio
Dos cabelos.
Ó, no bosque dos pinhos,
No dia do meio,
Vem junto agora,
Amor ao pleno”.
James Joyce (1882/1941)

 

[dropcap]O[/dropcap] dia 16 de Junho, o «Bloomsday», é o dia instituído na Irlanda para homenagear o personagem Leopold Bloom, protagonista de «Ulisses», de James Joyce. Em todo o Mundo, é o único dia dedicado ao personagem de um Livro.

«Nós» portugueses somos os únicos que comemoramos o Dia Nacional – 10 de Junho – através da data que assinala a morte (1580) do «príncipe dos poetas portugueses», o Homem que «cantou» o dobrar do cabo das Tormentas, «para servir a Pátria, ditada minha amada».

Honrar Camões, poeta da «Bíblia da Pátria», foi o objectivo inicial ao adoptar o «10 De Junho» como o «Dia de Portugal de Camões e das Comunidades Portuguesas».

Apesar de não ser feriado, o «Bloomsday» é comemorado um pouco por todo o Mundo – é o dia dedicado a Leopold Bloom, protagonista do livro «Ulysses», de James Joyce, em vários lugares e em várias línguas.
Em Dublin, os fãs da obra refazem o percurso dos personagens pelas ruas da cidade conforme descrito por Joyce.

«Ulisses», nome latinizado do herói, é uma recriação moderna da «Odisseia» de Homero. É uma personagem eterna. Publicado a 2 de Fevereiro de 1922, dia do seu aniversário, em Paris, o romance – epopeia (tragédia do quotidiano) – «Ulysses», escrito entre 1914 e 1921, em Trieste, Zurique e Paris, foi um livro proscrito em todos os países anglo-saxónicos, incluindo os Estados Unidos da América e o Reino Unido, por conter alguns aspectos impublicáveis, nomeadamente obscenidades.

James Augustine Aloysius Joyce, escritor irlandês, nasceu em Rathgar, subúrbios de Dublin, a 2 de Fevereiro de 1882, filho de família rica católica. Entra numa escola jesuíta, passa pela Universidade de Dublin, onde se forma, e parte para Paris com a intenção de estudar Medicina. Desiste e passa todo o seu tempo a escrever. Modernista, um inovador – a linguagem é a personagem principal – e um dos autores de maior relevância do século XX, tornou-se um dos marcos da literatura ocidental contemporânea. Joyce foi romancista, contista e poeta.

A história de «Ulisses» (um «monstro», nas palavras do autor) narra um dia – 18 horas (dezoito capítulos – começa por volta das 8 horas da manhã e termina após as 2 da madrugada seguinte) – na vida do irlandês Leopold Bloom. «Bloomsday» vem do sobrenome da personagem carismática do livro, e passa-se no dia 16 de Junho de 1904. Bloom, amigo de Joyce, 38 anos, filho de pai judeu, agente de publicidade, imigrante, homem comum, sente-se deslocado na comunidade xenófoba de Dublin, capital da Irlanda – um expatriado tal como Joyce quando escreveu o livro.

James Joyce escolheu o dia 16 de Junho para ser imortalizado na sua obra «Ulisses» – um livro revolucionário no estilo e na concepção -, porque foi nesse dia que fez amor pela primeira vez com Nora Barnacle, jovem camareira do condado de Gallway, que viria a ser a sua companheira para o resto da vida.

As suas obras de maior referência são: «Música de Câmara» – uma antologia de 36 poemas líricos curtos – (Poesia) 1907; «Gente de Dublin» (Contos) 1914 e, os romances «Retrato de um Artista Quando Jovem» (1916) – livro autobiográfico, «Ulisses» (1922) – uma obra de esforço «homérico» e o intrigante sonho «Finnegans Wake».

Fernando Pessoa, num curto rabiscado comentário crítico à leitura de «Ulysses», comparou a arte de James Joyce à de Mallarmé, chamando-lhe «a arte fixada no processo de fabrico, no caminho. A mesma sensualidade de Ulysses é um sintoma de intermédio. É o delírio onírico, dos psiquiatras, exposto como fim.», sentenciando em jeito de conclusão: «Uma literatura de «antemanhã», porventura adivinhando nele a revelação de um novo estilo literário, um novo alvorecer, pressagiando, quiçá, o que iria ser o futuro literário:

«Começa, no ar da antemanhã, A haver o que vai ser o dia…» (in «Começa, no ar da antemanhã»), a escrita de Joyce como “[…] aquela fria Luz que precede a madrugada, E é já o ir a haver o dia […]” (in «Mensagem»).

Joyce faleceu em Zurique, na Suíça, a 13 de Janeiro de 1941. Atrevo-me a encomendar-vos um exercício de imaginação para o fim-de-semana:

E se James Joyce estivesse em Macau, agora mesmo, a escrever o Ulisses? Que trajecto tomaria Bloom (chamar-se-ia como? Nome chinês? português?), que pessoas do dia-a-dia da nossa cidade serviriam para ele retratar as sereias que agora nos encantam, os ciclopes dos nossos temores, as feiticeiras que nos traçam destinos, os deuses com que hoje nos cruzamos…??? Que língua ou línguas falaria? Que batalhas travaria? Que armas escolheria? Também «silence, exile and cunning» (silêncio, exílio e astúcia) do jovem Dedalus?

E se tivéssemos por cá, agora mesmo, um ‘James Joyce’ de verdade, de carne e osso, prestimoso, que se abalançasse a reescrever a epopeia nesta exígua curva recortada na orla meridional do país do meio?…

Macau já teve (e tem) os seus heróis, porventura escassos, demasiado na sombra e humildes, apagados e pouco idolatrados com certeza, para o bem social que precisávamos. Mas as suas vidas, rectidão de carácter e postura mereciam ser contadas e cantadas como a de Ulisses, à visa de inspiração e exemplo para nós, simples mortais.

Sem precisarmos de recuar muito no tempo, muitos de nós já cá viveram anos suficientes para assistir à generosidade, bondade, alegria, humanidade, resiliência, talento e sensibilidade de muitos heróis das causas nobres e justas. Eu próprio tive a honra de acompanhar o passo com alguns heróis que me marcaram profundamente: Lancelote Rodrigues, Carlos d’Assumpção, Manuel Teixeira, Adé, Leonel Barros, Domingos Lam, Silveira Machado, Tomás Bettencourt Cardoso, Henrique de Senna Fernandes, Alberto Alecrim… e os, tantos, sem nome sabido, que praticam o bem em silêncio…

Rejubilo e sensibilizo-me com a força de vontade e abenegação de heróis do presente, aqui, entre nós, como a Irmã Juliana Devoy… ou que partiram recentemente, como o filantropo Stanley Ho. Macau teve, nas suas ruas e pó, heróis que ficaram para a História, como Sun Yat-sen, Wenceslau de Moraes, Camilo Pessanha, João Paulino de Azevedo e Castro, José da Costa Nunes, Arquimínio Rodrigues da Costa, Xian Xinghai…, esperemos que apareçam muitos mais.

Parece que hoje em dia ninguém quer confessar que o outro é melhor que si próprio, que alguém suplanta a mediania, é mais valoroso, solidário, generoso, esforçado, temerário, e nos dá alento, com o seu testemunho, para persistirmos nos valores em que acreditamos e no que realmente vale a pena lutar nesta vida. Todos enfrentamos lutas e chegamos a encruzilhadas, mas poucos lutam as lutas dos outros e vão à luta por todos.

Quem me dera acordar um dia destes e ser (ou não…) feriado – o “Lancelote Day”!!! Aliás, o seu nome até se coaduna com a ideia, nome de outro herói, o lendário cavaleiro da Távola Redonda. Quis o destino que o «nosso» saudoso Lancelote, o do Lac de cá, o Lago Nam Van de Macau, se apressasse a juntar-se aos outros heróis de tarefas cumpridas, no dia seguinte ao Dia de Bloom, a 17 de Junho, faz agora sete anos.

Desafio a pluma mais talentosa da praça a transportar para os séculos XX-XXI tal figura do imaginário e redesenhá-la na pessoa do alegre, bonacheirão e bondoso padre, que foi nosso conterrâneo, e na altura nem sabíamos a sorte que tínhamos de o ter por perto!

 

“Mais do que a obra de um só homem, Ulisses parece de muitas gerações (…). A delicada música da sua prosa é incomparável”
J. Luís Borges, sobre o «Ulisses»de James Joyce, 1937
18 Jun 2020

10 de Junho – “Da minha língua vê-se o mar”

“Sou de todos os mares,
De todos os profundos oceanos do mundo.
Sou de todos os portos, do barulho das suas docas
De todos os enormes navios fundeados nos cais
E dos que estão encalhados nos bancos de areia (…)
Sou de todos os faróis que há nas noites das costas
Indicando, nos segundos cronometrados da sua luz,
A traição dos continentes, das ilhas e dos bancos de areia (…)
Sou de toda a extraordinária força da gente marítima
Que se entrega aos abismos do mar com a sinceridade
De quem se dá ao único destino possível da terra (…)
Sou de todos os voos de gaivotas e das travessias
Quase incompreensíveis aos homens da terra tão lentos
Por isso a minha pátria é o mar (…)
João Meneres de Campos
Mar Vivo
em “Poesia da Presença”

 

[dropcap]É[/dropcap] um milagre.
Portugal (1143) é um milagre de quase nove séculos, nove séculos como nação livre e independente (sem grandes ameaças, nem grandes traumas) – que mantém uma identidade cultural vincada e uma língua viva -, se os países fossem ordenados pela antiguidade pela ONU, Portugal ascendia ao pódio, a um honroso 3º lugar, logo atrás da China e da Inglaterra. Mas, se o critério fosse a imutabilidade das fronteiras, então até os «nossos» Amigos chineses seriam suplantados.
Falta-nos um só século, um só, para atingir um milénio de existência e aí “um país deixa de ser um país e passa a ser uma civilização, essa coisa que funde a história com o mito”.

“um palmo de terra para nascer, um mundo inteiro para morrer” , Padre António Vieira (1608-1697).

Celebrar o 10 de Junho – o «Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas» – data que assinala a morte do “príncipe dos poetas portugueses” (em 1580), o Homem que “cantou” o dobrar do cabo das Tormentas, “para servir a Pátria, ditosa minha amada” – “uma vida pelo mundo em pedaços repartida”.
Se tivermos o privilégio de ler a essência do tema (Dia de Portugal de Camões e das Comunidades Portuguesas), e se tivermos os Lusíadas como auxiliar de Leitura, facilmente deduzimos que é nesta obra maior de Camões que encontramos, “apelos contínuos para a urgência da liberdade e justiça para uma sociedade construída nos princípios da honra e nos valores da solidariedade” e, não será aí que lemos “o humanismo universalista dos portugueses, a abertura para o mundo e a invenção da modernidade”.
Em Portugal, a origem dos feriados é tão longuínqua quanto a monarquia constitucional, entre 1820 e a Implantação da República, em 1910.

