Filosofias orientais, filosofias indígenas

Em um recanto do centro do Brasil, em meio à Chapada dos Veadeiros, no estado de Goiás, ocorreu nos dias 21 e 22 de abril de 2023 um seminário assim intitulado: “Existencialidade e Direito: diálogos entre filosofias orientais e indígenas.”

A iniciativa, fruto de uma rede de debates em filosofia intercultural coordenada pelo professor Antônio Florentino Neto (Unicamp/Brasil), se deu como etapa preparatória ao Colóquio Internacional sobre Filosofia Oriental dessa mesma Universidade de Campinas, a ocorrer em novembro próximo, e que costuma reunir pesquisadores do Brasil, da Europa, Estados Unidos, China e Japão.

O encontro na Chapada dos Veadeiros foi realizado na Aldeia Multiétnica, um centro de atividades em pleno cerrado brasileiro, e reuniu pesquisadores de diferentes matrizes e especialidades: em pauta, algumas filosofias da Ásia e outras tantas originárias deste território que hoje é chamado de Brasil.

Com tal seminário, debatíamos a pertinência de conceitos universais — e internacionais — como os Direitos Humanos, e isso em uma perspectiva intencionalmente não-ocidental. Os pensadores indígenas que ali estavam pontuaram, sob diferentes prismas, os modos pelos quais o avanço colonial do assim chamado Ocidente impacta diretamente nas vidas de suas comunidades; falaram sobre as possibilidades de existência de seus territórios, e com isso também vieram pôr em xeque a possibilidade de se pensarem filosofias — quer ocidentais, quer orientais, quer mesmo indígenas — sem ter em conta a dimensão fundamental, para o próprio conhecimento, da experiência concreta do mundo; mundo sempre muito povoado, por humanos e outras tantas entidades que compõem o entendimento de cada povo com relação ao que existe e ao que pode existir. Estavam presentes Gersem Baniwa, Edson Kayapó, Álvaro de Azevedo Gonzaga e Almires Martins Machado, os dois últimos pertencentes a comunidades Guarani. Além deles, mais indígenas compunham o encontro: gente dos povos Guarani Mbyá, Fulni-ô, Yawalapiti. Um público também não-indígena participava do evento como assistência, e os professores Lucas Machado, Amâncio Friaça e Vanessa Louise atuavam como debatedores.

Da Índia, o professor Dilip Loundo apresentou tradições filosóficas que muito contribuíam para relativizar a pretensa universalidade do Ocidente; eu, de minha parte, debatia dimensões pragmáticas e cotidianas das cosmologias budistas da Terra Pura, tomando o pensamento de alguns mestres dessa tradição como condução e guia: àquele público de pesquisadores indígenas, indianos e brasileiros, apresentava o pensamento de uma Terra Pura como elaborado por tantos nomes asiáticos, como Taixu e Yinshun; nomes para quem a Terra Pura não se configura apenas como uma realidade soteriológica, metafísica e futura, mas também como a possibilidade — e mesmo a necessidade — de uma Terra da Purificação nesta mesma terra presente, na qual todos vivemos. Debatendo existencialidades e direito, pensando em éticas e filosofias políticas, em modos de organização social e modos de viver a vida neste mundo, a Terra Pura — como eu a apresentava aos colegas — surgia ali como uma possibilidade de se pensar a criação de vínculos comunitários, políticos e cotidianos, como tantas vezes ocorreu na Ásia, da China ao Japão.

Assim diz Yinshun, explicando a tradição Terra Pura chinesa:

“O Mahayana não se limita a buscar a pureza dos seres sencientes, exigindo também a purificação do país. Onde existe um ser senciente, existe o seu ambiente; da mesma forma que um pássaro ou um bicho da seda possuem seus ambientes todos os seres sencientes também possuem seu local de atividade. Os seres sencientes são a ‘retribuição correta’ (Carma individual), o mundo é a ‘retribuição dependente’ (Carma coletivo). Essa retribuição dependente se constitui no local de sua ação.” (Novo tratado da Terra Pura, Palestra realizada no Shinshan Ching Yee em Hong Kong no inverno do quadragésimo ano da república chinesa [1951]. Tradução de Joaquim Antônio Bernardes Carneiro Monteiro.)

Qual seria, para a existencialidade de uma Terra Pura, para a vida cotidiana sob os auspícios do Dharma do Buda, um “local de ação” a compreender a construção ética de uma comunidade política guiada por tradições vindas do budismo? Por que dizer, como dissemos pouco acima, de uma “Terra da Purificação” a par de uma “Terra Pura”? O Reverendo Ricardo Mario Gonçalves, grande mestre e professor de estudos budistas e orientais da Universidade de São Paulo (Brasil), saudoso irmão no Dharma, por vezes explicava essa variação. Dizia ele que o Prof. Sussumu Yamaguchi, da Universidade Otani, que estudou na França quando jovem, traduzia “Jôdo” [forma japonesa de 淨土, jìngtǔ] não como “Terra Pura”, como se faz comumente, mas sim como “Terre de Purification”, tradução que justificava por resgatar o dinamismo da ação dos Bodhisattvas. Dizia o Reverendo Ricardo Mario Gonçalves: “Meus mestres japoneses da Ordem Otani eu mesmo concordamos todos com isso.”

O lugar da ação da Terra Pura, o dinamismo da ação dos Bodhisattvas, a possibilidade de uma Terra da Purificação a ser criada, constantemente criada neste mundo, por fim encontra a possibilidade de diálogo com diferentes filosofias indígenas, como algumas que ali estavam presentes na Chapada dos Veadeiros.

Pois para os povos indígenas, há séculos pressionados, há séculos oprimidos pelos poderes coloniais, pela expansão de uma racionalidade predatória, pelo avanço sempre violento sobre suas terras, territórios, modos de vida, as condições para a construção de uma terra pura, para a asseguração de um Bem Viver, como muitas vezes chamam, mostram-se como um desafio constante. Desafio ético, político, de direitos, mas também filosófico, ao passo que exige das forças indígenas que, a todo instante, lutem contra o avanço de uma lógica única, ocidental, que nada purifica.

Leandro Durazzo escreve em português do Brasil.

2 Mai 2023

Sobre as tradições Chan e Terra Pura no budismo chinês

Do século V ao século X a China presenciou a formação do que é hoje categorizado, historiograficamente, como as “oito escolas” do budismo setentrional. A esse conjunto pertencem as escolas Três Tratados, Tiantai, Mente Apenas, Guirlanda de Flores, Vinaya, Tântrica, Chan e Terra Pura. Muito resumidamente podemos dizer que as escolas Três Tratados e Mente Apenas são, diferente das outras, tradições indianas recebidas pelo budismo chinês. A escola dos Três Tratados é derivada diretamente da escola indiana Madhyamika, do monge Nagarjuna — considerado um santo, um “segundo Buda”. Tal escola foi levada à China pelo monge tradutor Kumarajiva.

