Vivendo as montanhas no verão

Em um poema escrito nalgum ponto do século IX, Yu Xuanji (魚玄機, 844-869 d.C.) descreve sua vida veranil em montanhas que apenas a biógrafos é dado conhecer. Na tradução brasileira de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao, assim sabemos de sua estada montesa:

“VIVENDO NAS MONTANHAS NO VERÃO

Aqui, onde habitam os deuses, fiz minha morada
Bosques e arbustos misturam-se à revelia
Roupas lavadas penduro à menor das árvores
Sento-me à fonte; das pedras, nasce meu vinho
Abro as janelas à trilha dentre os bambus
Finas sedas tornaram-se embrulho de livros
Remando desço o rio, entre cantos à lua
leva-me o vento ao retorno: e ainda recito”

É sabido que a poesia chinesa manifesta certas tendências de sua cultura letrada, especialmente por suas temáticas e imagens recorrentes, sua autorreferência e a continuidade de vínculos e influências clássicas em seus versos. No poema acima, vemos duas presenças cruciais para a tradição poética — e mesmo espiritual — chinesa: as montanhas e, por paradoxal que seja, a própria noção de ausência: o vazio.
Yu Xuanji abre seu poema com uma afirmação categórica e muitíssimo relevante: ela faz sua morada nas montanhas, “onde habitam os deuses”. Não há dúvidas quanto a isso; seja pela própria deidade das montanhas, do espírito do vale taoísta, do caminho natural que a tudo conduz e que, nas montanhas, ganha concretude; seja pelas deidades que na montanha vivem, povoando todas as tradições religiosas, místicas, indígenas, exógenas, taoístas, budistas, ancestrais, a verdade afirmada pela poeta é esta: a montanha é a morada dos deuses. Local, também, em que a poeta vai morar.
Um texto bem conhecido do budismo Zen japonês, O Sermão das Montanhas e Águas do Mestre Dogen, manifesta em suas linhas o mesmo apreço pelas montanhas, a mesma consideração divinal e cosmológica, que nossa poeta chinesa parece indicar. E isso porque, embora japonês, o Mestre Dogen foi profundamente marcado por sua circulação pela China, onde aprendeu com monges, mestres, pessoas comuns e laicas, pescadores, habitantes de montanhas e muitos eventos mais. O Zen japonês, por exemplo, não existiria sem o Chan chinês; e o próprio Chan, pode-se aventar, não existiria sem a profundidade que na China já se encontrava desde antes do Dharma ali chegar.
Fato é que, para Dogen, falar de “montanhas e águas” — como se intitula seu discurso — é compreender “um panorama natural; ou a própria natureza […] Olhar a natureza é olhar a própria verdade budista. Por tal razão, mestre Dogen acreditava ser a natureza tal qual os sutras budistas. Neste capítulo, expõe a forma real da natureza, enfatizando sua relatividade” (DOGEN, 2007, p. 217, n.t., tradução nossa).
As montanhas são morada dos deuses porque, dentre outras razões, os deuses ali se percebem natureza. E porque a poeta assim percebe as montanhas, e os deuses, e um lugar possível para si no seio da sociedade em que vive, vai ela viver nas montanhas no verão. Yu Xuanji viver na singeleza do espaço, do território montanhoso que lhe dá guarida, e as pequenezas se lhe apresentam: os arbustos, a menor das árvores que lhe serve de varal às roupas, as pedras da fonte que lhe derramam vinho, a água pura e decerto fresca da terra, a fina seda que lhe embrulha os versos, os livros, os clássicos… Não admira que uma poeta — e que a poesia chinesa, muitas e muitas vezes, ao longo de todo o tempo que há no mundo; e não apenas a poesia, mas também a pintura, toda forma de arte, ascetismo, caligrafia, eremitérios — não admira que uma poeta se vá refugiar nesse espaço dos deuses, na própria deidade montanhosa. Afinal, para lermos tal movimento com Dogen uma vez mais:

“Normalmente, vemos as montanhas como pertencentes a um território, mas as montanhas pertencem às pessoas que as amam. Montanhas sempre amam seus ocupantes, e por isso os santos e sábios, pessoas de extrema virtude, seguem para elas. Quando santos e sábios vivem nas montanhas, porque as montanhas pertencem a eles, árvores e rochas abundam e florescem, e pássaros e mamíferos se tornam misteriosamente sublimes. Isso acontece porque os santos e sábios as cobriram de virtude.” (DOGEN, 2007, p. 224).

Santos e sábios e santas e sábias e poetas e poetas — este termo que, ao menos no Brasil em que ora escrevo, tem servido a homens e mulheres que deitam seus versos ao papel e ao mundo —, assim, são co-habitantes das montanhas, ao lado dos deuses, das águas e da natureza que, de certo modo, também ali habita. E por serem santas e sábias e poetas e atentas, pessoas com a sensibilidade de Yu Xuanji também apontam para a natureza daquilo que, na natureza espiritual da China, seja taoísta, seja budista, fundamenta a concretude do mundo, dos fenômenos todos, inclusive materiais: o vazio.
Vejam-se os versos “Abro as janelas à trilha dentre os bambus” e “Remando desço o rio, entre cantos à lua// leva-me o vento ao retorno: e ainda recito”. Contrastando-se às imagens materiais da montanha onde os deuses habitam (bosques, arbustos, roupas lavadas, a menor das árvores, fonte, pedras, vinho, seda e livros), temos o coração do vazio manifesto: à trilha entre os bambus que, do vão da janela, anuncia o veio pelo qual a energia da montanha há de fluir — e os caminhos de quem a ela acede, santos e sábios e poetas e deuses, provavelmente percorrem.
Esse vazio, complementando a concretude da paisagem natural e da vida material da montanha, dá o tom da experiência de se estar habitando tais paragens: é por essa estrada, pelo caminho, pela via do meio que se abre entre os bambus, que a poeta segue remando rio abaixo, entoando loas à lua, inspirada pelo vento que talvez lhe suba do vale e recitando um poema que havemos de ler em algum lugar. Nesta ou em outras traduções, séculos após sua morada.

Bibliografia

DOGEN, Zenji. Shobogenzo: The True Dharma-Eye Treasury. Vol. 1. Taisho Volume 82, Number 2582. Tradução do japonês de Gudo Wafu Nishijima e Chodo Cross. Tradução do Sermão das Montanhas e Águas, Carl Bielefeldt. Berkeley: Numata Center for Buddhist Translation and Research, 2006.
YU, Xuanji. Poesia Completa de Yu Xuanji. Tradução, organização e notas de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao. São Paulo: Editora Unesp, 2011.

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