Foi Almeida Garrett, que introduziu o romantismo literário em Portugal – o seu poema “Camões”, de 1825, do período de exílio, foi a primeira obra do romântismo da história da literatura portuguesa -, que identificou Luiz Vaz como modelo de herói português.

A ideia de se comemorar o III centenário de o autor d’Os Lusíadas partiu de Joaquim de Vasconcelos, que a apresentou em 1879 na Sociedade de Geografia, fruto da confluência de vontades, do republicano Teófilo Braga e o socialista Antero de Quental, “foram durante as décadas finais do século XIX as faces opostas da mesma moeda” –viriam a cortar relações a partir de 1872.

A 10 de Junho de 1880, um grupo de intelectuais , com o republicano Teófilo Braga à cabeça – entre outros faziam parte Ramalho Ortigão, Sebastião Magalhães Lima (futuro grão-mestre da Maçonaria), Luciano Cordeiro e Jaime Batalha Reis – organizou a Comemoração do III centenário de Camões. Um cortejo cívico e patriótico português, marcado pelo protesto contra o sistema da regeneração, o Governo e a política colonial.

Apesar de vários amigos seus – Ramalho Ortigão e Batalha Reis – terem participado, Eça de Queirós, opôs-se, “considerou-o ridículo, tendo declarado não ser com colchas penduradas nas varandas, mas com uma cultura viva que uma nação se prestigiava”: “Eu não reclamo que o país escreva livros, ou que faça arte: contentar-me-ia que lesse os livros que já estão escritos e que se interessasse pelas artes que já estão criadas”.

A festividade incluiu a transladação, para os Jerónimos, dos restos mortais de Vasco da Gama e de Camões, um velho sonho de Almeida Garrett que, desde 1836, pregava pela existência de um Panteão Nacional.
Após a Implantação da República, a 5 de Outubro de 1910, foi criada uma comissão legislativa com o objectivo de elaborar o projecto da bandeira da República Portuguesa e decretar os feriados nacionais. O Hino Nacional – «A Portuguesa» -, já existia desde 11 de Janeiro de 1890, logo a seguir ao Ultimato Inglês (o princípio do fim da Monarquia Constitucional).
O Ultimato Inglês de 1890 e a crise financeira que veio logo a seguir, em 1891-1892, fizeram cair a monarquia.

Composto e orquestrado por Alfredo Keil como marcha patriótica, com letra do poeta Henrique Lopes de Mendonça, foi tocado pela primeira vez por uma banda filarmónica.

A banda do Carril, hoje Filarmónica da Frazoeira, do concelho de Ferreira do Zêzere.
Apesar de composta ainda no tempo da monarquia, «A Portuguesa» tornou-se de tal forma popular que os republicanos adoptaram-na como Hino Nacional.

Sete dias após a revolução republicana, a 12 de Outubro, o Governo provisório todos os feriados civis e religiosos, decretando apenas cinco, este mesmo decreto consagrava por outro lado a origem dos feriados municipais.

O primeiro feriado nacional, decretado pelos republicanos, foi o 1.º de Dezembro, como o dia da «Autonomia da Pátria Portuguesa», o vulgarmente designado «Dia da Bandeira».

Os outros feriados decretados foram: o 1.º de Janeiro, consagrado à «Família Universal»; o 31 de Janeiro dedicado aos «Precursores e Mártires da República»; o 5 de Outubro em homenagem aos «Heróis da República» e, finalmente o 25 de Dezembro, o «Dia da Família».
Honrar Camões, poeta da “Bíblia da Pátria”, foi o objectivo inicial de Lisboa ao adoptar o 10 de Junho como feriado municipal.

A primeira romagem à Gruta de Camões, dá-se a 7 de junho de 1923. Era governador o republicano Rodrigo José Rodrigues (1879 – 1963).

Só em 1933, no Estado Novo, sob a batuta de Oliveira Salazar, o «Dia de Camões» passa a ser festejado a nível nacional. A data celebrava o «passado épico e o carácter singular» dos portugueses, ideias da «nossa» identidade.

Até ao 25 de Abril de 1974, o 10 de Junho era conhecido como o «Dia de Camões, de Portugal e da Raça». Homenagear as forças armadas é outro dos objectivos do 10 de Junho, a partir de 1963. Exaltação da guerra e do poder colonial.

Finalmente, a terceira República, como não se revia neste feriado, a partir de 1978, converteu-o em «Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas» -, mas nem sempre o espírito da iniciativa está presente.

Agitações, tumultos, revoltas e batalhas – dentro e fora de portas – risos e emoções – e, como navegamos em mares agitados – angústias e tristezas -, saques, crises e bancarrotas. Tradições e virtudes, insatisfação e preconceitos. E, assim vivemos quase há nove séculos – é fado!
Foi neste desalento, pobre e à deriva “que deram novos mundos ao mundo”.

Saber criar uma nova perspectiva geográfica do pensamento, para não estarmos ainda hoje a recordar as palavras de Eça de Queiroz (em «O Distrito de Évora»): “É assim que há muito tempo em Portugal são regidos os destinos políticos. Política do acaso, política do compadrio, política de expediente. País governado ao acaso, governado por vaidades e por interesses, por especulação e corrupção, por privilégio e influência de camarilha, será possível conservar a sua independência?”.
Deixámos abolir – inconscientemente (?) – a «nossa» auto-estima. Daí resulta que uma faixa significativa da população vegeta e uma percentagem mínima vive, um dos lados de uma moeda já fora de circulação – e, assim vamos cantando e rindo!

Subjugados ao poder de interesses, hoje como ontem – Ramalho Ortigão (em «Últimas Farsas» de 1911), escrevia: “O acordo de dois partidos, revezando-se sucessivamente no poder (…) falhara inteiramente na sua reiterada aplicação prática. O jogo permanente (…) desgastara todas as engrenagens, boleara todos os ângulos, puíra todas as arestas (…). Nenhum dos dois partidos a si mesmo se distinguia do outro, a não ser pelo nome do respectivo chefe, politicamente diferenciado, quando muito, pela ênfase pessoal de mandar para a mesa o orçamento ou de pedir o copo de água aos contínuos”. Combater os «nossos» próprios defeitos, será um dos caminhos – estes pesam na «nossa» herança cultural -, temos de saber reorganizar o espaço afectivo.

Temos de criar e desenvolver a nossa própria gramática e sintaxe: uma nova linguagem de afirmação no mundo, a outra morreu nos finais do séc. XVI – não deixa saudade!

Em 2012, em pleno período da intervenção da troika em Portugal, foram abolidos quatro feriados nacionais, dois religiosos, dois civis: Corpo de Deus (11 de Junho); Dia de Todos os Santos (1 de Novembro); Implantação da República (5 de Outubro) e Restauração da Independência (1 de Dezembro). Neste último caso quebrou-se a tradição. Era o feriado mais antigo que existia em Portugal, vinha já desde a primeira metade do séc. XIX, tendo resistido até à I República.

Um dos primeiros gestos oficiais de Marelo Rebelo de Sousa, actual Presidente da República, foi repor os feriados perdidos, contra o coro de protestos das Associações patronais. E aqui chegamos – “por este rio acima” -, às Comunidades! “Macau, a primeira República democrática do Oriente, e ponto tradicional de interpretação e sincretismo cultural”
… e, continua a ser o português a “língua dos nossos encontros, desencontros e reencontros”.

* Vergílio Ferreira (1916/1996)

10 Jun 2020

O Libelo da Desobediência

[dropcap]“D[/dropcap]a Miséria no Meio Estudantil” é um manifesto corrosivo, polémico, cáustico, lançado em 1966, pela Associação Federativa Geral de Estudantes de Estrasburgo (A.F.G.E.S.), composta por estudantes contestatários. Este libelo denunciava, vigorosamente, as universidades como “organizações institucionais de ignorância”, ao serviço da sociedade de consumo.

O ano de 1968 marca a História da segunda metade do séc. XX. 1989 seria uma outra hipótese mas já estava próximo do virar do século – apesar do séc. XX na verdade terminar com o 11 de Setembro 2001 – “a fronteira histórica” – uma tranquila terça-feira de Verão, que dá início ao século XXI.

68 foi um ano de tragédias, transformações, tumultos, revoltas, reivindicações. Entre Janeiro e Fevereiro, a cidade de Hull (Inglaterra) – então o maior porto de pesca mundial – foi abalada pelos terríveis naufrágios de três arrastões e a consequente morte de 58 pescadores. Em Abril, Martin Luther King é assassinado e o mundo protesta ruidosamente contra a Guerra do Vietname. Em Maio, em França – Nanterre, onde a revolta começou, e em Paris, manifestações mobilizam mais de 500 mil pessoas e dão início a uma greve geral que durará semanas e que se traduziu no maior protesto estudantil da História. O Brasil vive também o seu Maio de 68, com os estudantes a revoltarem-se contra o regime militar. Em Agosto, as tropas do Pacto de Varsóvia (excepto Roménia) invadem a Checoslováquia, pondo termo à experiência de democratização que ficou conhecida como Primavera de Praga. Portugal também merece uma nota de rodapé em 68 – dá-se a queda de Salazar e a entronização de Marcelo Caetano.

O panfleto “Da Miséria no Meio Estudantil” – agitador, provocador, revolucionário, incendiário -, foi dado à estampa a 23 de Novembro de 1966, na inauguração oficial do ano lectivo, no Palácio Universitário de Estrasburgo. Na sequência dos acontecimentos, a associação de estudantes encerrou portas a 14 de Dezembro, por força de uma decisão judicial – o famoso caso do juiz Llabador.

Os estudantes germânicos tiveram a colaboração moral e material da “mal afamada” Internacional Situacionista francesa, sob as rédeas de Guy Debord. Claro que este libelo também teve repercursões em Portugal, sobretudo depois do Maio de 68. É esse o quadro que nos dá Júlio Henriques responsável pela Selecção de Textos, Prefácio e Tradução.

No Prefácio, com o sugestivo nome “Necessário Proémio Paroquial”, o autor de “Alucinar o Estrume” – belissímo -, traça-nos um olhar sobre o livro, o meio estudantil português, com observações desinibidas, sem apartes, nem condescencências, e faz uma reflexão sobre o manifesto desde o seu acto criativo até ao seu papel civilizacional.

Em Portugal, a primeira tradução “Da Miséria” surge em Coimbra, em 1969, “no contexto da grande agitação contra o fascismo” e a guerra colonial na África portuguesa. Depois, o livro surge republicado logo após o 25 de Abril e em 78. A Fenda edita-o em 1985, numa altura em que se vivia um clima de falso puritanismo, intriga, rancor e vingança permanente – no tempo do famoso Cavaquistão –, das “palhaçadas académicas”.