A escola Mente Apenas, também de origem indiana, deve sua origem aos escritos dos irmãos Asanga e Vasubandhu (sécs. IV ou V). Na Índia tal escola é denominada Yogachara, que significa “aplicação do yoga”. Como seu nome deixa entrever, a escola Mente Apenas tem seu foco na noção de que todos os fenômenos são produtos da mente.

Essas duas escolas indianas constituem o que se pode chamar de totalidade da tradição budista do norte — tradição que se difundiu do norte da Índia para a Ásia Central, China, Japão, Coreia, Vietname, Tibete e Mongólia.

As demais escolas, todas de origem chinesa, acabaram por ser absorvidas pelas únicas tradições com alguma constância institucional ao longo da história. Essa absorção significa que, no seio das escolas ainda institucionalizadas, algumas de suas práticas e literaturas permanecem importante material de estudo. As escolas ainda existentes, como já é possível imaginar, são justamente as que nomeiam este texto: Chan e Terra Pura.

Entretanto, embora mestre Hsing-Yün diga textualmente que “actualmente na China, somente as escolas Ch’an e Terra Pura ainda dispõem de componentes institucionais”, devemos relativizar tal afirmação. Embora as duas tradições tenham, de fato, presença marcada no contexto chinês atual, há debates indicando que Terra Pura nunca se consolidou enquanto escola institucional autônoma, sendo antes uma prática difundida e disseminada por muito do universo budista chinês.

Contrapondo tal problemática ao claro cenário budista japonês — em que há instituições Terra Pura fundadas por Honen (1133-1212, fundador da Escola da Terra Pura) e Shinran (1173–1263, fundador da Verdadeira Escola da Terra Pura) —, Mestre Sheng Yen é categórico: “não existe Escola da Terra Pura.” E isso porque, no contexto chinês, o que se evidenciava era um fato muito diverso do caso institucional japonês, em que templos são filiados a mosteiros cuja denominação responde diretamente às escolas da Terra Pura mencionadas.

Na China, pelo contrário, templos e mosteiros não mantinham tais filiações estritas, e um templo era considerado “Terra Pura” quando seu abade orientava a prática da recitação do nome do Buda Amitabha. Tal recitação, esta sim, é a prática Terra Pura mais característica, que visa — soteriologicamente falando — fazer o devoto renascer na Terra Pura do Buda Amitabha, um reino criado pela compaixão desse buda, onde as condições para atingir a iluminação seriam consideravelmente facilitadas.

Tal recitação do nome — comumente escrita nien fo (ou nian fo, 念佛) — associava determinado templo à Terra Pura, se tal prática fosse nele difundida. Entretanto, por faltar o elemento institucional que caracterizaria uma escola, a prática de nian fo nem sempre sobrevivia a seu próprio incentivador, e após a morte do abade o templo passava a ser centro de outras práticas budistas, usualmente Chan.

Uma suposta fusão entre escolas, portanto, não faria sentido nesse contexto fluido e não-institucional do budismo chinês. Por isso a revisão historiográfica de Robert Sharf questionou sobremaneira tal definição acadêmica, mostrando extensamente que no período medieval a China não possuía uma escola Terra Pura e outra Chan, mas ambas as formas de prática se apresentavam em conjuntamente, com maior ou menor prevalência a depender das circunstâncias.

Referências:

1. HSING-YÜN, Venerável Mestre. Conceitos fundamentais do budismo. Sintra: Zéfiro, 2010, p. 161.
2. HSING-YÜN. Op cit. 2010, p. 159.
3. HSING-YÜN. Op cit. 2010, p. 169.
4. SHENG YEN. Master. The Dharma Drum Lineage of Chan Buddhism: Inheriting the Past and Inspiring the Future. Taipei: The Sheng Yen Education Foundation, 2010, p. 60.
5. SHENG YEN. Idem.
6. SHARF, Robert. On Pure Land Buddhism and Ch’an/Pure Land Syncretism in Medieval China. In: T’oung Pao 88, no. 4-5, June, 2003, pp. 282-331.
7. Ainda hoje, tanto na China como em Taiwan, perguntar a um monge algo como “a que escola este templo pertence?” não parece fazer sentido. A resposta quase sempre evidencia que tais escolas e tradições budistas bem podem ter existido, historicamente, mas não é algo a que devamos nos apegar. O Reverendo Joaquim Monteiro também relata esse tipo de reação, que já pudemos presenciar tanto no Brasil quanto em Portugal ou Taiwan, em uma palestra disponível em vídeo: http://www.youtube.com/watch?v=a7w_OV2yOjo&feature=youtu.be

27 Mar 2023

Tomando vinho


Tao Yuanming (陶淵明, 365-427 EC)
Tradução de Leandro Durazzo

飲酒

結廬在人境,
而無車馬喧。
問君何能爾?
心遠地自偏。
採菊東籬下,
悠然見南山。
山氣日夕佳,
飛鳥相與還。
此中有真意,
欲辯已忘言。

moro em meio aos homens,
mas nenhum barulho me perturba.
“Como pode ser?”, você pergunta,
seu coração distante se confunde.
crisântemos colhidos dos arbustos,
montanhas bem ao longe.
a luz por suas névoas são brilhantes
e os pássaros voltando todos juntos.
em tudo há sentido verdadeiro,
mas não tenho palavras pra dizê-lo.

2 Mar 2023

Vivendo as montanhas no verão

Em um poema escrito nalgum ponto do século IX, Yu Xuanji (魚玄機, 844-869 d.C.) descreve sua vida veranil em montanhas que apenas a biógrafos é dado conhecer. Na tradução brasileira de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao, assim sabemos de sua estada montesa:

“VIVENDO NAS MONTANHAS NO VERÃO

Aqui, onde habitam os deuses, fiz minha morada
Bosques e arbustos misturam-se à revelia
Roupas lavadas penduro à menor das árvores
Sento-me à fonte; das pedras, nasce meu vinho
Abro as janelas à trilha dentre os bambus
Finas sedas tornaram-se embrulho de livros
Remando desço o rio, entre cantos à lua
leva-me o vento ao retorno: e ainda recito”

