Som e sentido na escrita chinesa

Dando sequência à crítica aos ideogramas como ideologia — ou, no mínimo, à revisão do que costuma ser tomado como o mundo afônico dos ideogramas, convém que nos debrucemos sobre um caso e, por ele, busquemos algumas novas interpretações que ampliem o campo da linguística, no qual nos aventuramos em nossa última coluna. Tomemos Buda como exemplo. O caractere que o representa no extenso rol de ideofonogramas chineses é o seguinte: 佛. Fó, cuja pronúncia se dá no segundo tom.
Huo Datong, “o único psicanalista da China”, nos recorda de que a parte esquerda dos caracteres compostos (no caso de 佛, trata-se do radical para 人, rén, pessoa, ser humano) está, geralmente, relacionada com a imagem, numa conexão lacaniana com o significante que, concreto, encontra correspondência na realidade objetiva. Segundo essa compreensão, ao identificar 人, vejo uma pessoa em pé, e isso já imprimiria “ideogramicamente” o sentido do que hei de ver. A parte direita do caractere (弗, fú, no caso de Buda) seria então a atribuição fonética ao novo caractere, composto. Nesse caso, a origem etimológica perderia o significado ideal, “ideogrâmico”, e figuraria apenas como acessório sonoro à composição. Sendo o caractere 弗 um elemento de negação, poderíamos até aventar a hipótese de que buda, em última instância, seria um não-humano (o que não deixa de ser verdade, em certo sentido: os budas, isto é, os iluminados que nascem no reino humano — pois, em verdade, há budas em todas as direções, todos os reinos e todos os tempos, animais, espirituais, divinos — deixam de ser humanos sujeitos ao ciclo quase eterno de renascimentos e mortes, libertando-se por meio da iluminação. Chegam a ser algo como não-humanos, portanto…)
Mas não é isso que se dá, a menos que queiramos poetizar a não-humanidade (ou a suprema humanidade) de Buda. A composição do caractere ocorre por uma razão simples, nos diz Huo Datong: a visão do elemento à esquerda acionaria o hemisfério direito do cérebro, responsável pela compreensão mais abrangente e visual do contato sensorial, lidando com a totalidade orgânica dos dados percebidos e com sua conexão com elementos concretos.
A visão do elemento à direita acionaria, por sua vez, o hemisfério esquerdo do cérebro, responsável por funções fonadoras, racionalização, pela concretude e pela generalidade dos processos linguísticos.
E o psicanalista nos diz mais, a partir de bases que apenas reforçam que o mito do ideograma, como sugeriu John DeFrancis, é mesmo um mito: Datong afirma existir uma quebra entre a imagem e a realidade, com a primeira não mais remetendo à segunda, num processo de patologização da linguagem alienada:
“A ruptura que ocorre entre a figura do caractere chinês e o significado representa a ruptura do vínculo entre o imaginário e o real. A manifestação patológica dessa ruptura é a amnésia, cujo estado extremo é que o paciente não se lembra mais de nada. […] Podemos notar também que o pictograma do cavalo no ideofonograma da mãe desempenha apenas um papel fonético, enquanto sua figura como imagem visual do cavalo perdeu sua função de representação-coisa, ou seja, seu elemento da figura foi reprimido. O pictograma do cavalo agora não indica o cavalo, mas apenas o som, ma.” (Huo Datong em francês no original).
Explicando que o elemento cavalo do caractere para mãe (o 马 de 妈) cumpre apenas função fonética, o psicanalista diz algo semelhante ao que nos diz Jonathan Stalling quando critica a visão reificada, concreta e imagista que — sobretudo — Ezra Pound imprimiu à sua leitura da escrita chinesa.
Pound fazia parecer que a escrita ideogrâmica era sumamente fotográfica, com tudo sendo diretamente vinculado a um elemento do real, algo aproximado do mito que DeFrancis analisa. Stalling, sobre isso, percebe a constante “ruptura entre real e imaginário” que Huo Datong enunciou e desmente, assim, a ubíqua relação concreta dos poetas:
“A velha teoria quanto à natureza do caractere escrito chinês (que Pound e Fenollosa seguiram) é a de que o caractere escrito é ideograma — uma imagem estilizada da coisa ou conceito que representa. A teoria oposta (que prevalece hoje entre os estudiosos) é que o caractere pode ter suas origens pictóricas em tempos pré-históricos, mas que essas origens foram obscurecidas em todos, exceto em alguns casos muito simples, e que, em qualquer caso, os utilizadores nativos não têm o significado pictórico original em mente enquanto escrevem.” (Jonathan Stalling).
Há uma questão interessante que surge dessa sequência de críticas, e que pretendemos desenvolver no futuro, mas aqui a sumarizo: o tal mito ideográfico, ao sobrepor a visualidade à materialidade sonora da língua falada e, com isso, ignorar a dissociação que a história imprime entre caractere e sentido originário, faz com que os leitores — sobretudo — ocidentais da escrita chinesa, de sua poética própria, valorizem a pictografia em detrimento da sonoridade, a materialidade concreta dos traços em lugar da fluidez maviosa que o falar carrega consigo.

Bibliografia

Datong, Huo. (s/d). L‘inconscient est structuré comme l’écriture chinoise. Lacan et le monde chinois. Disponível em: http://www.lacanchine.com/Ch_C_HuoInc_Txt.html
Duarte-Plon, L. (2003). Psicanalista Huo Datong. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica [online], v. 6, n. 1. DOI: https://doi.org/10.1590/S1516-14982003000100009.
Durazzo, L.; Jatobá, J. (2014). Ensaiando uma tradução coletiva: Yao Feng e o som da poesia chinesa. Translatio, n. 7. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/translatio/article/view/50795
Stalling, J. (2011). Poetics of Emptiness: Transformations of Asian Thought in American Poetry. New York: Fordham University Press.

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