As palhaçadas regressam, com as , com os seus rituais e toda uma massificação do ensino terciário exigida por um capitalismo selvagem que tinha necessidade de modernizar a sua mão-de-obra – torná-la dócil, mal paga, adaptável (recibos verdes, precaridade, flexibilidade) -, para as curvas sinuosas do crescimento económico.

Termino com a frase que abre a edição portuguesa da Antígona: “Quem nos deu asas para andar de rastos?” – continua Florbela Espanca a perguntar no seu poema <Não Ser>.

Covid-19 & Ensino

Tomei a liberdade de tomar algumas notas sobre o ensino durante o período de confinamento e gostaria de as poder compartilhar:

– As passagens administrativas são um mal menor, depois de devidamente ponderados todos os seus efeitos. O que devia ser obrigatório é repensar o calendário escolar do próximo ano, de maneira a poderem ser encaixadas algumas aulas suplementares, de carácter facultativo, sobretudo nas chamadas disciplinas nucleares – para dar, explicar, rever, completar, sedimentar conceitos de um ano escolar anormal.
– Exames são uma fraude – os alunos estão demasiado acomodados – , deviam dizer <NÃO> aos exames. Já não bastava a forte pressão psicológica a que estiveram sujeitos quarentena/confinamento e às experiências do ensino à distância, para agora terem de prestar provas em que a única coisa que se vai avaliar é a condição sócio-económica, não o conhecimento dos alunos. É uma realidade nova em velhos problemas. O ensino continua a ser uma fonte generosa de descriminação.

– Espero que nenhum aluno tenha sido esquecido – que se tenha feito um levantamento sério – , por não ter computador ou acesso à internet. Já agora, as instituições competentes poderiam ter pago as tarifas de internet a todos os alunos, durante este período.

– Seria bom criar um grupo de trabalho, para rever, organizar, afinar a(s) máquina(s) do ensino à distância – oxalá que não venha a ser necessário de novo, de maneira a, no futuro, não haver falhas, interferências, nem nunca estar em dúvida a violação dos direitos dos dados pessoais.

Seria louvável pensar em criar e desenvolver a disciplina de Educação para a cidadania digital – a pensar no futuro.

4 Jun 2020

Macau, Arte e Periferia

“Se viesse
se viesse um homem
se viesse um homem ao mundo, hoje, com
a barba de luz dos
patriarcas: só poderia,
se falasse deste
tempo, só
poderia
balbuciar balbuciar
sempre sempre
Só só”
Pallaksch, Pallaksch
de Paul Celan
tradução de João Barrento

 

[dropcap]E[/dropcap]nquanto se processa a “integração” de Macau (uma cidade que está na História por direito próprio) na China, esperamos que nunca a sua “subordinação (?)”, seria louvável que na arte, os confrontos, os diálogos e os intercâmbios fossem abertos para a ampliação da cidadania, não só para consumo à escala local, regional, nacional, mas que torne viável o acesso aos valores maiores de todo o Universo – Arte.

Ruptura na educação (apostar mais na educação pelos sentidos). Formação, promover a inovação e fomentar a criação, eis alguns dos objectivos pretendidos aos agentes culturais de Macau – uma política cutural séria deve assentar em dois vectores fundamentais: as responsabilidades estruturais e as estratégias.
Conhecer, incluir, circular.

Ao constatar as desvantagens da periferia (estar na periferia é ser necessariamente mais cosmopolita, há mais culturas para conhecer, mais mundos para calcorrear) de Macau – o que leva forçosamente à sua integração ou subordinação (a nossa condição periférica pode trazer consigo um certo nacionalismo e, na opinião de Albert Einstein, “o nacionalismo é uma doença infantil, é o sarampo da humanidade”) –, dever-se-ia apostar na criação de uma órbita cultural. Essa órbita cultural (sem saudosismo e sem heróis) deveria ter sempre dois pólos distintos. Uma de oferta local – a criação de novas galerias (existem muitas salas de projectos, galerias Não) – , com escolas de formação e também educação -, para criar autores, público e críticos em diferentes aéreas.

Um ensino que afine a sensibilidade e expanda a criatividade, para que se possa ver as coisas de outros ângulos e se fuja às rotinas. O público em Macau ainda vai muitas vezes ver a marca/colecção/nome, mas ainda não existe o hábito cultural de ver o produto. Falta criar ainda um trabalho conceptual – um trabalho que não se finque na materialidade – que se apoie e que se dirija ao público. Falta criar novos públicos para a criação contemporânea para linguagens artísticas que procuram a inovação e novas formas de comunicação.

Acabar de vez com os produtores/programadores que só produzem/programam quando subsidiados, que a crítica venera e o público despreza ou esquece. Centrar os programas mais nas ideias e menos nas personalidades. Não basta ter programações culturais é indispensável criar políticas culturais – natureza do público, interesses e origens, gostos e horizontes, fidelização.

Da caligrafia à fotografia, passando naturalmente pela cerâmica, pintura, desenho, gravura, só para citar algumas e outra de cariz internacional – nos museus – não antólogicas ou autobiográficas, mas sim temáticas e transversais, privilegiando temas inspirados em matérias de actualidade e do desenvolvimento.

Convém aqui ressalvar que os grandes nomes mundiais – exposições de referência –, nunca poderão passar pelo Território, não por opção de quem dirige, não por questões orçamentais, não por uma questão de ambição do público, mas porque só são possíveis nos grandes museus do mundo, depois de largos anos de enriquecimento das suas colecções, para que a cedência/intercâmbio, torne o sonho realidade. Não fomos ainda capazes de entender os códigos sociais que favorecem a circulação internacional feita de protocolos institucionais.

Não temos capacidade de aqui trazer propostas centrais sintonizadas com o nosso tempo. Ao fim de quase 500 anos de História, Macau não se pode tornar numa cidade cultural periférica (a geografia não pode, não deve ser vista como uma forma de contenção artística) subalterna, porque isso leva-nos facilmente – só se for essa a ideia –, para a menoridade intelectual, que nos arrasta para perigos de uma certa marginalidade social, jogo/casinos.

A periferia não é nem nunca foi sinónimo de pobreza criativa. As periferias são lugares, pessoas, factos e realidades.

A arte é de todos se a todos for dado acesso – a cultura não é nem mais nem menos que uma questão de hábito – ou não será que “A Arte é necessária para que o Homem se torne capaz de conhecer e mudar o Mundo. Mas a Arte também é necessária em virtude da magia que lhe é inerente” – palavras de Ernest Fischer.

Criar uma cidade de contexto multicultural, multi-étnica, multi-religiosa, de pluralismo cultural e ideológico – com uma visão da cultura de fruição, de liberdade e de inteligência. Somos pluralistas, sem poder ideológico (não existe nem produção nem transmissão de ideias), “é um dos riscos de se viver nos subúrbios, percorremos o vazio, estacionamos na ignorância e habitamos no mundo das crenças”.

“A Arte existe porque a Vida não basta” – Ferreira Gullar (1930-2016), escritor, poeta e crítico de arte brasileiro.

29 Mai 2020

O labirinto da solidão

[dropcap]V[/dropcap]ivemos numa época de transição – entre certezas e dúvidas –, temos de fazer uma recarga anímica, física e espiritual. A partir de agora remendar erros é fruto de decisões erradas: há uma ilusão colectiva. “Vive a vida como se tudo tivesse sido arranjado para te favorecer” – como escreveu o poeta árabe Jalaladim Rumi (1207 – 1273). A vida existe, tenta descobrir a verdade.

A partir de agora vamos olhar o mundo de maneira totalmente diferente – o que a vida tira, a vida dá. Há imagens, memórias, personagens e factos em quantidade suficiente para podermos contar a história da cidade de trás para a frente. Se o turismo é um sector fundamental para diversificar a economia, temos de integrar as comunidades no seio dos projectos artístico-culturais.

Todos os projectos devem ser recordados pelos desafios e não pelas dificuldades. Em qualquer projecto de desenvolvimento turístico – e Macau não é factor de exclusão – há um enorme custo a pagar em termos de desestruturação das comunidades. A pressão turística desenfreada destrói. Vivemos hoje sob a égide de um turismo predador e descontrolado. Por quê ?

Porque não houve um desígnio, não houve um pensamento, polémica ou cosmopolitismo – foi um passo com descompasso. Não houve uma harmonia, um desenvolvimento equilibrado, um conhecer da cidade, sendo a cultura um factor importante para melhorar a vida das pessoas, criaram-se fronteiras, guetos.

A oferta cultural é um factor essencial para a fixação de população, cria dinamismo na economia, regenera o comércio e atrai turistas. Assim vamos olhar, pensar, desenhar, criar estímulos artístico-culturais nos bairros da zona norte da cidade. São bairros de casas e casas sem alma, de pessoas com uma existência sem destino, vivem submersas na miséria do esquecimento. Existências calcificadas na ilusão – desejos, sonhos, ideais, aspirações, esperanças – permanecem exilados do destino.

São zonas sem uma única galeria, sem um único auditório, sem um único anfiteatro, sem um único museu. O único espaço que ali existe é o Teatro Brito (Clementina Leitão Ho), no Centro Comercial Jardim da Cidade, na Av. Artur Tamagnini Barbosa, mas não tem uma programação contínua e grande parte do ano está encerrado. Existem como prováveis galerias – não têm esse fim – o Salão de Exposições da União Geral das Associações de Moradores de Macau, ali para os lados de Tói San e uma outra com o sugestivo nome de Pavilhão do Sentimento de Amor à Pátria, na Rua Nova da Ilha Verde, que serve mais para formatar do que abrir/interrogar mentes.

Vamos cerrar fileiras, após ser implentada a 2a fase do “Programa de Lançamento de Espaços Artísticos e Culturais”. Penso que haverá capacidade de olhar a cidade como um todo. Não pode haver filhos e enteados.

Há pormenores que devem ser corrigidos. Por exemplo, os inúmeros templos que existem nessa área não têm nenhuma indicação, nome, ano de construção, se têm alguma lenda associada – ninguém sabe, ninguém conhece. Dever-se-ia, uma vez que já é prática no centro da cidade, colocar uma placa (Património Cultural de Macau) – penso que são de bronze – a dar essas indicações. Precisamos de dar visibilidade a esses lugares, que contam a história do Território. Todas essas histórias devem estar impressas em todos os folhetos, em todos os espaços onde possa ser contada à população e aos turistas.

Outra coisa que seria necessária era abrir concursos de ideias para dotar esses bairros de arte pública – escultura e painéis de azulejos. Reanimava, revivia as almas. Se vamos integrar, vamos levar a arte a quem não a pode ver. A arte pode e deve descer à cidade.