É sabido que a poesia chinesa manifesta certas tendências de sua cultura letrada, especialmente por suas temáticas e imagens recorrentes, sua autorreferência e a continuidade de vínculos e influências clássicas em seus versos. No poema acima, vemos duas presenças cruciais para a tradição poética — e mesmo espiritual — chinesa: as montanhas e, por paradoxal que seja, a própria noção de ausência: o vazio.
Yu Xuanji abre seu poema com uma afirmação categórica e muitíssimo relevante: ela faz sua morada nas montanhas, “onde habitam os deuses”. Não há dúvidas quanto a isso; seja pela própria deidade das montanhas, do espírito do vale taoísta, do caminho natural que a tudo conduz e que, nas montanhas, ganha concretude; seja pelas deidades que na montanha vivem, povoando todas as tradições religiosas, místicas, indígenas, exógenas, taoístas, budistas, ancestrais, a verdade afirmada pela poeta é esta: a montanha é a morada dos deuses. Local, também, em que a poeta vai morar.
Um texto bem conhecido do budismo Zen japonês, O Sermão das Montanhas e Águas do Mestre Dogen, manifesta em suas linhas o mesmo apreço pelas montanhas, a mesma consideração divinal e cosmológica, que nossa poeta chinesa parece indicar. E isso porque, embora japonês, o Mestre Dogen foi profundamente marcado por sua circulação pela China, onde aprendeu com monges, mestres, pessoas comuns e laicas, pescadores, habitantes de montanhas e muitos eventos mais. O Zen japonês, por exemplo, não existiria sem o Chan chinês; e o próprio Chan, pode-se aventar, não existiria sem a profundidade que na China já se encontrava desde antes do Dharma ali chegar.
Fato é que, para Dogen, falar de “montanhas e águas” — como se intitula seu discurso — é compreender “um panorama natural; ou a própria natureza […] Olhar a natureza é olhar a própria verdade budista. Por tal razão, mestre Dogen acreditava ser a natureza tal qual os sutras budistas. Neste capítulo, expõe a forma real da natureza, enfatizando sua relatividade” (DOGEN, 2007, p. 217, n.t., tradução nossa).
As montanhas são morada dos deuses porque, dentre outras razões, os deuses ali se percebem natureza. E porque a poeta assim percebe as montanhas, e os deuses, e um lugar possível para si no seio da sociedade em que vive, vai ela viver nas montanhas no verão. Yu Xuanji viver na singeleza do espaço, do território montanhoso que lhe dá guarida, e as pequenezas se lhe apresentam: os arbustos, a menor das árvores que lhe serve de varal às roupas, as pedras da fonte que lhe derramam vinho, a água pura e decerto fresca da terra, a fina seda que lhe embrulha os versos, os livros, os clássicos… Não admira que uma poeta — e que a poesia chinesa, muitas e muitas vezes, ao longo de todo o tempo que há no mundo; e não apenas a poesia, mas também a pintura, toda forma de arte, ascetismo, caligrafia, eremitérios — não admira que uma poeta se vá refugiar nesse espaço dos deuses, na própria deidade montanhosa. Afinal, para lermos tal movimento com Dogen uma vez mais:

“Normalmente, vemos as montanhas como pertencentes a um território, mas as montanhas pertencem às pessoas que as amam. Montanhas sempre amam seus ocupantes, e por isso os santos e sábios, pessoas de extrema virtude, seguem para elas. Quando santos e sábios vivem nas montanhas, porque as montanhas pertencem a eles, árvores e rochas abundam e florescem, e pássaros e mamíferos se tornam misteriosamente sublimes. Isso acontece porque os santos e sábios as cobriram de virtude.” (DOGEN, 2007, p. 224).

Santos e sábios e santas e sábias e poetas e poetas — este termo que, ao menos no Brasil em que ora escrevo, tem servido a homens e mulheres que deitam seus versos ao papel e ao mundo —, assim, são co-habitantes das montanhas, ao lado dos deuses, das águas e da natureza que, de certo modo, também ali habita. E por serem santas e sábias e poetas e atentas, pessoas com a sensibilidade de Yu Xuanji também apontam para a natureza daquilo que, na natureza espiritual da China, seja taoísta, seja budista, fundamenta a concretude do mundo, dos fenômenos todos, inclusive materiais: o vazio.
Vejam-se os versos “Abro as janelas à trilha dentre os bambus” e “Remando desço o rio, entre cantos à lua// leva-me o vento ao retorno: e ainda recito”. Contrastando-se às imagens materiais da montanha onde os deuses habitam (bosques, arbustos, roupas lavadas, a menor das árvores, fonte, pedras, vinho, seda e livros), temos o coração do vazio manifesto: à trilha entre os bambus que, do vão da janela, anuncia o veio pelo qual a energia da montanha há de fluir — e os caminhos de quem a ela acede, santos e sábios e poetas e deuses, provavelmente percorrem.
Esse vazio, complementando a concretude da paisagem natural e da vida material da montanha, dá o tom da experiência de se estar habitando tais paragens: é por essa estrada, pelo caminho, pela via do meio que se abre entre os bambus, que a poeta segue remando rio abaixo, entoando loas à lua, inspirada pelo vento que talvez lhe suba do vale e recitando um poema que havemos de ler em algum lugar. Nesta ou em outras traduções, séculos após sua morada.

Bibliografia

DOGEN, Zenji. Shobogenzo: The True Dharma-Eye Treasury. Vol. 1. Taisho Volume 82, Number 2582. Tradução do japonês de Gudo Wafu Nishijima e Chodo Cross. Tradução do Sermão das Montanhas e Águas, Carl Bielefeldt. Berkeley: Numata Center for Buddhist Translation and Research, 2006.
YU, Xuanji. Poesia Completa de Yu Xuanji. Tradução, organização e notas de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao. São Paulo: Editora Unesp, 2011.

31 Jan 2023

A profundidade dos ideofonogramas

Em um artigo muito interessante, o linguista francês Louis-Jean Calvet, refletindo sobre Lacan e a escrita Chinesa: um inconsciente estruturado como escrita?, faz-nos saber de um outro artigo em que seu autor, François Cheng discorre a respeito da escrita poética chinesa. Cheng dirá, a partir de versos do ilustre Wang Wei, que em determinadas composições — como a que usa de exemplo — é possível perceber “a presença subliminar e obsedante do homem (人)” (Calvet, 2012: 257). Eis o verso wangweiano:

木 末 芙 蓉 花

Cheng assim traduz o verso: “na ponta dos galhos flores de hibisco”.

Como se vê, a presença efetiva do homem (人) se encontra apenas no final do verso (e, ainda aqui, apenas como componente de um de seus elementos parciais, a saber, 化, parte de 花), enquanto sua subliminaridade está difusa, compondo os demais caracteres. Calvet bem observa: “De fato, o signo do homem só aparece no quinto caractere, e nos outros se pode ver o homem nas raízes de uma árvore…” (Calvet, 2012: 257).

Ora, o linguista está interessado em compreender alguns problemas da escrita chinesa, ideogrâmica — ou, a bem dizer, ideofonogrâmica —, um deles sendo o que chamou de “‘profundidade’ do signo gráfico chinês, o que ele pode ‘dizer’ nele mesmo, sem referência à forma [fônica] pela qual é pronunciado: 妻 significa ‘esposa’ e representa uma mulher e uma vassoura, 安 significa ‘paz’ e representa uma mulher sob um teto, uma mulher no lar, etc.” (Calvet, 2012: 257-258).