O bairro de S. Lázaro dá já um novo saciar ao olhar. Foi pena que as duas vivendas ao cimo – uma do lado direito, a outra do lado esquerdo – das escadas da Igreja, não tivessem melhor sorte. A Av. Almeida Ribeiro também está mais arejada, por lapso, penso que se esqueceram de dar uma “borradela” na Rua da Felicidade – seria de certo mais feliz se lhe dedicassem um outro olhar.

Nota Final – a Não perder – como há pouco ou nada para olhar, aproveitem e passem ali pela Rua de Madrid – partindo do Centro Cultural, rua em frente, uns cinquenta metros, lado direito, para admirar a exposição de fotografia “The Story of the Aged Teahouse”- vinte e duas fotos a preto e branco de Tam Keng, no Espaço I –Square, até 3 de Junho.

Como intitulava, o Jornal de Negócios, penso que em 2012 – quando a cerrava os dentes a Portugal – “A Boa Notícia É Que Metade Deste Ano Já (quase) Passou”…

22 Mai 2020

À Sombra da Cidade

“Não que de Macau eu tenha
queixas. Pelo contrário:
afeiçoei-me à terra e aqui
fiquei. Nunca ganhei nem
perdi dinheiro no jogo, porque
nunca joguei; nunca ganhei
rios de dinheiro nem cousa
que com isso se parecesse
porque, além de outras razões,
em Macau, rios de dinheiro,
honestamente, ninguém pode
ganhar.”

Manuel Silva Mendes (1867-1931); professor, sinólogo, filósofo, advogado

 

[dropcap]S[/dropcap]ophia de Mello Breyner (1919 – 2005) dizia que o ócio é o trabalho do poeta. O meu é vaguear – “ não sei por onde vou/ sei que não vou por aí”, sigo as palavras de José Régio (1901 – 1969) –,sem horas, sem destinos, sem objectivos – desbloqueio a cabeça – e é aí, quando menos espero, que as ideias me visitam – abandonei a cidade nos últimos anos, vivo inconformado.

Gasto os caminhos com os meus passos ao visitar diariamente a cidade. O tempo não é inocente ao percorrê-la agora. O tempo devora o espaço, um espaço vazio de existência. Esta brusca interrupção da vida criou um sentimento de ansiedade, solidão, medo – e o medo substitui a esperança.
A cidade foi devolvida aos habitantes.

O bafo quente já castiga, mas prefiro aos dias cinzentos de chuva, frio, de ar abafado, húmido. A cidade nesses dias parece obscurecida por um humor colectivo – triste, zangada, melancólica, aborrecida, deprimida. Não é imaginação minha, é pura realidade: Macau não é uma cidade de chuva.
Macau ergueu-se de desamparos e alimenta-se de silêncios – para calar silêncios, precisamos de novas elites, novos protagonistas –, mas mesmo as novas elites, novos protagonistas, são uma classe proletarizada no gosto, na educação e na ambição, vivem em crise de ideias e valores – vivem de preconceitos e dogmas.

O maior défice da sociedade de Macau é o pensamento. Houve uma degradação do “ser” em “parecer”, para citar o autor de “A Sociedade do Espectáculo”, Guy Debord.

Ao calcorrear as calçadas da história, tropeçamos, involuntariamente, nas palavras da poesia, ruas arrumadas em toponímias – perdemo-nos a folhear um passado presente – , andamos até desaguar em pátios fabulados de fábulas.

Macau tem história e muitas histórias para contar. Considero-me um Homem de sorte por ter visto/vivido Macau num estado poético. É aqui, na malha urbana da cidade, que a estética é a do improvável e do incongruente – “nós ao sentir evaporamo-nos”, como dizia Rilke. Em Macau, o passado é construído no presente, é uma realidade física tão perceptível quanto a luz do sol que nos ilumina e nos reconforta.

Ao longe, surge como um quadro fantástico, não é mais na realidade do que um simples amontoado de ruas estreitas, íngremes, fechadas, escuras, sem o mínimo de carácter, povoadas por um conjunto de velhas casas. Esses labirintos – vasos capilares –, ainda transportam uma beleza “naive” e as velhas casas já mudas, cegas e surdas, uma dormência irespirável, desmoronam-se na solidão, no abandono – do esplendor à ruína.

É aqui que se sente o seu real e verdadeiro batimento cardíaco – respira mais vagarosamente – e se pode olhar verdadeiramente a alma de Macau. Aqui, não há sangue novo – há uma serenidade imposta. Uma cidade sem alma convida ao sono.

As pessoas vivem uma tristeza disfarçada de tímida felicidade. É com esta gente, nestes meios, e cito Sto. Alberto Magno, que “na doçura da vida comunitária se encontra a verdade”.

Demoramos anos a deixar de ouvir – “E Depois do Adeus” -, já é tempo para termos um olhar mais reflexivo, crítico e sem complexos, não nos devemos martirizar. O objectivo nem sempre é criticar ou culpar alguém, mas ajudar a construir uma nova sociedade, até porque, conforme os tempos, outros tempos virão, as conversas, debates em Macau, vão tendo problemas e discussões diferentes – vamos abrindo consciências ao mundo.

Tive o feliz prazer de aqui viver, conviver numa época em que ainda havia pessoas que fizeram frente ao tempo sem nunca ambicionar a eternidade – hoje os tempos são outros! Foram vozes que apareceram para pintar a cidade de cores vivas, nas injustiças, desigualdades, desonestidades, ignorância, corrupção, boçalidade e uma pitada de novos sabores na justiça, igualdade, fraternidade transparência, exigência, verdade.

O meu olhar ocidental – nunca o corrigi – leva-me por vezes a uma reflexão instável, movediça, contraditória – sem nunca cristalizar o pensamento –, como acontece quando vagueio pelas vielas, becos e pátios. Não me sinto filho da terra – os tempos também são outros -, mas para falar verdade também não me sinto completamente de outro lugar algum, mas preservo e tento vitalizar e revitalizar a minha ligação com “Ao Men”.

É preciso olhar a cidade com um outro olhar. É urgente regenerar a habitação e o pequeno comércio de bairro. Criar novas dinâmicas do quotidiano, mobilidade, aumentar a qualidade de vida dos moradores, requalificar e fixar espaços públicos e reforçar dinâmicas culturais. Além disso, é essencial, para promover e dispersar o turismo, limpeza, casas de banho, iluminação, ambiente, segurança, nova sinalética e sobretudo limitação de tráfego e estacionamento.

Nostalgia de uma outra vida, mais humana… é humano idealizar o passado e alimentar a nostalgia. Volto quando a tarde avança, lentamente, à conquista da noite, as sombras são agora mais lânguidas… o que nos define é o prazer, a alegria e a felicidade!

20 Mai 2020

Viagens por Macau

[dropcap]A[/dropcap] melancolia das manhãs, manhãs de agonia, levam-me habitualmente a fazer “viagens” – “viajar é um exercício de tentar perder-se de si, um dos caminhos mais rápidos em direcção a nós mesmos” – a um lugar chamado Macau, lugar de pertença – retomar caminhos, com um outro olhar (o olhar escolhe, os olhos vêem), uma nova percepção -, o voltar ao território de exílio, o buscar do desconhecido conhecido, espaço de saudade e contemplação do lugar… a cidade abandonada.

Nos últimos anos, muita coisa mudou – demografia, arquitectura, trânsito, poluição, clima, ambiente, usos e costumes -, Macau tornou-se um laboratório de ansiedade.
Gosto do convívio da noite, de estar só – nasce um desespero ingénuo -, surgem ideias, daí palavras, formam-se esboços de frases – nasce o texto!

As rotinas são terríveis – matam o pensamento -, fazem-nos perder a inquietação, a dúvida, necessárias à mudança.

A imaginação é essencial para se desfrutar de um lugar como Macau, onde os pormenores em que a vista atenta não são o que parecem, mas antes outros tantos pontos de referência para todo um sistema secreto de mundos sobrepostos mas espantosamente divergentes na complicada vida da cidade.

Foram alguns velhos resistentes – uma velha guarda já desaparecida –, e não outros, que me ajudaram e me iniciaram a perceber a maneira como eu próprio podia estabelecer uma relação com o espírito da cidade. Hoje em dia ocupo-me – comigo eu entendo-me -, a tentar determinar a relação ente Macau e eu próprio – é vida!

A memória – “memorizar é restaurar a intimidade” – não abandona as suas imagens tão prontamente, as minhas estão inextricavelmente associadas aos seus sabores, odores, cores e sons.
“A desistência é uma revelação”, já o constatava Clarice Lispector. Reprimem-nos, mas não nos roubam as almas, transformam-nos, mas não nos mudam a identidade, subjugam-nos, mas não nos tiram o pensamento.

Já sabemos calcular a vida – o que a vida custa – sacrifícios, doenças, a morte; pensamos, agimos, mas como existe um hiato entre cérebro e coração – amor e compaixão -, adiamos resoluções. Nascer é um começo, o resto é discutível.

A vida – assim como a cidade – não segue uma coerência narrativa.
Macau ainda é uma cidade catita, atraente, sóbria. Não é desmantelada por defeito, somente desleixada, suja – já foi pior -, um pouco desbotada, enferrujada.

Tem uma certa unidade decrépita no estilo e concepção arquitectónica, tanto tem uma concordância, como uma colisão de conceitos ocidentais e orientais de proporções e formas – possui uma história social e humana. – essa é a verdadeira essência da cidade.

Macau é uma cidade desnorteada, impreparada, vive deslocada da realidade presente e o seu sentido de colectivo e confiança está em erosão de pensamentos e ideias – tudo o que é solução é inaplicável e tudo o que é aplicável não é solução.

Deambulemos (pensamentos), pela cidade – “é obrigatório ter outros em face” -, sem restrições nem representações.
Os habitantes dos bairros periféricos – “as periferias são a parte mais importante das cidades. São fábricas de desejos e sonhos”, na opinião do arquitecto italiano Renzo Piano -, Iao Hon, Patane, Tagmanini Barbosa, Ilha Verde vivem num silêncio contido. A alma deles é generosa, vivem domesticados, são classes assistidas, têm consciência da asfixia social em que vivem, mas vivem longe da praça, do palácio, do governo, mas existem!

Em contexto social de bairro, a sua solidariedade é grande, já que há “um movimento intrínseco de inserção e um propósito social de inclusão”, que no seu conjunto exprimem a ideia cívica de união, aquilo a que Tomás de Aquino chamava “amizade civil”.

São pessoas – lê-se-lhes nos seus rostos, não são precisas palavras – que desejam uma sociedade em que mulheres e homens pudessem ser livres. E para serem livres bastar-lhes-ia ter uma vida digna e decente, com um conteúdo económico e social, gostariam de ter uma independência ética. Do programa faz parte a gramática social… não a gramática teórica.

O rio das Pérolas lá no fundo, continua a representar o trânsito do desejo e da aventura, daí as noites continuarem a ser uma mera continuação do dia – existimos logo vivemos!