A discussão que envolve tal problema da “profundidade” é a que, desde o princípio do artigo, o linguista procura deslindar: a partir de certas considerações psicanalíticas de Jacques Lacan — de que o inconsciente seria estruturado como uma linguagem, por exemplo —, Calvet procura compreender as inter-relações entre psicanálise, linguística e escrita ideofonogrâmica, recordando-nos uma vez mais que a ênfase desmesurada na grafia — que já apresentamos em outra ocasião — faz ignorar o elemento sonoro da língua chinesa. Por isso Lacan afirmaria o que afirmaria, e Huo Datong, psicanalista chinês, avançaria sua própria afirmação para dizer que não era bem o inconsciente chinês que fosse estruturado como a escrita, mas o inconsciente que era, este sim, estruturado como a escrita chinesa.

Seja como for, o problema da “profundidade”, como dizíamos, é o que nos interessa mais de perto. Veja-se, por exemplo, 木 (mù), árvore, primeiro caractere no verso de Wang Wei. Tomado o problema da “profundidade”, teríamos na árvore a presença do homem, nos dois traços que descem perpendiculares ao eixo central. Contudo, uma rápida ida ao dicionário nos faz imaginar se não terá sido a própria leitura — poética e psicanalítica, claro está, mas ainda assim… — de François Cheng que viu ali um ser humano subjacente.

Porque, conquanto os traços perpendiculares possam mesmo fazer pensar em 人 (ren), o dicionário nos informa que os componentes de 木 são, em verdade, 十 (shí) e 八 (ba). Ou seja, a presença humana ali nos versos, embora poeticamente justa, não deixa de nos indicar também uma predominância — que já sabemos ser centenária — da grafia chinesa sobre quaisquer outros componentes linguísticos. Como por exemplo o elemento fônico, a sonoridade que compõe inclusive a lógica diferencial e composicional da escrita chinesa, a que nosso autor bem chama a atenção (Calvet, 2012: 249-ss).

É certo que o fazer artístico, a imaginação psicanalítica e a licença poética sempre subverterão os elementos, por assim dizer, mais materiais e objetivos dos sistemas linguísticos: não importa se o que compõe a árvore é oito (八, ba), e não homem: sempre haverá quem veja o humano subjacente ao mundo, talvez por ser, esse alguém, um humano por seu próprio direito.

Referência

Calvet, Louis-Jean, (2012). Lacan e a escrita Chinesa: um inconsciente estruturado como escrita?. Alea: Estudos Neolatinos, 14(2),245-259. Recuperado de: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=33025116007

9 Jan 2023

O budismo antropocêntrico de mestre Yinshun

Esse conceito de renjian fojiao [budismo antropocêntrico] também parece ser peculiar a Taiwan. Jiang Canteng relata que o termo, familiar à maioria dos budistas em Taiwan, é desconhecido em outros lugares. Ele diz que quando o Professor Lan Jifu, eminente historiador do budismo taiwanês, foi ao Japão participar do terceiro Simpósio Sino-Japonês de Estudos Budistas, ninguém com quem ele conversou tinha conhecimento desse termo, nem mesmo Kamata Shigeo 鎌田茂雄, especialista no estudo do budismo chinês moderno. Portanto, Yinshun exerceu alguma influência sobre o pensamento budista em Taiwan […] e muitas pessoas têm dado atenção a sua vida e trabalho. (JONES, 1996, p. 244, tradução nossa).

Na obra Budismo Antropocêntrico: de acordo com os princípios do Dharma e com as disposições humanas (2009), o venerável mestre Yinshun (印順導師, 1906-2005) discorre sobre o que chama, justamente, de budismo antropocêntrico (em chinês simplificado, 人间佛教, renjian fojiao como em nossa epígrafe). Como o próprio autor afirma em outro texto, citado no prefácio dos tradutores, sua “intenção é revelar o sentido do ‘budismo antropocêntrico’ ao explicar ‘os critérios de classificação das doutrinas budistas’ baseado na ‘jornada evolutiva do budismo indiano’” (Yinshun, 2009, s/n).

Consideremos a opção terminológica acima antropocêntrico. Tradução sugerida tanto pelo Rev. Prof. Dr. Joaquim Monteiro quanto pela tradução inglesa do Dharma Translation Team (com seu human-centered Buddhism), antropocentrismo é um termo historicamente carregado de sentidos. Uma breve visita ao dicionário nos indica, e aqui citamos, que antropocentrismo pode ser a “Concepção ou doutrina segundo a qual o ser humano é o centro ou a razão da existência do universo.” (LEXIKON, s/d).

Mas, diferentemente de um antropocentrismo cristão, por exemplo, no qual o homem é criado à imagem e semelhança de Deus, e é para o homem que todas as coisas são criadas, o budismo antropocêntrico indica uma reflexão do Dharma feita por Yinshun a partir de matrizes bastante específicas: “Todos os budas surgem no reino humano. Ninguém atingiu a budeidade no reino celestial”, diz Yinshun (2009, p. 3). É importante atentar que, para além de uma simples restrição metafísica no que concerne às possibilidades de iluminação, restringindo-a ao reino humano, essa reorientação carrega consigo um conteúdo ético essencial. Porque, sendo o reino humano o que mais possibilidades oferece para que se atinja o nirvana, é também no reino humano que a conduta ética e ativa deve ser estimulada. Em Uma discussão sobre o engajamento social e os estudos budistas, ensaio de 1967, Yinshun já adiantava tal importância:

“Valorize sua religiosidade”, “enfatize a busca pela verdade” e “reconheça as implicações práticas do aprendizado histórico.” Além disso, […] “pesquisadores budistas genuínos devem possuir a coragem de se autoexaminar e refletir profunda e completamente. Suas pesquisas devem buscar a Verdade nas doutrinas budistas, de modo que o budismo possa se adaptar aos tempos modernos para auxiliar e beneficiar a humanidade, sendo refúgio permanente para todos os seres sencientes.” (YINSHUN, 2009, p. 5).

A ênfase sobre a prática no reino humano também evidencia forte atenção à ética do bodhisattva, já que alcançar a libertação do sofrimento enquanto ser humano representa, nessa abordagem, voltar-se aos outros humanos e a todos os demais seres para auxiliar em suas respectivas libertações.

No budismo que começa a se delinear desde o venerável mestre Taixu (太虛, 1890-1947) até Yinshun, enfoca-se a dimensão humana enquanto esfera de atuação. Reorientando a perspectiva budista para a realidade da vida humana, sem nutrir apegos a qualquer forma de sobrenaturalidade espiritualista, deísta ou teísta, o budismo moderno de Taiwan passa a fortalecer um discurso que aponta — ainda que bodhisattvas metafísicos como Guanyin possam prestar auxílio aos devotos — a ação dos próprios seres humanos como movimentação da roda do Dharma.

É desse panorama que vem a declaração final de Yinshun: “Sou herdeiro do pensamento de Mestre Taixu, o de um budismo para a vida humana, que se livra da tendência espiritualista. Além disso, ainda pude oferecer evidências no budismo para auxiliar na superação das tendências deificadoras.” (YINSHUN, 2009, p. 80).

Referências

LEXIKON. Dicionário Digital Caldas Aulete. s/d. Disponível em: http://www.aulete.com.br/antropocentrismo.
JONES, Charles Brewer. Buddhism in Taiwan: A Historical Survey. Durham: University of Virginia, 1996. Tese de doutorado.
YINSHUN, Venerable. Human-centered Buddhism: one that accords with Dharma Principles and Human dispositions. Traduzido do chinês por Franz Li e Dharma Translation Team. Dharma Translation Organization, 2009.

29 Dez 2022

Dizang, cosmologias budistas e terras para além da terra

Por Leandro Durazzo

Dentre os bodhisattvas mais populares do Extremo Oriente encontra-se Ksitigarbha, a quem nos referiremos pelo nome chinês, Dizang (地藏, comumente traduzido por Tesouro, Útero ou Matriz da Terra, o que ressalta as configurações ctônicas de seu simbolismo).

A história de seu desenvolvimento como grande bodhisattva no budismo Mahayana fez com que ele assumisse, sobretudo a partir da China, um papel de destaque desconhecido no budismo clássico indiano. Ksitigarbha é Dizang na China, onde assume centralidade como protetor dos mortos e dos reinos subterrâneos da cultura popular (Durazzo, 2016) — embora suas atribuições se estendam para muito além disso (Zhiru, 2007); no Japão, é Jizo, ainda protetor dos mortos, mas também das crianças, dos natimortos (Wilson, 2009) e dos viajantes. Pelas migrações transpacíficas, Jizo é o protetor dos marinheiros e pescadores no Hawaii (Clark, 2007). A força de sua popularidade só não se iguala, pelo menos na China, à de Guanyin (觀音), a bodhisattva da compaixão.

É certo que a identificação de Dizang com os domínios do submundo dos mortos se consolidou aos poucos na tradição chinesa, como lemos com Zhiru (2007). Entretanto, é seguro assumir que hoje tal identificação desempenha papel principal, ainda que não único, no imaginário concernente ao bodhisattva. Vinculado a ele estão, por exemplo, os rituais de culto aos antepassados — que, na China, antecedem em muito o próprio budismo — e as oferendas de alimento e dedicação de méritos aos espíritos famintos. Dizang é imagem presente na maior parte dos templos budistas chineses, sendo figura central nos espaços dedicados às tábuas de dedicação de méritos, espécie de lápide simbólica que representa a memória do falecido e chega mesmo a estender sua presença no mundo dos vivos (Durazzo, 2016).

O monge e pesquisador Zhiru Ng desenvolveu vasto estudo sobre a constituição do bodhisattva na China medieval, com grande amplitude bibliográfica e crítica. Seu livro Making of a savior bodhisattva (Zhiru, 2007) levanta diversos pontos de interesse ao tratar do culto chinês medieval de Dizang. Tal pesquisa, profundamente historiográfica e bem embasada, se utiliza de uma abordagem interdisciplinar para evidenciar a constituição de uma tendência budista comumente desconsiderada nos estudos acadêmicos ocidentais.

Tal tendência é a configuração popular, às vezes mística e cultista, que o budismo assume quando se depara com novos terrenos culturais, como foi o caso da China medieval. No Brasil, um trabalho seguindo moldes parecidos foi realizado pelo saudoso e estimado Prof. Reverendo Ricardo Mário Gonçalves, ao estudar o culto do Buda Amida no Japão medieval (Gonçalves, 1975).

Vale tratarmos brevemente do que o próprio Zhiru identifica como um problema nos estudos budistas. Em grande parte, diz o autor, as investigações se estabelecem com uma dicotomia de base, dando preferência epistemológica aos grandes debates filosóficos e doutrinários, às questões institucionais consolidadas, e desconsiderando suas configurações populares, mistas e heterogêneas, muitas vezes entendidas como simples — e desimportante — mistificação.

Mas nas tradições intelectuais budistas, mesmo quando não se encaram tais desdobramentos populares como pura mistificação, busca-se desenvolver uma crítica aos desvios e desvirtuamentos do ensinamento do Buda, procurando superar a mundanidade que, sob certas perspectivas doutrinárias, dificultam a apreensão da verdade última dos ensinamentos. O Venerável Yinshun, talvez o maior nome do budismo chinês no século XX, assim se refere à popularidade de Dizang:

“Quando falo sobre as práticas budistas associadas a Maitreya ou Avalokitesvara [GuanYin], sempre enfatizo seu espírito de bodhisattva. No entanto, os ensinamentos mundanos populares apegam-se ao Sutra sobre os Votos Fundamentais do Bodhisattva Ksitigarbha como base para entender os fantasmas e o inferno. Por isso, especialmente com base no ensino dos sutras Mahayana, dei uma palestra sobre ‘As Nobres Virtudes do Bodhisattva Ksitigarbha e as Práticas Atribuídas a Ele’. No entanto, como o budismo chinês tem essa tradição longa e profundamente enraizada, é difícil exercer qualquer influência [na mudança da prática mundana tradicional].” (Yinshun, 2009, p. 55, tradução nossa).

Fica evidente que, mais que desestimular as práticas mundanas tradicionais, o objetivo dessa preocupação doutrinária é orientar o entendimento dos praticantes para o caminho descrito, e não para eventuais sobrenaturalidades que se possam atribuir aos grandes bodhisattvas deificados — como é o caso de Dizang. Yinshun ainda sublinha que a condição de bodhisattva demanda a intenção e os votos de auxiliar todos os seres sencientes, e todos os praticantes do Dharma, do mais mundano ao mais transcendental, são capazes de assumi-los (Yinshun, 1998, p. 217).

Ainda assim, o forte imaginário que envolve os grandes bodhisattvas representa uma realidade que transcende qualquer pragmática budista, ainda que essa transcendência não signifique um sinal de superioridade. O estatuto deificado de Dizang, bem como o estatuto dos grandes bodhisattvas e budas das incontáveis terras puras — o supracitado Amida sendo apenas um deles —, reverbera uma configuração de camadas simbólicas que os estudos do imaginário há muito têm em conta. Assim, podemos apontar o vínculo histórico dos cultos a Dizang com as práticas e tradições da Terra Pura (Zhiru, 2007) como uma extensão e amplificação dos diversos níveis de sentido dados a tais constelações de imagens.

Com relação à Terra Pura do Oeste — reino de Amida, a quem ainda dedicamos atenção — falam brevemente tanto José Carlos de Paula Carvalho quanto Sun Chaoying. O professor, relembrando Henri Corbin a partir da noção de imaginal, assim comenta a

“hermenêutica espiritual comparada: a noção de “imaginal”, que Corbin transduziu do Islão Iraniano — “mundus imaginalis” também se presentificando no budismo da “Terra Pura” […] — tal noção dá o devido peso ontológico à questão da existência dessa realidade Outra, assim como dos meios de a ela aceder através da “imaginação criadora ou imaginação ativa” […], quando se tem em vista a “corporeidade imaginal”. (Badia; Paula Carvalho, 2002, p. 278).