7 Mai 2020

Uma história feliz com lágrimas

“É proibida a entrada a quem não andar espantado de existir”
José Gomes-Ferreira

 

[dropcap]N[/dropcap]oite lívida e chuvosa.
Chove – as gotas, grossas e pesadas – sem cessar.
Faz frio.

Gosto do convívio da noite («a noite muda a imagem e o sentido das coisas») – estava-mos em pleno Inverno.

A noite estava pura e transparente – «A noite é amável, tapa as mazelas, adoça os traços, esconde as impurezas».

Os vidros do quarto estavam todos, todos, mas todos, sem excepção, embaciados.

Os neurónios não saltavam, não brincavam, não mostravam a sua habitual tendência para a fuga «sem sentido físico do pesadelo», – visões dos vários lados das penumbras, muitas, imensas – estavam calmos.
Embevecidos perdidamente pela música do «compositor preferido dos matemáticos», Bach, (se fosse um Homem dos dias de hoje, seria certamente um jazzman), faziam reflexões entrecortadas com bocejos carregados de ócio – a preguiça pura e dura. Vivia na desorganização típica dos sonhos, submersos na miséria do esquecimento. Percorrer o «vazio», sem representações. Sobravam as interrogações e as ausências.

“Foi em pleno Inverno que aprendi que há em mim um Verão invencível” – um pouco na linha de pensamento de Albert Camus. Estremeci sem me aperceber do quê nem do porquê. Fixei o olhar. Percebi então finalmente a dose de alegria que me banhava.

“O exílio interior é o refúgio procurado como defesa da integridade”

As vicissitudes do poder geralmente carregam azias, indisposições, mal-estar. O progresso é tendencialmente limitado. Traz quantidade em vez de qualidade, foge da cultura com medo da revolução – pacífica a das ideias. Estas são contudo as que nos definem – “existo, logo penso” -, depois de devidamente acamadas nos patamares do conhecimento. Sempre através de um «dom» maior a palavra.

Fugimos com medos – que nós próprios construímos -, passamos a percorrer labirintos. Sim labirintos, perdemo-nos, não temos saídas. Embrulhamo-nos no quotidiano. Sonhos construídos em simples folhas de papel que, facilmente se desfazem, se destroem, voam porque o vento gélido continua a soprar lá fora.
Faz frio.

A chuva refracta a luz e esbate contornos.

A cidade dorme – já é tarde -, sinal do cansaço. Massacram e torturam-na diariamente. A beleza da cor e das formas, são já memórias quase esquecidas. Perpetuar já não se sabe conjugar, humilham-nos.
Entre o fim- da- estação e a ocasião, o discurso. Alegrem-se. Pensar, planear, executar, tudo a bem da população. Merecemos. Brindemos!

Lá fora o sector da loucura está repleto – isso vai e vem -, são cérebros pertencentes a seres desprovidos de empatia e remorsos – existem coabitam connosco, mas não são nossos Amigos -, impingem-nos os negócios da loucura. Fazem-nos ingénuos.

Usam o poder deliberadamente, revelam uma espécie de “hiperconsciência” dos métodos e técnicas que utilizam, nas suas verdades secretas, invisíveis. Existem?

Percorremos ainda alguns espaços – os que não querem -, numa cidade recheada de afazeres, preocupações, intrigas, misérias – por imposição -, não por vício ou má formação de quem a vive.
Gente simples. Gosto!

“Entre existir e viver há a mesma diferença que entre olhar e ver e que entre redigir e escrever” – segundo António Patrício.

Uma ruptura de afirmações, sobrevivência (?), – o movimento das palavras, pensamentos (?), dentro de um círculo fechado (?) – a existência, a Vida (?).

A vida é rápida, turbulenta, tumultuosa – pelo interesse e pela adversidade.
Um futuro por construir.

Andar e saborear o tempo e o espaço – parques, jardins, ruas, becos e pátios -, são oposição, as chamadas «forças de bloqueio», o tecido social de equilíbrio e harmonia desaparece.

A «nova era» requer mais poluição ( « ar poluído de banalidades») e menos saúde, mais casinos e menos direitos, mais consensos e menos harmonia, mais especulação e menos valores – tudo mas tudo subordinado ao «pequeno» poder do Jogo.

Falta coragem, vontade e capacidade de fazer -, com autoridade, mas sem autoritarismo. O governo está ao serviço de interesses e não ao serviço de valores…

A cidade continua abençoadamente calma – Santo Nome de Deus!

Este meu Inverno, foi diferente de todos os outros Invernos…

«Um dia tudo será excelente, eis a nossa esperança, hoje tudo corre pelo melhor, eis a nossa ilusão»
Voltaire (1694/1778)

29 Nov 2018

“A Memória da Cidade II” – José Silveira Machado (1918/2018)

“A tempo entrei no tempo,
Sem tempo dele sairei:
Homem moderno,
Antigo serei.
Evito o inferno
Contra tempo, eterno
À paz que visei.
Com mais tempo
Terei tempo:
No fim dos tempos serei
Como quem te salva a tempo.
E, entretanto, durei.”

Vitorino Nemésio

[dropcap]F[/dropcap]ilho das dificuldades, onde os dias nasciam carregados de deveres, José Silveira Machado veio ao mundo a 24 de Outubro de 1918, em Velas, S. Jorge, Açores, a freguesia das freguesias de sentido único, a partida. Direcção, Oriente, destino, Macau.

Foi este o «caminho» de José Silveira Machado o «Professor». Aportou a Macau numa época difícil de transição e contradição – 1933 -, para estudar, “indisciplinado aluno” (?), no Seminário de S. José – «um exílio é um refúgio com uma biblioteca», na opinião de Zia Haider Rahmam -, entre a idílica adolescência e a indesejada vida adulta.

A realização pessoal exige escolhas, sensibilidade e bom senso Concluído o curso do Seminário – um período de possibilidades ilimitadas -, optou pela vida civil , onde acontece viver -, em detrimento da vida eclesiástica.

“Cresceu sem ver o Mundo mas com os olhos postos na vida.”

Homem de pensamento rigoroso, honesto, dinâmico e crítico, criador e bondoso, olhar suave, rosto comprido e magro, boca tensa, era um romântico. Tinha sempre mais dúvidas que certezas, percebia a diferença entre a realidade dos factos e os factos alternativos.

As suas palavras tinham polivalência, ganhavam autonomia, tinha o hábito de apelar em vez de exigir, explicar em vez de ditar.

Não se fechava ao Mundo. Abria-se ao conhecimento. Era uma pessoa capaz de admirar a vanguarda, sem nunca esquecer as tradições. Era uma alma desocupada que não precisava de alinhar em conspirações de ordem estética – era consequente, corajoso -, não como o Dâmaso Salcede d´ “Os Maias”, «balofo e vazio que segue a maioria…, da mais recente tendência».

Tinha um modo próprio de andar – calcorreava a «Cidade» de lés a lés, de maneira a fugir de fantasmas e a perseguir sombras.

Fazia parte da sua geografia sentimental. A alegria de viver estava em descobrir, receber, transmitir, dar – ser autor e actor – e, espectador lúcido e atento.

A sua mundividência «crescia» de um aspecto crucial – pouco ou nada valorizado nos dias de hoje -, o diálogo, aberto, franco, sincero. Os Livros, a Amizade – «é um dos mistérios da vida», e a «Cidade» eram sempre tema para dois dedos de conversa.

Na conjugação do exercício das palavras «mais os conceitos», na boémia nocturna das ideias, jorravam discussões, sempre retrabalhadas pela memória. Lutava ansiosamente contra o pessimismo colectivo, conjugado sempre com um optimismo subjectivo, apesar de alguns dissabores. A fragmentação da identidade de Macau, a perda do ideário da língua e cultura portuguesa e, no abandono que é dado aos seus cidadãos, aos pobres, fracos, exaustos e aos desprotegidos – uma sociedade que apesar de rica se torna pobre (de espírito).

Poesia, prosa e crónica, são marcos na obra de Silveira Machado. Há dois importantes livros – na opinião de simples leitor -, que são uma referência obrigatória na bibliografia macaense. São os casos de «Macau, Mitos & Lendas» (1998) e «O Outro lado da Vida» (2005). Na opinião de Luís Sá Cunha “Na sua obra, ele fez a síntese de dois universos, de duas vivências, das duas metades de Macau”.

São livros em que encontramos experiências vividas, “soprava nele um irresistível vento de poesia”.

«Macau, Mitos & Lendas», são as notas ao programa do Prelúdio da sua Oratória «Amor a Macau» -, para quando a reedição (?). O livro está esgotado há anos e faz falta nos escaparates das livrarias – e, «O Outro Lado da Vida», é o poslúdio da sua obra – é o olhar crítico, contestatário de Silveira Machado, sobre a sociedade de consumo, de extravagâncias, de mercado de dissimulação, “aos que vivem do lado positivo da vida, os abastados, os ricos, os poderosos”. O autor mostra o seu lado generoso, tolerante, humanista, idealista, pensa que “a sua leitura seja motivo para o rebate de consciências e mudança de mentalidade e leve muitos ricos e poderosos a praticar a verdadeira e necessária solidariedade (…) para que, num futuro breve, não sejam tantas as crianças e jovens, tantos os homens e mulheres, a viver do «outro lado da vida» -, a pobreza e a marginalização como o maior défice social da sociedade”.

Foi co-fundador e jornalista do semanário católico «O Clarim». Colaborou ainda na «Voz de Macau», na «Comunidade» – onde assinou vários artigos de grande valor, sobre as indústrias de Macau – e, no «Renascimento» (jornal e revista). Foi correspondente do «Diário da Manhã» e da revista de cinema «Plateia», outra grande paixão. Paixão que se viria a traduzir no guião que escreveu para o 1º filme realizado em Macau – «Caminhos Longos» (1956).

Quanto mais pobre teria sido a literatura macaense, e Macau mais triste e menos Macau, sem José Silveira Machado, um nome incontornável na história recente na «nossa» Cidade. A sua escrita celebra, relembra e revisita Macau «sonhos, desejos, êxitos». A maturidade ensina a aceitar a dor com menos sofrimento e a viver com mais tranquilidade.

Finou-se, como sempre viveu – discretamente -, recolheu-se ao fim da tarde do dia 18 de Novembro de 2007.

A melhor homenagem que se lhe poderia prestar – no meio de tantas outras que se prestaram, seria fastidioso estar a enumerar –, seria editar e reeditar, ler e reler, a sua obra (é preciso saber mostrar que sabemos preservar a memória e a identidade da «Cidade») –, o Homem parte a Obra fica…!