Ou seja, diferentemente do que um entendimento puramente doutrinário, filosófico e intelectual poderia sugerir, ainda aqui não se trata de tomarmos Dizang ou os reinos budistas de existência como realidades metafísicas hipostasiadas, simples crenças em reinos sobrenaturais, nada mais do que mistificação — o budismo, tal qual a teologia apofática, idealmente não afirma ou nega quaisquer dimensões indemonstráveis. Em vez disso, na esteira de Corbin, é possível compreendê-los pelo poder simbólico e imaginal que têm. Isto é, pela força imagética e imaginária que possuem, e pelas possibilidades de elevar a existência budista a novos estratos cosmológicos.
Já Sun Chaoying apresenta, em Essais sur l’imaginaire chinois, uma pequena descrição das terras puras:

“As descrições de Xifang jile shijie, o maravilhoso Sukhavati, “alegre, imaculado, luminoso”, “terra da Presença”, “terra da boa Sabedoria”, “terra da perfeita Felicidade”… são numerosas nos dois Sutras Budistas. De acordo com o Sutra Curto, como Sakyamuni os retrata em Sariputra, essas “terras puras de Buda” representam bem as imagens arquetípicas de todos os paraísos da Era Dourada.” (Sun, 2004, p. 76, tradução nossa).

Há uma convergência considerável entre as representações imagéticas de uma terra pura com diversos elementos estudados por Gilbert Durand em sua obra de base (2001). Mais que isso, o vínculo histórico evidenciado entre Dizang e os cultos da Terra Pura, aliado ao nome eminentemente ctônico e subterrâneo do bodhisattva, oferecem a nossas reflexões um campo aberto no que concerne às possibilidades de compreensão arquetipológica de sua presença no universo budista. Ao mesmo tempo que oferece um entendimento ético aos seguidores do budismo, indicando modo preferenciais de tratar os antepassados e auxiliar todos os seres a atingirem a libertação (Durazzo, 2016), Dizang ainda nos recorda de uma verdade transcendente porque imanente: é na terra, na materialidade da terra — em seu útero, em sua matriz — que se encontra o tesouro do desapego budista, da dedicação de méritos e trabalho, e também da bem-aventurança.

Bibliografia

BADIA, Denis Domeneghetti; PAULA CARVALHO, José Carlos de. (2002). Viáticos do imaginário. São Paulo: Plêiade.

CLARK, John R. (2007). Jizo in Hawaii. Honolulu: University of Hawaii Press.

DURAND, Gilbert. (2001). As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. São Paulo: Martins Fontes.

DURAZZO, Leandro. (2016). Antepassados presentes: o contato entre vivos e mortos no budismo chinês. Ausência, número 3, p. 81-93.

GONÇALVES, Ricardo Mário. (1975). Considerações sobre o Culto de Amida no Japão Medieval. São Paulo: Honganji.

SUN, Chaoying. (2004). Essais sur l’imaginaire chinois: neuf chants du dragon. Paris: Editions You Feng.

WILSON, Jeff. (2009). Mourning the unborn dead: a Buddhist ritual comes to America. Oxford/New York: Oxford University Press.

YINSHUN, Venerable. (1998). The way to Buddhahood: instructions from a modern Chinese master. Translated by Weng Yeung. Sommerville: Wisdom Publications.

ZHIRU, Ng. (2007). The making of a savior bodhisattva: Dizang in medieval China. Honolulu: University of Hawaii Press.

12 Dez 2022

Som e sentido na escrita chinesa

Dando sequência à crítica aos ideogramas como ideologia — ou, no mínimo, à revisão do que costuma ser tomado como o mundo afônico dos ideogramas, convém que nos debrucemos sobre um caso e, por ele, busquemos algumas novas interpretações que ampliem o campo da linguística, no qual nos aventuramos em nossa última coluna. Tomemos Buda como exemplo. O caractere que o representa no extenso rol de ideofonogramas chineses é o seguinte: 佛. Fó, cuja pronúncia se dá no segundo tom.
Huo Datong, “o único psicanalista da China”, nos recorda de que a parte esquerda dos caracteres compostos (no caso de 佛, trata-se do radical para 人, rén, pessoa, ser humano) está, geralmente, relacionada com a imagem, numa conexão lacaniana com o significante que, concreto, encontra correspondência na realidade objetiva. Segundo essa compreensão, ao identificar 人, vejo uma pessoa em pé, e isso já imprimiria “ideogramicamente” o sentido do que hei de ver. A parte direita do caractere (弗, fú, no caso de Buda) seria então a atribuição fonética ao novo caractere, composto. Nesse caso, a origem etimológica perderia o significado ideal, “ideogrâmico”, e figuraria apenas como acessório sonoro à composição. Sendo o caractere 弗 um elemento de negação, poderíamos até aventar a hipótese de que buda, em última instância, seria um não-humano (o que não deixa de ser verdade, em certo sentido: os budas, isto é, os iluminados que nascem no reino humano — pois, em verdade, há budas em todas as direções, todos os reinos e todos os tempos, animais, espirituais, divinos — deixam de ser humanos sujeitos ao ciclo quase eterno de renascimentos e mortes, libertando-se por meio da iluminação. Chegam a ser algo como não-humanos, portanto…)
Mas não é isso que se dá, a menos que queiramos poetizar a não-humanidade (ou a suprema humanidade) de Buda. A composição do caractere ocorre por uma razão simples, nos diz Huo Datong: a visão do elemento à esquerda acionaria o hemisfério direito do cérebro, responsável pela compreensão mais abrangente e visual do contato sensorial, lidando com a totalidade orgânica dos dados percebidos e com sua conexão com elementos concretos.
A visão do elemento à direita acionaria, por sua vez, o hemisfério esquerdo do cérebro, responsável por funções fonadoras, racionalização, pela concretude e pela generalidade dos processos linguísticos.
E o psicanalista nos diz mais, a partir de bases que apenas reforçam que o mito do ideograma, como sugeriu John DeFrancis, é mesmo um mito: Datong afirma existir uma quebra entre a imagem e a realidade, com a primeira não mais remetendo à segunda, num processo de patologização da linguagem alienada:
“A ruptura que ocorre entre a figura do caractere chinês e o significado representa a ruptura do vínculo entre o imaginário e o real. A manifestação patológica dessa ruptura é a amnésia, cujo estado extremo é que o paciente não se lembra mais de nada. […] Podemos notar também que o pictograma do cavalo no ideofonograma da mãe desempenha apenas um papel fonético, enquanto sua figura como imagem visual do cavalo perdeu sua função de representação-coisa, ou seja, seu elemento da figura foi reprimido. O pictograma do cavalo agora não indica o cavalo, mas apenas o som, ma.” (Huo Datong em francês no original).
Explicando que o elemento cavalo do caractere para mãe (o 马 de 妈) cumpre apenas função fonética, o psicanalista diz algo semelhante ao que nos diz Jonathan Stalling quando critica a visão reificada, concreta e imagista que — sobretudo — Ezra Pound imprimiu à sua leitura da escrita chinesa.
Pound fazia parecer que a escrita ideogrâmica era sumamente fotográfica, com tudo sendo diretamente vinculado a um elemento do real, algo aproximado do mito que DeFrancis analisa. Stalling, sobre isso, percebe a constante “ruptura entre real e imaginário” que Huo Datong enunciou e desmente, assim, a ubíqua relação concreta dos poetas:
“A velha teoria quanto à natureza do caractere escrito chinês (que Pound e Fenollosa seguiram) é a de que o caractere escrito é ideograma — uma imagem estilizada da coisa ou conceito que representa. A teoria oposta (que prevalece hoje entre os estudiosos) é que o caractere pode ter suas origens pictóricas em tempos pré-históricos, mas que essas origens foram obscurecidas em todos, exceto em alguns casos muito simples, e que, em qualquer caso, os utilizadores nativos não têm o significado pictórico original em mente enquanto escrevem.” (Jonathan Stalling).
Há uma questão interessante que surge dessa sequência de críticas, e que pretendemos desenvolver no futuro, mas aqui a sumarizo: o tal mito ideográfico, ao sobrepor a visualidade à materialidade sonora da língua falada e, com isso, ignorar a dissociação que a história imprime entre caractere e sentido originário, faz com que os leitores — sobretudo — ocidentais da escrita chinesa, de sua poética própria, valorizem a pictografia em detrimento da sonoridade, a materialidade concreta dos traços em lugar da fluidez maviosa que o falar carrega consigo.