Bibliografia: «Macau, Sentinela do Passado» (1956); «Rio das Pérolas» (1993); «Macau, Mitos & Lendas» (1998); «Duas Instituições Macaenses (1998) – em co-autoria com João Guedes -; «Macau na Memória do Tempo» (2002); « O Outro Lado da Vida» (2005). Coordenou ainda no âmbito da Fundação Macau, a reedição (1996) da obra completa de José dos Santos Ferreira, o «nosso» Adé.

“Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos;
E para mais me espantar
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos”

Luís de Camões
25 Out 2018

Manifesto d’Educação I

[dropcap style=’circle’] A [/dropcap] os jovens uma palavra de confiança: “tenho em mim todos os sonhos do mundo”, o pensar de Fernando Pessoa. Sejam inconformistas, iconoclastas, perfeccionistas, cosmopolitas, exigentes, esclarecidos e mostrem, sobretudo, uma grande inquietação intelectual, sem abolir valores. Criam-se chefias mas não há liderança, nem sequer enterrem vivos os princípios. Cultivem a inteligência não deixem morrer nem a utopia nem a revolta,democrática, evidentemente. É preciso lembrar que o sucesso precisa de trabalho, tempo e talento.

Em pleno século XXI se queremos «Crescer», temos forçosamente de exigir “mais educação, melhor educação e maior equidade social”.

Criar uma Escola diferente, como instituição, fazer a sua reconfiguração. Com projectos pedagógicos inovadores, que aqui se possam desenvolver, com audácia criativa, sem esquecer o modelo de organização e gestão, a competência dos professores (além da mera reprodução de conhecimentos) e o nível de exigência, com empenho, dedicação e disciplina. Até porque o fosso em relação a «outros» modelos de ensino é enorme.

Estimular a curiosidade científica, os gostos e hábitos de leitura e as capacidades artísticas. Uma Escola que leve os jovens a assumir novos gostos, atracções ou tendências, para fomentar e valorizar «novos» hábitos de trabalho. Escola não só como local de instrução (pais ausentes), mas como território crucial para a socialização e educação (de forma a elevar o bem-estar). Escola organizada numa perspectiva de abertura à sociedade e à aprendizagem ao longo da vida.

Deveríamos tentar construir uma Escola assente na “progressão individual e na transformação colectiva” e não um “disfarce humanista”. Já que temos o dever de lutar pela sobrevivência das futuras gerações. Ou aos nossos jovens não se poderá dar já o poder de sonhar? Pensar? Reflectir?

Estamos a assistir a um suicídio geracional e, ninguém intelectualmente honesto pode fingir que o problema não existe e que caminhamos para um desastre de consequências graves.

É urgente criar uma “Escola que volte a ser exigente, não sendo nem discriminadora nem uma fábrica de igualitarismo”, só assim se poderá manter a “frescura criadora da criança no estudo” – para citar Calvet de Magalhães (1913 – 1974).

Os grandes processos de escolarização aconteceram já em muitos países na primeira metade do século XX, ou mesmo no séc. XIX – como o caso inglês e francês – , mas em Macau infelizmente tal só veio a acontecer e ainda assim com graves deficiências nos finais do século passado.

A Universidade de Macau, por exemplo, «só» nasceu em 1991, havia a Universidade da Ásia Oriental, mas isso era outro negócio – privada e com poucas ligações ao Território.

Apesar de todo um passado, o ensino em Macau foi inconsequente, inconsistente, incongruente – frágil.

Em França, já havia ensino obrigatório desde o século XVI, ainda que não universal.

Em Portugal, por exemplo, a lei da escolaridade obrigatória de quatro anos só surgiu em 1956 e somente para crianças de sexo masculino. Em 1960 para ambos os géneros. Nessa altura a taxa de analfabetismo era de 33 por cento. A obrigatoriedade de nove anos de frequência só em 1986 se tornou uma realidade. Portugal entrou no século XX com uma taxa de analfabetismo próximo dos 75por cento. A lei da escolaridade gratuita surge a 7 de Setembro de 1835 de forma insípida e pouco consistente.

A população de Macau – independentemente da etnia, credo ou cultura – do século XXI deve aprender a viver sobre o lema “Iniciativa, Inovação, Irreverência”.

Não é só através de uma mudança geracional que se conseguem atingir os objectivos, mas também através de uma mudança de atitude, com um pensamento estratégico e com trabalho de equipa.

É o triângulo formado pela educação/ciência/cultura, que propícia o conhecimento, estímula a criatividade e aumenta a produtividade. «Educar» – aqui no sentido dado pelo educador brasileiro Rubem Alves (1933/2014) – “criar curiosidadede pensar”. Só com serviços escolares empenhados, disciplinados e longos – os nossos serão (?) – é que se constrói o Saber/Humanidade.

Os jovens (deixem a resignação) exigem estímulos, confiança e autonomia, para poderem ganhar determinção, coragem e força – capacidade crítica e comportamento ético.

A verdade e a honra não são coisas do passado – a honestidade não é uma mercadoria – e por isso mente-se, ilude-se e enriquece-se. Falta-nos espírito crítico, daí o oportunismo.

Os jovens hoje em dia – talvez fruto do excesso de consumo das novas tecnologias (?) -, vivem uma vida de forma ficcionada – “ é mais fácil, menos intrínseco, mais diáfano, menos doloroso”. Será ? Porquê?

Os jovens precisam urgentemente de orientações e horizontes futuros – temos de saber abrir a porta do conhecimento -, mas infelizmente não temos porteiro.

O berço pode ser o sonho da realidade … ou da resistência…vamos sonhando!

“O progresso é impossível sem mudança. Aqueles que não conseguem mudar as suas mentes não conseguem mudar nada”, na opinião do escritor George Bernard Shaw.

Gostaria – quando (?) não sei – que me dessem razões para não ter razão de ter de escrever, até porque e passo a citar, Jack Kerouac “todos os seres humanos são sonhadores e o sonho une a humanidade”.


“Por vezes cabe a uma geração ser grande. Esta pode ser essa geração.Deixem a vossa grandeza florescer.”
Nelson Mandela (1918 – 2013) líder rebelde, presidente da África do Sul
16 Abr 2018

“O que resta?”

[dropcap style≠‘circle’]O[/dropcap] último trabalho do realizador J. Gaia – título original “What´s Left” de 2012 -, é um filme polémico, vanguardista, singular, devastador e maldito.

Apesar de vivermos numa conjuntura económica favorável, há uma grande falta do investimento, por parte do Governo, de que resulta uma certa estagnação da actividade cinematográfica. Talvez mais importante que a retracção, seja a ausência de uma orientação estratégica clara para o sector por parte das entidades competentes. Falta pensamento institucional, políticas próprias e por razões várias de decisores públicos. É tudo muito paroquial.

A cultura (cinema) é uma responsabilidade do Governo. Optar por festivais, pode não ser a melhor opção – veremos!

Sem grande pretensiosismo, J. Gaia agarra o impossível com mestria, agilidade e um talento notável. Uma “história” simples, linear, em que o realizador sem preconceitos ou conceitos, antes com desrespeito pelas regras base da cinematografia – sem grande consistência estilística – explora, experimenta, resumindo cria o retrato de uma cidade em mudança, com um quadro negro, diga-se psicológico, da sociedade. A dissolução.

Filme de palavra curta, com uma forte concisão da linguagem e, narrativamente simples. É a imagem que a dá a ver – ajuda a procurar uma saída positiva, criadora e eficiente, um meio audaz, necessário, o autor vive obcecado pela maximização (de meios e custos) e, talvez por isso surge como uma via de complemento de afirmação, sem subalternizações, como uma nova realidade estética, sem contudo cair na tentação de limitar campos, e conteúdos. Existe uma unidade entre texto e imagem que atinge pontos extremos de criatividade, elegância e invenção cinematográfica. Perfeita a montagem sincopada e electrizante.

Falar de crise através dos cúmplices, da bolsa através dos especuladores, do clima através das catástrofes, do ambiente através da destruição, da globalização através da fome, da justiça através da dignidade, do mundo através do entretenimento, jogo através de números, da palavra através de sobreviver, de presente através de consumo e futuro através de reprodução – um mundo de palavras soletradas uma a uma, de forma, solene, nobre, vigorosa e seca – em off -, doseadas com imagens digitais de um impressionante realismo atroz inquietante e perturbador. Um diálogo (palavra/imagem) existencial, sem divagações ou histerias, que se abate sobre o espectador, podendo criar ansiedade e depressão, sobretudo naquela faixa etária mais resignada.

Há duas ou três cenas, no filme – onde existe mais cinema a ver do que em algumas dezenas, mas não dizer centenas de filmes inteiros -, dessas sessões contínuas que enchem a cidade inteira.

Sem comentários adicionais, para não perturbar o espectador nas suas “leituras cinematográficas”, veja-se por exemplo a cena «Missa Dominical». Ao sair da Igreja de braço dado com a sua afilhada Joaninha, D. Amélia Cunha – grande plano da Igreja de S. Lázaro (Porquê esta Igreja?), com a figura tutelar do padre na despedida aos fiéis, ainda no adro, abre a sua sombrinha e ouve de Joaninha: “Não madrinha é um problema de inveja”.

A que D. Amélia responde – apesar da idade – em tom seco e timbrado, “não minha filha, aqui os problemas são única e exclusivamente de dinheiro”.

Surge uma «cortina», aqui necessária e obrigatória (por causa das más interpretações), mas talvez o único senão ao longo do filme, o seu uso e abuso, apesar de todos nós sabermos que a cidade deixou há muito de poder ser um estúdio ao ar livre. Fazer exteriores com orçamentos apertados, é impossível.

A cena seguinte – é digna de bom entendedor – no restaurante «Hong Feng » (Montanha Vermelha), ficam casualmente sentadas entre uma típica família chinesa e uma portuguesa. Do lado esquerdo a chinesa e do lado direito a portuguesa. O olhar silencioso e as expressões de D. Amélia e Joaninha – quase perdem o apetite. Excelente, revela dois nomes a fixar, um grande momento cinematográfico.

Por fim, veja-se como Gaia filma em poucos planos sofás, cristaleira, estante, mesa, açambarcando toda a sala da família Cunha. É de mestre. Falamos da cena em casa dos Cunhas.

A cidade dorme. Joaninha numa noite quente, abafada, húmida, noite de pesadelos e insónias, acorda e dirige-se até à sala de jantar para beber um copo de água. Na quietude na noite, olha para a estante e reflecte. Dá dois passos em frente e olha atentamente para os livros. Estende a mão e pega na “Clepsidra” de Camilo Pessanha. Abre ao acaso o livro – lê interiormente – “Quem poluíu, quem rasgou os meus lençóis de linho, onde esperei morrer…”. Um som ensurdecedor irrompe da rua. Um «gangue» perturba o silêncio, o sossego a paz, com berros, gritos e desordens várias. Joaninha estremece, deixa cair o livro e fica estupefacta. (Porquê ?)