Bibliografia

Datong, Huo. (s/d). L‘inconscient est structuré comme l’écriture chinoise. Lacan et le monde chinois. Disponível em: http://www.lacanchine.com/Ch_C_HuoInc_Txt.html
Duarte-Plon, L. (2003). Psicanalista Huo Datong. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica [online], v. 6, n. 1. DOI: https://doi.org/10.1590/S1516-14982003000100009.
Durazzo, L.; Jatobá, J. (2014). Ensaiando uma tradução coletiva: Yao Feng e o som da poesia chinesa. Translatio, n. 7. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/translatio/article/view/50795
Stalling, J. (2011). Poetics of Emptiness: Transformations of Asian Thought in American Poetry. New York: Fordham University Press.

16 Nov 2022

O mito do ideograma

Ao redor do mundo, consideradas todas as eras desde que a humanidade passou a se comunicar, determinadas sociedades desenvolveram o que podemos chamar de culturas de escrita. Para nós, falantes do português, bem como para os demais neolatinos, indoeuropeus, modernos ocidentais, essas culturas carregaram consigo formas historicamente valorizadas de conhecimento: escritas, alfabéticas, ortográficas. A expansão de tais tradições, quer no interior da própria Europa, quer em seu avanço colonial por outras partes do globo, carregaram consigo tais valorizações no bojo do encontro com outros povos: é famoso o relato de um cronista português que, no século XVI, teria encontrado povos originários das Américas, especificamente do Brasil, em cujas línguas “não se acham F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei”. Etnocentrismo, decerto: desejo de que toda a humanidade corresponda a uma experiência pontual e limitada, tida, à época, como ápice do desenvolvimento do intelecto e do gênero humano.
Mas nesses mesmos 1500, século mais, século menos, uma civilização sem F, sem L e sem R já contava três mil anos de idade. Pelo menos. E contava, também, com uma cultura escrita de enorme relevância, prestígio e sofisticação. Não alfabética, contudo. E essa diferença talvez tenha significado uma abordagem tão etnocêntrica quanto aquela destinada aos povos ameríndios, mas com o sinal trocado: porque se povos sem letras não poderiam ser mais que “bárbaros”, o que seria o povo sem letras, mas com caracteres mais antigos que o próprio Ocidente? Iluminados, talvez? Mais que humanos?
Em Ideogramas na China, Henri Michaux descreve, de modo poético, o desenvolvimento da escrita caligráfica, que considera “ideogrâmica”. Para o poeta, a escrita chinesa teria evoluído de uma materialidade pictórica, cujo referente designaria diretamente o objeto representado, sem maiores mediações linguísticas, até um sistema complexo e elitizado de traços cujo conhecimento se restringia apenas aos eruditos e letrados. Ao passo que 山 representaria pictograficamente uma montanha — donde 山 = montanha —, desdobramentos posteriores do sistema de escrita chinês teriam distanciado essa quase iluminação instantânea:
“Levados pela arrebatadora impudência da pesquisa, os inventores — os de uma segunda fase — aprenderam a desligar o sinal do seu modelo (deformando-o às apalpadelas, sem ousar ainda cortar decididamente o que liga a forma ao ser, o cordão umbilical da semelhança) e assim se desligaram eles próprios, havendo rejeitado o sagrado da primeira relação ‘escrito-objecto’.”
A primeira relação escrito-objecto de que nos fala Michaux é a associação pictográfica imediata, a montanha transposta ao papel — ou a qualquer outra superfície. Quaisquer que fossem seus desdobramentos, não mais haveria o vínculo com que o poeta sonha: da coisa à compreensão, sem passar pelo trato da linguagem. Chegando ao pico da montanha, 峰, não mais teríamos a primeira relação, e apenas aos iniciados essa trilha ao monte estaria aberta.
Michaux lamenta a elaboração da escrita que a desvincula do mundo, e nisso não está sozinho: para mais de um leitor ocidental da escrita chinesa, “ideograma” se mostrou o melhor termo para descrever algo tão diferente de nossos sistemas alfabéticos, fonéticos, de nossas línguas cuja expressão sonora da fala é condutriz da escritura. Para tais leitores, a China teria seguido algum princípio misterioso que a teria posto à parte de toda a raça humana — como sugeriu Boodberg há quase cem anos —, para quem os sistemas de escrita se desenvolvem a partir das experiências linguísticas da fala, e não o contrário — nem separadamente, como o mito do ideograma nos faz supor.
Em 1984, John DeFrancis publicou O mito ideográfico, historicizando a ideia segundo a qual seria possível um sistema ideogrâmico, ou ideográfico, no qual uma língua fosse capaz de incluir todos os objetos, conceitos e ideias do universo sem apelo à fala, ao som, à base material da língua. Um mito, diz DeFrancis, pois mesmo em sistemas de escrita com elementos pictográficos, como na China, no antigo Egito ou na Suméria, não se pode encontrar uma escrita inteiramente semântica. A escrita é projeção da língua, e a língua é sempre falada.
Henri Michaux via na evolução da escrita chinesa um distanciamento do mundo dado, da experiência mística, esotérica e religiosa com o mundo, um distanciamento da experiência imediata. Por isso afirma que “Na escrita, a religião recuava. A irreligião da escrita começava”. Em outras palavras: perde-se o mundo-pelo-mundo — 山 = montanha, supostamente evidente para qualquer pessoa, mesmo iletrada — e passa-se a viver o mundo-pela-escrita — 峰 = pico da montanha, compreensível apenas para quem tenha escalado montes e montes de livros e exercícios complexos, pouco afeitos à “ideogramicidade” do objeto pico-da-montanha.
Mas é aqui que o mito se mostra às claras. Para Michaux, como para outros, ideogramas seriam representações gráficas de objetos e/ou ideias, conceitos. Já o som dos objetos e das ideias, o som da fala que fala sobre eles, desempenharia pouco ou nenhum papel em sua grafia. Se povos sem escrita alfabética eram sem lei, sem rei e sem fé, um povo sem escrita fonética talvez fosse — assim diz o mito, nisso acreditaram os primeiros missionários europeus — rebuscado e complexo a um nível que os distanciaria de todos os demais povos da terra. Um povo, no mínimo, de memória estupenda, capaz de conhecer um símbolo para cada coisa existente:
“símbolos e imagens [que], não tendo qualquer som, podem ser lidos em todas as línguas, formando uma espécie de pintura intelectual, uma álgebra metafísica e ideal, que transmite pensamentos por analogia, por relação, por convenção, e assim por diante.”
O mito do ideograma abstrato abre caminho para a ideia de uma escrita inefável, sem atentar para o fato de que 峰, o pico da montanha, não é apenas resistir à montanha ou, ainda, chifrar o monte — 山 + 夆 —, dentre outras variações semânticas que pudéssemos atribuir às puras imagens pictográficas de 峰 — e à decomposição de suas partes. Antes, a pronúncia de 峰 é feng, e por isso à montanha se anexou o segundo grupo de caracteres, à direita: 夆. Não por lógica abstrata, não porque resistir ou chifrar a montanha signifique atingir seu cume, mas porque feng é o modo de nomear o topo do monte, e o modo de nomear, sua sonoridade, traz o elemento fonético à escrita. Por isso, nada de ideogrâmica — ou não somente ideogrâmica, e quase nunca inteiramente ideogrâmica —, mas sonora. Logográfica. Ou morfossilábica, como sugeriu DeFrancis.