Em todas, ou quase todas, as cenas deste filme, existe uma grande dose de nebulosidade de ideias, jogos de palavras que sugerem, não explicam. Ao espectador, sobretudo aos mais distraídos, desde já um conselho. Alerta máximo, abertura de espírito e sobretudo grande empreendedorismo mental.

“What´s Left”, não é de maneira nenhuma um filme de entretenimento de massas, com efeito psicológico aliviador ou desangustiante – não se esperam ver filas intermináveis na procura de um bilhete, ou a acotovelarem-se na busca de uma borla, nem tão pouco a entupirem a Net… É, antes de tudo, um filme de grande criatividade, um filme intimista, que terá certamente o seu grande percurso em festivais de cinema, cinematecas e plataformas de distribuição online. Apesar de a distribuição se resumir a um restrito “grupo de amigos”, não está em causa a qualidade intrínseca da obra.

Ficamos à espera, se entretanto alguém se lembrar, de uma retrospectiva integral, não só para redescobrir, mas também reavaliar a obra de J. Gaia.

Um filme com abundante matéria de análise, reflexão e porque não discussão – a Ver!!!


“Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a Humanidade já estavam todas escritas. Só faltava uma coisa: salvar a Humanidade.”
José Almada Negreiros (1893/1970), artista pástico/escritor
11 Abr 2018

A Razão de Existir (o prazer, a alegria & a «face»)

“A maior ameaça à nossa liberdade é a ausência de sentido crítico”

[dropcap]A[/dropcap] frase é do Nobel da Literatura Wole Soyinka – pseudónimo literário de Alcinwande Oluwale, que nasceu a 13 de Julho de 1934 em Abeokuta, na Nigéria e que foi o primeiro escritor africano a receber o galardão. Criticar mas também convencionar, divergir mas também convergir, contestar mas também construir – resumindo ter um pensamento urbano!

Antes de mais, gostaria, desde logo, de fazer uma declaração de interesses. Gosto de ter uma relação com o mundo, de construção e não de destruição. Gostaria que não se criassem – ou não nos obrigassem – a viver em círculos cáusticos, nem destrutivos e gostaria, por fim, que Macau não precisasse de se distinguir negativamente de ninguém, se souber distinguir-se positivamente (a música é melhor que o caos – sem casa, nem lar).

Terra onde complacência é norma e o desleixo tradição, Não obrigado! («Temos o destino que merecemos. O nosso destino está de acordo com os nossos méritos» – Albert Einstein).

Vivemos num Território de dúvidas!

Apesar de tudo, estou feliz, por não integrar o «partido» do pensamento único, nem o «comité» do elogio mútuo e, além disso os meus pensamentos não estão agarrados a qualquer compromisso.

Eu não acredito em sociedades de admiração mútua.

“Toda a vez que estiveres do lado da maioria, é hora de parar e reflectir” – na opinião de Mark Twain -, mas cada um sabe de Si.

Gosto de leituras diversas e dispersas, a juntar à degustação matinal da imprensa escrita – as outras só por uma questão de princípios ideológicos quase abandonei – gostaria de lembrar Hegel: “A Leitura do jornal é a oração matinal do homem moderno”.

O abandono premeditado de outras formas de comunicação, já que “os factos não me interessam” – estou a parafrasear Musil, o d’ “O Homem sem Qualidades” – que acrescenta, e faço minhas as suas palavras, “só as interpretações” -, apesar destas nem sempre denotarem ambição crítica (um grave problema cultural) e sem essa cláusula não há evolução do pensamento – nem no mínimo critica moral. As palavras são acções.

Já Nietzsche dizia: “Não há factos, só interpretação de factos”. Mas interpretação dos factos sem conhecimento: Não.

Esperemos que o pensamento não autorizado nunca seja crime.

Convém, desde logo, saber separar má-língua e crítica. «A má-língua é derrotista e paralisante, ao contrário do espírito crítico, que põe em causa falsos alarmes e falsas evidências,sabe analisar, sabe avaliar, sabe destrinçar» – resumindo, decide.

O problema da crítica – segundo Nuno Júdice – “é trazer as inimizades dos ressentidos, a arrogância dos medíocres e o fechamento da corporação”. A morte da crítica corresponde essencialmente ao desaparecimento do debate político.

Criticar não é ter ódio a ninguém – é discordar.

Um outro grave denominador comum é a chamada “censura social” que não nos deixa falar verdade.

Já Confúcio apregoava, “saber o que é correcto e não o fazer é falta de coragem”. Para isso, precisamos urgentemente de um pouco mais de ambição e um pouco menos de contenção, precisamos de limitar o uso do conceito consenso e usar preferencialmente compromisso, precisamos de um pouco mais de exigência e tenacidade para acabar com a indigência – terminar com o padrão de “política de pequeno círculo” (café/mahjong, «fazendo da língua mesa de conversa») -, ter uma mudança de atitude, com uma visão aberta e não dogmática da realidade.

Temos de saber criar um diálogo civilizacional entre política e felicidade. Políticas arrojadas, com uma desconstrução do discurso assim como também de conceitos, para acabar com este tipo de sociedade cuja personalidade é fraca, pungente, imperfeita e refém, para a dotar de uma personalidade forte, gloriosa, perfeita e criadora.

Não é por acaso que a população, hoje em dia, está despida de transcendência, valores ou referências. Assim, nunca construiremos uma sociedade coesa, humanista e solidária – é preciso reforçar o sentimento de pertença e de partilha -, estar atento ao próximo.

Discursos estruturantes – com uma linguagem enxuta e drenada, em vez de técnica e factual, sem futilidades, insignificâncias e provincianismos. A comunicação é dificiente, insuficiente, tardia e às vezes nula.

Prometer e negar devem ser palavras excluídas do discurso político. Definir e aplicar políticas de transformação estrutural e modernização efectiva. Não abdicar da cultura do exemplo. Apostar na cultura cívica – competência, dedicação e empenho – e, educacional. Recuperar valores de cidadania. Reestruturar o tecido social e familiar. Transformar a paixão em carácter. Aplicar uma maior justiça fiscal (temos de saber descontextualizar os números).

Ter uma visão cultural humanista. Fazer cumprir o dever de memória, porque ao perdê-lo, perde grande parte da sua identidade (sem sentimentos de pertença) e dignidade. Criar um quadro de diálogos entre o presente e a memória. Combater privilégios. Reforçar a economia social. Promover a economia verde e 4.0 (baseada no conhecimento) e crescimento azul – «Definir um rumo e um propósito, dizer para onde vamos e por onde vamos».

Só assim se pode criar uma sociedade caracterizada pela responsabilidade, iniciativa, autonomia, liderança, disciplina, participação e, sobretudo, ambição. Daí resulta uma cultura moderna de risco, conhecimento, inovação e reforma de métodos e mentalidades. O sociólogo alemão George Simmel diz que, para se desenvolver, “uma sociedade precisa de uma certa quantidade de harmonia e desarmonia, de associação e competição”.

Temos de combater a resignação e o medo – “O medo devora a alma” – Rainer W. Fassbinder.

Precisamos de uma palavra de confiança. Já Goethe dizia: “As pessoas infelizes são perigosas”. Falta saber conciliar a política do poder com a política da razão e essa leitura passa por uma interpretação correcta da relação entre pobreza, direitos sociais e políticos. Torna-se necessário examinar e rever, cuidadosamente, os modelos de respostas às dificuldades. Não se pode, ou não se deve, oscilar entre a insensibilidade para com os mais pobres e a vassalagem para com os mais ricos.

Engolimos explicações que nunca deveriam ser aceites por uma sociedade saudável («que respire») e minimamente exigente («com poder de orientação») – devíamos de ser capazes de unir esforços e reunir interesses.
A mentira vence, sem mentiras não havia vitórias…

Até porque os últimos anos foram de sofrimento privado e letargia pública.


“E o que não presta é isto, esta maneira
Quotidiana
Esta comédia desumana
E triste,
Que cobre de soturna maldição
A própria indignação
Que lhe resiste”

Miguel Torga (1907/1995), escritor
7 Mar 2018

Ideias, factos e ideais

“Neste mundo onde se grita, ninguém ouve os gritos dos que sofrem.”
Raul Brandão (1867/1930), escritor e jornalista português

[dropcap style≠’circle’]G[/dropcap]ostava de poder comunicar sensações que pudessem levar a uma partilha de sentimentos, percursos, diálogos…, já que vivemos num meio de sordidez moral, intelectual e estética.

Não sei porque escrevo, talvez porque algo me dói – talvez devido aos charcos da escassez de ideias -, ou será paixão?

Sempre tive mais dúvidas que certezas, desde novo que perdi a pressa de coisa alguma e, penso sempre que o melhor está sempre por vir – tenho uma consciência tranquila com o tempo -, mas nunca gostei de ouvir falar no esplendor tenebroso do destino. “Os meus destinos só estão bem comigo. Ou por eles triunfo ou por eles sou esmagado”, faço minhas as palavras de Amadeo de Souza-Cardoso.

O tempo – esse derradeiro e implacável juiz -, sei o que é (« vivo com ele»), mas não sei explicar – parafraseando ideias de Eduardo Lourenço.

Sempre achei que o tempo era um conceito mais constante. Enganei-me!

Antes de pensar e agir, é preciso sentir. Pertenço a uma geração de transição, contradição e afirmação.

Perdi a ilusão de que pela escrita se pode mudar o Mundo, só Almeida Garrett – quem mais podia ser -, acreditava que com a contundência da sua escrita podia mais do que a espada. Mas os grandes textos tornam-se impossíveis de se abarcar numa só Leitura.

Estamos a chegar a um estado de saturação, o ritmo é frenético e electrizante que não nos deixa pensar.Vivemos dentro de um passo que não é o nosso, é o compasso das máquinas e dos computadores («o triunfo da correcção automática»).

Sôfrega de atenção, actividade e consumo.

Roubam-nos o tempo. Infelizmente já não temos tempo para silenciar o ruído…, saborear momentos…, ter capacidade para sonhar. Torna-mos a vida pragmática e racional.

Temos de saber parar para reflectir!

Sentir («viver») Macau –“ a maneira mais profunda de sentir uma coisa é sofrer por ela” – escreveu Gustave Flaubert -, é percorrer a sua geografia afectiva e sentimental. É combater vícios, sarar feridas, detectar maleitas. É lutar contra a falta de honestidade intelectual e coerência de pensamento, a falta de seriedade.

É envolver-nos na sua alegria e tristeza («dramas e frustações») e, comprometemo-nos moral e éticamente com a cidade. Não se pode ficar inume a nada do que vemos e ouvimos à nossa volta.

Sempre tive uma sensação de proximidade com Macau, sólida e delicada, sensual e familiar. É a penumbra das coisas íntimas que nos atravessam e nunca mais nos largam.

Sinto-me abraçado pela utopia quotidiana da Cidade ( «romântica/sensível e material/vício») – «venho de um tempo em que viver em Macau era rasgar possibilidades».

Sempre tive uma “fiel dedicação à honra de estar” -, para lembrar Jorge de Sena.

Mas nada hoje em dia em Macau parece coerente e inteiro . Vive-se de fragmentos. Não existe uma linguagem de poder, criação e criatividade. A Gramática da idêntidade («auxíliavamos nos apontamentos») desapareceu.

Macau é o deslugar do lugar… Uma Cidade excessiva, massacrada,torturada, flagelada.

Fico triste de vê-la “maquilhada como uma mãe morta” – para lembrar Joan Margarit – , os «filhos» estão abatidos, moribundos, despedaçados, consolam-se!

Não há uma paisagem ética. Há uma espécie de floresta encantada, recheada de perigos.

Uma oposição entre hino e elegia.

A maior parte dos portugueses a viver em Macau já deixaram de interrogar a vida – confiam nela -, criaram ilusões. Viram partir as referências (« gostam de olhar a Lua em noites de luar»). Os mais velhos olham o céu com menos admiração e mais receio. Nos últimos anos a realidade transformou-se em abstração para muita gente.

Vivemos em cavernas de silêncio .

Arrumam-nos os dias («um teatro de medos e esperanças um discurso de ficções e de metáforas»).

Há luz do dia, nasce a angústia!… Precisamos de luz no coração.

Não há consciência crítica nem fraternidade cívica.

Se não houver uma ética de convicções, não haverá naturalmente uma ética da responsabilidade.

Ninguém assume responsabilidade sobre nada – e, por isso o estado a que o Território chegou, é provavelmente, obra do acaso.

Estudamos a narrativa da obediência e esquecemos a poesia da desobediência («em homenagem à “liberdade” verbal»). A população é educada para não reagir, não questionar, não prostestar. Vive-se em economia política do verbo («é triste não os sabermos conjugar»)

Degustamos a luz da poesia no silêncio da vida!

Temos de criar um pensamento autónomo, não enfeudado em dogmas ou crenças. Sermos mais persistentes na exigência crítica, argutos analistas de ideias e factos, perscrutadores de paradoxos e sabermos interrogar constantemente. Não existe por exemplo uma actividade crítica original à materialidade formal .

Uma das máximas da mundividência é o diálogo. Mas não existe diálogo se não soubermos quem somos.

A propaganda é o colapso da linguagem.

O «Poder» não é nem nunca será sinónimo de verdade e justiça, muito menos terá o monopólio da moral e da legitimidade. Exige-se seriedade, respeito, confiança e honestidade.

Vive-se num ambiente infeliz, injusto, irrespirável («assemelhando-se a uma fábrica de preconceitos») –, que pode provocar a desintegração da sociedade («tornou-se amarga»).

É uma sociedade que fabrica a solidão, a demência, a esquizofrenia.

Existe défice de confiança -, a população ainda olha para o Governo com um profundo sentimento de orfandade, inevitabilidade e apatia -, pode ser dócil e empenhada, mas não é imbecil nem estúpida. Rejeita os discursos ambíguos («saber “renascer” a esperança»).

Falo da falta da esperança e desgaste da estratégia.

São vozes humanas que «devemos» saber escutar.

Falta-lhes contudo o exercício da palavra («recurso das palavras»). Não têm o poder da frase evocativa.

Vivemos entre o dogmatismo e a descrença.

Temos de nos tornar mais vigilantes, mais organizados, mais cidadãos – uma cidadania activa e responsável.

Existe um pessimismo generalizado e uma desmotivação colectiva. Crescem as franjas de indignados («a textura social agita-se»).

Precisamos de “outra forma de vivência” – com uma agenda política sólida (« a relação com o “Outro”») e uma visão estratégia da sociedade e, não com artefactos ideológicos («sem alma e sem rosto»), nem com rigidez doutrinária.

É preciso apostar em causas, ideias e projectos, de maneira a “construir” uma sociedade mais justa e inclusiva, com valores, solidária, coesa e humanista.

A sociedade está a ficar mais egoísta, mais individual, deixou de ter uma visão colectiva.

Uma sociedade tantas vezes intoxicada pelo consumismo e pelo hedonismo, pela riqueza e pela extravagância, pelas aparências e pelo narcisismo.

O mosaico espiritual desapareceu, instalou-se a decadência moral na cidade.

A dúvida e a incerteza, são um perigo, para o dia de amanhã…e, a ideia de que não há culpados…, pode-nos levar a pensar que a culpa seja «nossa».

Afinal de contas a idade não serve só para envelhecer. Ou será?

Os sonhos não envelhecem (sem nunca mostrar apreço ou subversão)…. e as árvores morrem de pé («o “medo” do sobressalto do despertar»).


“outros amarão as coisas que eu amei”
Sophia de Mello Breyner
17 Jan 2018

Mistérios de Factos & Estórias de Memórias

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]pós a fulgurante estreia ficcional em 2000, com o título “As Más Inclinações” e, tendo como subtítulo “Breviário do Jogo” – que a crítica apelidou de escrita “silenciosa”, construída com uma “agilidade vocabular perfeita e refinada”, de um autor “estranho, requintado e provocador”, E. Trovoada está de volta aos escaparates das livrarias, agora com “O Príncipe Encantado e a Oportunidade Perdida”, com a chancela da «Chapas Sínicas».

Apesar do reconhecimento público, foi com “O Estranho Caso de Mr. Mao” de 2006 e de “A Chave da Casa Abandonada” de 2009, que o talento e o reconhecimento de Trovoada se consolidou. A crítica foi unânime – aclamou, aplaudiu – rendeu-se: “Uma obra importantíssima, das mais originais e poderosas no actual panorama editorial” – podia ler-se –, “destruição de mitos” de um autor que “reinventa, recria os factos, procurando transmiti-los de forma original, sem traumas, tormentos ou desilusões” , ou ainda, “acolhe memórias ,experiências e sensações de forma a preservar e conservar a identidade colectiva”.

A obra de estreia de E. Trovoada, “As Más Inclinações – Breviário do Jogo” (2000), não é um livro de grande complexidade estrutural, nem de grande sofisticação intelectual, mas é um livro de uma prosa magnífica – escorreita, sadia, pura –, que vai do confronto pessoal ao político.

O autor começa por reflectir sobre o lugar que habitamos, a construção da identidade, afectos, memórias – a relação umbilical entre as pessoas e o seu espaço –, não na teoria de Le Corbusier , onde “uma casa é uma máquina de morar”.

É uma obra centrífuga – em vez de seguir em frente –, ela anda para os lados, avança para a periferia e, a partir do quarto capítulo a linearidade da narrativa estilhaça-se de vez. Passa a salpicar o texto com pormenores inconsequentes, pequenas aventuras, experiências vazias, diversificadas por vezes, mas banais, em viagens nocturnas ao submundo do crime e da aventura – registos crus, mas poéticos, com diálogos excêntricos, mas esplêndidos -, às saunas, discotecas, casinos e botecos ordinários.

Ainda assim é um livro em que as boas intenções não contrariam a boa literatura.

“O Estranho Caso de Mr. Mao” (2006) é uma introspecção, uma reflexão que nos leva pelo espaço físico dos tribunais, dá-nos a conhecer o seu funcionamento e as personagens com que o autor se vai cruzando – o mundo contraditório da razão, a irrealidade – , a confusão, o caos. O descortinar de factos recentes. O “Medo” faz parte da construção narrativa, é um “Ser” presente. Forte e robusto.

O autor não fornece respostas directas, apresenta ideias e soluções, não as impõem, discute-as com o leitor – o leitor é cúmplice -, tudo de maneira serena, arrumada, educada. Com uma grande economia de tensão e considerações narrativas, E. Trovoada procura através das palavras atingir um grande alcance reflexivo, de grande exigência e fixa a discussão a um nível elevado do pensamento, com uma prosa lenta, complexa e meticulosa.

Notável (condição social) o capítulo do julgamento, ao abolir a hierarquia dos discursos, ao não colocar num plano superior a explicação do juiz, relativamente ao do réu.

O autor sabe – e, também porque sabe -, consegue desmitificar a importância da Justiça, sobretudo de uma justiça com várias questões por decidir, por resolver e fértil em suposições e inquietações.

“A Chave da Casa Abandonada”, de 2009, é um livro para adultos de todas as idades , recheado de um humor mordaz e colorido, com fragmentos acutilantes e melancólicos. Com uma prosa telúrica – que tanto nos horroriza como nos faz soltar gargalhadas –, povoado por criaturas aborrecidas, imaturas e ilegíveis.

A figura de Eunídes é disso um bom exemplo. Vive entre “ a imagem moral do fracasso” e o “símbolo físico do abandono” – dúvida e pânico. A obra duplica-se, desdobra-se num par de histórias paralelas: a do narrador e das personagens. Um e outros “vivem” os mesmos espaços, lugares, tempos, são coniventes. Aqui o que impressiona, é a forma `sage` como o autor consegue manter em suspenso o conflito entre histórias.

A espantosa capacidade de síntese – torna o final soberbo -, os “zumbidos” dos carros a circular, o “ladrar” dos cães abandonados e, as pessoas de “máscara” a vaguear pela cidade – “é a vida do tempo a passar”.

Finalmente, o ansiado livro acabado de chegar às Livrarias, “O Príncipe Encantado e a Oportunidade Perdida”, o autor escreve com a leveza habitual, um registo que mistura, humor, memórias, estórias, mas com uma acutilância precisa, feroz, que lhe advém do facto de conhecer bem a política, todos os meandros da política, mas infelizmente não ser político, apesar de ser inculto, provinciano, ignorante e melancólico.

Trovoada usa palavras de arremesso contra a situação política e social, mas não escancara o horror da banalidade e da futilidade de forma amarga, selvagem, oca. Constrói um quadro com boa parte da sociedade civil farta dos desmandos políticos, do caciquismo, corrupção, das venalidades do poder, sem cair na tentação da grande eloquência, nem aspira a fazer da obra um testamento histórico.

Usa os estratagemas narrativos tradicionais – para não perder o leitor, para conferir acção -, como conversas, telefonemas, pápeis, o que torna a obra ao mesmo tempo “compacta” e “porosa”. Vive entre hiatos e reconstruções documentais verídicas.

Em todos os livros, os textos de E. Trovoada não são para afirmação ou acusação de ninguém, nem tão pouco são textos panfletários ou propagandísticos. São antes de tudo livros escritos com uma elegância rigorosa, com uma criatividade a roçar o mágico e, uma deslumbrante forma de olhar a sociedade – nua e crua.

Uma prosa livre e estruturante, de um autor maldito e obrigatório.

“Não criamos nada. Juntamos coisas.”
Ana Teresa Pereira, em “O Lago” (2011)
13 Dez 2017