4 Nov 2022

Um sábio não sabe de si

Diz-se que Bodhidharma (達摩), primeiro patriarca do budismo Chán (禪) na China, certa vez se apresentou ao imperador Wu da dinastia Liang (梁朝, 502-557). O diálogo entre os dois, ambos budistas, faz parte da literatura de distintas escolas do budismo sino-coreano-japonês, que compreendem Bodhidharma como o introdutor de suas práticas no Leste Asiático, sendo ele um monge de origem talvez persa vindo das terras a oeste.

Assim se relata: estando frente a frente, o imperador inquiriu Bodhidharma a respeito de seus feitos beneméritos como governante daquelas terras. Que méritos teria ele, imperador, adquirido graças aos esforços que despendera para construir monastérios, ordenar monges budistas, reproduzir cópias e cópias de sutras e entalhar imagens de budas?
“Mérito algum,” teria dito Bodhidharma. “Boas ações mundanas podem originar bons frutos, nesta e em próximas vidas, mas mérito algum advém delas.”
“Então,” continuou o imperador, “qual o sentido de tudo isso?”, teria dito. Ao que Bodhidharma respondeu: “o único sentido verdadeiro é a vacuidade; ela é tudo que existe.” Ou, se pensarmos bem, o que não existe, posto ser vacuidade. Mas a tradição informa que o patriarca teria dito algo assim: “existe apenas vacuidade.”
E por vacuidade, pelo vazio essencial que não é apenas ausência de algo, mas natureza inessencial de todos os fenômenos, Bodhidharma se referia a uma das verdades profundas do budismo, das verdades centrais que, com ele na China, passou a compor parte significativa do entendimento budista do mundo. Desde o Chán, passando pela tradição Seon da Coreia até o mais popular Zen japonês.
Mas aqui, a vacuidade que o monge enfatiza ganha maior materialidade. Porque em sua verdade se desfaz não apenas a ideia essencial de todos os fenômenos — afinal, tudo que existe é vacuidade —, mas a ideia de que o sujeito mesmo que enuncia tal ideia, o enunciador de qualquer enunciado, ele próprio não pode existir. Ou, melhor dizendo, ele próprio é vacuidade. Falta-lhe um cerne essencial que o mantenha imutável ao longo do tempo, das experiências, dos fenômenos todos de uma existência. Com a vacuidade, vem também a verdade budista da impermanência. Nada se mantém eternamente.
Frente a isso, a última pergunta do imperador a Bodhidharma foi a seguinte: “Se tudo é vacuidade, quem é você, agora, defronte a mim?”
E o monge lhe deu a única resposta possível: “Eu não sei, Vossa Majestade.”
Neste pequeno diálogo, anedótico ou não, se registra o coração de uma sabedoria passada de geração em geração, de espírito a espírito, desde o tempo primeiro do budismo Chán. O não se saber, o reconhecimento de que se desconhece qualquer essencialidade última, de que tudo é vacuidade e impermanência, alimenta toda a prática budista dessa escola e das que se desenvolvem a partir dela, na China ou alhures.
E ainda que elementos de tal verdade estejam presentes nos discursos do próprio Buda histórico, nas tradições que já vinham se desenvolvendo em terras indianas, a chegada de Bodhidharma à China é fundamental pelo encontro que promove entre tais perspectivas e certas tradições originárias da China mesma. Pelo encontro da verdade budista com certo espírito existencial que o sinólogo francês François Jullien bem resume ao dizer, como o faz em um título de sua obra, que “o sábio não tem ideia”. O sábio — e não o filósofo, não o teorizador — não tem ideia porque não toma, de partida, nenhum pressuposto. Na experiência da sabedoria, segundo o sinólogo e as tradições às quais se refere, e mesmo ao budismo que aqui citamos, não se tem ideia porque ideias pressupostas são apriorismos essencializantes, ou cristalizações de expectativas, de pontos de vista que são pontos de partida (parti pris, diz Jullien). Ao contrário, não ter ideia é não saber, por exemplo, quem se encontra defronte ao imperador.
Mesmo que quem ali esteja seja o próprio interlocutor do soberano, o próprio monge budista, patriarca que, ao dizer não saber quem é, diz muito mais do que apenas isso: diz-nos que reconhecer seu desconhecimento lhe permite estar ali, defronte ao imperador, sem projetar ilusões em nenhuma relação sua com o mundo. Apenas estando ali, aberto ao que o fluxo dos fenômenos venha a apresentar.

Bibliografia
Broughton, Jeffrey L. (1999), The Bodhidharma Anthology: The Earliest Records of Zen, Berkeley: University of California Press.
Jullien, François. (2000). Um sábio não tem idéia. São Paulo: Martins Fontes.

Este espaço conta com a colaboração do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa. https://www.cccm.gov.pt/

17 Out 2022